Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | JOSÉ MANUEL DE ARAÚJO BARROS | ||
Descritores: | COLISÃO DE DIREITOS DIREITO DE PROPRIEDADE DIREITO DE PERSONALIDADE ÓNUS DA PROVA | ||
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Nº do Documento: | RP20140508169/07.3TBRSD.P2 | ||
Data do Acordão: | 05/08/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - A apriorística prevalência em abstracto dos direitos de personalidade sobre outros direitos deve ser relativizada, na ponderação casuística da situação de conflito que entre eles se tenha gerado, de molde a que todos produzam, na medida do possível, igualmente os seus efeitos. II - Este princípio de concordância prática, no sentido do melhor equilíbrio possível entre os direitos em colisão, deverá concretizar-se por apelo a critérios atinentes não só à natureza dos direitos colidentes como também à forma e à intensidade com que o exercício de cada um deles afecta o gozo dos outros. III - Peticionando os autores, com fundamento em factos que consubstanciam violação do seu direito ao sossego e ao repouso, o fecho de determinado estabelecimento, onde são produzidos ruídos que afectam relevantemente aquele seu direito, recai sobre os réus o ónus de alegar e de provar a sua disponibilidade para (e possibilidade de) procederem a obras eficazes de isolamento acústico, facto impeditivo do efeito jurídico por aqueles formulado, desse modo se dando aos autores a oportunidade de contraditar tal matéria. IV - É de evitar, por força do princípio da determinabilidade do conteúdo das decisões judiciais, uma condenação em que o reconhecimento do direito fica dependente da hipotética verificação de um facto futuro e incerto, exigindo ulterior verificação. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | 3ª SECÇÃO – Processo nº 169/07.3TBRSD.P2 Tribunal Judicial de Resende SUMÁRIO (artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil) I - A apriorística prevalência em abstracto dos direitos de personalidade sobre outros direitos deve ser relativizada, na ponderação casuística da situação de conflito que entre eles se tenha gerado, de molde a que todos produzam, na medida do possível, igualmente os seus efeitos II - Este princípio de concordância prática, no sentido do melhor equilíbrio possível entre os direitos em colisão, deverá concretizar-se por apelo a critérios atinentes não só à natureza dos direitos colidentes como também à forma e à intensidade com que o exercício de cada um deles afecta o gozo dos outros III - Peticionando os autores, com fundamento em factos que consubstanciam violação do seu direito ao sossego e ao repouso, o fecho de determinado estabelecimento, onde são produzidos ruídos que afectam relevantemente aquele seu direito, recai sobre os réus o ónus de alegar e de provar a sua disponibilidade para (e possibilidade de) procederem a obras eficazes de isolamento acústico, facto impeditivo do efeito jurídico por aqueles formulado, desse modo se dando aos autores a oportunidade de contraditar tal matéria IV - É de evitar, por força do princípio da determinabilidade do conteúdo das decisões judiciais, uma condenação em que o reconhecimento do direito fica dependente da hipotética verificação de um facto futuro e incerto, exigindo ulterior verificação Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto I B… e mulher, C…, intentaram a presente acção contra D…, LdA, E… e mulher, F…, G… e mulher, H…, e I…, pedindo:RELATÓRIO a) - A condenação dos 2º, 3º e 4º réus a encerrarem o estabelecimento comercial de talho e a não mais instalarem na fracção K qualquer ramo de negócio incompatível com a cláusula restritiva constante da escritura de constituição de propriedade horizontal, onde apenas se prevê a sua afectação a comércio, serviços e pequenas indústrias não poluentes nem nocivas e compatíveis com a função residencial; b) - A 1ª ré a pagar aos autores uma indemnização por danos morais e materiais sofridos, no valor global de 15,000,00 €, acrescidos de juros vencidos a partir da citação. Fundamentaram o seu pedido, em súmula, em ofensa ao seu direito de propriedade, bem como ao direito geral de personalidade e ao seu direito ao ambiente, decorrente de ruídos conexos com o funcionamento no prédio em que residem, que compraram à 1ª ré, de um estabelecimento comercial de talho, não autorizado nos termos da escritura de propriedade horizontal, explorado pelos 2ºs réus e a funcionar em fracção propriedade dos 3ºs e 4º réus. Os réus, regularmente citados, apresentaram contestação, impugnando a generalidade dos factos em que os autores estribaram a sua pretensão. A 1ª ré excepcionou ainda o caso julgado e a prescrição. Os 2ºs réus chamaram à acção J… e outros, que foram admitidos a intervir como partes acessórias e que, como tal, se apresentaram a contestar. Houve réplica. Saneado o processo, com absolvição da instância da 1ª ré, após instrução, foi efectuado o julgamento, tendo sido proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente: a) condenando o segundo réu E… a encerrar o estabelecimento comercial de talho a funcionar na fracção autónoma designada pela letra “K, correspondente ao rés-do-chão direito, do corpo segundo do edifício (corpo direito), destinada a comércio, serviços e pequenas indústrias não poluentes nem nocivas e compatíveis com função residencial, pertencente ao prédio urbano, afecto ao regime de propriedade horizontal pela inscrição F – dois, sito na …, também conhecido por …, freguesia e concelho de Resende, descrito na competente conservatória do Registo Predial sob o número mil quatrocentos e vinte e sete, daquela freguesia; condenando os 2ºs, 3ºs e 4ºs réus a absterem-se de instalarem na referida fracção qualquer actividade que não se enquadre em comércio, serviços e pequenas indústrias não poluentes nem nocivas e compatíveis com função residencial; c) absolvendo os 3ºs e 4ºs réus do demais pedido. Inconformado, interpôs o 2º réu E… o presente recurso, o qual foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente e com efeito devolutivo. Os autores contra-alegaram. Foram colhidos os vistos legais. II 1. Factos provados FUNDAMENTAÇÃO 1. Encontra-se inscrita na matriz das finanças freguesia de Resende, sob o art. 2408-D, descrita na Conservatória do Registo Predial de Resende sob o nº 01427/210200-D, e inscrita provisoriamente a favor dos Autores sob a cota G- 1, Ap.02/080102, inscrição convertida em definitiva pela cota G-1, Ap. 07/290102, uma fracção autónoma, destinada a habitação, designada pela letra “D”, localizada na cave do prédio urbano, sito no …, em Resende (cfr. al. A) dos Factos Assentes). 2. J…, K…, L…, M… e N…, como primeiros outorgantes, E…, G…, I…, como segundos outorgantes, e O…, e P…, como terceiras outorgantes, elaboraram no dia 24/01/2006, documento que intitularam de “Compra e Venda”, cujo teor consta de fls. 26-28 e que aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta, no que ora interessa o seguinte: “Os primeiros outorgantes declaram: que, pelo preço, já recebido, de trinta e dois mil e quinhentos e cinco euros, vendem aos segundos outorgantes a fracção autónoma designada pela letra “K, correspondente ao rés-do-chão direito, do corpo segundo do edifício (corpo direito), destinada a comércio, serviços e pequenas industrias não poluentes nem nocivas e compatíveis com função residencial, pertencente ao prédio urbano, afecto ao regime de propriedade horizontal pela inscrição F – dois, sito na …, também conhecido por …, freguesia e concelho de Resende, descrito na competente conservatória do Registo Predial sob o número mil quatrocentos e vinte e sete, daquela freguesia e aí registada a fracção, em comum sem determinação de parte ou direito, a favor dos vendedores pela inscrição G – dois e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 2408, com o valor patrimonial IMT de € 29.835,00. Declararam os segundos outorgantes: que aceitam a venda nos termos exarados. (…) Declararam as terceiras outorgantes: que prestam aos seus respectivos maridos o necessário consentimento para a inteira validade deste acto (cfr. al. B) dos Factos Assentes). 3. Os Autores adquiriram o apartamento referido em 1), em 22/01/2002, por se situar numa zona sossegada, factor relevante por a Autora mulher ser doente e ter constantes dores de cabeça (cfr. artigo 1.º da B.I.). 4. Vários meses após a aquisição referida em 1), na fracção referida em 2), foi montado e começou a funcionar um estabelecimento de talho, onde são vendidas todas as espécies de carnes frescas, salgadas, enchidos e charcutaria (cfr. artigo 2.º da B.I.). 5. No talho referido em 4), produz-se ruído entre as 7h00m e 20h00m, emergente das marteladas no balcão e no cepo onde se partem as carnes com facas e cutelos, bem como dos motores das câmaras de refrigeração (cfr. artigo 3.º da B.I.). 6. No talho referido em 4), a partir das 20h00m, quanto termina o ruído provocado pelo batimento dos objectos referidos em 5, torna-se mais perceptível o barulho dos motores eléctricos que mantêm o frio das câmaras frigoríficas (cfr. artigo 4.º da B.I.). 7. O referido em 6), dificulta o sono dos Autores (cfr. artigo 5.º da B.I.). 8. A paragem, durante minutos, dos motores referidos em 6) e novo arranque deles, causa ansiedade nos Autores que lhes dificulta o sono (cfr. artigo 6.º da B.I.); 2. Conclusões das alegações de recurso 1. No litígio ora em apreço, ocorre um conflito de direitos ou interesses de espécies diversas: de uma banda um direito de personalidade e da outra um direito de carácter eminentemente patrimonial. 2. Os direitos de personalidade, entre os quais se incluem o direito ao descanso e ao sono, se encontram consagrados na nossa lei constitucional e que, sendo direitos absolutos, prevalecem sobre os demais que com eles sejam antagónicos. 3. Estes direitos beneficiam também de protecção na lei ordinária, concretamente no art. 70º do Código Civil. 4. Por seu turno, os direitos de propriedade ou ao exercício de uma actividade comercial gozam, também eles, de protecção na Constituição da República Portuguesa e, ainda, na lei ordinária. 5. Existindo conflito, relevante, efectivo e irremovível entre ambos estes os direitos, haverá que os resolver de acordo com os critério de hierarquia enunciados no art. 335º do Código Civil. 6. Estas regras gerais de solução dos conflitos, não podem prejudicar uma concreta e casuística ponderação judicial, nem podem justificar o puro e simples eliminação de um direito em favor de outro. 7. Haverá sempre que ter presente o princípio da proporcionalidade e os subprincípios em que ele se desdobra: da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade em sentido estrito. 8. Ou seja, caso a caso, o Tribunal terá de averiguar e ponderar se a prevalência dos direitos de personalidade não redunda em desproporção intolerável, atentos os interesses em jogo, sendo que o sacrifício, preterição ou compressão do direito inferior apenas deverá ocorrer na estrita medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses do direito dominante. 9. O Mº Juiz “a quo” optou por uma solução que, salvo o devido respeito, é radical e desproporcionada, ordenando, pura e simplesmente, o encerramento do estabelecimento. 10. Não cuidou, antes de proferir esta gravosa decisão, de indagar se outras alternativas existiriam que pudesse harmonizar os interesses conflituantes, sem sacrificar, de modo total e absoluto, o direito dos recorrentes. 11. Estas alternativas existem. 12. Na verdade, no artigo 7º da Base Instrutória perguntava-se se “por não terem sido preparados e executados os alicerces, paredes-mestras, vigamentos, paredes divisórias, massas e materiais utilizados na construção do edifício onde estão instaladas as fracções referidas em A) e B) não é possível agora proceder à insonorização da fracção referida em B)”. 13. Tal como é pacífico entre nós, da resposta negativa a esse quesito não resulta que fique ou tenha ficado provado o contrário. 14. Portanto, não está provado in casu que não seja possível executar no estabelecimento comercial do recorrente obras de insonorização aptas a evitar a propagação de ruídos ao prédio dos recorridos. 15. Assim, em lugar da decisão drástica que proferiu, ordenando o encerramento do estabelecimento, deveria o Tribunal “a quo”, no respeito pelo invocado princípio da proporcionalidade e sub-princípios em que se decompõe, ter ordenado a realização de obras no estabelecimento ou de qualquer outra intervenção adequada, que eliminasse os ruídos nele produzidos ou eliminasse a sua fonte. 16. E somente caso o recorrente não levasse a cabo essas obras, num prazo que razoavelmente lhe fosse fixado, ou caso a insonorização não fosse possível, é que seria adequado determinar o encerramento do estabelecimento. 17. Esta seria a será a decisão que melhor conseguirá harmonizar ambos os interesses conflituantes em jogo. Subsidiariamente: 18. No caso em apreço nos autos, como resulta da factualidade apurada, encontra-se prejudicado o direito dos recorridos ao sono, o qual se torna difícil. 19. Assim, na ponderação dos interesses conflituantes, haverá que distinguir dois períodos do dia: -- o período do dia, normalmente entre as 7h00m e as 22h00m, que as pessoas dedicam às suas actividades profissionais e pessoais; -- e o período da noite, normalmente entre as 22h00m e as 7h00m, que as pessoas dedicam ao descanso e ao sono. 20. No período diurno, a actividade desenvolvida pelo recorrente, para o efeito devidamente licenciado e no uso dos direitos que lhe são conferidos pelo art. 1305º do Código Civil, não constitui causa de perturbação do sono dos recorridos, pela simples razão de que tal período não é dedicado ao sono. 21. Aliás, no período diurno, os barulhos causados pela actividade do recorrente coexistem com muitos outros produzidos por terceiros e que os recorrentes também terão de suportar. 22. Inexiste, pois, no período diurno, prejuízo anormal para o prédio dos recorridos, mormente se tivermos em conta que nos situamos em pleno coração de Resende, zona em que proliferam actividades económicas ligadas ao sector do comércio e transitam milhares de veículos. 23. Os recorridos, portanto, no dito período diurno, apenas se vêm confrontados com alguns malefícios da civilização e do progresso, que não ultrapassam atingem as raias do razoável e do suportável. 24. O ruído produzido pelo estabelecimento do recorrente durante o período do dia, não afectando, nem prejudicando o direito, que os recorridos dizem violado, ao sono, não pode constituir razão válida que escore, no período diurno, o decretado encerramento do estabelecimento. 25. Do barulho produzido durante o dia não resulta prejuízo anormal para o prédio dos recorridos, sendo ele resultante da utilização normal do prédio de onde emana. 26. Diferentes serão, porém, as coisas no período nocturno, visto que neste último período, tal como resulta da factualidade tida provada, o ruído causado pelos motores das câmaras frigoríficas instaladas no estabelecimento comercial do recorrente dificulta o sono dos recorridos. 27. Será, assim, aceitável a tomada de medidas que, nesse período nocturno, preservem e protejam o direito dos recorridos ao sono e ao descanso. 28. Neste quadro, haverá, uma vez mais que convir-se em que a pequena extensão e a gravidade da ofensa dos direitos de personalidade dos recorridos não justificam a extrema gravosidade das medidas decretadas pelo Tribunal “a quo”. 29. Adentro do respeito pelo citado princípio da proporcionalidade, o Tribunal “a quo” deveria ter decidido: -- no que tange ao período diurno (entre as 7h00m e as 22h00m), não coarctar ou impedir o funcionamento do estabelecimento comercial do recorrente. -- no que se refere ao período nocturno (entre as 22h00m e as 7h00m) decretar a proibição de o recorrente manter em funcionamento os motores das câmaras frigoríficas, fontes de ruído que prejudica o sono dos recorridos. 30. A douta sentença recorrida violou, além do mais, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos arts. 70º, 335º e 1346º, todos do Código Civil e, ainda, o princípio da proporcionalidade previsto no art. 18º da Constituição da República Portuguesa. 31. O Tribunal “a quo” interpretou e aplicou tais normas no sentido exposto na douta sentença, condenando o recorrente a encerrar o seu estabelecimento comercial. 32. A única interpretação correcta de tais preceitos era a que resultaria na prolação de uma sentença nos moldes antecedentemente preconizados nas presentes alegações. 33. A tese que mereceu acolhimento na douta sentença em apreciação implica igualmente uma violação dos artigos 58º e 61º da Constituição da República Portuguesa. Termos em que deverá ser revogada a douta decisão recorrida, substituindo-se por uma outra que decidindo em conformidade com o exposto, ordene a realização de obras no estabelecimento ou qualquer outra intervenção adequada, que elimine os ruídos nele produzidos ou elimine a sua fonte, fixando, para tal, um prazo razoável, mais determinando que, ultrapassado esse prazo, na falta dessas obras ou intervenção, o estabelecimento tenha de encerrar. Subsidiariamente e caso assim não se entenda, deverão ser considerados dois períodos distintos, um diurno e outro nocturno e decidido: -- no que toca ao período diurno (entre as 7h00m e as 22h00m), não coarctar ou impedir o funcionamento do estabelecimento comercial do recorrente. -- no que se diz respeito ao período nocturno (entre as 22h00m e as 7h00m) decretar a proibição de o recorrente manter em funcionamento os motores das câmaras frigoríficas, fontes de ruído que prejudica o sono dos recorridos. *** 3. DISCUSSÃO3.1. Na tradição jurídica clássica, o direito de propriedade, definindo a quem competia exercer domínio sobre determinado espaço, conseguia eficientemente e com autonomia resolver parte substancial das relações intersubjectivas. Na verdade, a reserva através dele instituída permitia com alguma eficácia a realização plena dos interesses essenciais do indivíduo. Um dado novo veio, entretanto, interferir com tal estado de coisas - o desenvolvimento tecnológico. Pelo qual, a propriedade foi perdendo importância como espaço de realização pessoal. De tal modo que, nos nossos dias, são imensas as possibilidades de alguém ser atingido na sua personalidade física ou moral quando refugiado naquele seu santuário - por ruídos, calor, fumos, radiações, etc. Poder-se-á dizer que, no campo das relações intersubjectivas, a ordem jurídica sente cada vez mais necessidade de assegurar não o direito a um espaço físico mas sim o direito a um espaço de realização vital. Do que resultaram dois fenómenos: por um lado, o direito de propriedade imobiliária foi-se também transformando num direito de vizinhança; por outro lado, o direito de personalidade, classicamente mais ligado ao direito criminal, emergiu com um novo fácies, ganhando relevância no conspecto do direito civil. Por força dos quais, o próprio direito de propriedade deixou de revestir o carácter de absoluta disposição de determinado espaço físico, passando a ser enformado por outros direitos que na fruição deste convergem – vg., direitos ao descanso, ao sono, a um ambiente são e ecologicamente equilibrado, à construção imobiliária, ao exercício do comércio, ao trabalho. Esta estratificação do direito de propriedade vai gerar um novo tipo de conflitualidade, conexo com a não possibilidade do exercício simultâneo de alguns dos aludidos direitos com ele conexos. 3.1.1. A regra que na lei se estipula para solucionar tais conflitos é a genericamente consagrada no artigo 335º do Código Civil que, sob a epígrafe colisão de direitos, dispõe: «1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes; 2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior». Face ao que pareceria termos facilmente chegado a uma solução. Na verdade, seja por força da previsão do artigo 70º do Código Civil, onde se prevê uma tutela geral da personalidade, seja pela dimensão constitucional do direito à saúde e a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, reconhecidamente considerado como um direito fundamental de natureza análoga, nos termos das previsões dos artigos 64º, 66º, 52º, 17º e 18º da Constituição da República Portuguesa, o direito ao sono e ao descanso dos autores sempre preponderaria sobre o direito ao trabalho e ao exercício do comércio de que os réus são titulares, de cariz meramente patrimonial. É esse o caminho que, com uma certa regularidade, vem sendo trilhado pela jurisprudência - acórdãos do STJ de 26.4.95, CJ, Tomo I, p. 155; de 22.6.95, BMJ nº 448, p. 334; de 13.3.97, BMJ nº 465, p. 516; de 6.5.98, BMJ nº 477, p. 406; de 22.10.98, BMJ nº 480, p. 413; de 15.12.98, www.dgsi.pt; de 14.4.99, BMJ nº 486, p. 252; de 21.10.2003, CJ, Tomo III, p. 106; do STA de 17.9.96, www.dgsi.pt; da Relação de Lisboa de 27.2.97, CJ, Tomo I, p. 145; da Relação de Coimbra de 13.12.99, www.dgsi.pt; da Relação do Porto de 10.1.2000, www.dgsi.pt. 3.1.2. Acontece que a regra naquele preceito estabelecida é uma típica cláusula indeterminada. Pelo que a grande dificuldade reside na forma como os direitos colidentes venham em concreto a ser cotejados. Não nos podendo limitar-nos a, na parte útil, remeter para uma apriorística prevalência de um dos direitos, por pertencer a uma categoria superior. Na verdade, tal como os direitos à vida e à liberdade, o direito ao sono e ao descanso não é nada, enquanto desligado dos juízos de valor de conteúdo sociológico que o hão-de conformar. Sendo certo que o direito à vida não se resume ao morrer ou viver, o direito à liberdade, ao tê-la ou não a ter, e o direito ao sono e ao descanso ao ter ou não ter condições para o gozar. Nenhum deles há-de ser definido em absoluto, mas tão só enquanto o interesse que lhe subjaz vier a preponderar ou não sobre outros que com ele no concreto conflituem. Exemplificando. Para viver, é necessário comer; não parece, porém, que roubar para comer consubstancie por regra o legítimo exercício do direito constitucional à vida. Do mesmo modo, o direito ao descanso e ao sono não se traduz numa exigência de que nenhum ruído possa ser produzido nas proximidades. Ele há-de ser condicionado e moldar-se àqueles limites a partir dos quais se venha a entender não ser justificável o seu sacrifício à realização de outros interesses. Fronteira que só pode ser traçada no concreto, casuisticamente construída pelo julgador, em actividade de interpretação dos valores fundamentais consagrados na sociedade. Há na verdade muitos tipos de ofensas, que sacrificam interesses mais ou menos valiosos, com maior ou menor intensidade, cometidas na satisfação de outros interesses de índole muito díspar. Não podemos, pois, encarar de forma simplista o preceito do artigo 335º do Código Civil, relativo à colisão de direitos: havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito; se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece sempre o que deva considerar-se superior. Estas asserções necessitam de ser objectivadas, verificando-se também de que forma os direitos colidem e qual a intensidade com que o exercício de cada um deles afecta o outro. Sob pena de, por exemplo, nunca se poder autorizar a passagem de automóveis numa rua, na medida em que o ruído por eles produzido perturbe o descanso de pessoas que residam em casas a ela adjacentes. Esse princípio de concordância prática, no sentido do melhor equilíbrio possível entre os direitos em colisão, está aliás consagrado no nº 2 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa, também contemplando direitos de diferente natureza. Como bem se realça no acórdão do STJ de 9.01.96 (Fernando Fabião), in www.dgsi.pt, curiosamente relativo a incómodos produzidos na exploração de um estabelecimento de talho, “claro está que é preciso decidir os casos concretos e a via indicada parece ser a que harmonize os direitos em conflito ou, se necessário, dê prevalência a um deles, de acordo com as circunstâncias concretas e à luz de uma hierarquia decorrente das próprias normas constitucionais (...) ou de aplicação de critérios metódicos abstractos que orientem a tarefa de ponderação e/ou harmonização concretas, tais como o princípio da concordância prática e a ideia do melhor equilíbrio possível entre os direitos colidentes”. A mesma ideia é expendida por PESSOA JORGE, in Pressupostos da Responsabilidade Civil, p. 201 – “a definição da superioridade de um direito em relação a outro é feita em concreto, pela ponderação dos interesses que cada titular visa atingir, não podendo afirmar-se que o interesse pessoal seja, em todas as circunstâncias, superior ao patrimonial”. Bem como nos acórdãos do STJ de 15.03.2007 (Gil Roque) e desta Relação do Porto de 12.11.2008 (Caimoto Jácome), ambos in www.dgsi.pt. Como se refere no acórdão do STJ de 27.04.2004 (Nuno Cameira), ibidem, “a prevalência dos direitos de personalidade sobre os outros direitos, mesmo os absolutos, indiscutível em abstracto, deve contudo ser afirmada pelos tribunais com base na ponderação concreta da situação ajuizada, sopesando devidamente os factos, por forma a que, havendo colisão de direitos, todos eles possam na medida do possível produzir igualmente os seus efeitos”. 3.2. Fixados os parâmetros a que importa atender, volvamos ao feito em apreciação. 3.2.1. Desde logo anotando que o tipo de interesses em jogo e a forma como conflituam os direitos que os protegem nos fazem nitidamente impender para a prevalência do direito dos autores. Na verdade, o direito destes a um ambiente são e ecologicamente equilibrado, em especial na vertente em que cada um pode exigir que se lhe preserve o meio em que vive, evitando agressões à sua saúde e ao seu bem- estar, resulta gravemente atingido quando os réus, na actividade desenvolvida no seu talho, produzem intensos ruídos sentidos por aqueles durante todo o dia, impedindo-lhes o descanso e o sono. Perante ele devendo ceder o direito de empresa de que os réus gozam, já que os interesses económicos que o justificam não assumem relevância que justifique o sacrifício daqueles. E nem sequer se diga, como o recorrente sustenta, que, no período diurno, não dedicado ao sono, não haveria de dar relevância aos barulhos causados pela actividade do recorrente, que coexistem com muitos outros produzidos por terceiros e que os autores também terão de suportar. Não foi esse o alcance com que foi alegado por estes, e veio a ser dado como provado, que na sua casa é ouvido, entre as 7 e as 20 horas, o ruído das marteladas no balcão e no cepo onde se partem as carnes com facas e cutelos, bem como dos motores das câmaras de refrigeração. O qual, pela sua intensidade e carácter inusitado, se demarca nitidamente do conjunto de sons que normalmente são ouvidos nas residências. 3.2.2. Concordaremos todavia com o recorrente quando este anota que não se impõe necessariamente a solução radical de fecho do estabelecimento, pela qual se optou na sentença. Devendo-se perspectivar outras opções, que eventualmente traduzam uma melhor composição dos interesses em conflito, por referência à natureza dos direitos que os protegem e à intensidade com que se admita que cada um deles possa ser sacrificado. Nomeadamente a de ordenar que os réus façam obras de isolamento, que afastem os incómodos sentidos pelos autores. Anote-se, no entanto, que não se provou que obras se teriam de fazer com essa virtualidade. Nem sequer se provou que tal desiderato fosse possível. E era aos réus, a quem interessava tal solução menos radical, que importaria alegar e provar a existência dessa possibilidade, como facto impeditivo da da pretensão de encerramento que os autores filiaram no seu direito – cfr. o nº 2 do artigo 342º do Código Civil. Nessa linha, refere-se no sumário do acórdão do STJ de 7.04.2011 (Lopes do Rego), in www.dgsi.pt, que, “em acção, fundada em alegada violação dos direitos de personalidade dos residentes em fracção habitacional, contígua àquela em que é exercida actividade de restauração por determinada sociedade, geradora de ruídos que afectam de forma relevante o direito ao sossego, repouso e tranquilidade dos AA, que peticionam a condenação da R. a abster-se de exercer no local tal actividade, incumbe à R. o ónus de alegar, de modo tempestivo e adequado, a sua disponibilidade para proceder a obras eficazes de isolamento acústico no seu estabelecimento, facultando à parte contrária o contraditório sobre tal matéria de facto – essencial para a dirimição do pleito, já que se traduz na invocação de factualidade parcialmente impeditiva do efeito jurídico pretendido pelos lesados”. Acrescentando-se que “não tendo sido alegada tal factualidade pela R. durante o curso do processo e culminando este na prolação de sentença que julgou procedente o pedido de abstenção do exercício da actividade lesiva, não é lícito à Relação, exorbitando a matéria de facto alegada e processualmente adquirida, substituir – na óptica da aplicação dos princípios contidos no artigo 335º do CC - tal condenação por uma inibição, meramente temporária e condicional, da actividade em causa, posta na dependência da realização eventual de obras eficazes de insonorização por parte da R., insuficientemente concretizadas e densificadas, e sem que aos AA. fosse facultada oportunidade processual de discutir tal factualidade nova”. Não colherá, assim, a outra solução propugnada pelo recorrente, na esteira do decidido no acórdão desta Relação do Porto de 12.11.2008 já supra aludido, de condenar ao fecho do estabelecimento, até que sejam feitas obras de insonorização. Aliás e de qualquer modo, será sempre de evitar uma condenação, em que parte da decisão é relegada para um momento ulterior, no qual se julgará uma nova realidade, decorrente de actos futuros a praticar. Um tal tipo de decisão - “não prosseguir a sua actividade industrial, encerrando, pelo menos temporariamente, enquanto a mesma continuar a produzir danos na saúde e bem estar dos AA., perturbar a normal utilização do prédio destes e causar danos no ambiente envolvente, realizando as obras, ou reconversões, necessárias quer para a insonorização das suas instalações de forma a não emitir ruídos que prejudiquem os segundos, quer para não emitir poeira para o prédio destes últimos, devendo abster-se finalmente da trepidação provocada pelo trânsito intensivo de camiões” - foi severamente censurado no acórdão do STJ de 6.07.2004 (Lopes Pinto), in www.dgsi.pt. No qual se considerou que “pedindo-se ao tribunal, através de acção visando a condenação da ré em prestação de facto, a resolução de um conflito, não pode este proferir decisão final em termos de tal modo indefinidos que mais configure uma decisão em procedimento cautelar e transferir para a execução a concretização dos comportamentos a adoptar pela ré”. Também no já referido acórdão do STJ de 7.04.2011 se critica uma tal solução, argumentando que “a lei processual não admite em regra, por força do princípio da determinabilidade do conteúdo das decisões judiciais, a condenação condicional, ou seja, a sentença judicial em que o reconhecimento do direito fica dependente da hipotética verificação de um facto futuro e incerto, ainda não ocorrido à data do encerramento da discussão da causa – particularmente nos casos em que o facto condicionante sempre exigiria ulterior verificação judicial, prejudicando irremediavelmente a definitividade e certeza da composição de interesses realizada na acção e a efectividade da tutela alcançada pelo demandante”. III Na improcedência do recurso, confirma-se a sentença recorrida.DISPOSITIVO Custas pelo recorrente - artigo 527º do Código de Processo Civil. Notifique e registe. Porto, 8 de Maio de 2014 José Manuel de Araújo Barros Pedro Martins Judite Pires |