Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3837/06.3TBSTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: ARRENDAMENTO COMERCIAL
ALUGUER
INDEMNIZAÇÃO
DANOS
Nº do Documento: RP201103033837/06.3TBSTS.P1
Data do Acordão: 03/03/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ALTERADA.
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não estando em causa o valor da renda, mas o mero incumprimento da obrigação do locatário de, findo o contrato, restituir a coisa no estado em que a recebeu, não tem aplicação o art.º 74.º do RAU, pelo que não há fundamento para sujeitar o aluguer dos móveis ao regime vinculístico do arrendamento nos termos nele previstos.
II - Assim, é de considerar validamente celebrado um contrato de aluguer relativamente a bens móveis cedidos aquando da celebração do contrato de arrendamento comercial, não incluídos no documento que o formaliza, ainda que não tenha sido convencionada retribuição autónoma, por se tratar de um contrato consensual.
III - O locatário é responsável pelos danos que tais móveis apresentavam aquando da sua entrega ao locador, já que se presume que os recebera em bom estado, não ilidiu esta presunção, nem demonstrou que os mesmos resultaram da sua prudente utilização ou de causa que não lhe fosse imputável.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 3837/06.3TBSTS.P1 – 3ª Secção (Apelação)
Acção Ordinária – 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santo Tirso

Rel. Deolinda Varão (509)
Adj. Des. Freitas Vieira
Adj. Des. Cruz Pereira

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B… (falecida na pendência da acção e representada pelas suas filhas, devidamente habilitadas, C…, D… e E…) instaurou acção declarativa com forma de processo comum ordinário contra F… e G….
Formulou os seguintes pedidos:
a) Ser decretada a resolução do contrato de arrendamento existente com o réu;
b) Ser o réu condenado a despejar imediatamente o arrendado, devolvendo-o à autora inteiramente livre de pessoas e coisas de sua pertença;
c) Serem ambos os réus condenados a pagar aos autores a importância de € 14.964,00, relativa às rendas vencidas e não pagas, bem como a correspondente às demais que se vencerem até efectiva entrega do arrendado, em montante a liquidar em execução de sentença, tudo acrescido dos respectivos juros, à taxa legal, desde os respectivos vencimentos até integral pagamento.
Como fundamento, alegou, em síntese, que o réu não pagou as rendas desde Outubro de 2005 (parte) até Julho de 2006 e que construiu um pavilhão e uma cobertura de passagem de acesso ao pavilhão no arrendado, sem autorização para o efeito. Alegou ainda que a ré outorgou o contrato em causa como fiadora.
Os réus contestaram, impugnando parte da matéria articulada na petição inicial, bem como alegando a existência de um acordo de pagamento das rendas em moldes diversos do estipulado por escrito – face ao qual as rendas foram pagas –, o facto de a autora se negar a emitir recibo das rendas pagas e ainda o consentimento para as obras realizadas.
A autora replicou, impugnando a factualidade articulada pelos réus, reduziu o pedido para a quantia de € 13.717,00 e pediu a condenação dos réus como litigantes de má fé em multa e indemnização no montante nunca inferior a € 1.500,00.
Em articulado superveniente, a autora ampliou o pedido nos seguintes termos:
a) Liquidando-se o pedido formulado em c) da petição inicial, devem os réus ser condenados no pagamento às autoras da quantia de € 48.383,46, acrescida dos respectivos juros de mora, à taxa legal, desde as datas dos respectivos vencimentos até integral e efectivo pagamento;
b) Devem os réus ser condenados no pagamento da quantia global de € 13.517,00, mais IVA, como compensação pelas “anomalias” existentes no arrendado à data da sua entrega coerciva às autoras, acrescida de juros, à taxa legal, desde a notificação do articulado em causa até efectivo e integral pagamento.
Como fundamento, alegou, em síntese, que, aquando da entrega do arrendado, entretanto efectuada pelos réus em 13.05.09, este apresentava diversas “anomalias” – que discriminou.
Admitido o articulado superveniente, contestou apenas a ré, impugnando parte dos factos ali alegados.
Foram aditados à base instrutória os quesitos 19º a 28º, contendo factos alegados no articulado superveniente.
Percorrida a tramitação subsequente, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou os réus F… e G…, a última como fiadora e principal pagadora, sendo, dessa forma, acessória a sua obrigação em relação à do primeiro réu, a pagarem às habilitadas da autora B…:
A) A quantia de € 48.383,46, acrescida dos respectivos juros de mora, à taxa de 4%, desde os respectivos vencimentos até integral pagamento;
B) A quantia, que se vier a liquidar ulteriormente, necessária à reparação do arrendado por forma a repô-lo no estado em que se encontrava aquando da celebração do contrato (o que exclui a reparação do referido nas alíneas MM) a PP), acrescida de juros, à taxa de 4%, desde a data do trânsito em julgado da liquidação até efectivo e integral pagamento.

A autora recorreu, formulando as seguintes
Conclusões
1ª – Nos presentes autos, e além da restante, resultou provada a seguinte matéria de facto:
“MM) Dez cadeiras em couro apresentavam rasgões.
NN) Uma cadeira em pau-santo com assento em palhinha apresentava a palhinha completamente rasgada.
OO) Seis maples, um sofá de três lugares e um cadeirão estofado encontravam-se completamente danificados e sujos.
PP) Uma mesa de escritório em madeira maciça encontrava-se manchada e riscada.”
2ª – Nos seus artºs 4º e 5º do articulado superveniente de fls., as autoras alegaram, além do mais que, “como resulta da PI, aquando do arrendamento (8), todo o mobiliário encontrava-se em bom estado de conservação e funcionamento”, tendo no antecedente artº 3º descrito o estado em que tais móveis se encontravam aquando da devolução do arrendado.
3ª – Esta factualidade foi contestada pela ré mulher nos artºs 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 14º e 15º do seu douto articulado de contestação ao articulado superveniente de fls., impugnando-a, mas sem negar (i) que tais móveis existissem; (ii) que à data do arrendamento estivessem em condições de serem normalmente usados; (iii) que tivessem sido (ab)usados pelos réus durante a ocupação do arrendado.
4ª – Assim, e tendo em conta o estado em que demonstradamente estes móveis se encontravam quando foram devolvidos às autoras, impõe-se a condenação dos réus na respectiva reparação.
Sem prescindir e quando assim não se entenda,
5ª – Na matéria de facto levada à base instrutória, não consta qualquer facto relativo ao estado desses móveis à data do contrato de arrendamento.
6ª – Não foi seleccionada toda a matéria de facto controvertida relevante para a boa decisão da causa, designadamente a respeitante ao estado dos móveis em causa à data da celebração do contrato de arrendamento.
7ª – Assim, impõe-se a anulação desta parte da douta sentença proferida, por ser indispensável a ampliação da matéria de facto, mandando-se repetir o julgamento para apurar estes factos.
8ª – A douta sentença proferida violou, além do mais, o disposto nos artºs 1038º, 1043º e 1044º, todos do CC, bem como, sem prescindir, os comandos do artº 511º, 1 do CPC.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II.
Com interesse para a decisão do recurso, estão provados os seguintes factos:
A autora é dona e legítima possuidora do prédio urbano designado por “…”, sito no …, freguesia de …, nesta Comarca e inscrito na matriz predial sob o artigo 133. (A)
Por documento escrito denominado de “contrato de arrendamento comercial”, datado de 15.01.01, a autora declarou ceder ao réu F… parte do prédio identificado em A), composta pelos fundos da casa, pelos salões e cozinha da mesma, bem como o jardim, o espaço montado no exterior para salão de festas e o terreno destinado a parque de estacionamento, para ali exercer actividades próprias da sua indústria de hotelaria, tais como realizar festas de casamento e outras, não podendo ser utilizado para outros fins, nem ser sublocado no todo ou em parte sem o consentimento escrito da autora, tendo a ré G… assumido a qualidade de fiadora e principal pagadora das obrigações do 1º réu, conforme teor de fls. 8 a 11. (B)
Mais acordaram as partes em tal documento que o referido contrato teve o seu início no 01.01.01 e terminava a 31.10.04, e em caso de não haver denúncia por qualquer das partes efectuada com seus meses de antecedência, seria renovado por períodos sucessivos de três anos, conforme documento de fls. 8 a 11. (C)
Mais ficou acordado que como contrapartida da referida cedência, o réu F… pagaria à autora a renda anual de Esc. 4.200.000$00 (quatro milhões e duzentos mil escudos), que seria paga da seguinte forma: nos meses de Maio a Outubro de cada ano, inclusive, pagaria a quantia mensal de Esc. 500.000$00 (quinhentos mil escudos) e nos meses de Novembro a Abril, inclusive, pagaria a quantia mensal de Esc. 200.000$00 (duzentos mil escudos), através de transferência bancária para a conta da autora, no Banco H…, nº .-…….-…-.., no primeiro dia útil anterior ao mês a que disser respeito, conforme teor de documento de fls. 8 a 11. (D)
Por força do acordo supra referido, o réu passou a ocupar o arrendado, nele desenvolvendo a sua actividade comercial. (E)
(…)
Autora e réu acordaram em que este construiria umas novas casas de banho. (EE)
O pavilhão que existia no arrendado era uma estrutura amovível e precária. (AA)
O espaço montado no exterior para salão de festas referido no acordo constante em B) consistia num pavilhão composto por uma estrutura metálica coberta por uma lona. (1º)
O réu procedeu ao reforço da estrutura de ferro já existente a fim de a mesma suportar o tecto falso e aumentou-o, ficando o pavilhão referido em BB) com um área não concretamente apurada mas superior à do pré-existente e coberto com Onduline a ele fixada.
O pavilhão construído pelo réu, tendo em conta os materiais utilizados para os tectos – integralmente revestidos em pladur e telhado – constitui uma instalação com carácter definitivo. (BB)
Na zona adjacente à casa, o réu procedeu à cobertura de uma passagem de acesso ao pavilhão com a área de 56m2. (CC)
Para o que construiu uma estrutura com barrotes e traves de madeira, sobre a qual assentou um telhado com o mesmo material com que equipou o pavilhão referido. (DD)
Para proceder ao aumento do pavilhão em causa, o Réu destruiu parte do jardim existente, bem como abateu uma árvore. (4º)
Os réus procederam à entrega coerciva do espaço exterior relativo ao prédio arrendado em 13.03.09, tendo procedido à entrega voluntária do edifício em data prévia. (19º)
Na data acima referida, no arrendado estava implantado:
a) no jardim, um pavilhão de festas em caixilharia de alumínio branco;
b) no exterior do imóvel, um maciço revestido a mosaico danificado e esburacado, sendo que o mosaico na zona onde se encontravam implantadas as casas de banho, é de cor cinza e na zona onde se encontrava implantado o terreiro é de cor tijolo. (20º)
A cozinha encontrava-se sem qualquer mobiliário, porquanto o mesmo havia sido removido. (21º e 22º)
Dez cadeiras em couro apresentavam rasgões. (23º)
Uma cadeira de pau-santo com assento em palhinha apresentava a palhinha completamente rasgada. (24º)
Seis maples, um sofá de três lugares e um cadeirão estofado encontravam-se completamente danificados e sujos. (25º)
Uma mesa de escritório em madeira maciça encontrava-se manchada e riscada. (26º)

Com interesse para a decisão do recurso, está ainda provado o seguinte facto (artº 659º, nº 3 do CPC):
Aquando da entrega ao réu F… da parte do prédio urbano referida em B), a autora entregou-lhe também os bens móveis discriminados em 21º a 26º para que o réu os usasse. (confissão dos réus nos artºs 10º e 15º da resposta ao articulado superveniente)
*
III.
As questões a decidir – delimitadas pelas conclusões da alegação da apelante (artºs 684º, nº 3 e 690º, nºs 1 e 3 do CPC, na redacção anterior ao DL 303/07, de 24.08) – são as seguintes:
- Se os réus devem ser condenados a indemnizar a autora pelos danos apresentados pelos bens móveis descritos nas respostas aos quesitos 23º a 26º;
- Caso assim não se entenda, se deve ser ampliada a base instrutória a fim de se averiguar se, à data da celebração do contrato de arrendamento, aqueles bens se encontravam em bom estado de conservação.

Na sentença recorrida, julgou-se improcedente o pedido de indemnização pelo danos apresentados pelos bens móveis identificados nas respostas aos quesitos 21º a 26º com o fundamento de os mesmos não constarem do contrato de arrendamento celebrado entre a autora e o réu F….
Assim, antes de mais, há que decidir se entre a autora e aquele réu foi celebrado algum contrato tendo por objecto a cedência do uso e fruição dos referidos bens.

A Lei 6/06 de 27.02 – que entrou em vigor em 28.06.06 (artº 65º, nº 2) – revogou o Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo DL 321-B/90, de 15.10, com todas as alterações subsequentes, salvo nas matérias a que se referem os artºs 26º e 28º (que aqui não interessam) – artº 60º, nº 1.
Diz o nº 1 do artº 12º do CC que a lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
Estabelece-se ali o princípio da não retroactividade da lei, a menos que tal eficácia retroactiva lhe tenha sido atribuída. Mesmo assim, ressalvam-se os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
Na 1ª parte do nº 2 do artº 12º previnem-se, em primeiro lugar, os princípios legais relativos às condições de validade substancial ou formal de quaisquer actos, ou referentes aos seus efeitos. Quando estes estão em causa, aplica-se, em caso de dúvida, a lei vigente à data da prática do acto.
Na 2ª parte daquele nº 2, estabelece-se o princípio da aplicação da lei nova quando esta dispuser directamente sobre o conteúdo das relações jurídicas e for indiferente o facto que lhes deu origem[1].
O nº 2 do artº 12º do CC refere-se à lei substantiva, pois que é esta que rege as relações jurídicas e os factos que lhes dão causa.
Diz o artº 59º, nº 1 da Lei 6/06 que o NRAU se aplica aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.
Segundo o nº 3 do mesmo preceito, as normas supletivas contidas no NRAU só se aplicam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor da Lei quando não sejam em sentido oposto ao da norma supletiva vigente aquando da celebração, caso em que é essa a norma aplicável.
Quando se diz no nº 1 do artº 59º da Lei 6/06 que o NRAU se aplica aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, está-se apenas a reproduzir a regra geral da aplicação imediata, não retroactiva, da lei, quer substantiva, quer adjectiva, consagrada no nº 1 do artº 12º do CC.
A parte final do nº 1 e o nº 3 do artº 59º da Lei 6/06, que se reportam às normas de natureza substantiva, estabelecem duas excepções àquela aplicação imediata: a) a resultante das normas transitórias constantes dos artºs 26º a 58º (2ª parte do nº 1); b) a atinente às normas supletivas contidas no NRAU (nº 3).
Os citados preceitos não afastam assim a aplicação das regras do nº 2 do artº 12º do CC, pelas quais se continuará a reger a aplicação das normas substantivas do NRAU aos contratos celebrados antes da sua vigência.
É este o entendimento de Laurinda Gemas e outros[2] quando escrevem que, nas acções intentadas após o início de vigência da Lei 6/06, em princípio, é aplicável o NRAU, ainda que os factos em discussão tenham ocorrido no domínio do RAU ou de lei anterior. O que importa é que esses factos subsistam e possam produzir o efeito pretendido na vigência da nova lei. Se os factos ocorreram no domínio da lei antiga e aí produziram já plenos efeitos, é-lhes aplicável a lei então vigente. No entanto, aos contratos de arrendamento celebrados no domínio de vigência do RAU, aplicam-se ainda as regras sobre validade (forma e objecto) e interpretação negocial em vigor à data da celebração dos mesmos (cfr. artº 12º do CC).

O contrato em causa nos presentes autos é um contrato de arrendamento comercial e foi celebrado em 15.01.01, ou seja, no domínio de vigência do RAU, pelo que, no que respeita à sua validade e à interpretação das suas cláusulas são-lhe aplicáveis as normas deste Diploma – pese embora a presente acção tenha sido instaurada em 31.07.06, já após a entrada em vigor do NRAU.

O artº 1022º do CC define locação como o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição.
Por seu turno, o artº 1023º do mesmo Diploma estipula que a locação se diz arrendamento quando versa sobre coisa imóvel, aluguer quando incide sobre coisa móvel.
Segundo o artº 1º do RAU, arrendamento urbano é o contrato pelo qual uma das partes concede à outra o gozo temporário de um prédio urbano, no todo ou em parte, mediante retribuição.
A noção de arrendamento para comércio ou indústria é-nos dada pelo artº 110º do RAU, considerando-se realizado para comércio ou indústria o arrendamento de prédios ou partes de prédio urbano ou rústico tomados para fins directamente relacionados com uma actividade comercial ou industrial.
Sob a epígrafe “Casas Mobiladas”, diz o artº 74º do RAU que, quando o arrendamento do prédio para habitação seja acompanhado do aluguer da respectiva mobília ao mesmo locatário, se considera arrendamento urbano todo o contrato e renda todo o preço locativo.
Aquela norma foi decalcada do anterior artº 1107º do CC, e, a propósito desta, dizem Pires de Lima e Antunes Varela[3] que a sua ratio foi a de impedir que, através do aluguer de móveis, se facultasse ao senhorio o direito de aumentar a renda. Reduzindo-se o contrato, para qualquer efeito, à figura do arrendamento urbano (sujeitando, assim, todo o contrato às normas restritivas da liberdade contratual próprias do arrendamento – não comuns ao aluguer); os móveis passaram a constituir, praticamente, elementos componentes do prédio locado. É um caso típico em que a lei submete a disciplina do contrato misto ao regime da parte do contrato que considera o elemento preponderante, fundamental, dentro da economia da relação.
A norma do artº 74º do RAU impunha a teoria da absorção, por razões que se prendiam com a protecção do arrendatário, num sistema caracterizado pelo vinculismo: evitar o aumento encapotado da renda através do aumento do valor do aluguer[4].
Como salienta Pinto Furtado[5], com semelhante disposição intentou a lei cortar a fuga ao regime vinculístico através de semelhante contrato misto.
Diz o artº 7º, nº 1 do RAU (na redacção do DL 64-A/00, de 22.04) que o contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito.
Tendo em conta o disposto no artº 74º, se o arrendamento for acompanhado do aluguer dos móveis, tal deve fazer parte do conteúdo do contrato de arrendamento, devendo constar do documento escrito que o formaliza ou, pelo menos, de um outro documento escrito anexo ao contrato. É o que resulta do disposto no artº 8º, nº 2, al. i) e nº 4 do RAU.
Como se tem entendido, as formalidades exigidas pelos citados artºs 7º, nº 1 e 8º são formalidades ad substantiam, pelo que a prova do conteúdo do contrato de arrendamento só pode ser feita através dos documentos escritos ali previstos, não podendo ser substituída por qualquer outro meio de prova (artº 363º, nº 1 do CC) – não obstando a este entendimento o disposto no nº 2 do artº 7º do RAU[6].
Assim, se no contrato de arrendamento não se fizer referência ao aluguer dos móveis, não pode este ser provado por qualquer outro meio.
A norma do artº 74º do RAU está inserida no Capítulo II, que rege o arrendamento urbano para habitação.
Ainda que se entenda ser aquela norma uma norma excepcional, cremos que será de aplicar extensivamente, nos termos do artº 11º do CC, a todo o tipo de contratos de arrendamento urbano.
Já vimos que a razão de ser da norma é a manutenção do regime vinculístico do arrendamento, no qual se afasta o princípio da liberdade contratual em nome da protecção do arrendatário.
No RAU, os arrendamentos para comércio continuaram a estar sujeitos ao regime vinculístico (embora de uma forma menos acentuada do que os arrendamentos para habitação).
E um dos aspectos em que o regime de vínculos se manifesta no arrendamento para comércio é precisamente no que respeita à fixação e actualização de rendas, cujas regras são comuns às do arrendamento para habitação (artºs 19º a 39º do RAU), apenas com a ressalva do artº 119º do mesmo Diploma, que entrega à vontade das partes o estabelecimento do regime de actualização das rendas nas circunstâncias ali determinadas.
Ora, se a norma do artº 74º do RAU visa proteger o arrendatário de um aumento da renda sob o pretexto do aumento do aluguer, essa protecção tem de se estender também ao arrendatário comercial, pois que, neste concreto aspecto da fixação e actualização da renda, também no arrendamento comercial vigoram os princípios do regime vinculístico.
Aliás, após as alterações introduzidas pela Lei 6/06 no Código Civil, a matéria em causa encontra-se agora prevista no artº 1065º, sob a epígrafe “imóveis mobilados e acessórios”, o qual está inserido nas disposições gerais sobre arrendamento urbano, aplicando-se, portanto, a todo o tipo de arrendamento de prédios urbanos (cfr. artº 1064º).
E, embora a solução seja diferente da anterior, tendo-se estabelecido apenas uma presunção, ilidível pelas partes, continua a haver alguma protecção do arrendatário, embora atenuada, como é timbre do NRAU[7].
Numa primeira análise, poderia, assim, concluir-se que, não constando do contrato de arrendamento comercial celebrado entre a autora e o réu F… a cedência do uso dos bens móveis descritos nas respostas aos quesitos, estaria a autora impedida de provar aquela cedência, mesmo através da confissão dos réus, expressa na resposta ao articulado superveniente (cfr. o citado artº 364º, nºs 1 e 2 do CC).
No entanto, é a própria ratio da norma do artº 74º que nos conduz à conclusão contrária.
Se o que ali se visa é impedir o aumento da renda, a teoria do contrato misto e a sujeição do aluguer ao regime do arrendamento só terão razão de ser quando estiver em causa um aumento de renda: ou seja, quando o senhorio, usando o facto de, em simultâneo com a cedência do uso e fruição do imóvel, ter sido cedido também o uso e fruição dos bens móveis que ali existem, pretender aumentar o valor do aluguer, prevalecendo-se das normas gerais da locação, que nenhuma restrição impõem a esse aumento.
Nestes casos, funcionará então a norma do artº 74º do RAU, que, absorvendo o aluguer no arrendamento, o sujeita ao regime vinculístico deste, dessa forma se impedindo o aumento da renda encapotado no aumento do aluguer.
Ora, na situação dos autos, não se discute qualquer aumento da renda, mas sim o incumprimento da obrigação do réu, enquanto locatário, de restituir a coisa no estado em que a recebeu (artº 1043º, nº 1 do CC).
Estamos, pois, fora, do âmbito da protecção ao arrendatário prevista na norma do artº 74º do RAU, pelo que não há fundamento para sujeitar o aluguer dos móveis ao regime vinculístico do arrendamento, nos termos ali previstos.
E como o contrato de aluguer é um contrato consensual, não estando sujeito a qualquer forma especial, pode a autora provar por qualquer meio que celebrou tal contrato.
A tal não se opõe, sequer, o disposto no artº 210º, nº 2 do CC, nos termos do qual, os negócios jurídicos que têm por objecto a coisa principal não abrangem, salvo declaração em contrário, as coisas acessórias.
E os móveis, adornos e utensílios pertencentes a certo prédio urbano são coisas acessórias[8].
Dizemos que não se opõe porque não está em causa saber se o contrato de arrendamento abrangia os bens móveis, mas sim se as partes cederam o uso e fruição destes – o que não estavam impedidas de fazer através de um contrato de aluguer.

Ora, está provado que, aquando da entrega do arrendado, a autora entregou igualmente ao réu F… os bens móveis discriminados nas respostas aos quesitos 21º a 26º para que este os usasse.
Não dizendo as partes que tenha sido convencionada retribuição autónoma para o aluguer dos móveis, considera-se esta englobada na renda devida pelo uso e fruição do imóvel, o que não descaracteriza o contrato como de aluguer.
Resulta, pois, da factualidade assente nos autos que entre a autora e o réu F… foi celebrado um contrato de aluguer, tendo por objecto os bens móveis discriminados nas respostas aos quesitos 21º a 26º - o qual, sendo um contrato de locação, se rege pelas normas dos artºs 1024º a 1063º do CC, na redacção anterior à introduzida pela Lei 6/06.

Uma das obrigações do locatário enumeradas no artº 1038º do CC (al. g)) é a de não fazer da coisa uma utilização imprudente.
A tal dever se refere também o artº 1043º, nº 1 do CC, ao estipular que, na falta de convenção, o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvando as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato.
Nos termos do nº 2 do mesmo preceito, presume-se que a coisa foi entregue ao locatário em bom estado de manutenção, quando não exista documento onde as partes tenham descrito o estado ao tempo da entrega.
A presunção ali estabelecida é uma presunção juris tantum, ilidível por prova em contrário (artº 350º do CC).
Finalmente, diz o artº 1044º do CC que o locatário responde pela perda ou deteriorações da coisa, não exceptuadas no artigo anterior, salvo se resultarem de causa que lhe não seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização desta.
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela[9], a expressão imputável ao locatário ou a terceiro, usada no artº 1044º, significa apenas devida a facto do locatário ou de terceiro, pois não é necessário que haja culpa do locatário na perda ou deterioração da coisa; basta que elas sejam devidas ao locatário ou a qualquer pessoa a quem ele tenha autorizado a utilização.

No caso, tendo o contrato sido celebrado verbalmente, presume-se que os bens foram entregues ao réu F… em bom estado de manutenção.
A tal respeito, alegou-se apenas na resposta ao articulado superveniente que, quando foram entregues, os bens já tinham dezenas de anos de uso e que não se encontravam no estado de novos.
Tal não é suficiente para ilidir a presunção prevista no artº 1043º, nº 2, já que peças de mobiliário com dezenas de anos de uso é evidente que já não são novas, mas tal não obsta a que estivessem em bom estado de manutenção quando foram entregues. A fim de ilidir a referida presunção, impunha-se que tivesse sido descrito o estado dos bens à data da entrega – o que não foi feito.
Não se tendo ilidido a presunção, só não assistiria à autora o direito a obter a reparação dos bens, se:
- o estado em que eles se encontravam à data da entrega do arrendado pelos réus se devesse a uma prudente utilização;
- se, ainda que o estão se devesse a uma imprudente utilização, não fosse o mesmo imputável ao réu F… ou a terceiros a quem tenha permitido a utilização dos bens.
Ora, dez cadeiras em coiro com rasgões, uma cadeira em pau-santo com assento de palhinha completamente rasgada, seis maples, um sofá de três lugares e um cadeirão estofado completamente danificados e sujos e uma mesa de escritório em madeira maciça manchada e riscada, não podem ser consideradas como deteriorações devidas a uma prudente utilização dos bens, mesmo tendo em conta o uso dado ao arrendado de realização de festas de casamento e outras.
Por outro lado, nada foi alegado no sentido de os danos não serem imputáveis ao locatário ou a terceiros por ele autorizados a usar os bens.
Assiste assim à autora o direito à reparação dos bens alugados, por força do disposto nos citados artºs 1038º, al. g), 1043º, nº 1 e 1044º, todos do CC.
Não tendo a autora logrado provar o valor das reparações, terá o mesmo de ser liquidar posteriormente, ao abrigo do disposto no artº 661º, nº 2 do CPC.

Finalmente, há que dizer que a responsabilidade pela reparação impende apenas sobre o réu F…, uma vez que resulta do contrato de aluguer que considerámos ter celebrado com a autora.
A ré G… não é responsável porque não ficou demonstrado que tivesse intervindo no contrato de aluguer como fiadora.
*
IV.
Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência:
- Condena-se o réu F… a pagar à autora a quantia que se vier a liquidar ulteriormente, necessária à reparação dos bens móveis descritos nas respostas aos quesitos 21º a 26º, por forma a repô-los no estado em que se encontravam aquando da celebração do contrato, acrescida de juros à taxa de 4% desde a data do trânsito em julgado da liquidação até efectivo e integral pagamento;
- Mantém-se o mais que foi decidido.
Custas da apelação pela autora e pelo réu F… na proporção de ½.
***
Porto, 03 de Março de 2011
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão
Evaristo José Freitas Vieira
José da Cruz Pereira
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[1] Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, I, 3ª ed., págs. 60 e 61.
[2] Arrendamento Urbano, Novo Regime Anotado e Legislação Complementar, 2ª ed., págs. 102 e 103, nota 1. [3] CC Anotado, II, 3ª ed., pág. 619.
[4] Laurinda Gemas e Outros, obra citada, pág. 224.
[5] Manual do Arrendamento Urbano, pág. 219.
[6] Sobre esta matéria, ver Pinto Furtado, obra citada, págs. 345 e seguintes.
[7] A este propósito, ver Laurinda Gemas e Outros, obra e lugar citados na nota 5.
[8] Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, I, 3ª ed., pág. 203.
[9] CC Anotado, II, 3ª ed., pág. 405.