Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
519/23.5T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA
Descritores: CAUSA PREJUDICIAL
Nº do Documento: RP20240116519/23.5T8VFR.P1
Data do Acordão: 01/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Diz-se que uma causa é prejudicial quando a sua decisão pode contender ou destruir o fundamento ou razão de ser de outra já proposta, dita dependente, ou quando naquela se discute uma questão cuja resolução, por si só, pode modificar a situação jurídica subjacente a esta. Dito de outro modo, uma causa é prejudicial doutra quando o objecto daquela é condição para a apreciação do objecto desta.
II – Esta relação de dependência ou prejudicialidade só ocorrerá quando pudermos afirmar que a força do caso julgado da decisão a proferir na acção principal se irá impor às partes da acção subsequente. A autoridade do caso julgado material está para a prejudicialidade como a excepção dilatória do caso julgado está para a litispendência.
III – Assim, a identificação da causa prejudicial e da causa dependente baseia-se em razões lógicas e não cronológicas, pelo que não releva saber qual das acções foi proposta em primeiro lugar ou em qual delas a citação do réu ocorreu primeiramente, ao contrário do que sucede, por exemplo, na listispendência.
IV – É também totalmente irrelevante o apuramento dos factos assentes e dos factos que permanecem controvertidos em cada uma das acções, visto que a prejudicialidade é a consequência da relação que se estabelece entre os objectos processuais de diferentes acções e não da análise probatória nelas desenvolvida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo m.º 519/23.3T8VFR.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
AA, residente na Rua ..., n.º ..., 4.º, ... ..., intentou contra BB, residente na Rua ..., ... ..., a presente acção comum.
Alegou, em síntese, o seguinte: em 09.05.2022 acordou com o réu a realização, por este, de diversos trabalhos de carpintaria na sua habitação; em contrapartida, ficou obrigado a pagar o respectivo preço, inicialmente no valor de 8.000,00 €, e depois, por ter sido acordada a realização de trabalhos adicionais, de 9.100,00 €, com IVA incluído, tendo procedido em 09.05.2022 ao pagamento da quantia de 4.000,00 €, IVA incluído; os trabalhos não foram correctamente realizados, padecendo de diversos defeitos e não estando terminados; não obstante, o réu remeteu ao autor um factura, com data de 23.12.202 e vencimento no mesmo dia, no valor de 17.354,07 €, sendo 3.245,07 € correspondente a IVA, e um recibo do pagamento de 4000,00 € sem IVA, com a mesma data; a actuação do réu causou ao autor danos patrimoniais de valor não inferior a 8000,00 € e danos não patrimoniais que avalia em 1000,00 €.
Concluiu deduzindo o seguinte pedido:
«Nestes termos e nos mais de direito que V. Exa. doutamente suprirá, deve a presente ação ser julgada totalmente procedente e, em consequência,
a) Ser o orçamento e a fatura enviados ao A. declarados nulos por não aceites pelo A., por não retratarem a realidade contratada, nem quanto ao valor e descrição, nomeadamente número de metros aplicados e falta de requisitos de forma, bem como assinaturas dos intervenientes de A. e R. nomeadamente no orçamento;
b) Ser condenado o Réu a emitir recibo ao A. com data de 9/05/2022 no valor de 4000,00€, com IVA incluído, referente ao valor pago por este a título de adiantamento de 50% do valor contratado de 8000,00€.
e) ser efetuada a redução do preço total contratado de 9100,00€ – IVA incluído (cozinha, portas laterais do coluna, rodapés e guarnições) para o valor de 4000,00€, IVA Incluído e o Réu a reconhecer os defeitos, os quais não quis eliminar nem terminar a obra.
d) Ser o Réu condenado a pagar ao Autor a quantia de 9000,00€, acrescida de juros desde a citação, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento, sendo 1000,00€ a título de indemnização por danos não patrimoniais e 8000,00€ a título de danos patrimoniais a título do peticionado em 41º e 42º desta p.i.
e) Ser ainda condenado em custas e procuradoria condignas.»
O réu apresentou contestação, onde começou por confirmar o acordo inicialmente celebrado entre as partes, bem como o pagamento parcial de 4000,00 €, conforme alegado nos artigos 1 a 4 da petição inicial, não fazendo qualquer ressalva quanto à inclusão do IVA no preço acordado. Mais confirmou o acordo relativo aos trabalhos adicionais mencionados pelo autor e ao respectivo preço. Alegou, contudo, que durante a execução dos trabalhos, o autor solicitou que os rodapés fossem lacados, o que fez aumentar o custo dos mesmos, de cerca de 3.000,00 € para 6.000,00 €, ao que o autor não se opôs. Impugnou ainda os defeitos invocados, esclarecendo que eliminou o único que lhe foi comunicado, mais afirmando que foi o autor que se recusou a recebê-lo quando se deslocou à obra para terminar o serviço. Referiu, por fim, que em 23.01.2023 intentou contra o aqui autor uma acção declarativa nos Julgados de Paz de Santa Maria da Feira, tendo em vista o pagamento do preço ainda em dívida, a correr termos sob o n.º 7/2023.
Os autos prosseguiram os seus termos, tendo o tribunal a quo – depois de recolher elementos relativos ao processo pendente nos Julgados de Paz, de verificar que não ocorre uma situação de litispendência e de assegurar o exercício do contraditório relativamente à possibilidade de aquela acção poder configurar uma causa prejudicial desta (o que mereceu a discordância do aqui autor, que apenas admite a possibilidade de esta acção constituir causa prejudicial da pendente nos Julgados de Paz) – proferido despacho onde ordenou «a suspensão dos presentes autos por verificada a dependência de uma causa prejudicial atenta a acção intentada nos Julgados de Paz de Santa Maria da Feira, sob o processo n.º 7/2023, a qual constitui causa prejudicial em relação aos presentes autos – art.º 272.º/1, 1ª parte, do CPC».
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Inconformado, o autor apelou deste despacho, apresentando a respectiva alegação, que termina com as seguintes conclusões:
«1.º O Tribunal a quo ordenou a suspensão dos presentes autos por entender verificada a dependência de uma causa prejudicial atenta a ação intentada nos Julgados de Paz de Santa Maria da Feira, sob o processo 7/2023, nos termos da 1.ª parte do artigo 272.º do C.P.C.
2.º O Recorrente não concorda com a fundamentação apresentada pelo tribunal no sentido de que as questões suscitadas na ação intentada nos Julgados de paz de Santa Maria da Feira, sob o processo n.º 7/2023, tenham que ser apreciadas em primeiro lugar, pois podem constituir causa prejudicial em relação aos presentes autos, a redução do preço depende necessariamente de se saber qual o preço a que se vai reduzir, e este preço é precisamente o discutido na ação intentada nos Julgados de Paz.
3.º Em primeiro lugar esta ação não deveria ter sido suspensa dado que a mesma vai muito mais adiantada que a ação proposta nos Julgados de Paz, tendo em conta que o aqui Recorrente foi citado para a ação nos Julgados de Paz somente a 10/03/2023, enquanto que o Recorrido foi citado a 14/02/2023 para contestar esta ação, sendo certo que tanto a suspensão verificada na ação dos julgados de Paz, como ora nesta ação estão a causar prejuízo sério ao Recorrente, pois não antecipa o seu problema solucionado.
4.º Enquanto que, nos Julgados de Paz, houve uma petição, uma contestação e uma suspensão da instância, a 26 de Abril passado, por se entendido
“a fim de evitar eventuais decisões suspendem-se os presentes autos até à decisão a ser proferida nesse processo judicial. Com efeito, na medida em que, neste mesmo processo o Demandado (Aí Autor) pretende designadamente e ao que releva, a redução do preço total que contratou com o demandante (aí Réu) alegando que a obra apresenta defeitos, e, neste processo, o demandante pretende o pagamento de parte do preço que alega estar em falta, cremos ser de todo conveniente e útil que se aprecie e decida desse outro pedido previamente à decisão a proferir nos presentes autos, sob pena de eventual existência de decisões contraditórias”.
5.º O Artigo 272.º, nº 2 do C.P.C., segunda parte, refere que não deve ser ordenada a suspensão se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens.
É o caso dos presentes autos.
6.º Ii - A questão do preço como causa de relação de prejudicialidade:
“Saber qual o preço a que se vai reduzir”
O preço já está achado nesta ação cível, pois o Recorrido confessou a existência de um acordo celebrado no valor de 8000,00€, preço contratado com o Recorrente (veja-se o que diz o despacho do Meritíssimo Juiz a este respeito na referência 127897362 a pág. 2, “Citado o Réu confirma a existência de um acordo celebrado com o Autor no dia 09/05/2022, relativo à prestação de serviços de carpintaria. Todavia impugna o preço alegado pelo autos, uma vez que a quantia de 8000,00€ não incluía (sic) IVA”), Ou seja estaria aqui em causa se incluíria (sic) o IVA ou não, mas o preço do contratado foi aquele, o que vai de encontro à questão do despacho da Meritíssima Juíza de Paz.
7.º Com efeito, o Recorrido, aceitou o vertido de 1.º a 4.º da PI onde expressamente o Recorrente refere sempre que os valores têm IVA incluído, quer nos 8000,00€ quer nos 4000,00€, donde que o referido em 8.º da Contestação deve entender-se 4000,00€ com IVA incluído, não havendo assim qualquer dúvida quanto ao preço acordado.
8.º Isto é fulcral para se determinar se o Recorrido nos julgados de Paz tem direito a ser ressarcido do montante duma factura cujo valor refletido nada tem que ver com o confessado nestes autos e que respeita ao mesmo acordo de contratação de serviços de carpintaria no valor de 8000,00€.
9.º O Recorrido aceitou no seu artigo 9.º da contestação o seguinte:
“9. Pelo que se aceita os factos vertidos em 1 a 4 da P.I.”
10.º Quantos aos defeitos,
O Recorrido também reconhece a sua existência e o não acabamento do serviço contratado, confissão que foi aceite também pelo aqui recorrente para não mais ser retirada, cfr Resposta com a referência 14487071.
11.º Factos que não existem na ação dos Julgados de Paz, pois o aqui Recorrido e lá demandante peticionou um débito de 17.354,07€, descontando a entrega do valor de 4000,00€, referente a um contrato celebrado naquele valor de 17354,07€ (IVA INCLUÍDO), algo muito diferente da sua confissão neste processo civel (sic) em que aceita que o contratado foram 8000,00€ (IVA INCLUÍDO).
12.º Assim se o motivo da suspensão tem a ver com o preço que se discute, o mesmo já foi achado nestes autos.
13.º No despacho com a referência 127897362 o problema era a acção intentada em primeiro lugar (cfr última folha no 2.º $) ter sido nos Julgados de Paz, no segundo despacho, referência 128941304 o problema já não é esse, mas sim “a suspensão nada tem que ver com qual das acções foi proposta em primeiro ou segundo lugar em termos temporais…” , ver pág. 1 penúlimo § do despacho, ou seja mas sim saber o preço contratado efetivamente.
14.º Neste momento não se justifica de nenhuma forma a suspensão desta instância, há um preço, há reconhecimento de defeitos e danos também pelo próprio Recorrido, apenas faltam apurar se os montantes pedidos de indemnização são os peticionados pelo Recorrente.
15.º Pelo que, entende o Recorrente deverem os autos prosseguir nesta instância Civel (sic).
16.º O motivo invocado para a suspensão tem de ser suficientemente ponderoso para justificar a postergação de princípios fundamentais do processo civil – artºs 2.º, 4.º, 6, n.º 1 do C.P.C. e artigo 20.º da Constituição que honestamente não vislumbramos.
Com a decisão proferida o tribunal violou, entre outros os artigos 2.º, 4.º, 6.º, n.º 1, 272.º, n.º 1 e 2 do C.P.C. e artigo 20.º da C.R.P.»
Concluiu pugnando pela revogação da decisão proferida e pela sua substituição por outra que determine o prosseguimento dos autos.
O réu respondeu à alegação do recorrente, pugnando pela total improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, são as seguintes as questões a decidir:
- Saber se a acção pendente nos Julgados de Paz de Santa Maria da Feira configura uma causa prejudicial relativamente a esta acção;
- No caso afirmativo, saber se, ainda assim, existem razões para não suspender a instância, ao abrigo do disposto no artigo 272.º, n.º 2, do CPC.
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III. Fundamentação
1. Para além dos factos descritos no relatório deste aresto, na apreciação do presente recurso importa ainda considerar o teor dos elementos do processo n.º 7/2023-JP, dos Julgados de Paz de Santa Maria da Feira, juntos aos autos em 12.06.2023, dos quais resulta o seguinte:
- O aqui réu intentou contra o aqui autor a referida acção, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 13.354,07 €, acrescida de juros de mora e dos encargos da acção.
- Alegou, para tanto, que o demandado lhe solicitou a execução de trabalhos de carpintaria, no valor de 8000,00 € sem IVA, tendo pago 4000,00 €; após conclusão dos trabalhos iniciais, o demandado solicitou mais trabalhos de carpintaria, que somaram 6.109,00 € sem IVA; foi emitida a respectiva factura, no montante de 17.354,07 € com IVA incluído.
- O demandado apresentou contestação onde, para além de invocar as excepções de litispendência e de incompetência em razão do valor – já julgadas improcedentes – impugnou a versão dos factos descrita pelo demandante, descrevendo a sua versão dos mesmos, coincidente com a que trouxe à presente acção, tendo mesmo deduzido, por via reconvencional, os pedidos que deduziu nestes autos, tendo esta reconvenção sido rejeitada, por não ser admissível nos processos pendentes nos julgados de paz.
2. Nos termos do disposto no artigo 272.º, n.º 1, do CPC, «O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado».
Segundo Lebre de Freitas, é causa prejudicial aquela que tenha por objecto pretensão que constitui pressuposto da formulada (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, p. 501).
Como ensina Alberto dos Reis, «[o] nexo de prejudicialidade ou de dependência define-se assim: estão pendentes duas acções e dá-se o caso de a decisão duma poder afectar o julgamento a proferir na outra. Aquela acção terá o carácter e prejudicial em relação a esta» (Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 3ª ed., p. 384). Acrescenta o mesmo autor que «uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão da primeira pode destruir o fundamento ou razão de ser da segunda», esclarecendo que tal ocorre quando «na primeira causa se discuta, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da segunda e que não pode resolver-se nesta em via incidental». Admitindo que possa verificar-se um nexo de prejudicialidade entre uma acção em que se discute a título incidental uma dada questão discutida noutra a título principal, este autor dá como exemplo a coexistência de «uma acção de dívida e acção pauliana proposta pelo autor daquela» (Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, p. 268 a 270).
Também a jurisprudência vem afirmando que uma causa depende do julgamento de outra quando a decisão da acção prejudicial pode contender ou destruir o fundamento ou razão de ser de outra já proposta ou quando na acção prejudicial se discute uma questão cuja resolução, por si só, pode modificar a situação jurídica subjacente ao outro pleito (cfr. ac. STJ de 26.05.94, CJ STJ, T. II, p. 116 e ss; ac. RC de 06.10.93, CJ 1993, T. IV, p. 51 e ss).
Isso mesmo é corroborado pelo artigo 276.°, n.º 2, do CPC, quando preceitua que se a decisão da causa prejudicial fizer desaparecer o fundamento ou a razão de ser da causa que estivera suspensa, é esta julgada improcedente.
Claro que isto apenas sucederá se e quando a força do caso julgado da acção prejudicial se impuser na acção subsequente. Por conseguinte, a relação de dependência ou prejudicialidade só ocorrerá quando pudermos afirmar que a força do caso julgado da decisão a proferir na acção principal se irá impor às partes da acção subsequente.
Tal não pressupõe, naturalmente, a tríplice identidade (de sujeitos, causas de pedir e pedidos) em que assentam as excepções da litispendência e do caso julgado, caso em que não poderíamos equacionar a suspensão da instância por pendência de causa prejudicial, mas antes a sua extinção em virtude da procedência de uma daquelas excepções dilatórias – cfr. artigos 576.º, n.º 2, 577, al. i), 580.º e 581.º, todos do CPC.
Mas pressupõe que entre os objectos processuais das duas acções se verifique, na terminologia proposta por Miguel Teixeira de Sousa, a relação de consumpção objetiva não recíproca prejudicial de que também depende a autoridade do caso julgado material – na verdade, a autoridade do caso julgado material está para a prejudicialidade como a excepção dilatória do caso julgado está para a litispendência – que o referido autor descreve nos seguintes moldes (O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ, 325-47):
«Das relações de inclusão entre objectos processuais nascem as situações de consumpção objectiva; a consumpção objectiva pode ser recíproca, se os objectos processuais possuem idêntica extensão, e não recíproca, se os objectos processuais têm distinta extensão; a consumpção não recíproca pode ser inclusiva, se o objecto antecedente engloba o objecto subsequente, e prejudicial, se o objecto subsequente abrange o objecto antecedente.
Assim, a consumpção recíproca e a consumpção não recíproca inclusiva firmam-se na repetição de um objecto antecedente num objecto subsequente e a consumpção não recíproca prejudicial apoia-se na condição de um objecto anterior para um objecto posterior.
Esta repartição nas formas de consumpção objectiva, acrescida de identidades de partes adjectivas, é determinante para a qualidade da relevância em processo subsequente da autoridade de caso julgado material ou da excepção de caso julgado: quando o objecto processual anterior é condição para a apreciação do objecto processual posterior, o caso julgado da decisão antecedente releva como autoridade de caso julgado material no processo subsequente; quando a apreciação do objecto processual antecedente é repetido no objecto processual subsequente, o caso julgado da decisão anterior releva como excepção de caso julgado no processo posterior. Ou seja, a diversidade entre os objectos adjectivos torna prevalecente um efeito vinculativo, a autoridade de caso julgado material, e a identidade entre objectos processuais torna preponderante um efeito impeditivo, excepção de caso julgado.» (p. 171)
De tudo quanto ficou exposto flui com clareza que a identificação da causa prejudicial e da causa dependente se baseia em razões lógicas e não cronológicas, pelo que não releva saber qual das acções foi proposta em primeiro lugar ou em qual delas a citação do réu ocorreu primeiramente, ao contrário do que sucede, por exemplo, na listispendência.
É também totalmente irrelevante o apuramento dos factos assentes e dos factos que permanecem controvertidos em cada uma das acções, visto que a prejudicialidade é a consequência da relação que se estabelece entre os objectos processuais de diferentes acções e não da análise probatória nelas desenvolvida.
No caso submetido à apreciação deste Tribunal, é o seguinte, na sua essência, o objecto processual de cada uma das acções em confronto:
- No processo intentado nos Julgados de Paz de Santa Maria da Feira, o aí demandante (aqui réu), com fundamento no acordo que celebrou com o aí demandado (aqui autor), respeitante à execução de determinados serviços de carpintaria, pretende a condenação deste a pagar-lhe a parte do preço que afirma permanecer em dívida, discriminando o valor global acordado (impugnado pelo demandado) e o pagamento já efectuado (aceite por este);
- Nesta acção, alegando o mesmo acordo e o seu cumprimento defeituoso pelo réu – dada a não conclusão dos trabalhos acordados e a existência de defeitos – o autor pretende a redução do preço e a indemnização dos danos que alega ter sofrido.
Cremos ser, assim, absolutamente claro que a decisão a proferir no processo pendente nos Julgados de Paz não pode destruir o fundamento ou a razão de ser desta acção. Ainda que, naquela acção, seja dada total razão ao demandante, manter-se-á por decidir a pretensão deduzida nestes autos, de redução do preço com fundamento no cumprimento defeituoso do acordo. E ainda que pudéssemos afirmar que naquela acção se discute, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão desta – o preço acordado entre as partes pelos serviços de carpintaria solicitados pelo aqui autor ao aqui réu –, o que obviamente nunca poderíamos era afirmar que tal questão não pode resolver-se nesta acção em via incidental. De resto, o montante do preço estipulado pelas partes não surge nesta acção como uma questão incidental, mas antes como um dos factos constitutivos do direito (à redução do preço) do aqui autor, o que também sucede na acção pendente nos julgados de paz relativamente ao direito (ao pagamento do preço) do aí demandante, o que não causa qualquer estranheza ou perplexidade, dada a óbvia identidade parcial das causas de pedir das acções em confronto, sendo a causa de pedir desta acção mais ampla do que a causa de pedir da outra.
Em contrapartida, é inquestionável que a decisão a proferir nestes autos pode destruir o fundamento ou a razão de ser da acção pendente nos Julgados de Paz de Santa Maria da Feira: procedendo o pedido de redução do preço para o valor de 4000,00 € já pago pelo aqui autor, o pedido de condenação deste no pagamento do preço ainda em dívida será inexoravelmente improcedente. Noutra perspectiva, podemos afirmar com toda a propriedade que nesta acção se discute, em via principal, uma questão – a redução do preço com fundamento na existência de defeitos e serviços por executar – que é essencial para a decisão da acção pendente nos Julgados de Paz, mas que não pode resolver-se nessa acção em via incidental. Embora os factos que integram a causa de pedir da presente acção tenham sido alegados na contestação apresentada no processo n.º 7/2023-JP, os Julgados de Paz de Santa Maria da Feira não poderão decidir sobre a pretendida redução do preço.
Na exposição que antecede já está implícito que entre os objectos processuais das duas acções em causa existe uma relação de consunção não recíproca prejudicial, pois esses objectos possuem distinta extensão, sendo o objecto desta acção condição para a apreciação do objecto da acção pendente nos Julgados de Paz e não o contrário.
Em conclusão, a referida acção n.º 7/2023-JP, dos Julgados de Paz de Santa Maria da Feira, não configura uma causa prejudicial desta acção, sendo antes esta acção que configura uma causa prejudicial daquela, pelo que a decisão recorrida não pode subsistir, importando determinar o prosseguimento desta acção.
Fica, assim, prejudicado o conhecimento da segunda questão enunciada, relativa à eventual aplicação do disposto no artigo 272.º, n.º 2, do CPC.
Na procedência da apelação, as respectivas custas serão suportadas pelo recorrido, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
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III. Decisão
Pelo exposto, revoga-se a decisão recorrida e determina-se o prosseguimento destes autos.
Custas pelo recorrido.
Registe e notifique.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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Porto, 16 de Janeiro de 2024
Artur Dionísio Oliveira
Maria Eiró
Rodrigues Pires