Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP00036585 | ||
Relator: | BORGES MARTINS | ||
Descritores: | DETENÇÃO DE ARMA NÃO MANIFESTADA | ||
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Nº do Documento: | RP200307030312175 | ||
Data do Acordão: | 07/03/2003 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recorrido: | 1 J CR GONDOMAR | ||
Processo no Tribunal Recorrido: | 1015/01 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL. | ||
Decisão: | REVOGADA A DECISÃO. | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | Constitui crime a detenção de arma de alarme adaptada a arma de defesa. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os juizes deste Tribunal da Relação: No proc. comum singular n.º .../01.7, 1.º Juízo Criminal da comarca de Gondomar, foi o arguido Mário... acusado da autoria de um crime de detenção de arma proibida, p.p. no art.º 275.º, n.º2 do CP, na redacção anterior à Lei 98/2001, de 25/8 e actualmente previsto no n.º 3 do art.º 275.º, do CP (Assento n.º 2/98, do STJ, de 4.11.98, publicado no DR, 1.ª série A, de 17.12.98). Por despacho proferido ao abrigo do disposto no art.º 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), do CPP, entendeu o Sr juiz dever rejeitar a acusação, por a mesma ser manifestamente infundada, já que os factos não constituem crime. Inconformado, recorreu o M.º P.º, sustentando que os factos integram a prática de um crime de detenção ilegal de arma de defesa, p.p. no art.º 6.º da Lei n.º 22/ 97, de 22 de Junho e suscitando as seguintes questões: - a decisão recorrida ao rejeitar a acusação fez uma interpretação restritiva do citado art.º6.º, decidindo que este tipo legal apenas se aplicava à arma originariamente de defesa e não à arma que apresente características de defesa por via da adaptação ou transformação clandestina de uma arma de gases ou de alarme; - a perigosidade que é inerente a estas últimas é igual ou superior à de uma arma originariamente de defesa, dado que dispara projécteis iguais e com igual capacidade letal, a que acresce o facto de se ter transformado em arma de defesa devido a adaptação feita por pessoa não habilitada ao fabrico de armas, e cuja falta de qualidade na transformação pode por em perigo não só a vida e integridade física de terceiros, mas também a de quem as possui, por não oferecer condições de segurança quanto ao seu uso; - por outro lado, o bem jurídico em causa no tipo legal em apreço e que consiste no controle por parte do Estado do contingente de armas em circulação, por forma a que se saiba que armas existem e que pessoas as detêm, está igualmente violado num e noutro caso; - além disso, tal arma nunca poderia ser registada ou manifestada. Não houve contra-alegação, tendo o Exmo PGA junto deste Tribunal emitido parecer, no sentido da improcedência do recurso. Para tal aduziu os seguintes argumentos: - a posição do recorrente não logrou vencimento no Acórdão n.º 1/2002, apesar de defendida no parecer do M.º P.º; - os elementos lógico e gramatical da Lei n.º 22/97 não permitem a aplicabilidade às armas transformadas ; - isso consistiria mais que uma interpretação extensiva desse diploma, que o artigo 1.º, ns 1 e 3 do CP não permite. Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP. Colhidos os vistos, cumpre decidir. Foi a seguinte a decisão recorrida, no que ao objecto do presente recurso concerne: "Outra questão que se coloca é a de saber se a jurisprudência agora fixada afasta ou não a aplicação do art.º 6.º da Lei n.º22/97, de 22 de Junho, e não versando o referido Acórdão directamente sobre esta questão, cumpre-nos tecer algumas considerações. Dispõe o supra referenciado artigo: «Quem detiver, usar ou trouxer consigo arma de defesa não manifestada ou registada, ou sem a necessária licença nos termos da presente lei, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias». Prende-se a incriminação de tais condutas com a manifesta preocupação de proceder a um controlo efectivo sobre o contigente e características das armas em circulação. In casu, a arma, pelas características apresentadas, configura uma arma de defesa, como tal necessitando ser manifestada ou registada. Ora, numa primeira visão, não se encontrando a mesma registada, parece incorrer o arguido na prática do crime de detenção ilegal de arma de defesa. Sucede que não estamos aqui perante uma vulgar arma de defesa mas sim de uma arma que, ainda que apresentando apenas características de arma de defesa, resultou de um processo de ulterior alteração. Assim sendo, seria insusceptível de ser manifestável ou objecto de registo. E não se diga que tal registo é viável face à redacção do art.º 39.º do Decreto-Lei n.º 37313, de 21 de Fevereiro de 1949, pela qual se permite que, em casos excepcionais, o Ministro do Interior (actual Ministro da Administração Interna) possa autorizar o manifesto gratuito de qualquer arma de fogo, quando requerido pelo seu detentor com justificação suficiente. Isto porque, somos de entender que não se encontra no espírito de tal normativo, permitir manifestar ou registar armas transformadas. Ora, admitir tal interpretação seria extravasar o âmbito da sua própria aplicação a casos claramente não previstos pelo legislador, nem sequer contidos no seu espírito. Como tal, num domínio como o da incriminação penal, em que as garantias do arguido se apresentam fortemente arreigadas, não se pode, sob pena de desvirtuar todos os princípios inerentes ao Direito Penal e Processual Penal, considerar tal interpretação. Assim sendo, considerando o sentido da jurisprudência agora fixada e o facto de existir uma impossibilidade prática de cumprimento da exigência do art.º 6.º da Lei n.º 22/97, de 22 de Junho, a acusação deduzida pela Digna Magistrada do Ministério Público, a fls. 57 a 59, contra o arguido MÁRIO..., é manifestamente infundada, porquanto não se mostra indiciada a prática de factos constitutivos de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 275.º, n.º 2 (actual n.º 3) do Cód. Penal, nem de um crime de detenção ilegal de arma de defesa, p. e p. pelo art.º 6.º da Lei n.º 22/97, de 22 de Junho” Fundamentação: Em acórdão proferido neste Tribunal e 1.ª Secção, Processo n.º 296/03, relatado pelo Exmo Desembargador Dr.Francisco Marcolino, considerou-se que a situação da pistola de alarme adaptada ao calibre 6,35 mm é susceptível de ser enquadrada no art.º 6.º da Lei n.º 22 /97, de 27 de Junho, sob a epígrafe, “Detenção ilegal de arma de defesa”: Quem detiver, usar ou trouxer consigo arma de defesa não manifestada ou registada, ou sem a necessária licença nos termos da presente lei, é punido com pena de multa até 240 dias”. Escreveu-se no mesmo aresto: “O arguido detinha uma pistola de alarme sem número de série e marca, com cão, de percussão central, adaptada ao calibre 6, 35 mm, com um carregador com capacidade para seis munições, não registada nem manifestada, bem sabendo que não podia deter a referida arma e as respectivas munições. Actuou livre, determinada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei. Consequentemente, fácil é constatar que cometeu o ilícito p. p. pelo art.º 6.º da dita Lei 22/97 já que se verificam todos os elementos do tipo”. Também em acórdão deste Tribunal, 2.ª Secção, datado de 20.11.2002, publicado em http://www.dgsi.pt/jtrp, Relatado pela Exma Desembargadora Dr.a Isabel Pais Martins, se considerou que “A criminalização da detenção de arma de defesa não manifestada ou registada ou sem a necessária licença (art.º 6.º da Lei n.º 22/ 97, de 27 de Junho), respeita quer às armas de defesa que apresentem as mesmas características em resultado de uma transformação posterior ao seu fabrico. Incorre, por isso, na prática do crime previsto e punido no art.º 6.º,n.º 1 da Lei n.º 22/97, o arguido que detinha na sua posse uma pistola adaptada para munições de calibre 6,35 mm, com cano de 6,5 cm de comprimento, sem ser possuidor de licença de uso e porte de arma”. Esta asserção é sustentada por dois argumentos, a saber: - o legislador, quando alterou o regime de uso e porte de arma (Lei n.º 22/97), não desconhecendo toda a problemática relativa à detenção de armas fora das condições legais e relativa às armas transformadas ou modificadas e as divergências jurisprudenciais, na matéria, ao fixar as características das armas de defesa, não distinguiu entre as armas concebidas e fabricadas originariamente com essas características e as armas que apresentam as mesmas características em resultado de uma adaptação ou transformação de armas originariamente fabricadas com outras características; - não se pode objectar com a impossibilidade de manifesto de uma arma transformada; dos arts. 38.º a 41.º da secção I do Capítulo III do Decreto n.º 37313 não se retira a proibição legal do manifesto de uma arma transformada. Se bem que na prática não se verifique tal possibilidade, tratando-se de um poder discricionário das autoridades policiais, não se sabe se numa eventual impugnação não viabilizaria esse manifesto. Por outro lado, verificamos que o artigo 1.º da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho corresponde no essencial ao artigo 1.º do DL n.º 207-A/75, o qual imediatamente descrevia, elencando, o que a lei considerava armas de defesa. Aquela norma passou a ter como epígrafe “classificação e licença de arma de defesa” . Sendo a função da epígrafe de identificar o conteúdo da norma, resta precisar o que se deve entender por o acto de classificação: “reunir em classes ou grupos, com características semelhantes, segundo um sistema ou método e atribuir uma designação a cada grupo constituído” (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, 2001, I, pág. 837); “Chama-se classificação artificial aquela que depende de características arbitrariamente escolhidas, e que tem apenas como objectivo permitir encontrar rapidamente cada objecto pelo lugar que ele ocupa, ou reciprocamente” (“ Vocabulário- técnico e crítico da Filosofia”, I vol., André Lalande, Rés, Porto, pág. 193). Esta função é a que descortinamos no dito artigo 1.º, n.º 1: “ Consideram-se armas de defesa: a) as pistolas até calibre 7,65 mm, inclusive, cujo cano não exceda 10 cm; b) as pistolas até calibre 6,35 mm, inclusive, cujo cano não exceda 8 cm; c) os revólveres de calibre não superior a 7,65 mm, cujo cano não exceda 10 cm; d) os revólveres de calibre não superior a 9 mm, cujo cano não exceda 5 cm. Verificamos que estas armas estão reunidas pela norma em dois grupos distintos: as pistolas e os revólveres. Por sua vez, dentro destes grupos, há classes que se organizam em duas classes: uma, determinada pelo calibre, outra pelo cano. A interpretação extensiva, que era vedada pelo art.º 18.º, 2.ª parte do Código de 1888, é agora permitida pela lei penal, apenas sendo vedada a interpretação analógica – art.º1.º, n.º 3 do CP, entendendo-se sem polémica que deve ser moderadamente utilizada. Além de ter um mínimo de correspondência na lei, não deve exceder o sentido possível das palavras da lei -cfr. Maia Gonçalves, “Código Penal Português”, Anotado e Comentado, 14.ª edição, 2001, Almedina, pág. 52. O Prof. Germano Marques da Silva refere-se assim como ocorrendo interpretação extensiva: “quando o intérprete conclui que a letra do texto da lei fica aquém do seu espírito, que a fórmula verbal adoptada diz menos do que aquilo que se pretendia dizer. O intérprete estende então o texto fazendo corresponder a letra da lei ao espírito da lei. Não se trata de uma lacuna da lei, porque os casos não directamente abrangidos pela letra da lei são indubitavelmente abrangidos pelo espírito da lei. A interpretação extensiva assume normalmente a forma de extensão teleológica: a própria razão de ser da lei postula a aplicação a casos que não são directamente abrangidos pela letra da lei, mas são abrangidos pela finalidade da mesma” (“ Direito Penal Português”, pág. 269, I, Verbo, Lisboa, 2001). Vimos que a letra da lei se centra, no que a estes autos concerne, em três características: - tratar-se de uma pistola; - o calibre ser de 6,55 mm; - o cano não exceder 8cm - mede 5,8 cm, na nossa hipótese. Para subsunção na hipótese legal da pistola em causa não há que indagar ou dar relevância a outras. É pois até duvidoso se se estará a lançar mão da interpretação extensiva. De qualquer forma, sempre se afigura não ser de pensar que o legislador pretendeu uma descriminalização. Seria como que premiar ou estimular a frustação da própria lei regulamentadora da posse das armas de defesa. Decisão: Pelo exposto, acordamos juizes deste Tribunal em conceder provimento ao recurso, devendo o Sr. Juiz substituir o despacho recorrido por outro que considere constituírem os factos descritos na acusação o crime p.p. no art.º 6.º, n.º 1 da Lei n.º 22/97. Sem custas. Porto, 3 de Julho de 2003 José Carlos Borges Martins Jorge Manuel Arcanjo Rodrigues Orlando Manuel Jorge Gonçalves |