Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
900/24.2JAAVR-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA
Descritores: CRIME
EXAME PERICIAL
OBJECTO
PESSOA SINGULAR
MEIO DE PROVA
PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
HIERARQUIA DE OBRIGAÇÕES
VERDADE MATERIAL
VALIDADE
Nº do Documento: RP20250409900/24.2JAAVR-B.P1
Data do Acordão: 04/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – De acordo com o n.º 1, do artigo 171º, do Código de Processo Penal o exame que incide sobre as pessoas inspeciona os vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido.
II – Sendo o corpo do arguido em si mesmo um meio de prova, sobre aquele impede a obrigação de se sujeitar às diligências de prova previstas na lei, cfr. artigo 61º, n.º 6 al. d) do CPP.
III – Quando as diligências de prova a realizar possam comprimir direitos fundamentais, liberdades ou garantias do arguido há que judicialmente proceder a uma avaliação dos direitos em confronto, por um lado, o valor da diligência para a descoberta da verdade material e satisfação do interesse estadual na administração da Justiça, o valor dos bens jurídicos violados e a gravidade do crime em investigação e, por outro lado, no caso concreto, o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do arguido.
IV – Na referida avaliação e ponderação impõe-se ter em conta os princípios da adequação da diligência ao objetivo visado; o princípio da necessidade do meio eleito para obter os fins visados e que aqueles não possam alcançar-se por meios menos onerosos; e o princípio da proporcionalidade ou justa medida, do qual resulta que não pode haver desproporcionalidade manifesta entre o fim que se pretende alcançar e os direitos do arguido que se restringem; sendo que deve concluir-se pela superioridade do valor dos bens protegidos e do interesse da diligência para a descoberta da verdade material em face da restrição concretamente imposta aos direitos do arguido.

(Sumário da responsabilidade da relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec. Penal n.º 900/24.2JAAVR-B.P1

Comarca do Porto

Acordam em Conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I. Relatório.

Nos autos com o NUIPC 900/24.2JAAVR, que correm termos no Juízo de Instrução Criminal de ... do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, foi proferido despacho datado de 23.12.2024 que decidiu: «...ao abrigo do disposto nos arts. 172º, 154º/3 e 269º/1,a) e b), do Código de Processo Penal, decide-se determinar que seja efectuada recolha de sangue ao arguido AA, com agulha e seringa, por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro, a que deverá ser compelido caso mantenha a sua recusa.».


*

Inconformado com o recurso o arguido interpôs recurso onde alinha as seguintes conclusões:

I.- O despacho de 23.12.2004 do Juiz 2 do Juízo de Instrução Criminal de Aveiro determinou que seja efectuada recolha de sangue ao arguido AA, com agulha e seringa, por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro, a que deverá ser compelido caso mantenha a sua recusa;

II.- Todo o contexto prévio à prolação desse despacho padece de vícios quanto à oportunidade do seu pedido.

III.- A prolação desse despacho, teve por fundamento a promoção do Ministério Público, no sentido de que se “determine a realização coerciva da recolha de amostras biológicas ao arguido”, no seguimento da recusa de consentimento dada em 09.12.2024 pelo arguido, constante de fls. 561.

IV.- A fls. 561, em 09.12.2024, o arguido informou o titular do inquérito que não dava consentimento à diligência promovida pelo órgão de polícia criminal (PJ) que foi notificada em 06.12.2024, para ser efectuada em 20.12.2024 de “recolha de amostras biológicas ao arguido no INMLCF em ...”;

V.- A notificação feita pela PJ dessa diligência, não continha nenhum fundamento legal, nem tão pouco a que amostras biológicas se referia, que no caso dos factos constantes nos autos, não seria necessariamente sangue, podendo ser saliva ou sémen e ao seu concreto modo de colheita.

VI.- Assim, o arguido informou em 09.12.2024 o Ministério Público, entre outras questões, de que não consentia a realização dessa diligência, informando também de forma subsequente a PJ e o Estabelecimento Prisional ... de que não consentia na realização dessa diligência.

VII.- Não obstante, e sem o conhecimento do titular do inquérito, que à data já tinha promovido a realização coerciva do exame junto do Juízo de Instrução Criminal, a PJ determinou que o mesmo se devia realizar às 10:30 do dia 20.12.2024, sendo que o titular do inquérito só depois das 14:30 do dia 20.12.2024 é que tomou conhecimento de que o arguido tinha sido levado do Estabelecimento Prisional ... para a delegação do INMLCF de ... para realização da diligência.

VIII.- Ou seja, aquando da promoção feita pelo Ministério Público junto do Juiz de Instrução Criminal que determinou a prolação do despacho de 23.12.2024 e que teve por base a recusa do arguido, o Órgão de Polícia Criminal continuou a promover a diligência que tinha determinada para 20.12.2024, determinado a saída do arguido do Estabelecimento Prisional ... e o seu transporte para a delegação do INMLCF de ....

IX.- Nunca foi fornecida ao arguido qualquer informação sobre a intervenção corporal pretendida pela Polícia Judiciária, que determinou o transporte na manhã de 20.12.2024 do Arguido do Estabelecimento Prisional ... para a delegação do INMLCF de ... que lhe permitisse, previamente à realização a mesma, de dar o seu consentimento esclarecido quanto à mesma, conforme “exigem os artigos 25.º e 32.º/8 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”) e artigos 125.º e 126.º do CPP”, doutamente referidos pela Exma. Sra. Juiz de Instrução no seu despacho de 23.12.2024.

X.- O despacho de 23.12.2024 do Juízo de Instrução Criminal de Aveiro- Juiz 2 que “determinou que seja efectuada recolha de sangue ao arguido AA, com agulha e seringa, por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro, a que deverá ser compelido caso mantenha a sua recusa”, no seguimento da promoção do Ministério Público não contém toda a informação necessária a que o arguido possa previamente dar o seu consentimento livre e esclarecido à realização da diligência.

XI.- O despacho de 23.12.2024, não contém, desde logo, a finalidade especifica da peritagem ordenada, os limites por ela propostos, o local onde a mesma será realizada e de quem a efectuará.

XII.- Pelo que o despacho de 23.12.2024 do Juízo de Instrução Criminal de Aveiro- Juiz 2 que “determinou que seja efectuada recolha de sangue ao arguido AA, com agulha e seringa, por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro, a que deverá ser compelido caso mantenha a sua recusa”, viola o direito à integridade física e moral do arguido constante do n.º1 do artigo 25.º da CRP, bem como o n.º2 do artigo 126.º do CPP, padecendo assim de irregularidade nos termos do n.º1 do artigo 123.º do CPP, determinando a invalidade de todos os actos posteriores que por ele sejam afectados.

XIII.- O despacho de 23.12.2024 do Juízo de Instrução Criminal de Aveiro- Juiz 2 que “determinou que seja efectuada recolha de sangue ao arguido AA, com agulha e seringa, por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro, a que deverá ser compelido caso mantenha a sua recusa” emitido ao abrigo do n.º3 do artigo 154.ºdo CPP, não cumpre o disposto no n.º1 do artigo 154.º do CPP, nem os n.ºs 2.º, 6.º e 7.º do CPP, que lhe são exigidos por se tratar de perícia quanto a características pessoais, físicas ou psíquicas;

XIV.- Em concreto o despacho de 23.12.2024 do Juízo de Instrução Criminal de Aveiro- Juiz 2 não contém, quanto ao n.º1 do artigo 154.º do CPP “a indicação do objecto da perícia e os quesitos a que os peritos devem responder” e “a indicação da instituição, laboratório ou nome dos peritos que realizarão a perícia”.

XV.- O despacho de 23.12.2024 do Juízo de Instrução Criminal de Aveiro- Juiz 2 não contém, quanto ao artigo 156.,º do CPP, “a definição das pessoas que podem assistir à diligência” (n.º2 do artigo 156.º do CPP), “quem efetuará a mesma, se é um médico ou outra pessoa legalmente autorizada” (n.º 6 do artigo 156.º do CPP), “a autorização de que as amostras recolhidas só podem ser utilizadas no processo em curso e que devem ser destruídas logo que não sejam necessárias” (n.º7 do artigo 156.º do CPP);

XVI.- Assim, o despacho de 23.12.2024 do Juízo de Instrução Criminal de Aveiro- Juiz 2 que “determinou que seja efectuada recolha de sangue ao arguido AA, com agulha e seringa, por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro, a que deverá ser compelido caso mantenha a sua recusa” emitido ao abrigo do n.º3 do artigo 154.º do CPP, violando o n.º1 do artigo 154.º do CPP e os n.ºs 2º, 6.º e 7.º do artigo 156.º do CPP é irregular nos termos do n.º1 do artigo 123.º do CPP, irregularidade essa que por afectar decisivamente o direito à integridade física e moral do arguido constante do n.º1 do artigo 25.º da CRP, determina nos termos do n.º1 do artigo 123.º do CPP a invalidade do despacho de 23.12.2024 e sua determinação quanto à realização da perícia determinada, bem como a inerente invalidade de todos os actos posteriores que sejam por ele afectados.

Assim, o Douto Despacho de 23.12.2024 que determinou que seja efectuada recolha de sangue ao arguido AA, com agulha e seringa, por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro, a que deverá ser compelido caso mantenha a sua recusa recorrido deverá ser revogado.»


*

O recurso foi liminarmente admitido.

O MP junto da 1ª instância apresentou resposta ao recurso, sem formular conclusões, mas de onde se respiga o seguinte:

«(...)

Não assiste razão ao recorrente.

O processo penal prossegue três finalidades essenciais: a realização da justiça e a descoberta da verdade material; a proteção perante o Estado dos direitos fundamentais das pessoas; e o restabelecimento da paz jurídica posta em causa com a prática do crime – cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 2017, p. 14-15.

De acordo com o artigo 124º do Código de Processo Penal, constituem objeto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis.

Acrescenta o artigo125º, do citado diploma legal, que: «São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei», encontrando-se consagrado neste normativo legal os princípios da legalidade e liberdade da prova.

No nosso processo penal faz-se a distinção entre meios de obtenção de prova e meios de prova, sendo através dos meios de obtenção de prova que são obtidos os meios de prova a partir dos quais se forma a convicção das autoridades judiciárias.

Entre os meios de obtenção de prova previstos no nosso sistema processual penal contam-se, entre outros, os exames, dispondo o artigo171º, nº1, do Código de Processo Penal que: “Por meio de exames das pessoas, dos lugares e das coisas, inspeccionam-se os vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticado, às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido”.

Por sua vez, o artigo 172º, nº1 do citado diploma legal, sob a epígrafe “Sujeição a Exame” preceitua que: “Se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame devido ou a facultar coisa que deva ser examinada, pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente.”

Também a alínea d), do n.º 6, do artigo 61.º, do mesmo diploma, consagra que “recaem especialmente sobre o arguido os deveres de (…) sujeitar-se a diligências de prova (…) especificadas na lei ordenadas e efectuadas por entidade competente” e, por fim, o n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 45/2004, de 19 de agosto, estabelece que “ninguém pode eximir-se a ser submetido a qualquer exame médico-legal quando este se mostrar necessário ao inquérito ou à instrução de qualquer processo e desde que ordenado pela autoridade judiciária competente, nos termos da lei”.

Acrescenta o nº 2, do artigo 172º, do citado diploma legal que é correspondentemente aplicável o disposto nos nº3 do artigo 154º e nºs 6 e 7 do artigo 156º.

Ou seja, quando se tratar de perícia sobre as características físicas ou psíquicas de pessoa que não haja prestado o consentimento, compete ao Juiz ponderar a necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado. – cfr. artigo 154º, nº3, do Código de Processo Penal.

Assim, estando em causa a colheita coativa de vestígios biológicos de um arguido, por não ter dado o consentimento para a sua realização, deve a mesma ser determinada por um Juiz, não podendo ser valorada se for obtida de outro modo, após ponderação da necessidade dessa colheita, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado –cfr. artigos 172º, nº1 e 269º, nº1,al. b), ambos do Código de Processo Penal, e artigo 8º, nº1, da Lei 5/2008, de 12/2, colheita essa que de acordo com o nº6 do citado artigo 156º deve ser realizada por médico ou outra pessoa legalmente autorizada, não podendo criar perigo para a saúde do visado.

No caso em apreço, mostra-se o arguido indiciado da prática de, pelo menos, três crimes de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 2, als. a), b) e n.º 3 e 177.º, n.ºs 1, als. a), b), e 6, todos do Código Penal, e de um crime de violação agravado, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 2, als. a), b) e n.º 3 e 177.º, n.ºs 1, als. a) e b), 5 e 6, todos do Código Penal, na pessoa da sua filha menor, BB.

Do exame pericial de natureza sexual realizado à vítima BB, resulta que lhe foi identificada infecção por clamídia, ou seja, foi identificada Chlamydia trachomatis no raspado endo cervical e endo uretral, em 27-08-24, sendo que a infecção por clamídia tem valor diagnóstico de contacto sexual.

Nessa sequência, foi o arguido notificado pessoalmente pela Polícia Judiciária para a realização de colheita de amostras biológicas a efectuar em ..., no INML, no dia 20-12-2024, pelas 10h30, tendo aquele, através do seu Ilustre Defensor, recusado dar o seu consentimento – cfr. fls. 561.

Perante a recusa do arguido em realizar o referido exame, a Mmª Juiz a quo, a solicitação do Ministério Público, proferiu o despacho ora colocado em crise, de cujo teor consta, para além do mais, o seguinte: “Parece-nos inequívoca a necessidade de realizar o exame/recolha de amostra de sangue pretendido como meio de obtenção de prova fundamental para alcançar a descoberta da verdade material, por forma a aferir da consistência dos indícios já colhidos nos autos quanto à prática criminosa imputada ao arguido.

Com efeito, mostra-se fulcral para a investigação e para a prova que se faça a recolha pretendida de sangue ao arguido para aferir se o mesmo é, ou foi, portador de infecção por clamídia (infecção detetada na sua filha), não se divisando por que outra forma menos invasiva da reserva da vida privada do visado se possa obter idêntico resultado probatório.

Como assim e nestes termos, ao abrigo do disposto nos artigos 172º, 154º/3 e 269º/1, a) e b), do Código de Processo Penal, decide-se determinar que seja efectuada recolha de sangue ao arguido AA, com agulha e seringa por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro, a que deverá ser compelido caso mantenha a sua recusa.”

Desde já se adianta que o despacho recorrido não padece de qualquer ilegalidade, nulidade e/ou irregularidade, nem viola quaisquer direitos fundamentais do arguido.

De facto, sendo a referida colheita legalmente admissível, mas tendo-se à mesma oposto o arguido, porquanto não deu o seu consentimento, foi aquela determinada por despacho judicial, no âmbito do qual, no equilíbrio entre a protecção dos direitos à integridade pessoal e à reserva da intimidade do arguido, por um lado, e a descoberta da verdade material dos factos, por outro lado, concluiu a Mmª Juiz de Instrução pela necessidade de realização do exame. – cfr. artigo 154º, nº3, do Código de Processo Penal

E não se diga, conforme alegado, que não tinha o arguido toda a informação necessária para, previamente, dar o seu consentimento livre e esclarecido à realização do exame ordenado, pois do despacho recorrido resulta, de forma inequívoca, qual o exame a que o arguido se deverá sujeitar - recolha de vestígios biológicos através da colheita de sangue- e o que se pretende alcançar com a sua realização.

Em nosso entender, não consentiu o arguido que o exame fosse efectuado por não ignorar que o resultado que do mesmo possa advir, certamente, irá reforçar o depoimento prestado pela sua filha e, consequentemente, infirmará as declarações por ele prestadas nos autos (que negou ter praticado os factos), tentando, por isso, postergar a sua realização, embora não desconheça que sobre si impende o dever de se sujeitar a diligências de prova especificadas na lei ordenadas e efectuadas por entidade competente – cfr. artigo 61º, nº6, al. d), do Código de Processo Penal.

Apesar de devidamente esclarecido sobre o exame a realizar, o arguido para se eximir e obviar à recolha de vestígios biológicos – colheita de sangue-, veio invocar que padece o despacho recorrido de irregularidades, sem que tenham as mesmas qualquer suporte legal.

De facto, contrariamente ao alegado, o preceituado no artigo 154º, nº3, do Código de Processo Penal, aplicável por força do disposto no artigo 172º, nº2, do citado diploma legal, não exige que se concretizem os factos que com o exame se visam provar, mas tão só que, perante o conflito de interesses – e tendo em conta a natureza e gravidade do crime ou crimes em investigação – se pondere da necessidade da sua realização, enquanto diligência útil, relevante, necessária para a descoberta da verdade, em função das demais provas recolhidas ou a recolher, e se, em face dessa necessidade, se justifica a limitação do direito do arguido à sua auto-determinação. Esta ponderação foi feita, de forma fundamentada, no despacho recorrido.

Por outro lado, não cabe no artigo 154º, n.º 3, Código de Processo Penal, a exigência da indicação do dia, hora, local e entidade que procede ao exame, porquanto tais exigências decorrem do disposto no nº 1 e 2, do artigo 154º, que não têm aplicação na realização coactiva dos exames a que alude o artigo 172º, nº1, do Código de Processo Penal, tal como resulta do nº2, do citado normativo legal, que remete expressamente para nº3, do artigo 154º, e não para o seu nº1 e 2 (onde tais exigências são feitas para as perícias). Mas ainda que tais indicações não devessem constar do despacho recorrido, sabia (e sabe) o arguido do local e da entidade onde o exame se irá realizar - no INMLCF de ...-,tanto mais que aquele já anteriormente aí se havia deslocado para proceder à sua realização, que não se concretizou por não ter dado o seu consentimento.

Ademais, o exame previsto no artigo 172º, n.º 2, do Código de Processo Penal, enquanto meio de obtenção (forçada) de prova não se confunde com a perícia prevista do artigo 154º, do Código de Processo Penal, não se aplicando, por isso, à recolha coativa de vestígios biológicos - colheita de sangue - os requisitos exigidos para a realização da perícia, designadamente aqueles que pretendia o recorrente que constassem do despacho recorrido, a saber: indicação do objecto da perícia e os quesitos a que os peritos devem responder, bem como a indicação da instituição, laboratório ou nome dos peritos que realizarão a perícia – cfr. nº1, do artigo 154º.

Acresce que, o Ministério Público, enquanto titular do inquérito, cabe-lhe, por direito próprio, uma vez autorizado o exame, proceder às diligências necessárias à sua realização e fazer respeitar os procedimentos legalmente previstos para o efeito, designadamente o estabelecido no artigo 156º, n.º 6 e 7, aplicável ex vi art.º 172º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, sendo que, no caso concreto, dúvidas não subsistem de que o exame será realizado por médico ou pessoal legalmente autorizada para o efeito, na medida em que o mesmo terá lugar no INMLCF de ....

No concerne à utilização dos exames efectuados e as amostras recolhidas - só podem ser utilizados no processo em curso-, bem como o destino que aos mesmos será dado – devem ser destruídos mediante despacho do juiz, logo que não sejam necessários -, por se tratar de uma imposição legal que o Tribunal e o Ministério Público têm de obedecer – cfr. artigo 156º, nº7, do Código de Processo Penal-, só será de ponderar após a realização do exame e não antes, não se justificando, por isso, que tal constasse do despacho recorrido.

Assim sendo, tendo o despacho recorrido obedecido às disposições legais aplicáveis à realização do exame ordenado, deverão ser julgadas não verificadas as invocadas irregularidades.

Sustenta ainda o recorrente que o despacho recorrido viola o direito à integridade física e moral, previsto no artigo 25º, da CRP, e por isso, o exame de recolha de vestígios biológicos –colheita de sangue -, é um meio de obtenção de prova proibido, nos termos do disposto no artigo 126º, nº2, do Código de Processo Penal, que invalidade a prova através do mesmo obtida.

Também, neste particular, não assiste razão ao recorrente.

Ainda que se admita que a colheita coativa de vestígios biológicos para posterior determinação se padece o arguido de infecção por clamídia, possa implicar uma afectação, limitação ou restrição de direitos fundamentais do indivíduo sujeito a tal colheita, o uso de tal meio de obtenção de prova terá de desenvolver-se em torno do conflito entre direitos fundamentais do arguido e as finalidades do processo penal, entre as quais a procura da verdade material e a realização da justiça.

A propósito da recolha de material biológico ao arguido, pronunciou-se o Tribunal Constitucional referindo que a Constituição não proíbe, em absoluto, a recolha coativa de material biológico de um arguido e a sua posterior análise não consentida para fins de investigação criminal - no caso concreto para subsequente comparação com vestígios biológicos da vítima-, impondo, no entanto, que essa determinação seja judicial e não apenaspordecisãodoMinistérioPúblico;etambémqueessarecolhanãointegrequalquer violação do privilégio contra a auto-incriminação (nemo tenetur se ipsum accusare), o qual se encontra consagrado nos artigos 2.º, 26.º, 32.º, n.º 2 e 4 da Constituição – cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs155/2007e 228/2007,in www.tribunalconstitucional.pt).

Ora, no caso em apreço, estando em causa, na colheita ordenada, a recolha de sangue com agulha e seringa por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro, não traduz a realização de tal exame uma ofensa significante dos direitos à integridade e à autodeterminação corporal do arguido, por apenas afetar de forma transitória e momentânea o corpo e o sistema volitivo do mesmo.

Na verdade, tendo em vista que com o exame ordenado se pretende alcançar a verdade material para administração da justiça penal, o que constitui uma exigência da ordem pública e do bem-estar geral, bem como um dos pilares do Estado de direito, é inequívoco que a sua realização compulsiva se mostra justificada e legitimada, tanto mais que a realização do referido exame não é susceptível de ofender o direito à autodeterminação corporal do arguido, por se tratar de uma ofensa insignificante.

Além do mais, o exame ordenado é o meio de obtenção de prova adequado para a descoberta da verdade material e prossecução da finalidade da realização da justiça – método pouco invasivo, não existindo outro menos restritivo para alcançar o objectivo da comparação com os vestígios recolhidos na vítima - não sendo o mesmo excessivo nem desproporcional para se apurar se o arguido manteve contactos de natureza sexual com a sua filha menor, sendo que os benefícios para a investigação criminal apenas ultrapassam a ligeira compressão dos direitos fundamentais.

Assim, entende-se que a decisão recorrida se mostra acertada, reflectindo uma ponderação equilibrada entre a protecção dos direitos fundamentais do arguido, por um lado, e o interesse comunitário e o do Estado na administração da justiça penal, por outro lado, atento o tipo de crimes em apreço e a necessidade do exame ordenado para a descoberta da verdade dos factos e realização da justiça.

Nestes termos, a realização forçada do exame autorizado pelo despacho recorrido mostra-se justificada e legitimada, não violando qualquer preceito constitucional, designadamente os artigos 25º da CRP e 126º do Código de Processo Penal.

Face ao exposto, entende-se ser de manter, na íntegra, o despacho recorrido por nenhum reparo nos merecer.»


*

Já neste Tribunal o Exmo. PGA emitiu parecer no sentido da negação de provimento ao recurso acompanhando a resposta do MP junto do tribunal recorrido.

*

Cumprido o art. 417º, n.º 2 do CPP, veio o recorrente apresentar um requerimento/resposta, na qual pretendia que, por o processo já ter acusação e ter sido remetido para julgamento a diligencia probatória que estava na base do recurso tinha perdido a sua utilidade.

O processo foi com visita ao MP, que disse manter o interesse na diligência, entendimento que sufragamos.

Colhidos os vistos e realizada a conferência cumpre decidir.


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II- Fundamentação.

1.- Despacho recorrido.

««(...)

Investiga-se nos presentes autos a prática pelo arguido AA, de, pelo menos, três crimes de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 2, als. a), b) e n.º 3 e 177.º, n.ºs 1, als. a), b), e 6, todos do Código Penal; e um crime de violação agravado, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 2, als. a), b) e n.º 3 e 177.º, n.ºs 1, als. a) e b), 5 e 6, todos do Código Penal, na pessoa de BB, sua filha, com base em factos já considerados fortemente indiciados em sede de aplicação de medidas de coacção, os quais determinaram a sujeição daquele à medida de prisão preventiva.


O arguido nega a prática destes concretos factos.

Decorre do exame pericial de natureza sexual efectuado à vítima BB que lhe foi identificada infecção por clamídia, ou seja, foi identificada Chlamydia trachomatis no raspado endo cervical e endo uretral, em 27-08-24, sendo que a infecção por clamídia tem valor diagnóstico de contacto sexual.

Tendo sido, nessa sequência, que o arguido foi notificado pessoalmente pela Policia Judiciária para a realização de colheita de amostras biológicas a efectuar em ..., no INML no dia 20-12-2024, pelas 10h30.

O arguido, através do seu Ilustre Defensor, recusou dar o seu consentimento – fls. 561.

Veio, nessa sequência, o Ministério Público promover que se determine a realização coerciva da recolha de amostras biológicas ao arguido, invocando para tanto o disposto nos arts. 154º/1 a 3 e 172º/2 do Código de Processo Penal.

Solicitado esclarecimento ao INMLCF sobre o tipo de amostra e modo de colheita, foi informado que a “amostra biológica a colher será sangue total, com agulha e seringa, por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro”.

Cumpre decidir.

Nos termos do disposto no art. 172º do Código de Processo Penal:

«1 - Se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame devido ou a facultar coisa que deva ser examinada, pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente.

2 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 3 do artigo 154.º e 6 e 7 do artigo 156.º


3 - Os exames susceptíveis de ofender o pudor das pessoas devem respeitar a dignidade e, na medida do possível, o pudor de quem a eles se submeter. Ao exame só assistem quem a ele proceder e a autoridade judiciária competente, podendo o examinando fazer-se acompanhar de pessoa da sua confiança, se não houver perigo na demora, e devendo ser informado de que possui essa faculdade.».

O Ministério Público pretende no caso em apreço, como meio de obtenção de prova, a realização de recolha de amostra biológica (amostra de sangue) ao arguido para aferir se o mesmo é, ou foi, portador de infecção por clamídia.

Tratando-se de uma intervenção corporal, tida como essencial para a investigação pela autoridade judiciária competente nesta fase processual, carece de consentimento esclarecido do visado – cfr. arts. 25º e 32º/8 da Constituição e arts. 125º e 126º do Código de Processo Penal.

Consentimento que, como referido, foi recusado pelo arguido.

Pois bem.

Parece-nos inequívoca a necessidade de realizar o exame/recolha de amostra de sangue pretendido como meio de obtenção de prova fundamental para alcançar a descoberta da verdade material, por forma a aferir da consistência dos indícios já colhidos nos autos quanto à prática criminosa imputada ao arguido.

Com efeito, mostra-se fulcral para a investigação e para a prova que se faça a recolha pretendida de sangue ao arguido para aferir se o mesmo é, ou foi, portador de infecção por clamídia (infecção detetada na sua filha), não se divisando por que outra forma menos invasiva da reserva da vida privada do visado se possa obter idêntico resultado probatório.

Como assim e nestes termos, ao abrigo do disposto nos arts. 172º, 154º/3 e 269º/1,a) e b), do Código de Processo Penal, decide-se determinar que seja efectuada recolha de sangue ao arguido AA, com agulha e seringa, por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro, a que deverá ser compelido caso mantenha a sua recusa.

Notifique.

Consigna-se expressamente que a determinação contida no presente despacho apenas poderá ser cumprida depois de transitado este em julgado


*

3. Apreciação do recurso.

De acordo com o entendimento jurisprudencial assente, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso.

No presente recurso a questão suscitada consiste em saber se o despacho do Mmo. Juiz de instrução que ordenou a sujeição do arguido a recolha de amostras biológicas, a exame de recolha de sangue ao arguido AA, com agulha e seringa..., a que deverá ser compelido caso mantenha a sua recusa, isto é, com recurso à força física em caso de necessidade, é irregular.

Sustenta o recorrente que o despacho recorrido é irregular nos termos do n.º1 do artigo 123.º do CPP, irregularidade essa que por afetar decisivamente o direito à integridade física e moral do arguido constante do n.º1 do artigo 25.º da CRP, determina nos termos do n.º1 do artigo 123.º do CPP a invalidade do despacho de 23.12.2024 e sua determinação quanto à realização da perícia determinada. Pede a revogação do despacho.

Cumpre referir, antes de mais que a questão do consentimento/não consentimento perante o órgão de polícia criminal está documentada e não foi oportunamente atacada a ordem perante a entidade competente, pelo que está ultrapassada tal questão. Por outro lado, o arguido pode posteriormente dar o seu consentimento ao exame que foi ordenado na 1ª instância e que fundamenta o recurso.

Passemos à questão.

No nosso CPP a prática de determinados atos processuais necessários à investigação criminal a serem praticados nas fases preliminares do processo exigem a intervenção do juiz de instrução.

Trata-se da atribuição constitucional da competência para realizar ou autorizar atos que possam colidir com os direitos fundamentais do cidadão a um Juiz, atribuição que decorre diretamente do artigo 32.º, n.º 4, da CRP.

Com relevo para a decisão, vejamos com brevidade o âmbito dos preceitos constitucionais envolvidos.

Preceitua, o artigo 25º, nº 1 da CRP no seu nº 1 que «A integridade moral e física das pessoas é inviolável.»

Acrescentando o n. º2 que “Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos”.

Por sua vez, no subsequente artigo 32.º n.º 1, consagra-se que “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”.

Em concretização desta cláusula geral de «todas as garantias de defesa», no que respeita ao regime da prova proibida, resulta do seu n.º 8: “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”.

É com o direito à integridade física e moral que a realização do exame ordenado pode contender e, bem assim com o direito à reserva da intimidade.

O nº 8 do artigo 32º da CRP, tem concretização ao nível processual penal, no art. 126º do CPP, que igualmente estabelece que são nulas as provas obtidas mediante ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.

Com especial relevância, na ponderação dos normativos concernentes ao meio de prova em causa – exame – importa a consideração do art. 18º da CRP, que estipula, que “[O]s preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”(n.º 1) e “[A] lei pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos”(n.º 2).

Acrescenta o seu n.º 3 que “As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais”.

Dos referidos preceitos resulta que na compressão dos direitos fundamentais e das liberdades e garantias, regem o princípio da legalidade com um carácter simultaneamente legitimador e delimitador; o princípio da intervenção mínima com um carácter vetor/orientador; o princípio da proporcionalidade com um carácter operativo ou funcional. Este último princípio densifica-se através de três outros subprincípios, o da idoneidade ou adequação; o da necessidade ou exigibilidade ambos respeitantes à otimização relativa do que é factualmente possível, e o da proporcionalidade em sentido estrito ou da justa medida, o qual se reporta à otimização normativa[1].

Decorre, portanto, do referido artigo 18º da CRP na sua conciliação com os normativos que permitem a realização de um exame na pessoa do arguido, que este apenas é permitido quando estritamente indispensável para salvaguardar o interesse do Estado na perseguição do crime, materializando o princípio da proporcionalidade ou proibição do excesso, desdobrado nos referidos subprincípios.

A adequação significa que o procedimento/meio eleito se deve revelar adequado ao fim visado pela norma; a necessidade significa que os fins visados pela lei não podem ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos sacrificados ou restringidos; a racionalidade implica que as medidas legais restritivas e os fins obtidos se situem numa “justa medida”.

Assim, o requisito da proporcionalidade funciona como uma garantia da não aniquilação do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais, pois a existência de uma restrição «arbitrária», «desproporcionada», é um índice da ofensa do núcleo essencial[2].

E, nessa medida, quando dissentido, compete ao órgão competente, no caso aos tribunais, que proceda a uma correta avaliação da providência em termos quantitativos e qualitativos, e que através dela se obtenha o resultado devido.[3]

De acordo com o n.º 1 do artigo 171º do Código de Processo Penal o exame que incide sobre as pessoas inspeciona os vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ... às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido.

O n.º 1 do art. 172º, dispõe que «Se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame devido ..., pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente

Por usa vez, o n.º 2 do mesmo artigo dispõe que «É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 3 do artigo 154.º e 6 e 7 do artigo 156.º». Que, por sua vez dispõem:

N.º 3 do artigo 154º do CPP: «Quando se tratar de perícia sobre características físicas ou psíquicas de pessoa que não haja prestado consentimento, o despacho previsto no número anterior é da competência do juiz, que pondera a necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado.

Nºs 6 e 7 do artigo 156º do CPP:

6 - As perícias referidas no n.º 3 do artigo 154.º são realizadas por médico ou outra pessoa legalmente autorizada e não podem criar perigo para a saúde do visado.

7 - Quando se tratar de análises de sangue ou de outras células corporais, os exames efectuados e as amostras recolhidas só podem ser utilizados no processo em curso ou em outro já instaurado, devendo ser destruídos, mediante despacho do juiz, logo que não sejam necessários.

No caso em apreço, como vimos na definição legal de exame sobre as pessoas, que se alcança da lei, trata-se de um exame que incide sobre as pessoas e inspeciona os vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ... às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido.

Por outro lado, como é sabido, o corpo do arguido é, em si mesmo, um meio de prova (cfr. o dever imposto pela alínea d) do n.º 6 do artigo 61º do Código de Processo Penal), pelo que, sobre aquele, impende a obrigação de se sujeitar às diligências de prova previstas na lei.

Os factos que resultam do despacho em recurso:

- Investiga-se nos presentes autos a prática pelo arguido AA, de, pelo menos, três crimes de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 2, als. a), b) e n.º 3 e 177.º, n.ºs 1, als. a), b), e 6, todos do Código Penal; e um crime de violação agravado, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 2, als. a), b) e n.º 3 e 177.º, n.ºs 1, als. a) e b), 5 e 6, todos do Código Penal, na pessoa de BB, sua filha, com base em factos já considerados fortemente indiciados em sede de aplicação de medidas de coação, os quais determinaram a sujeição daquele à medida de prisão preventiva.

- O arguido nega a prática destes concretos factos.

- Decorre do exame pericial de natureza sexual efetuado à vítima BB que lhe foi identificada infeção por clamídia, ou seja, foi identificada Chlamydia trachomatis no raspado endo cervical e endo uretral, em 27-08-24.

- A infeção por clamídia tem valor diagnóstico de contacto sexual.

- Tendo sido, nessa sequência, que o arguido foi notificado pessoalmente pela Polícia Judiciária para a realização de colheita de amostras biológicas a efetuar em ..., no INML no dia 20-12-2024, pelas 10h30.

- O arguido, através do seu Ilustre Defensor, recusou dar o seu consentimento – fls. 561.

- Veio, nessa sequência, o Ministério Público promover que se determine a realização coerciva da recolha de amostras biológicas ao arguido, invocando para tanto o disposto nos arts. 154º/1 a 3 e 172º/2 do Código de Processo Penal.

- Solicitado esclarecimento ao INMLCF sobre o tipo de amostra e modo de colheita, foi informado que a “amostra biológica a colher será sangue total, com agulha e seringa, por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro”.

Postos os referidos factos, deles se conclui, para o efeito que nos ocupa, que o meio de obtenção de prova, realização de recolha de amostra biológica (amostra de sangue) ao arguido – que cabe na definição do exame, meio de prova previsto na lei - visa aferir se o mesmo é, ou foi, portador de infeção por clamídia.

E visa em última instância obter prova ainda que indiciária de que a infeção por clamídia de que a vítima sua filha é portadora tem origem nos contactos sexuais entre ambos, que o arguido nega e a vítima afirma.

O referido exame pretende, portanto, obter um indício relativo ao arguido de que foi ele que infetou a vítima, sua filha, com Clamídia. Sendo que a infeção por clamídia tem valor de diagnóstico de contacto sexual. Neste conspecto o exame é admissível, é legal porque previsto na lei e é o meio de prova adequado para obter a prova pretendida.

A prova que se pretende obter é importantíssima para corroborar a versão dos factos que a ofendida afirma e o arguido nega, pois, estando em causa crimes de violação a prova testemunhal presencial é inexistente, tendo, portanto, o pretendido exame, potencialidades para contribuir para a descoberta da verdade material relativamente aos factos em causa nos autos.

A gravidade dos factos em investigação é elevadíssima e o procedimento a efetuar para obter as informações pretendidas é um vulgar exame sanguíneo que todos os dias é feito por milhares de pessoas voluntariamente, apenas é suscetível de ofender o direito á autodeterminação corporal do recorrente em medida irrelevante, e a intromissão na integridade física do arguido decorrente da recolha de vestígios biológicos no corpo do arguido tem um cariz insignificante; ainda que se conceda que trará informações ao processo que o arguido pretenderá não sejam do conhecimento público.

Assim, em obediência aos referidos normativos e princípios competia ao tribunal efetuar a ponderação da necessidade da realização do referido exame, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado.

Essa ponderação foi efetuada, assim:

«O Ministério Público pretende no caso em apreço, como meio de obtenção de prova, a realização de recolha de amostra biológica (amostra de sangue) ao arguido para aferir se o mesmo é, ou foi, portador de infecção por clamídia.

Tratando-se de uma intervenção corporal, tida como essencial para a investigação pela autoridade judiciária competente nesta fase processual, carece de consentimento esclarecido do visado – cfr. arts. 25º e 32º/8 da Constituição e arts. 125º e 126º do Código de Processo Penal.

Consentimento que, como referido, foi recusado pelo arguido.

Pois bem.

Parece-nos inequívoca a necessidade de realizar o exame/recolha de amostra de sangue pretendido como meio de obtenção de prova fundamental para alcançar a descoberta da verdade material, por forma a aferir da consistência dos indícios já colhidos nos autos quanto à prática criminosa imputada ao arguido.

Com efeito, mostra-se fulcral para a investigação e para a prova que se faça a recolha pretendida de sangue ao arguido para aferir se o mesmo é, ou foi, portador de infecção por clamídia (infecção detetada na sua filha), não se divisando por que outra forma menos invasiva da reserva da vida privada do visado se possa obter idêntico resultado probatório.

Como assim e nestes termos, ao abrigo do disposto nos arts. 172º, 154º/3 e 269º/1,a) e b), do Código de Processo Penal, decide-se determinar que seja efectuada recolha de sangue ao arguido AA, com agulha e seringa, por punção, em qualquer um dos braços, na zona do sangradouro, a que deverá ser compelido caso mantenha a sua recusa

Posta a ponderação efetuada pelo tribunal a quo que enfatiza corretamente os direitos em confronto, a necessidade da realização do exame, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado, dando conta de não divisar outra forma menos invasiva da reserva da intimidade do visado para obter idêntico resultado probatório, só podemos concordar com a correção da referida ponderação.

Acresce que a diligência ordenada está numa relação de adequação com a pretendida descoberta da verdade material e satisfação do interesse estadual na administração da Justiça, para os quais está talhada, no caso, a recolha de indícios da pessoa do arguido que confirmem ou provem factos que sirvam de prova ao crime em causa nos autos, a já referida prova de que o arguido é ou foi portador de Clamídia, visando a prova de contacto sexual com a vítima que também está infetada com esta bactéria.

Por outro lado, é uma diligência que se afigura como única via legal de alcançar os fins visados; existe uma proporção racional - uma “justa medida” - entre o custo da medida para o arguido e o benefício que se almeja obter para a investigação do crime; sendo que não há dúvidas que os bens jurídicos protegidos pelos crimes sexuais em causa, com uma vítima com idade igual – ao tempo da participação – e inferior a 14 anos ao tempo dos factos, e filha do arguido, são superiores à reserva da intimidade privada do arguido, que no âmbito processual será obrigatoriamente preservada dentro dos limites do n.º 7 do artigo 156º do CPP; mais acrescendo o caracter parcamente invasivo do procedimento a efetuar, que é também mínimo na lesão do seu direito à integridade pessoal.

Nas circunstâncias expostas e dado o documentado não consentimento, mostra-se justificada e legitimada a compulsão para obtenção de prova como determinado na decisão, o que quer dizer que a decisão recorrida não viola os normativos mencionados invocados pelo recorrente.

Acresce, não haver dúvidas em face de todo o processado ocorrido entre 02.12.2024 e 23.12.2024, especialmente dos requerimentos que efetuou nos autos a 09.12.2024, 20.12.2024 e 22.12.2024, do despacho do Sr. Procurador de 12.12.2024 e de todos os despachos de 20.12.2024 e de 23.12.2024 que o recorrente sabe qual o exame a realizar e o local da sua realização, conhece os objetivos probatórios do mesmo e os seus fundamentos de facto e de direito, o que aliás, decorre do despacho em recurso. A questão da diligência ordenada pela PJ não está em causa neste recurso e se porventura o recorrente entende que negou o seu consentimento baseado em pressupostos que não se verificam pode sempre, como já anteriormente dissemos, consentir no exame que será oportunamente realizado.

Os dispositivos processuais penais aplicáveis são os mencionados na presente decisão e não outros, pelo que o despacho em recurso sobre nada mais tinha de se debruçar.

Assim, atentos os normativos constitucionais e processuais penais invocados e a ponderação efetuada pelo tribunal a quo não se divisa qualquer irregularidade no despacho recorrido, pelo que a diligência ordenada deve claramente ser realizada.

Improcede, assim, o recurso interposto.


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III- Decisão.

Pelo exposto, acordam os juízes da segunda secção criminal deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência, manter o despacho recorrido.


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Custas pelo arguido, que se fixam em 3 UC, pois decaiu na totalidade no recurso interposto, artigos 513º, n.º1 do CPP, 8º, n.º 9 do RCP e Tabela anexa nº III.

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Notifique.

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Acórdão elaborado e revisto pela relatora – art. 94.º, n.º 2 do CPP.

Porto, 09.04.2025.

[Maria Dolores da Silva e Sousa - Relatora]

[Maria dos Prazeres Silva – 1ª Adjunta]

[Fernanda Sintra Amaral- 2ª Adjunta]

_________________________
[1] Cf. Acs. do TC 11/83, 285/92, 17/84, 634/93, 86/94, 99/99, 187/2001, 302/2006, 158/2008, acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt
[2] Cf. Constituição da República Portuguesa, Anotada, J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Volume I, págs. 392 a 395.
[3] Cf. Ac. do TC n.º 155/07, in www.tribuanlconstitucional.pt