Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | CARLOS PORTELA | ||
Descritores: | USUCAPIÃO DE IMÓVEL POSSE TITULADA POSSE DE MÁ FÉ PRAZO | ||
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Nº do Documento: | RP202109092304/20.7T8MAI.P1 | ||
Data do Acordão: | 09/09/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - A usucapião é um dos modos de constituição de uma servidão de passagem. II - A posse titulada presume-se de boa-fé e a não titulada de má-fé. III - O prazo para a aquisição de imóveis por usucapião depende dos caracteres da posse. IV - Não havendo justo título de aquisição da posse, nem registo deste ou da posse, a usucapião só se pode dar no prazo de 15 anos, se for de boa-fé, ou de 20 anos, se for de má-fé. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Apelação nº 2304/20.7T8MAI.P1 Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Local Cível da Maia Relator: Carlos Portela Adjuntos: António Paulo Vasconcelos Filipe Caroço Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto I.Relatório: B… e marido C… vieram intentar a presente acção declarativa de condenação com processo comum contra D… e mulher E… onde pedem o seguinte: a) Que seja declarada e reconhecida pelos Réus a Autora como a legítima dona e possuidora do prédio denominado "F…", também conhecido localmente por G…, sito no …, em … da actual freguesia …, concelho da Maia, inscrito na matriz sob os artigos 173 e 174 rústicos e 973 urbano e descrito sob o nº 01255; b) Que seja declarado e a reconhecido o direito da A. de passagem pelo caminho que se inicia pelo lado nascente da casa sita no nº … da Rua … em …, …, Maia e se prolonga para norte até à F… da Autora identificado no art.º 4º da petição inicial, em toda a sua extensão e largura, e com todas as suas comodidades, para que possa passar pelo mesmo livremente, a qualquer hora do dia e da noite, a pé ou com animais, veículos de tração animal e mecânica, tractores e máquinas e alfaias agrícolas e a restituição da Autora na posse desse seu direito; c) Que sejam condenados os Réus a absterem-se de praticar quaisquer actos que perturbem ou diminuam o direito de passagem e a plena posse da Autora sobre este caminho; d) Que sejam condenados os Réus a indemnizar os Autores por todas as despesas, prejuízos e lucros cessantes que lhes venham a causar em caso de incumprimento dessa obrigação. Sustentam estes seus pedidos na aquisição por usucapião do direito de passarem por um caminho onde os Réus colocaram um portão. Na sua contestação os Réus contestaram os factos alegados pelos Autores e pediram a improcedência da acção e a condenação daqueles como litigantes de má-fé. Os autos prosseguiram os seus termos prescindindo-se da realização da audiência prévia. Proferiu-se despacho onde se identificou o objecto do litígio, o pedido e a causa de pedir e se definiram os temas de prova. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento no culminar da qual foi proferida sentença onde se julgou a acção parcialmente procedente e se condenaram os réus a verem declarada e a reconhecerem a autora como a legítima dona e possuidora do prédio denominado "F…", também conhecido localmente por G…, sito no …, em … da actual freguesia …, concelho da Maia, inscrito na matriz sob os artigos 173 e 174 rústicos e 973 urbano e descrito sob o nº 01255. Do mais pedido, foram absolvidos os réus. Mais se julgou improcedente o pedido de condenação dos autores como litigantes de má-fé. * Os Autores vieram interpor recurso desta decisão apresentando desde logo e nos termos legalmente previstos as suas alegações.Os Réus contra alegaram. Foi proferido despacho no qual se considerou o recurso tempestivo e legal e se admitiu o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo. Recebido o processo nesta Relação emitiu-se despacho que teve o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. * II. Enquadramento de facto e de direito:Ao presente recurso são aplicáveis as regras processuais da lei nº 41/2013 de 26 de Junho. É consabido que o objecto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, está definido pelo conteúdo das conclusões vertidas pelos autores/apelantes nas suas alegações (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do CPC). E é o seguinte o teor dessas mesmas conclusões: ……………………………… ……………………………… ……………………………… * Por seu turno os Réus nas suas contra alegações pugnam pelo seguinte:Pela rejeição do recurso atento o facto das conclusões mais não serem do que a reprodução do corpo das alegações; Pela improcedência da decisão da matéria de facto; Pela confirmação da decisão proferida. * Perante o antes exposto, resulta claro que são as seguintes as questões suscitadas no presente recurso:1ª) A impugnação da decisão da matéria de facto (quanto aos pontos 18 e 21 dos factos provados); 2ª) A revogação da decisão recorrida e a procedência (total) da acção. * É o seguinte o conteúdo da decisão da matéria de facto antes proferida:Factos provados: 1 - A Autora é a legítima dona e possuidora do prédio denominado "F…", também conhecido localmente por G…, sito no …, em … da atual freguesia …, concelho da Maia, inscrito na matriz sob os artigos 173 e 174 rústicos e 973 urbano e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 01255, freguesia …, e inscrita a aquisição a seu favor. 2 - Este prédio é composto por um terreno de cultura, pinhal, mato e lameiro (artº 173º), outro terreno de cultura e ramada (art. 174º) e por uma antiga casa de moinho (art. 973º). 3 - A A. adquiriu este prédio em 24.01.1985 por doação que seus pais lhe fizeram. 4 - E antes dos pais, pertenceu ao avô paterno da A. falecido em data não apurada. 5 - E esse H…, por sua vez, havia herdado este prédio do bisavô materno da A., 6 - Este prédio tem pertencido e tem sido possuído pela A. e seus antepassados há mais de 20, 30, 40, 50, 60, 70 e 100 anos. 7 - Têm sido a A. e seus antecessores quem, e por esses períodos de tempo, cuida, trata, limpa, corta mato da F…, 8 - Assim como têm sido a A. e seus antecessores quem, e durante esses períodos, cultiva, semeia e colhe os frutos e produtos deste F…. 9 - Têm sido a A. e seus antecessores quem, durante tais períodos de tempo, possui e usufrui destes F…, 10 - De forma exclusiva, pública, pacífica, à vista de toda a gente 11 - E por toda a gente foram e são tidos e reconhecidos como os únicos e verdadeiros donos e possuidores destes F…, 12 - Sem nunca ter havido a oposição a tal de quem quer que fosse, e de forma ininterrupta e sem lesar o direito de outrem. 13 - Existe um caminho com início na Rua …, a nascente da casa que existe nessa rua com o número … de polícia, que vai dar junto ao prédio dos autores (ao artigo 173º) 14 - Saindo da Rua … ao lado do nº …, entrava-se no caminho que se desenvolve para norte até se alcançar, do lado nascente do caminho, a F…. 15 - Nesse ponto existia uma cancela ou portão, com a estrutura em ferro e no centro era fechado com rede de arame e estava cravado e apoiado em duas ucheiras, ou seja em duas pedras de granito em forma de pilares. 16 - Actualmente já não existe cancela ou portão, mas subsistem as duas ucheiras cravadas no solo 17 - Entre essas ucheiras há um espaço aberto, sem vegetação, em terreno inclinado, que permite a passagem do caminho que vem da Rua … para o F…. 18 - Os tractores e atrelados da A. passavam e passam no caminho que parte da Rua … para a sua bouça e para o campo do F…, pelo menos desde 2006, para lavrarem a terra, fresar a terra, semear milho, cortar milho, semear a erva, cortar a erva, transportar milho e transportar erva. 19 - Após o local da cancela da F… da A., e em sentido oposto à Rua …, o caminho continuava para norte e pelo mesmo seguiam dantes pessoas a pé para os lugares da … e da …. 20 - O artigo 173º do nascente confronta com o I…, e dos demais lados com campos e bouças, enquanto o art. 174º se encontra do outro lado do ribeiro. 21 - O caminho tem sido utilizado pela A. pelo menos desde 2006 nos moldes descritos. 22 - E tem-no feito de forma pública, 23 - Pacífica, 24 - À vista de toda a gente 25 - Sem nunca ter havido a oposição de quem quer que fosse a tal posse, 26 - De forma ininterrupta 27 - Há cerca de 1 ano, os RR. construíram dois pilares em betão a ladear este caminho e a cerca de 70 metros da Rua …. 28 - E em 15.05.2020 os RR. colocaram um portão apoiado e fixado nesses dois pilares. 29 - Tal portão é de ferro, gradeado, tem duas folhas e tem uma fechadura com chave colocada ao centro na junção das duas folhas. 30 - O portão e a fechadura estão fechados à chave. 31 - E impedem, por completo, a passagem da A. por esse caminho até ao seu prédio. 32 - Os RR. assim agiram sem conhecimento da A. 33 - Os AA. solicitaram ao R. a abertura do portão, mas este recusou-lhes. 34 - Perante tal ofensa, os AA. através do seu mandatário, notificaram o R. por carta registada para o seguinte: 1. "Os m/s clientes tomaram agora conhecimento que o Sr Engº colocou um portão no caminho de acesso daqueles desde a Rua …, em …, Maia até aos seus prédios rústicos daqueles denominados F… da G…. 2. Esse portão impede e não permite a passagem dos m/s clientes àqueles seus prédios. 3. Tal obstáculo à passagem e ao acesso àqueles prédios dos m/ clientes deve ser removido de imediato. 4. Os m/s clientes, dentro de dias, terão de cultivar aqueles seus prédios, pelo que não podem ficar impedidos de o fazer. Aguardo que, no prazo de cinco dias, remova o identificado portão e seja resposta a livre e desembaraçada passagem àqueles prédios, sob pena de me ver forçado a intentar as respectivas diligências judiciais e extrajudiciais." - cfr. doc 11. 35 - O R. recebeu esta interpelação e respondeu ao mandatário, a recusar expressamente aos AA. o direito de continuarem a passar no caminho, através do email que junto como doc. 12 ao procedimento cautelar. Da contestação 36 - O art.º 173 confronta pelo Sul com a propriedade dos RR. e tem uma área inscrita na matriz de 2.300 m2. 37 - O artigo 174º não confronta com o prédio dos RR. e fica para Norte do I… que existe no local. 38 - Por cima do regato, a permitir a passagem entre os dois artigos há uma ponte em pedra conforme fotografias juntas à contestação 39 - O acesso para este artigo 174 faz-se por um caminho agrícola que vem da casa dos AA. que se situa a Norte do referido artigo. 40 - Da casa dos autores, onde têm o seu assento agrícola, até ao regato e ponte, são cerca de 150 m de distância. 41 - Saindo da casa deles para Nascente para entrar na Rua …, até à cancela que os RR. colocaram, são cerca de 900 m. 42 - Têm de entrar na Rua …, depois virar à direita junto ao J…, passar em frente à Igreja, depois virar à direita em estrada com forte declive – Rua …, depois voltar à direita na Rua … e, chegando ao nº de polícia … entra num caminho estreito, que vai entroncar no início da parcela dos RR. onde foi colocada a cancela. 43 - São Ruas com movimento, ligam a Freguesia … à vizinha Freguesia … – ambas do Concelho da Maia. 44 - O caminho que sai da Rua … até à cancela da propriedade dos RR. no seu início possui 2,85 m de largura. 45 - Para aceder da propriedade dos RR. para o artigo 173 há um declive de vários metros. * Factos não provados Têm sido os autores e antecessores quem vende as árvores e recebe o preço da F… Desde os tempos imemoriais e, pelo menos, desde o tempo em que o bisavô materno da A. era proprietário deste prédio, e no tempo do avô paterno, e no tempo dos pais da A. e desde que a A. passou a ser a dona deste prédio, ou seja, há mais de 20, 30, 40, 50, 60, 70 e 100 anos, o acesso a este prédio sempre foi efectuado através de um caminho que o liga à Rua … existente a sul do prédio. Desde os tempos em que o bisavô materno da A. era proprietário do prédio o acesso a este prédio sempre foi feito por este caminho que vai desde a Rua …, a sul, até à entrada da F…. Desde há 20, 30, 40, 50, 60 e muitos mais anos que passa a A. e os anteproprietários e antepossuidores do prédio por este caminho com os seus carros de bois Desde há mais de 20, 50 e 60 anos e até à presente data, passam neste caminho a A., seus familiares, seus antepassados bem como os trabalhadores desses que cultivam e cultivam esta terra. Usavam e serviam-se do caminho para levar o estrume no carro de bois para adubar o Campo. Passavam no caminho com o carro de bois e a charrua para lavrar a terra do Campo. Passavam no caminho com a grade de dentes para endireitar a terra depois de lavrada. Passavam no caminho com o semeador de milho para fazer a sementeira do milho no Campo. Usavam o caminho para ir regar o milho do Campo. Passavam pelo caminho, quer a pé quer de carro de bois, para ir lavrar, semear, sachar e regar o Campo. Depois do milho estar maduro e seco, iam cortar o milho, passando a pé e com os carros de bois pelo caminho. Como a Bouça e o Campo são muito inclinados, o carro de bois ficava junto à cancela, no ponto alto da Bouça, e o milho era transportado às costas desde o Campo, junto ao I…, até ao carro de bois. Após a recolha do milho, semeavam erva. Os tractores e atrelados da A. e de seus antepassados passavam no caminho que parte da Rua … e para a sua bouça e para o campo do F… pelo caminho há mais de 20, 30 e 40 anos, para lavrarem a terra, fresar a terra, semear milho, cortar milho, semear a erva, cortar a erva, transportar milho e transportar erva. Estes tractores e seus atrelados passam no caminho há mais de 20, 30 e 40 anos para ir cortar o mato e ir cortar os eucaliptos na Bouça da A. Os tractores dos madeireiros contratados pela A. e seus antepassados, passam no caminho e pelo caminho há mais de 20, 30 e 40 anos para ir à Bouça abater e transportar as árvores de grande porte. No Verão, as vacas iam pastar para o F…. Para tal, eram levadas, há mais de 20, 30, 40 e mais anos, pela Rua …, entravam no caminho, seguiam por este até à cancela e desciam para o G… para pastar junto ao I…. E sempre por toda a gente foram e são tidos como titulares do direito de passagem neste caminho, E sempre o fizeram e fazem convictos desse direito. Da contestação Desde sempre utilizaram os antepassados dos AA. e depois eles próprios, o tal caminho que vem da sua casa, onde têm o gado e as alfaias agrícolas – A) na planta – entram no artº 174 – B) na planta, e atravessa o regato pela ponte – foto nº 2 – para aceder ao artº 173. Nunca os animais, os carros de bois, as pessoas ou até qualquer tractor ou máquina agrícola entrou nestes artigos que não fosse da forma descrita no artigo antecedente. O pai dos réus permitiu aos autores ao mesmo tempo, que utilizassem a bouça dos RR. para aceder à sua própria casa, para não passarem pela via pública. Se os AA. passaram pelo caminho da propriedade dos RR., entre 2006 e 2018, foi por mero favor e com a permissão, primeiro do pai do R. marido e depois deste. Antes da intervenção dos SMAS da Maia, há cerca de 20 anos, a entrada do prédio dos RR. pelo acesso vindo da Rua …, tinha uma cancela com 2 metros de largura, pelo que ninguém passava por lá, para além do seu proprietário. Nunca os seus antepassados passaram pela propriedade dos RR. para aceder ao artº 173. Os seus antepassados nunca possuíram qualquer tractor. * Os demais factos alegados são irrelevantes para a decisão. * O Tribunal “a quo” fundamentou da seguinte forma a decisão (de facto) que proferiu:“Análise da prova Os factos provados sob os nºs 27 a 34 estão admitidos por acordo. A inspecção ao local, a fotografia aérea do Google (doc. 7 do procedimento cautelar) e a planta anexa à contestação dão a ideia dos prédios dos autores e da sua localização, bem como dos dois acessos existentes a partir da via pública. Um acesso com início na Rua … (a que está em litígio) e vai dar a artigo rústico 173º, e outra ao lado da casa dos autores, portanto, do lado oposto ao outro acesso, que vai dar ao art.º rústico 174º. A separar esses dois artigos há um regato e sobre ele existe a ponte documentada nas fotografias juntas com a contestação. Que os autores se têm servido do caminho que se inicia da Rua … para entrar no seu artigo 173º é indiciado desde logo pela propositura do procedimento cautelar e da acção. Por outro lado, vê-se que na bouça existe um espaço entre a vegetação (foto 3 da inspecção ao local) que faz a ligação daquele campo ao terreno dos réus. E neste é visível no solo a existência de marcas de rodados (a denunciar um caminho que é utilizado) até ao portão levantado pelos réus (foto 2) e tem depois continuação até à Rua … (foto 1). A questão que se põe é a de saber há quanto tempo e por que forma é que esse trajecto é usado pelos autores e, eventualmente, seus antecessores. Sendo certo que este prédio antes dos autores, foi dos seus pais e dos seus avós. Como disse a irmã da autora e não foi contrariada. Esta irmã da autora, a testemunha K…, afirmou que só utilizava a ponte que une os artigos 173º e 174º para ir de casa, a pé, à loja na Rua … e quando era miúda (tem agora 53 anos). Já para ir trabalhar com animais ou carro de bois, ou para ir cortar o mato da bouça, ou depois no tractor do pai, seguiam pela via pública até à Rua … (pelo trajecto referido no art.º 13º da contestação). E dessa rua pelo caminho agora cortado pelos réus. Não se serviam da ponte sobre o regato para esse fim porque não é segura. Tem fendas. É feita de pedras deitadas paralelamente. Por causa do desnível entre a bouça e o terreno de cultivo e lameiro, o carro de bois ficava na bouça. Eles desciam, cortavam o milho e transportavam-no às costas (“à jiga”) para o carro de bois. Os bois também desciam para o campo para lavrar, o mesmo sucedendo com as vacas que iam pastar. Mas o carro ficava em cima. Já se fossem para o artigo 174º seguiam pelo caminho que parte junto à casa da autora. L…, vizinho há 62 anos, apresentou uma versão semelhante. O pai da autora utilizava o caminho que começa na Rua … para ir de carro de bois e depois de tractor. O carro de bois ficava na bouça. E levavam o milho em braçadas para o carro. Desatrelavam o boi para arar a terra. Também viu passar as vacas para pastarem. Mais tarde, o pai da autora passou a usar tractor e servia-se daquele caminho. Quanto à ponte de pedras era utilizada para passar a pé. Serviu-se dela para ir para as desfolhadas em casa da autora. Não para passagem dos carros ou de animais pois não é segura. E tem fendas. M…, agricultor da zona, negou esta versão. Segundo ele, a passagem para o art.º 173º fazia-se pela ponte do 174º não pelo caminho da Rua …. Os carros não iam para o 173º. Ficavam no 174º. Só iam pela Rua … para aceder a um engenho de água, uma nora, movida pelos bois. Engenho que ficava numa cota acima do terreno de cultivo. Engenho que já não existe e a a autora diz não ser sequer do seu tempo (repare-se que a escritura de doação faz menção a um prédio com um engenho). A testemunha M… negou que a autora ou os seus antecessores levassem as vacas pela Rua … para pastar. Nem levavam mato da bouça, nem sequer havia árvores. N…, filha de anterior arrendatário dos réus (referido no artº 30º da contestação), negou que alguma vez tivesse visto passar animais ou tractores por ali. O…, irmã do réu marido, referiu que se casou há 50 anos e mudou-se dali. Contou que pela bouça do pai passava-se para o reduto do engenho. Para o campo agora dos autores pensa que não. Achava que não se passava por ali de carro de bois ou tractores. Se os autores passavam, só se fosse com autorização do seu pai. O réu marido também falou na passagem para o engenho. Mas daí não se ia para o campo dos autores. Negou que fossem por ali com os animais para a pastagem. Admite que o pai dele tenha facilitado a passagem aos autores quando estes lhe começaram a cultivar um outro terreno, em 2006/2007. Os autores negaram tal relação entre a passagem pelo caminho e o cultivo do campo do pai do réu (que durou entre 10 e 15 anos segundo eles). Segundo eles, o acesso ao terreno do pai do réu fazia-se por outro caminho. O tribunal ficou com dúvidas de que os autores e seus antecessores se servissem do caminho da Rua … para levarem os animais para pastar ou para o carro de bois. Não só pelos depoimentos contraditórios, mas também pela distância a percorrer desde a casa dos autores até esse caminho. Quando podem chegar mais rapidamente pelo caminho que se inicia á beira de sua casa e vai pelo art. 174º. Por outro lado, a Rua …, que teriam de percorrer para chegar à Rua … tem uma forte inclinação que deve ser difícil para os animais com carga atrelada Além disso, se o carro de bois não ia até ao campo, na versão dos autores, e ficava na bouça por causa do declive porque razão é que se davam ao trabalho de efectuar tão grande trajecto. Podiam deixá-lo no artigo 174º e levar o milho a pé pela ponte. Quanto à ponte, a sua largura (2,65m) dá a ideia de que serve não só para travessia apeada mas também para a passagem de carros de bois ou tractores. No entanto, ninguém testemunhou a travessia desses veículos pela ponte. E o argumento de que a ponte é perigosa para os animais e para carros de bois por ter fendas entre as pedras faz algum sentido. Relativamente à carga que a ponte é capaz de suportar, nomeadamente para a passagem dos animais e dos tractores, não foi feita prova que possa dar alguma ideia sobre o assunto. Repare-se, contudo, que a ponte parece estar assente em pedra (fotos juntas com a contestação). Dá a ideia de ser resistente. Quanto, desconhece-se. Por tudo isto, o tribunal ficou com dúvidas sobre se os autores e seus antecessores se serviam ou não do caminho da Rua … para irem para o art. 173º de carro de bois ou para levarem os animais para pastar ou para ir buscar mato à sua bouça. E por isso não deram como provados os respectivos factos. Relativamente aos tractores, é diferente. Os óbices da distância a percorrer da casa dos autores até à Rua … já não se põem. A testemunha O… achava que pelo caminho da Rua … não passavam tractores. Sublinhe-se, achava, o que significa que não sabe. E a testemunha N… disse que nunca viu passar tractores. Mas não mora ali nem conseguiu explicar a razão para o solo ter marcas de rodados. O Tribunal convenceu-se que os autores utilizam o caminho que passa pela bouça dos réus com tractores para art.º 173º. O próprio réu admitiu como possível que os autores passem por ali desde 2006. E parece lógica a sua explicação para os autores não utilizarem a ponte: não querem passar por cima das culturas do seu outro terreno (o art. 174º). Mas note-se que os conhecimentos do réu também não são seguros. Pois, ele admite estes factos como possíveis. Dado que era o seu pai que antes tratava dessas questões. M… também referiu que o art. 173º só ultimamente - para ele são 10/15 anos - é que tem milho. E que este (a silagem) é cultivado com tractores. Portanto, os tractores vão, pelo menos há 10/15 anos para o art. 173º. Como no início o caminho do irmão da testemunha (o caminho que se inicia junto da casa dos autores) é estreito, os autores deviam passar pela bouça dos réus. E a passagem que existe nessa bouça do caminho para o 173º foi feita para os tractores. Acrescentou a testemunha que o pai da autora nunca teve tractor. Teve-o somente o autor marido (note-se que os autores são casados há mais de 30 anos como se deduz da escritura pública de doação junta no procedimento cautelar). Diversamente, a testemunha P…, agricultor, mencionou que desde 1996/98 por ali ia para ajudar os autores para o cultivo do milho (silagem). O depoimento desta testemunha, porém, não é muito credível. É primo dos autores, por isso suspeito de parcialidade. Além disso, a testemunha referiu que foi ajudar todos estes anos, menos o último por causa do portão colocado pelos réus. Ora, o obstáculo do portão foi removido pelo procedimento cautelar em 30/6/2020. E na inspeção ao local verificou-se a existência de restos de canas. Pelo que o milho foi também cultivado no ano passado. Acresce que o tribunal desconfia de tanta ajuda dada pela testemunha quando está em causa um terreno de dimensões relativamente reduzidas para um cultivo mecanizado. Por tudo isto, este depoimento não convenceu o tribunal. As já referidas testemunhas K… (irmã da autora) e L… disseram que já o pai da autora passava de tractor pelo caminho da …. Porém, a primeira achava que o tractor não descia da bouça para o terreno. E o segundo afirmou o contrário, pois disse que o tractor ia com a charrua ou grade de discos. Mas M…, repete-se, negou que o pai da autora tivesse algum tractor. Segundo ele, só o autor marido é que teve tractor. Não há prova documental da existência dos tractores propriedade do pai da autora. Por outro lado, as discrepâncias entre os depoimentos de K… e de L… acima referidas e o facto dos seus depoimentos merecerem algumas reservas quanto à utilização do caminho da … pelos carros de bois e animais não permitem dar-lhes total crédito neste particular. O depoimento que pareceu mais credível foi o do citado M… que fez coincidir a utilização do caminho com o início da utilização do art.º 173º para silagem. O que a testemunha admite ter ocorrido, no máximo, há 15 anos. Quinzena que coincide com o reconhecimento pelo réu da possibilidade dos autores se servirem do caminho desde 2006. Altura em que passaram a explorar o terreno dos réus. O que também bate certo com a afirmação do réu marido de que trabalhou o tal terreno dos réus durante 10/12 anos até há cerca de 2/3. O que nos remete para cerca de 2006. Em suma, o tribunal ficou convencido que os autores se servem do caminho da Rua … para irem de tractor para o art. 173º pelo menos desde 2006. É possível que o fizessem antes. Porém, a prova não é suficientemente segura para dar tal como provado. Os factos confessados pelos autores constam da acta da audiência final e incidem sobre aspectos de somenos. Relativamente aos demais factos não provados, não foi produzida prova suficiente para que o tribunal se convencesse da sua veracidade.” * Ficou já visto por todos que na tese dos autores/apelantes, tal decisão merece reparo no que toca aos pontos 18 e 21 dos factos provados pelo facto do Tribunal “a quo” ter valorado positivamente o depoimento de parte prestado pelo Réu e pelas testemunhas por si arroladas, designadamente as testemunhas M… e negativamente os depoimentos de parte dos Autores e das testemunhas por estes indicadas, nomeadamente as testemunhas K… e L….Como se impunha procedemos à análise ponderada (e conjugada) da prova produzida. Para tanto ouvimos as gravações onde foram registados os depoimentos prestados em audiência de julgamento, quer pelas partes, quer pelas testemunhas que arrolaram, pondo particular atenção no que foi dito em juízo pelas referidas três testemunhas, cujas declarações devem na tese dos Autores ser valorados de modo diverso. E desta audição não retiramos conclusões que em nosso entender possam sustentar a pretensão que está na base do recurso da decisão de facto aqui interposto e assim justificar a alteração proposta quanto aos pontos 18 e 21 dos factos provados. Senão, vejamos: Confirmamos o que foi referido pela testemunha K…, irmã da Autora, a qual tinha 53 anos de idade à data do seu depoimento. Neste a mesma testemunha começou por referir que se recordava de quando era criança utilizar a ponte que liga os terrenos dos artigos 173º e 174º, para ir a pé da casa dos seus pais à loja da …. Afirmou que o mesmo já não ocorria quando por ordem dos seus pais ia para a bouça com os animais soltos ou com o carro de bois, o caminho que seguia era o seguinte: entrava na Rua …, depois virava à direita junto ao J…, passava em frente à Igreja, virava à direita na rua …, virava de novo à direita na Rua …, entrava num caminho estreito e chegava ao início da parcela de terreno que agora é dos Réus. Declarou que não utilizava a ponte sobre o regato por esta não ser segura. Referiu também que por causa do desnível existente entre a bouça e o terreno de cultivo/lameiro, o carro de bois era deixado na bouça e que se descia a pé para cortar o milho que depois era transportado “à jiga” para cima e colocado no carro de bois. Disse ainda recordar-se que os bois e as vacas desciam para o campo, os primeiros para trabalhar e as segundas para pastar mas que o carro de bois ficava cá em cima. Quanto á testemunha L… o que de relevante foi declarado pelo mesmo foi o seguinte: Referiu ser vizinho das partes e dos seus antecessores há 62 anos. Disse recordar-se que o pai da Autora para ir para utilizava o caminho que começa na Rua … primeiro com o carro de bois que deixava na bouça e depois com o tractor. Fez notar que o milho era trazido em braços para o carro e referiu que os bois eram desatrelados para lavrarem a terra. Disse lembrar-se de ter visto as vacas passarem para pastarem no campo do pai da Autora. Quanto à ponte de pedras referiu que esta era utilizada por todos para passar a pé e não para passar com carros ou animais. E isto por questões de segurança. Em relação às declarações da testemunha M… o que importa referir é o seguinte: O mesmo começou por dizer que nasceu e foi criado na localidade dos factos e que por isso conhece todas as partes intervenientes no processo. Apresentou uma versão dos factos diversa da das testemunhas anteriores. Assim e segundo ele a passagem para o prédio do art.º 173º fazia-se pela ponte de pedras e não pelo caminho da Rua …. Disse que os carros não iam para o prédio do art.º 173º mas ficava, no do art.º 174º. Salientou que as pessoas só utilizavam o caminho da Rua … para chegar a um engenho de água que tinha uma nora movida por bois e que se situava acima do terreno de cultivo do pai da Autora, engenho esse que já não existe. Disse não ser verdade a versão de que a Autora e os seus antecessores levavam as vacas para pastar pela Rua … e que levavam mato para a bouça. Mais referiu que o prédio do art.º 173º só ultimamente (há cerca de 10/15 anos), milho esse que é cultivado com tractores. Afirmou que o pai da Autora nunca teve tractor e que o tractor a que se faz referência só pode ser o do Autor marido. Quanto às restantes testemunhas arroladas pelas partes, o que se pode concluir é que as mesmas corroboram as versões dos factos trazidas ao processo pelas partes que as indicaram. É claramente o que resulta das suas declarações conforme aliás se verifica da análise da prova da decisão recorrida antes melhor transcrita. A ser deste modo, também nós temos como mais credível a versão dos factos que foi trazida aos autos entre outros pela testemunha M… a qual e no fundo confirma a tese dos Réus. Ou seja, a versão que resultou suficientemente provada foi a que consta dos pontos 18 e 21 dos factos provados. E isto porque os Autores não lograram provar com suficiente força, como lhes cabia, que a utilização do caminho que começa na Rua … e que conduz à sua bouça e ao campo do F… nos termos ali descritos é anterior ao ano de 2006. E a ser assim nenhum fundamento existe para que nos termos propostos no presente recurso se altere a redacção dada aos referidos pontos de facto (os dos artigos 18º e 21º). Deste modo e por não estarem verificados os pressupostos previstos no art.º 662º do CPC, nega-se provimento ao recurso da decisão de facto interposto pelos Autores e confirma-se nesta parte a decisão proferida. Os factos provados e não provados são pois o que já antes aqui deixamos melhor referidos e que agora por desnecessário não voltamos a reproduzir. E improcedendo como improcede o recurso da decisão de facto, valem os argumentos jurídicos nos quais o Tribunal “a quo” sustenta a decisão recorrida e que agora se resumem. De acordo com a alegação dos Autores na sua petição inicial, está em causa nos autos uma servidão de passagem que tem por objecto o caminho que se inicia na Rua … e termina no prédio denominado “F…”, também conhecido por “G…”, sito no …, … da actual freguesia …, inscrito na matriz sob os artigos 173º e 174º rústicos e 973º urbano. Na tese dos mesmos o direito de passagem que invocam terá sido adquirido por usucapião. A ser assim são aplicáveis ao caso as regras conjugadas dos artigos 1251º, 1287º e 1543º e seguintes do Código Civil. Como bem se afirma na decisão recorrida “a solução do caso em litígio passa por indagar se os autores demonstraram ter exercido a posse pelo tempo necessário à constituição por usucapião de uma servidão de passagem”. É consabido que o prazo para a aquisição por usucapião de imóveis depende dos caracteres da posse. De acordo com o disposto nos nºs 2 e 3 do art.º 1260º a posse titulada presume-se de boa-fé e a não titulada de má-fé. Na hipótese dos autos, não havendo, como não há, justo título de aquisição da posse, nem registo deste ou da posse, a usucapião só podia dar-se ao termo do prazo de 15 anos, se for de boa-fé, ou de 20 anos, se for de má-fé (cf. art.º 1296º do CC). Da matéria que ficou aqui provada pode concluir-se que os tractores e atrelados dos Autores passavam e passam no caminho que parte da Rua … para a sua bouça e para o campo do F…, pelo menos desde 2006, para lavrarem a terra, fresar a terra, semear milho, cortar milho, semear a erva, cortar a erva, transportar milho e transportar erva. Ou seja, está provado que o referido caminho tem sido utilizado pelos Autores pelo menos desde 2006. Provou-se, também que tal utilização tem sido feita de forma pública, pacífica e ininterrupta, à vista de toda a gente e sem nunca ter havido a oposição de quem quer que fosse. Não foi feita a prova da existência de qualquer título de aquisição da posse. E a ser assim e nos termos sobreditos, deve presumir-se que a mesma é de má-fé, razão pela qual os aqui Autores careciam de 20 anos de posse para adquirirem por usucapião a servidão de passagem que invocam. Como todos já vimos só estão provados 14 anos de posse. E isto porque a presente acção foi proposta em 01.08.2020. Por ser deste modo, bem decidiu o Tribunal “a quo” quando concluiu pela improcedência dos pedidos formulados pelos Autores nas alíneas b), c) e d) da petição inicial. E decidiu também correctamente ao concluir pela procedência do pedido formulado em a) do mesmo articulado. Ou seja, nenhum reparo nos merece a decisão recorrida a qual deve por isso e sem mais ser confirmada. * Sumário (cf. art.º 663º, nº7 do CPC):……………………………… ……………………………… ……………………………… * III. Decisão:Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso de apelação e em consequência, confirma-se a decisão recorrida. * Custas a cargo dos autores/apelantes (cf. art.º 527º, nºs 1 e 2 do CPC).* Notifique.Porto, 9 de Setembro de 2021 Carlos Portela António Paulo Vasconcelos Filipe Caroço |