Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
15609/21.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: PERDA DE CHANCE PROCESSUAL
MANDATO FORENSE
OBRIGAÇÃO DE MEIOS
Nº do Documento: RP2024011115609/21.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Nos termos do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2022, o dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade.
II - Com o «julgamento dentro do julgamento» procura-se apurar, através de um juízo de prognose póstuma, a decisão hipotética que o processo teria tido se a falta não tivesse ocorrido, devendo o tribunal da acção de indemnização adoptar a perspectiva do tribunal que teria que decidir o processo onde a falha ocorreu.
III - Não sendo possível concluir que se o recurso tivesse sido apreciado pelo tribunal de recurso, o arguido teria, com forte probabilidade, obtido uma diminuição da pena e, sobretudo, a fixação dela em medida que permitiria e determinaria a suspensão da respectiva execução, não deve ser decidido que em virtude da apresentação extemporânea do recurso o seu mandatário causou um dano da perda de chance processual passível de fundar um dever de indemnização pelas consequências de ter cumprido a pena de prisão fixada na 1.ª instância.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2024:15609.21.0T8PRT.P1
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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. Relatório:
AA, divorciado, contribuinte fiscal n.º ...56, residente em ..., Vila Nova de Famalicão instaurou acção judicial contra BB, contribuinte fiscal n.º ...15, advogado, com escritório no Porto, e a A..., S.A., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ...31, com sede em Lisboa, pedindo a condenação dos réus, solidariamente, a pagarem-lhe a quantia de €51.105,00 de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento.
Para fundamentar o seu pedido alegou em súmula, que contratou o réu para na qualidade e no exercício das funções de advogado o defender num processo crime em que foi condenado em pena de prisão e que o réu não cumpriu as suas obrigações profissionais nos termos que lhe eram exigíveis, tendo apresentado recursos fora de prazo, cuja rejeição impediu a fiscalização da decisão por outros tribunais, o que obstou a que o autor visse reduzida a sua pena causando-lhe danos patrimoniais e não patrimoniais dos quais pretende ser ressarcido.
Os réus foram citados e contestaram, defendendo a improcedência da acção.
Para o efeito a ré seguradora defendeu que a factualidade alegada na petição inicial não se encontra coberta pela apólice de seguro consigo celebrada, que não é parte legítima na acção, que o sinistro não lhe foi comunicado nos termos exigidos pela apólice, que o mandatário réu não praticou qualquer conduta ilícita, erro ou negligência no cumprimento do mandato, que não foi alegada nem se verificava a probabilidade séria de o recurso proceder caso fosse apresentado tempestivamente.
O réu advogado alegou que após a prolação do segundo Acórdão da 1.ª instância dialogou com o cliente sobre as consequências da decisão relativamente ao cumprimento da pena, tendo sido acordado que apenas seria interposto recurso para a Relação e posteriormente invocada a inconstitucionalidade para ganhar tempo e permitir diferir o início do cumprimento da pena para a altura que pareceu mais conveniente ao autor e não por haver a probabilidade séria de o recurso proceder. Impugnou ainda os danos alegados pelo autor.
Na oportunidade requereu e foi deferida a intervenção principal da B..., S.A. e, subsidiariamente, da C... Company SE, Sucursal em Espanha.
Contestaram ambas, defendendo, por razões diversas relacionadas com as respectivas apólices, que os factos alegados não preenchem os requisitos para integrarem a cobertura da apólice, e impugnando os factos alegados por desconhecimento dos mesmos.
No despacho saneador a ré a A... S.A. foi julgada parte ilegítima e absolvida da instância.
Realizado julgamento foi proferida sentença, tendo a acção sido julgada improcedente e o réu e as intervenientes absolvidas do pedido.
Do assim decidido, o autor interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
A - Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida pela Meritíssima Juiz do Tribunal "a quo" que, julgou a acção declarativa com processo comum contra o réu advogado e réu seguradora intentada, pedindo-se que os réus sejam solidariamente condenados a pagar ao recorrente a quantia de €51.105.000,00 (cinquenta e um, cento e cinco euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais e patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento, totalmente improcedente.
B-Salvo o devido respeito, o recorrente não pode concordar com os fundamentos que sustentam a douta decisão recorrida.
C-O âmbito do presente recurso resume-se, pois, sobre a natureza da responsabilidade civil/profissional do advogado e fazendo-se o julgamento dentro do julgamento, se assistirá ou não razão ao ora recorrente, se se verifica ou não a chamada “perda de chance”, se o recorrente, foi ou não afectado num seu direito fundamental, o de conseguir uma sentença diferente impeditiva dos danos causados, como consequência do mandato defeituosamente cumprido, por parte do réu advogado.
D- No caso sub judice há, ao contrário de muitos outros no âmbito desta matéria de perda de chance, um acréscimo documental (a certidão judicial junta com a petição inicial comportando as peças processuais fundamentais). Isto porque aqui, apesar de intempestivo, o réu advogado deu entrada do recurso que serviria para modificar a decisão processo crime (ou pelo menos tentar).
E- O recorrente através da outorga de procuração forense, a 10 de Janeiro de 2011, conferiu poderes ao réu Ilustre Advogado, para o representar, exercendo o respectivo patrocínio no Inquérito nº 1659/10.6JAPRT que corria termos nos Serviços do Ministério Público junto do então Tribunal da Comarca de Vila Nova de Famalicão e posteriores desenvolvimentos processuais – itens 1º e 2º dos factos dados como provados da douta Sentença de que se recorre.
F- Patrocinou o réu advogado o recorrente até ao trânsito em julgado da sentença condenatória que lhe foi aplicada, sentença essa proferida no âmbito do processo comum colectivo com o nº 1659/10.6JAPRT, do então 1º Juízo Criminal do Círculo Judicial de V. N. Famalicão, a qual veio a condenar o autor/recorrente: a)- pelo cometimento de um crime de violência doméstica p.p. pelo art. 152º nº 1 al. a) e nº 2 do Cód Penal, na pena de 4 anos e 3 meses de prisão, b)- pelo cometimento de um crime de detenção ilegal de arma p.p. pelo art. 86º nº 1 al. c) da Lei nº 5/2006, de 23/2, na pena de 3 anos e 4 meses de prisão; c)- pelo cometimento de um crime de detenção ilegal de arma p. e p. pelo art. 86º nº 1 al. d) da Lei nº 5/2006, de 23/2, na pena de 1 ano e 10 meses de prisão; d)- Em cúmulo jurídico das penas de prisão, condenado o autor na pena única de 6 anos e 9 meses de prisão; e)- Foi ainda aplicada ao autor a pena acessória de proibição de contacto com a vítima, pelo período de cinco anos, assim como, f)- a medida de segurança de cassação de licença de detenção, uso e porte de arma, pelo período de 8 anos.
G- Desta decisão interpôs o réu advogado o competente recurso para o Tribunal da Relação do Porto e na sequência deste foi proferido acórdão, dando provimento parcial ao recurso apresentado, decidindo: a)- Julgar improcedente o recurso interlocutório mantendo nos precisos termos o despacho recorrido; b)- Manter inalterável a matéria de facto dada como provada no acórdão condenatório c)- Manter a subsunção jurídica de parte desses factos ao crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1 e 2 do Cód. Penal; e)- Anular parcialmente, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 379º nº 1 e 374º nº2 do Cód. Penal, o acórdão recorrido, nos segmentos supra especificados e relativos às questões qualificação/subsunção jurídica dos demais factos ( detenção de arma proibida) e determinação da medida das penas parcelares concretamente aplicadas e da pena única resultante do respectivo cúmulo jurídico, que deve ser reformulado e expurgado dos vícios enunciados pelo mesmo colectivo, podendo, se necessário, ser reaberta a audiência para os efeitos previstos no art. 371º, do citado diploma legal.
H- Baixado o processo ao Círculo Judicial de Vila Nova de Famalicão, marcada nova audiência de julgamento, foi proferida nova decisão, condenando o recorrente nos seguintes termos: a)- pelo cometimento de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152º nº 1 al. a) e nº 2 do Cód Penal, na pena de 4 anos e 3 meses de prisão; b)- pelo cometimento de um crime de detenção ilegal de arma p. e p. pelo art. 86º nº 1 al. c) da Lei nº 5/2006, de 23/2, em concurso aparente com o da alínea d) do mesmo artigo, na pena de 4 anos de prisão; c)- Em cúmulo jurídico das penas de prisão, condenado o autor na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão e)- Foi ainda aplicada ao autor a pena acessória de proibição de contacto com a vítima, pelo período de cinco anos, assim como, f)- a medida de segurança de cassação de licença de detenção, uso e porte de arma, pelo período de 8 anos.
I- Não se conformando com este novo acórdão, apresentou o réu recurso para o Tribunal da Relação do Porto, tendo por objecto, a reapreciação da matéria de facto (reapreciação da prova e sua valoração), a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; erro na qualificação jurídica dos factos, no que se refere ao crime de violência doméstica; nulidade do acórdão por insuficiência da fundamentação da decisão relativa ao cúmulo jurídico das penas; erro na escolha e determinação concreta da pena.
J- Sucede que, o recurso agora interposto, foi apresentado no terceiro dia, após os trinta dias a contar da notificação do respectivo acórdão, quando, na verdade, o prazo para a sua interposição era de vinte dias, visto a matéria de facto dada como provada não ter tido alteração, ocorrendo o caso jugado quanto à mesma.
K-Todo o circunstancialismo e respectiva matéria de facto alegada em sede de petição inicial e dada como provada, encontra-se provada por certidão judicial junta aos autos.
L- Desde já se adere à exposição doutrinária e jurisprudencial sobejamente exposta na douta sentença de que que recorre no que concerne à figura da “perda de chance”.
M- A responsabilidade civil assacada ao réu ilustre advogado é de natureza contratual. Entre ambos foi celebrado um contrato de prestação de serviços, na modalidade de mandato com representação, obrigando-se o réu advogado, na sequência dele, a realizar as diligências e actos jurídicos necessários em cumprimento do mandato e de acordo com as regras profissionais próprias da actividade da advocacia. O cumprimento defeituoso da obrigação a que o réu advogado estava adstrito fê-lo incorrer em responsabilidade contratual, em virtude da presunção de culpa estatuída art. 799º do Código Civil.
N- Ao réu advogado incumbia demonstrar e provar o incumprimento da obrigação, o de assegurar uma defesa eficaz, não procedeu de culpa sua, o que não logrou.
O- Dos factos provados – itens 18º, 19º, 20º, 23º, 24º e 25º da douta sentença de que se recorre – o réu advogado omitiu a diligência devida ao exercício do mandato judicial de que estava incumbido, a apresentação atempada do competente recurso e respectivas motivações e conclusões, dentro doo prazo estabelecido pelas normas do processo penal.
P- Consequentemente, ficou o réu advogado obrigado a indemnizar o ora autor/recorrente por todos os danos por este sofridos em consequência de tal incumprimento, como refere Luís de Menezes Leitão, em Direito das Obrigações, vol. II, 6ª edição, 2008, págs. 251-252.
Q-O recorrente sofreu danos, o recorrente, considerando o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto relativo à primeira decisão do Tribunal de primeira instância, tinha uma expectativa séria de lhe ver ser aplicada uma pena unitária de cinco anos de prisão suspensa na sua execução ou porventura, de ver reduzida substancialmente a respectiva condenação, nos termos do art.º 50.º, n.ºs 1, do Código Penal.
R- A expectativa do recorrente tem a necessária tutela jurídica, tem uma “chance” séria, consistente e provada.
S- Para averiguação da “chance” séria, consistente e provada, necessário é, realizar o chamado “julgamento dentro do julgamento”. Isto é, o encontrar da solução jurídica considerada altamente provável que Tribunal da Relação viesse a decidir, “qual o seu olhar”.
T-Considerando as diferentes peças processuais constantes da certidão judicial junta à petição inicial e os factos dados como provados, encontra-se o processo imbuído de todos factos necessários à apreciação da «perda de chance».
U-Discorrendo sobre os diferentes factos: a) Foi pelo Ex.mo Senhor Procurador do Ministério Público junto do então Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, pugnado em sede de Resposta ao recurso, a aplicação de uma pena única de cinco anos de prisão com possibilidade da suspensão da sua execução, b) Por sua vez, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, entendeu e decidiu: “(…) Anular parcialmente, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 379º nº 1, a), e 374º nº 2 do Cód. Penal, o acórdão recorrido, nos segmentos supra especificados e relativos às questões qualificação/subsunção jurídica dos demais factos (detenção de arma proibida) e determinação da medida das penas parcelares concretamente aplicadas e da pena única resultante do respectivo cúmulo jurídico, que devia ser reformulado e expurgado dos vícios enunciados pelo mesmo colectivo, podendo, se necessário, ser reaberta a audiência para os efeitos previstos no art. 371º, do citado diploma legal (…)ˮ.
V- Em sede de fundamentação, no supra citado Acórdão foi proferido o seguinte: “(…) E atentando nos fundamentos em que se louvou o tribunal recorrido há que dar razão ao recorrente uma vez que, aludindo à necessidade de “sopesar as circunstâncias agravantes e atenuantes”, se limitou a discorrer sobre a gravidade da conduta, intensidade da ilicitude e da culpa, bem como sobre as exigências de prevenção geral e especial, olvidando completamente a referência às condições pessoais e económicas do arguido - designadamente o facto de já se encontrar divorciado da ofendida tendo cessado a génese desta conduta delituosa - omitindo a ausência de antecedentes criminais e a circunstância do mesmo ser imputável mas padecer de um desvio de personalidade (perturbação narcísica) e parafilias (sadismo, voyeurismo) que interferem necessariamente na análise de alguns dos comportamentos integradores do crime de violência doméstica e que poderão (ou não, o tribunal o dirá) reflectir-se na medida da pena (…)”, itálico e sublinhado nosso, cf. págs. assinaladas com os números 2105 e 2106 da certidão junta com petição inicial.
Z- Também o réu advogado, em sede de motivações e conclusões formuladas e apresentadas pelo no recurso apresentado a destempo, pugnou por uma medida de pena unitária em não mais de três anos e seis meses, suspensa na sua execução, cf. pág. assinalada com o número 1956 da certidão junta com petição inicial.
AA- Considerando a jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto, proferida à data, entre os quais, os Ac. TRP de 21/09/201, proc. nº 310/09-1GAPPVZ.P1, Ac. TRP de 28/09/2011, proc. nº 170/10.0GAVLC.P1, Ac. TRP de 17/06/2015, proc. nº 194/148.0GBAND.P1, em todos estes doutos arestos a condenação aplicada ao respectivo arguido, quanto ao crime de violência doméstica é substancialmente inferior à pena que lhe foi aplicada, o mesmo se diga quanto a doutos Acórdãos proferidos por outros Tribunais de Relação, veja-se a este propósito, o Ac. TRE, de 15/10/2013, proc. nº 5/12.9GRMZ.E1, em que a medida da pena única aplicada para a prática do crime qualificado de violência doméstica, p.p. no art. 152º, n.ºs 1 al. a) e 2, do C.P., foi-o numa pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo e Ac. TRC de 10/01/2018, proc. 1641/16.9T0VIS.C1, quanto às penas aplicadas pela prática dos crimes de violência doméstica agravado (três anos de prisão) e de detenção de arma proibida (um ano de prisão), com pena única de 3 anos e 4 meses, com suspensão na execução da pena de prisão.
BB- Tendo em consideração a moldura penal prevista no Código Penal e na Lei do Regime Jurídico das armas e suas munições (aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro), ao recorrente, quanto aos crime de foi condenado, foi-lhe aplicado penas parcelares muito próximas do máximo estabelecido, não sendo considerado pelo Tribunal Criminal de Vila Nova de Famalicão, qualquer circunstância atenuante, mas tão só agravante, ao arrepio do balizamento estabelecido pelo douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto.
CC- Considerando o juízo de prognose póstumo, o grau de probabilidade de o recorrente ter visto modificada a sentença no que respeita à medida da pena única que lhe foi aplicada, é sério e elevado.
DD- o recorrente sofreu danos de natureza não patrimonial e patrimonial em razão dessa perda de chance ou oportunidade.
EE- Os danos de natureza não patrimonial, estão identificados a itens 36º a 48º da douta sentença de que se recorre, sendo eles ressarcíveis em sede de responsabilidade civil contratual.
FF- O art.º 496º do CC dispõe que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”. Sendo condição da ressarcibilidade a sua gravidade - artº 496 nº 1 do Código Civil.
GG- O valor €30.000,00 (trinta mil euros) peticionado pelo ora recorrente é adequado tendo em consideração todo o sofrimento psíquico, estados depressivos, ansiedade e grande tristeza pelo qual passou, o tempo de prisão efectiva cumprido, o não ter podido conviver com a mãe e filhos e o não ter podido acompanhar a evolução e crescimento volitivo destes.
HH- Por sua vez, sofreu o recorrente danos patrimoniais, os quais de forma parcial se encontram elencados a itens 33º e 35º da douta sentença de que se recorre. O recorrente teve efectivamente uma perda de ganho. O recorrente iniciou o cumprimento da pena em 27/6/2013, tendo atingido os cinco sextos da mesma em 27/11/ 2016, o que perfaz 41 meses de pena efectiva de prisão cumprida, cf. documento junto com a petição inicial.
II- Importa considerar a diminuição da capacidade de ganho e tendo em consideração as circunstâncias pessoais do recorrente, o valor que deixou de auferir e que, com muita probabilidade viria a auferir, caso não viesse a cumprir pena efectiva de prisão e tendo por base o correspondente salário mínimo nacional em vigor durante o tempo de cumprimento da pena, traduz-se tal valor no montante de €21.105,00 (vinte e um mil, cento e cinco euros), considerando o facto do recorrente, ou como empresário ou como trabalhador por conta de outrem, iria no mínimo auferir.
JJ- Valores esses acima descritos e correspondentes a danos não patrimoniais e patrimoniais de que o recorrente deve ser ressarcido.
KK- Ao dar como improcedente os pedidos formulados pelo recorrente, o Tribunal a quo, interpretou e aplicou incorrectamente o estatuído, entre outros, nos arts. 483º, 487º, 496º, 562º, 791º, 1157º, 1161º e 1162º, todos do Código Civil, e 97º da Lei nº 145/2015, de 09/09 (EOA) conferindo-lhes uma interpretação que não é conforme com a sua redacção e com o sentido das normas.
Termos em que deve ser revogada a douta sentença de que se recorre e substituída por outra que, considere e decida julgar a acção intentada pelo recorrente procedente por provada e, em consequência condenar os réus a pagar ao A/recorrente os valores peticionados a título de danos não patrimoniais e patrimoniais e respectivos juros de mora conforme o peticionado, por ser de Justiça.
O recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se por o réu não ter apresentado no prazo legal recurso do Acórdão que o condenou numa pena de prisão que teve de cumprir, o autor perdeu uma oportunidade consistente e séria de ver a sua pena de prisão reduzida e/ou suspensa na sua execução; na afirmativa, que danos sofreu o autor e como devem ser calculados.


III. Fundamentação de facto:
Encontram-se julgados provados os seguintes factos:
1. O réu exerce a actividade profissional de advogado, sendo portador da cédula profissional n.º ....
2. A 10 de Janeiro de 2011 o autor subscreveu procuração forense, constituindo seus bastantes procuradores os Ex.mos Senhores Advogados Drs. BB, CC e DD (então Advogado Estagiário), conferindo-lhes os mais amplos poderes forenses em direito permitidos, incluindo os de substabelecer, sendo o réu Dr. BB quem assumiria o patrocínio do autor no âmbito do Inquérito nº 1659/10.6JAPRT que corria termos nos Serviços do Ministério Público junto do então Tribunal da Comarca de Vila Nova de Famalicão e posteriores desenvolvimentos processuais.
3. O Inquérito nº 1659/10.6JAPRT finalizou com acusação deduzida pelo Ministério Público contra o autor, vindo este a ser acusado do cometimento, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, al. a) e 2 do Cód. Penal e em concurso real, de 4 crimes (detenção de arma proibida) p. e p. pelo art. 86º, nº 1, al. c), da Lei nº 5/2006, de 23/2 e ainda 12 crimes da mesma natureza, mas p. e p. pela al. d) daquele nº 1 do art. 86º.
4. Recebida a acusação, elaborou e apresentou o réu requerimento para abertura da Instrução e decorrida esta, veio a ser proferido despacho de pronúncia e deste, elaborada e apresentada Contestação com indicação de meios de prova.
5. Esteve o réu presente e interveio nas várias sessões que a audiência de julgamento conteve.
6. Foi proferida douta sentença no âmbito do processo comum colectivo com o nº 1659/10.6JAPRT, do então 1ª Juízo Criminal do Círculo Judicial de V.N. Famalicão, a qual veio a condenar o autor: a)- pelo cometimento de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152º, nº 1, al. a) e nº 2 do Cód. Penal, na pena de 4 anos e 3 meses de prisão, b)- pelo cometimento de um crime de detenção ilegal de arma p. e p. pelo art. 86º, nº 1, al. c) da Lei nº 5/2006, de 23/2, na pena de 3 anos e 4 meses de prisão; c)- pelo cometimento de um crime de detenção ilegal de arma p. e p. pelo art. 86º nº 1 al. d) da Lei nº 5/2006, de 23/2, na pena de 1 ano e 10 meses de prisão; d)- Em cúmulo jurídico das penas de prisão, condenado o autor na pena única de 6 anos e 9 meses de prisão; e)- Foi ainda aplicada ao autor a pena acessória de proibição de contacto com a vítima, pelo período de cinco anos, assim como, f)- a medida de segurança de cassação de licença de detenção, uso e porte de arma, pelo período de 8 anos.
7. Desta decisão interpôs o réu recurso para o Tribunal da Relação do Porto (elaborando e apresentando as necessárias motivações).
8. Quanto a este, o recurso interposto foi apresentado em tempo, versando ele impugnação da decisão da matéria de facto e de direito.
9. Quanto à matéria de facto, impugnou o réu toda aquela que em seu entender não produziu prova bastante, tendo para o efeito discorrido toda essa matéria em sede das respectivas alegações.
10. Quanto ao direito, veio o réu manifestar a seguinte discordância: a) quanto ao circunstancialismo agravante por virtude da aplicação do nº 2 do art. 152º do Cód. Penal; b) a discordância quanto à condenação por dois crimes de detenção de arma ilegal, entendendo estar-se perante um crime continuado e único; c) quanto à aplicação das penas parcelares d) invocou a nulidade da Sentença e) incorrecta formação do cúmulo jurídico por deficiente fundamentação; f) requereu a suspensão da pena.
11. Seguidamente veio o Ministério Público junto do então Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão apresentar resposta ao recurso interposto, pugnando pela improcedência do recurso, com excepção da questão da pena unitária e suspensão da execução da pena, acompanhando a motivação e o peticionado pelo réu.
12. Pugnou o Ministério Público em sede de resposta, por uma pena única de cinco anos de prisão com possibilidade da suspensão da sua execução.
13. Do conteúdo da resposta apresentada pelo Ministério Público deu o réu conhecimento ao autor.
14. Seguidamente veio o Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto a emitir Parecer, acompanhando de certa forma, quanto a determinados pontos, a motivação apresentada pelo réu no que à matéria da subsunção jurídica dos factos relativos aos crimes de detenção ilegal de armas, pugnando quanto a este particular pela nulidade da sentença, assim como quanto ao segmento decisório respeitante ao cúmulo jurídico das penas e à aplicação da pena única.
15. Foi então proferido acórdão pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, dando provimento parcial ao recurso apresentado, decidindo: a) Julgar improcedente o recurso interlocutório mantendo nos precisos termos o despacho recorrido; b) Manter inalterável a matéria de facto dada como provada no acórdão condenatório c) Manter a subsunção jurídica de parte desses factos ao crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, alínea a), e 2 do Cód. Penal; e) Anular parcialmente, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 379º nº 1) e 374º nº 2 do Cód. Penal, o acórdão recorrido, nos segmentos supra especificados e relativos às questões qualificação/subsunção jurídica dos demais factos (detenção de arma proibida) e determinação da medida das penas parcelares concretamente aplicadas e da pena única resultante do respectivo cúmulo jurídico, que devia ser reformulado e expurgado dos vícios enunciados pelo mesmo colectivo, podendo, se necessário, ser reaberta a audiência para os efeitos previstos no art. 371º, do citado diploma legal.
16. Recebido este acórdão interpôs o réu recurso para o Tribunal Constitucional relativamente à improcedência do recurso interlocutório.
17. Recurso este que, todavia, foi apresentado fora do prazo.
18. Baixado o processo ao Círculo Judicial de Vila Nova de Famalicão, marcada nova audiência de julgamento, foi proferida nova decisão, condenando o autor nos seguintes termos: a) pelo cometimento de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152º nº1 al. a) e nº2 do Cód. Penal, na pena de 4 anos e 3 meses de prisão, b) pelo cometimento de um crime de detenção ilegal de arma p. e p. pelo art. 86º nº1 al. c) da Lei nº 5/2006, de 23/2, em concurso aparente com o da alínea d) do mesmo artigo, na pena de 4 anos de prisão; c) Em cúmulo jurídico das penas de prisão, condenado o autor na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão; e) Foi ainda aplicada ao autor a pena acessória de proibição de contacto com a vítima, pelo período de cinco anos, assim como, f) a medida de segurança de cassação de licença de detenção, uso e porte de arma, pelo período de 8 anos.
19. Não se conformando com este novo acórdão, apresentou o réu recurso para o Tribunal da Relação do Porto, tendo por objecto a reapreciação da matéria de facto (reapreciação da prova e sua valoração), a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; erro na qualificação jurídica dos factos, no que se refere ao crime de violência doméstica; nulidade do acórdão por insuficiência da fundamentação da decisão relativa ao cúmulo jurídico das penas; erro na escolha e determinação concreta da pena.
20. O recurso assim interposto, foi apresentado no terceiro dia, após os trinta dias a contar da notificação do respectivo acórdão.
21. Ao recurso respondeu o Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão invocando a intempestividade da sua apresentação, porquanto, o Tribunal da Relação do Porto no acórdão inicialmente proferido manteve inalterável a matéria de facto dada como provada na sentença condenatória, não se aplicando, pois, e novamente, o prazo de trinta dias para interposição e motivação do recurso – art. 411º, nº 4 do CPP então em vigor.
22. A Procuradoria-Geral Distrital do Porto junto do Tribunal da Relação do Porto apresentou parecer no mesmo sentido, pugnando pela intempestividade da apresentação e motivação do recurso.
23. Finalmente pronunciou-se o Tribunal da Relação do Porto, decidindo rejeitar o recurso do acórdão final interposto com base na sua manifesta extemporaneidade.
24. Não se conformando com tal decisão, apresentou o réu recurso para o Tribunal Constitucional.
25. Vindo o Tribunal da Relação do Porto a decidir pela não admissão do mesmo também pela extemporaneidade da sua apresentação.
26. O réu não deu conhecimento ao autor da apresentação fora de tempo do segundo recurso apresentado junto do Tribunal da Relação do Porto e dos interpostos para o Tribunal Constitucional.
27. Mais informou o réu o autor da posição do Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, no sentido de que este pugnava por uma pena de prisão de cinco anos suspensa na execução.
28. No âmbito do processo nº 1659/10.6JAPRT, o autor foi detido no dia 05/01/2011, tendo estado, inicialmente, sujeito a prisão preventiva e depois em obrigação de permanência na habitação até 05/01/2013.
29. Desde 5 de Janeiro de 2013, ao arguido foi-lhe modificada a medida de coacção, passando apenas a termo de identidade e residência.
30. Em 27/06/2013, transitada em julgado a decisão, o arguido passou a cumprir, no estabelecimento prisional do Porto, a pena de prisão em que foi condenado.
31. Em 27/6/2013, encontrava-se o autor em casa de sua mãe, onde tinha passado a residir, quando foi surpreendido com o aparecimento de agentes da GNR posto de Vila Nova de Famalicão a fim de o conduzirem ao Estabelecimento Prisional do Porto.
32. O autor apresentou participação junto do Conselho de Deontologia do Porto da Ordem dos Advogados, a qual deu origem à instauração de processo disciplinar ao réu, processo este que, tendo corrido os seus trâmites, culminou com a aplicação ao réu, pelo Conselho Superior da Ordem dos Advogados, na pena de censura.
33. O autor exerceu a actividade profissional de industrial de tratamento e comercialização de algodão em flor, tendo sido sócio e gerente da firma “D..., Lda.”
34. Firma que veio a ser declarada insolvente.
35. O autor tinha apoio financeiro da mãe e de outros familiares para retomar a actividade industrial.
36. O autor sempre teve um bom relacionamento com os seus filhos.
37. Encontrava-se diária ou quase diariamente com eles, então menores de idade; com eles tomava refeições, passeava, visitava familiares e amigos.
38. Acompanhava o normal crescimento volitivo e cognitivo dos filhos e a evolução escolar destes.
39. Durante o cumprimento da pena, raramente teve a visita dos filhos.
40. O ambiente prisional, sistema de visitas (incluindo revista), intimidava-os e nem sempre a progenitora tinha disponibilidade para os levar ao estabelecimento prisional.
41. A filha do Autor nasceu a .../.../2000.
42. O autor residia perto de sua mãe e era sua visita diária.
43. A mãe do autor faleceu a .../.../2016.
44. O autor apenas teve oportunidade de ver a sua mãe, já falecida, na véspera do funeral.
45. Passou a viver financeiramente da bondade da mãe e de familiares, mesmo para pagar a pensão de alimentos devidas aos filhos.
46. O autor passou por períodos de depressão psicológica.
47. Tem vindo a ser acompanhado desde então pelos serviços médicos de psiquiatria do estabelecimento prisional e medicado em consonância.
48. O cumprimento da pena de prisão supra-referida causou ao autor sofrimento, angústia e tristeza.
49. O autor era primário.
50. A “A... SA”., Ré, segura nos termos das Condições Particulares, Gerais e Especiais do Seguro de Responsabilidade Civil Profissional celebrado com a Ordem dos Advogados (tomador do seguro) e designado Apólice n.º ...29, o risco decorrente de acção ou omissão, dos Advogados com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados, no exercício da sua profissão.
51. A Apólice de Seguro de Responsabilidade Civil profissional em questão foi celebrada pela Ordem dos Advogados, o Tomador do Seguro, tendo como beneficiários todos os Advogados com inscrição em vigor na mesma.
52. Nos termos do Ponto 10 das Condições Particulares da apólice em causa, sob a epígrafe período de cobertura, a apólice em causa vigora pelo período de 24 meses, com data de início de 01.01.2012 às 00h e vencimento às 00h de 01.01.2014.
53. De acordo com o Ponto 7 das Condições Particulares da apólice ora em análise: A seguradora assume a cobertura da responsabilidade do segurado por todos os sinistros reclamados pela primeira vez contra o Segurado ou contra o tomador do seguro ocorridos na vigência das apólices anteriores, desde que participados após o início da vigência da presente apólice, sempre e quando as reclamações tenham fundamento em dolo, erro, omissão ou negligência profissional, coberta pela presente apólice, e, ainda, que tenham sido cometidos pelo Segurado antes da data de efeito da entrada em vigor da presente Apólice.
54. A acção foi apresentada em 2021 e, consequentemente, foi a ora Ré citada 08.10.2021.
55. A Ordem dos Advogados celebrou um contrato de seguro de grupo com ora Interveniente Seguradora C... Company SE, que teve início às 00H00 de dia 01.01.2018 e termo às 00H00 de dia 01.01.2019.
56. Tendo sido renovado para os períodos de seguro seguintes correspondentes aos anos civis de 2019, 2020, 2021 e 2022.
57. Actualmente o referido contrato de seguro encontra-se em vigor com a apólice n.º ...22.
58. A Seguradora B..., S.A. celebrou com a Ordem dos Advogados um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, titulado pela apólice de seguro ...58/6.
59. O contrato de seguro em apreço teve início em 01.01.2014, tendo sido renovado em Janeiro de 2015, 2016 e 2017.
60. Este contrato de seguro cessou a sua vigência com o fim do período de seguro de 2017, i. é em 31.12.2017 face à não renovação do contrato.
61. Os presentes factos foram pela primeira vez reclamados com a presente acção e citação das diversas seguradoras para a demanda em 2021/2022.

IV. Matéria de Direito:
Resultou provado que o réu é advogado inscrito no Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados e exerce a prática da advocacia. Nessa qualidade foi mandatado pelo autor para o representar como mandatário judicial num processo crime em que era arguido.
Entre um advogado e o seu cliente e tendo por objecto a prestação dos serviços de mandatário forense daquele no interesse e por conta deste, estabelece-se uma relação contratual que se reconduz à figura do contrato de mandato, que o artigo 1157.º do Código Civil define em termos comuns como aquele pelo qual uma das partes, o mandatário, se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos, e não meros actos materiais, por conta da outra, o mandante.
O contrato de mandato entre o advogado e o cliente não é um contrato comum, pois possui especificidades ao nível da prestação do mandatário impostas pelo interesse público subjacente ao patrocínio judiciário e à intervenção dos advogados nos pleitos, conforme estabelecido em diversas normas do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Ao contrato de mandato forense aplicam-se as regras do contrato de mandato regulado no Código Civil, as normas do Código de Processo Civil relativas ao exercício do patrocínio judiciário e as normas do Estatuto da Ordem dos Advogados que se referem aos deveres profissionais e deontológicos do advogado.
A obrigação do advogado é uma obrigação de meios, não uma obrigação de resultado. O objecto da prestação a que se obriga não é o de ganhar a causa, de obter sucesso efectivo no acto jurídico que foi incumbido de realizar, mas apenas o de tudo fazer, de acordo com as regras legais e deontológicas e actuando como um profissional jurídico diligente, interessado, probo e capaz, para tentar alcançar esse desiderato.
Por esse motivo, deve entender-se que cumpre a sua obrigação ainda que aquele sucesso não seja obtido desde que este dever de actuação haja sido concretizado em termos razoáveis em função das circunstâncias do caso, do conhecimento jurídico existente e do domínio das leges artis que é suposto um profissional possuir.
Contudo, em determinadas perspectiva e circunstâncias a obrigação do mandatário pode ser mesmo uma obrigação de resultado. O advogado pode com efeito ser contratado para tratar de determinado assunto, para representar o cliente num processo judicial, ou ser contratado de forma mais específica para um determinado acto jurídico concreto.
Se o advogado é incumbido especificamente de redigir um contrato que documente a vontade negocial já estabelecida entre os declarantes ou de instaurar uma acção para uma determinada finalidade específica, o advogado obriga-se a concretizar o resultado pretendido: a redacção do contrato; a instauração da acção. O mesmo se diga quando o exercício do patrocínio forense genérico compreende, todavia, a prática de um acto especifico, como a apresentação do articulado, a indicação dos meios de prova, a apresentação de um recurso, etc.
O advogado pode, é certo, recusar o mandato para esse fim específico designadamente por entender que o contrato é ilegal ou viola os bons costumes, que a acção não é viável ou que o autor não tem o direito que através dela pretende exercer. Mas se aceitar o mandato para praticar esses actos e não os praticar incorre em incumprimento do mandato, por ter falhado na execução do resultado a que se obrigou perante o cliente.
O Estatuto permite ao advogado desonerar-se do mandato – denunciar unilateralmente o contrato -, invocando a sua autonomia e independência técnica, caso conclua, uma vez estudado o assunto com cuidado e zelo, que não deve instaurar a acção ou celebrar o contrato. Todavia, o Estatuto também lhe impõe que no caso de pretender abandonar o mandato que antes aceitou, designadamente por ter chegado à referida conclusão, o faça de forma a possibilitar ao cliente que obtenha, em tempo útil, a assistência de outro advogado.
Daí resulta que, sob pena de incumprimento da sua prestação, deve comunicar ao cliente a decisão de não instaurar a acção ou de não apresentar recurso da decisão de modo a que este ainda esteja em tempo de contratar outro advogado que o faça sem risco de prescrição do direito, de caducidade da acção ou de preclusão do acto de interposição do recurso. Se não o faz em tempo ou se não o faz sequer, deixando esgotar-se o prazo para a prática desse acto, o advogado incorre em incumprimento da sua prestação, o qual, estando-se no domínio de uma relação contratual se presume culposo (artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil).
No caso em apreço, provou-se que o autor contratou o réu para o representar primeiro num inquérito crime e depois no processo de instrução e no processo crime que derivaram daquele, outorgando-lhe procuração forense para o efeito.
Provou-se ainda que tendo o réu interposto recurso do primeiro Acórdão proferido pela 1.ª instância e tendo obtido provimento parcial do recurso, obrigando a 1.ª instância a proferir novo Acórdão, o réu apresentou recurso deste novo Acórdão para a Relação. Todavia, fê-lo já depois de se ter esgotado o respectivo prazo legal, pelo que o recurso foi rejeitado, não tendo a Relação tido a possibilidade de apreciar as questões que o réu quis suscitar no recurso, consequência que ainda tentou reverter com um recurso para o Tribunal Constitucional igualmente rejeitado por ter sido apresentado fora de tempo.
Esta atitude do réu representa uma falha grave dos seus deveres profissionais enquanto advogado, por erro manifesto sobre as normas legais aplicáveis ao prazo para interposição de recurso, o que constitui uma violação grave das leges artis e consubstancia um incumprimento do contrato de mandato. Esse incumprimento, como se referiu, presume-se culposo, sendo certo que no caso os factos que o réu alegou com intenção (?) de excluir a sua culpa resultaram não provados.
No entanto, é sabido que não basta afirmar que houve incumprimento de um contrato – de um dever de prestação – para daí fazer derivar a responsabilidade do obrigado à prestação pelo ressarcimento do dano correspondente à perda da vantagem que o autor considera que obteria se o acto tivesse sido praticado, isto é, se o réu tivesse interposto em prazo o recurso.
Isso é assim porque os pressupostos da responsabilidade contratual são comuns aos da responsabilidade extracontratual. Para haver responsabilidade é necessário o preenchimento conjunto dos seguintes pressupostos: o facto voluntário; a ilicitude do facto; a culpa (dolo ou negligência) do agente; o dano; o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Enquanto na responsabilidade extracontratual a ilicitude resulta da violação de um direito de outrem ou da violação de qualquer disposição legal destinada à protecção de interesses alheios (artigo 483.º do Código Civil), na responsabilidade contratual a ilicitude emerge da violação de uma obrigação, da inexecução pelo devedor da prestação a que estava obrigado (artigo 798º do Código Civil).
Na responsabilidade contratual, ao invés do que sucede na responsabilidade aquiliana, presume-se, como vimos, a culpa do devedor, cabendo a este o ónus de provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua, mas, no mais, os pressupostos são comuns (o n.º 2 do artigo 799.º do Código Civil diz mesmo que na responsabilidade contratual a culpa é apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil), destacando-se com interesse para o caso dos autos, o dano e o nexo de causalidade entre o facto ilícito e os danos, cuja demonstração cabe ao credor fazer.
O autor reclama uma indemnização por ter cumprido pena de prisão efectiva quando, na sua opinião, se o recurso tivesse sido apresentado validamente (em tempo), isso não aconteceria porque a pena teria sido suspensa na sua execução. Para o preenchimento dos danos invoca o sofrimento pessoal inerente à sua estada no meio prisional e à privação do contacto com os familiares de que antes gozava, e a perda patrimonial corresponde ao valor da remuneração do trabalho que obteria estando em liberdade, calculada somente pelo valor do salário mínimo nacional.
Para o autor, portanto, o facto de o réu não ter apresentado validamente o recurso do Acórdão da 1.ª instância que o condenou em pena de prisão efectiva foi causa adequada da perda da liberdade e do proveito patrimonial alegados e é esse dano que ele deve, por conseguinte, indemnizar.
A pretensão do autor coloca a dificuldade típica das acções destinadas a exercer a responsabilidade civil por actos de mandatário forense, qual seja a de o sucesso do desfecho final das diligências omitidas ou praticadas indevidamente pelo advogado depender de todo um conjunto de vicissitudes alheias ao próprio advogado e de inúmeras variáveis que se sobrepõem à sua actuação ou omissão, que impedem o tribunal de ter a segurança ou certeza de que foi por causa dessa actuação que o cliente deixou de obter a vantagem processual que de outro modo sempre obteria ou sofreu a perda que de outro modo não suportaria.
Porque a nossa legislação coloca como pressuposto do dever de indemnizar o nexo da causalidade, consagrando a chamada teoria da causalidade adequada (artigo 563º do Código Civil), não basta que um determinado facto seja conditio sine qua nom de uma determinada alteração verificada subsequentemente, é ainda necessário averiguar se, à luz das regras da experiência, esse facto era adequado a produzir essa consequência, tinha aptidão necessária e bastante para de per se a produzir, de forma que se possa afirmar que era provável que da concreta acção ou omissão ocorrida resultaria a consequência verificada.
Por outro lado, para poder ser ressarcido o dano necessita de ser certo, estando excluídos do dever de indemnização danos meramente eventuais, hipotéticos, cuja verificação não seja segura, ainda que possível.
Os próprios defensores da teoria da perda de chance que põem o assento tónico da figura do lado do dano – defendendo que estamos perante um dano específico, autónomo do dano final, com pressupostos específicos e não propriamente perante um caminho para repensar a teoria da causalidade e isolar de entre os vários danos desencadeados os que são adequados a merecer a tutela indemnizatória – aceitam essa afirmação, sustentando apenas que a certeza se afere não pelo dano final (vantagem que a oportunidade, a concretizar-se, propiciaria, visto como dano emergente ou como lucro cessante) mas pela própria perda da oportunidade (que é certa na medida em que o agente impediu a verificação da situação em que a oportunidade se concretizaria ou desapareceria).
À luz da concepção tradicional e corrente dos pressupostos da responsabilidade civil, no caso não está demonstrada a existência de um dano reparável, se quisermos, um dano certo que esteja unido ao comportamento do réu por um nexo de causalidade juridicamente relevante. O comportamento do réu é causa adequada da perda da possibilidade de o autor sustentar perante o tribunal de recurso razões para lhe ser aplicada uma pena de prisão até cinco anos e a sua execução suspensa. Já a privação da liberdade e a prisão têm como causa adequada não essa falha do réu, mas sim o cometimento pelo próprio autor dos crimes pelos quais foi, nos termos legais, condenado e punido com penas de prisão situadas dentro das respectivas molduras legais.
Parte da doutrina e da jurisprudência tem vindo a combater esse desfecho através da doutrina da perda de chance ou perda da oportunidade, defendendo que em consequência da omissão do mandatário se perdeu, pelo menos, a possibilidade de o autor obter o efeito jurídico pretendido com a contratação dos serviços daquele e que essa perda representa um dano, razão pela qual lhe deve ser atribuído o direito a uma indemnização pela perda da oportunidade.
A fundamentação dogmática da doutrina, no tocante à definição do bem protegido – v.g. a chance enquanto dimensão do direito ou bem protegido pelo direito, a chance enquanto posição jurídica autónoma carecida de tutela –, à eleição do fundamento da protecção – v.g. o aumento do risco, a necessidade de ampliação da tutela indemnizatória, o combate à dificuldade de demonstração dos pressupostos do direito de indemnização –, à eleição da sua sede dogmática necessária para equacionar questões de desenvolvimento subsequentes e restringir o seu campo – v.g. teoria da causalidade ou noção de dano –, ou à delimitação do seu objecto – v.g. pressupostos, forma de cálculo do dano indemnizável, concatenação com outros danos –, são ainda dispares na doutrina.
Acresce que a nossa ordem jurídica parece dispor de conceitos normativos cujo desenvolvimento poderá permitir em muitas das situações dar cobertura aos casos em que se afigura de maior injustiça deixar o lesado sem indemnização, apesar de o mesmo beneficiar de uma séria e forte probabilidade de obter uma vantagem, como sejam o desenvolvimento da teoria da causalidade adequada, a modelação do critério sobre o quantum de prova a exigir para julgar provados os danos ou do requisito de certeza sobre a ocorrência do dano, que sendo embora comummente exigido não é uma veste sagrada atenta a circunstância de a lei prever a indemnização de danos futuros no cálculo dos quais entram muitos elementos de incerteza (v.g. a perda de ganhos salariais quando no seu cálculo entram aspecto como a evolução das taxas de juros, aumentos salariais ou a esperança de vida).
Como quer que seja, existe no nosso sistema jurídico um dado recente que mudou o modo como o problema deve ser tratado jurisprudencialmente. Referimo-nos ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2022, proferido em 5 de Julho de 2021, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 26 de Janeiro de 2022, o qual estabeleceu a seguinte jurisprudência obrigatória: «o dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade».
Tratando a figura num tom claramente dogmático e fazendo opções claras a esse nível, o Supremo Tribunal de Justiça assinalou no referido Acórdão o seguinte, com aplicação directa ao caso e que por isso se transcreve mais demoradamente, sobre a questão de «saber se toda e qualquer perda de chance pode/deve ser reconhecida como um dano indemnizável ou se só uma perda de chance consistente e séria configura um dano (por perda de chance) indemnizável»:
«[…] A responsabilidade civil, …, tem em vista “reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação” (cf. art. 562.º do C. Civil), visando, no caso, colocar o lesado/mandante na situação em que ele se encontraria se não fosse o acto lesivo do seu mandatário, razão pela qual, é pacífico, o dano causado pela perda de chance não poderá ser superior ao direito que o seu representado tinha originariamente, ou seja, caso este direito (do representado) não existisse ou não tivesse qualquer consistência, não haverá (não pode haver) qualquer dano pela perda de chance susceptível de ser indemnizado.
(…) Para um dano ser indemnizável, exige-se … que o mesmo seja certo e não meramente eventual, porém, observa-se, a certeza de que se fala e que deve ser exigida não é matemática ou absoluta, mas apenas uma certeza relativa, que se deve contentar com uma expectativa razoável.
Se, como é o caso, em razão do comportamento indevido dum mandatário, o desenrolar e o desfecho normal dum processo não aconteceu e nem alguma vez acontecerá, não pode exigir-se que o dano decorrente de tal comportamento indevido seja objecto de uma certeza absoluta, ou seja, a certeza sobre a realidade hipotética do que não chegou a verificar-se tem sempre que se situar no domínio das probabilidades (das certezas relativas).
A aferição dum tal dano exigirá sempre a comparação entre uma situação real, actual, e uma situação hipotética, igualmente actual, sendo a prognose sobre a evolução hipotética do processo comprometido que irá permitir determinar a certeza relativa do dano.
E do “hipotético”, do que não aconteceu e nunca acontecerá, do que depende de diversas variáveis e imponderáveis, poderá sempre dizer-se que não há certezas, que se está a ficcionar e que um qualquer juízo de prognose será sempre aleatório, porém, não é este o plano em que o direito se move para validar um juízo de prognose, antes se bastando com a satisfação das exigências colocadas pela teoria da causalidade adequada. Em cuja consagração legal … se usa até uma formulação que introduz um juízo de probabilidade ou verosimilhança, o mesmo é dizer de “flexibilidade”.
Teoria da causalidade adequada cujo objectivo é excluir a imputação de danos que tenham ocorrido devido a um encadeamento de circunstâncias completamente invulgar e que, dum ponto de vista hipotético, não eram de esperar, a ponto de … no domínio da responsabilidade por factos ilícitos e culposos …, ser considerada “preferível” a sua formulação negativa, o que significa que para a imputação objectiva dum dano à conduta do lesante será suficiente, em princípio, que a respectiva concretização não se encontre fora de toda a probabilidade. (…)
Enfim, as exigências colocadas, em termos de nexo causal e de causalidade adequada, podem ter, atentas as características dos danos que estiverem em causa, diferentes níveis de intensidade, bastando-se com uma possibilidade séria e significativa quando, como é o caso, está em causa a imputação dum resultado hipotético, ou seja, dum resultado que não aconteceu nem alguma vez acontecerá (..).
(…) É verdade que o Direito (a ciência jurídica) não é, na sua interpretação e aplicação, uma ciência exacta e que não pode afirmar -se com certeza absoluta qual seria o resultado dum concreto processo judicial que não se chegou a desenrolar ou que se desenrolou de modo “anormal”, porém, isso não significa que não se possa estabelecer/demonstrar, a partir de todos os elementos e circunstâncias disponíveis, que um concreto processo judicial (caso tivesse decorrido ou tivesse decorrido normalmente) tinha consistentes chances de vir a obter vencimento e que, por via disso, não se possa concluir que a chance perdida era, fora de qualquer dúvida, uma posição favorável na esfera jurídica do lesado, cuja perda se traduz num dano.
E isto - esta demonstração - configura uma certeza relativa e conforma uma possibilidade séria/significativa que vai permitir imputar tal certeza relativa ao facto/evento lesivo (que fez com que o processo judicial não se desenrolasse ou que decorresse “anormalmente”).
(…) … não há outro modo de sair da “aparente contradição” que o dano da perda de chance coloca: não pode afirmar-se, por um lado, com certeza absoluta, qual seria o resultado dum concreto processo judicial que não se chegou a desenrolar ou que se desenrolou de modo “anormal” …, mas, por outro lado, demonstrando o lesado que se encontrava em situação fáctico -jurídica idónea a um resultado favorável do processo, fica-se com a certeza de que, caso se não tivesse verificado o evento lesivo, o lesado não teria perdido a esperança de vir a obter um ganho (ou evitar uma perda).
É a esta última certeza que o tribunal não pode fechar os olhos … tendo que a considerar como tutelada pelo direito e indemnizável de acordo com os princípios e regras do nosso actual direito de responsabilidade civil, ou seja, respeitando quer a finalidade essencialmente ressarcitória/reparatória da indemnização civil quer a proibição do enriquecimento do lesado à custa do lesante.
(…) A certeza do dano e a imputação objectiva deste ao acto lesivo (nexo causal), requisitos exigíveis segundo os princípios e regras do nosso direito de responsabilidade civil (..), não dispensam que se apure, caso a caso, a suficiente probabilidade da consistência e seriedade da concreta “chance” processual comprometida.
A verificação dos pressupostos gerais da responsabilidade civil, incluindo a existência do dano e de um nexo causal entre o facto lesivo e o dano, impõem, em linha com o que se referiu, que a “chance”, para poder ser indemnizável, seja “consistente e séria” e que a sua concretização se apresente com um grau de probabilidade suficiente e não com carácter meramente hipotético.
Só assim a “chance” preencherá, num limiar mínimo, a certeza que é condição da indemnizabilidade do dano, só assim este pode ser considerado como objectivamente imputável ao acto lesivo e só assim se respeitará a regra (e a ideia de justiça) de que ao lesante apenas poderá ser imposto que responda pelos danos que causou.
Significa isto que a toda a chance ou oportunidade perdida (a todo o acto lesivo e a todo processo perdido) não se segue, como que automaticamente e sem mais, uma indemnização por dano da perda de chance: a verificação do ilícito não contém já em si o dano a indemnizar.
(…) à luz das regras e princípios vigentes de responsabilidade civil, só uma “chance” com um mínimo de consistência pode aspirar a exprimir a certeza (“relativa”) do resultado comprometido (pelo acto lesivo) ser considerado provável.
Não há indemnização civil sem dano e este tem que ser certo, sendo que a certeza do dano de chance (que, por isso, merece a tutela do direito e ser indemnizado) está exactamente na probabilidade suficiente, em função da consistência da chance, do resultado favorável da acção comprometida.
Uma “chance” puramente abstracta e especulativa - isto é, independente da prova de qualquer concreta probabilidade - não é, de modo algum, um dano certo; assim como não atingirão a certeza exigível, não sendo indemnizáveis, as “perdas de chance” que correspondam a uma pequena probabilidade de sucesso da acção comprometida.
(…) para estarmos perante uma chance com probabilidade de sucesso suficiente terá, em princípio e no mínimo, o sucesso da chance (o sucesso da provável acção comprometida) que ser considerado como superior ao seu insucesso, uma vez que só a partir de tal limiar mínimo se poderá dizer que a não ocorrência do dano, sem o acto lesivo, seria mais provável que a sua ocorrência (..).
(…) a incerteza, característica da perda de chance, acaba por dizer respeito quer ao nexo causal quer ao dano, pelo que pode objectar-se que uma coisa é o mínimo de relevância/consistência que a chance deve ter e outra, diversa, o limiar mínimo de prova necessária (o mínimo de standard probatório de probabilidade suficiente) para considerar demonstrado o nexo causal entre o facto lesivo e o resultado/dano e, nesta linha de raciocínio, a exigência percentual poderia ser superior em relação ao standard probatório (de probabilidade suficiente) e poderia ser inferior para se afirmar a seriedade e consistência da chance.
Mas, sem prejuízo da devida ponderação casuística (..), não parece que, no que diz respeito às perdas de chances processuais, tal distinção deva ser estabelecida, atenta a conexão entre o dano e o nexo causal, sendo a probabilidade deste que confere consistência à chance e esta consistência que alicerça o standard probatório.
Significa e impõe o que vem de dizer-se que, colocando-se num processo … a questão da indemnização pelo dano da perda de chance, tal probabilidade - o mesmo é dizer, a consistência concreta da oportunidade ou “chance” processual que foi comprometida - tem sempre que ficar apurada/provada, uma vez que, sem a mesma estar apurada/provada, não se poderá falar em “dano certo” e sem este não pode haver indemnização.
Apuramento este que terá assim que ser feito na apreciação incidental - o já chamado “julgamento dentro do julgamento” - a realizar no processo onde é pedida a indemnização pelo dano de perda de chance, em que se indagará qual seria a decisão hipotética do processo em que foi cometido o acto lesivo (a falta do mandatário), indagação que no fundo irá permitir estabelecer, caso se apure que a acção comprometida tinha uma suficiente probabilidade de sucesso (ou seja, no mínimo, uma probabilidade de sucesso superior à probabilidade de insucesso), que há dano certo (a tal chance “consistente e séria”) e ao mesmo tempo o nexo causal entre o facto ilícito do mandatário e tal dano certo.
Apreciação/decisão hipotética em que, sendo assim, se procurará, num juízo de prognose póstuma, reconstituir, para efeitos da possível indemnização do dano da perda de chance, o desenrolar e a decisão que o processo (onde foi cometida a falta do mandatário) teria tido - na perspectiva do tribunal que o teria que decidir - sem tal falta do mandatário, com o que, concluindo-se que o processo teria tido uma suficiente (no referido limiar mínimo) probabilidade de sucesso, se estará também a concluir ter sido o evento lesivo conditio sine qua non (requisito mínimo da causalidade jurídica) do dano.
Apreciação/decisão hipotética que acabará também por relevar para o quantum indemnizatório, uma vez que a indemnização deve corresponder ao valor da chance perdida e este valor será o reflexo do grau de probabilidade da perda de chance em relação à vantagem que se procurava e se perdeu em definitivo (..).
Assim, visando-se com tal apuramento estabelecer o preenchimento de requisitos da responsabilidade civil (dano e nexo causal), estão em causa (no subsequente processo, em que se pede a indemnização pelo dano da perda de chance) elementos/factos constitutivos do direito indemnizatório invocado pelo lesado/mandante, sendo este - face ao encargo que o ónus da prova, quando aos requisitos da responsabilidade civil, lhe coloca (cf. 342.º/1 do C. Civil) - que terá que fornecer os elementos que irão permitir apurar qual seria a decisão hipotética do processo em que foi cometida a falta do advogado (ou seja, os factos que irão permitir apurar que o processo comprometido tinha uma suficiente, no referido limiar mínimo, probabilidade de sucesso ou, dito por outras palavras, que a chance perdida era consistente e séria).
(…) … no incidental “julgamento dentro do julgamento”, como juízo de prognose póstuma que é, o que se pretende alcançar é a prova da decisão hipotética que o processo teria tido sem a falta do mandatário (tendo em vista reconstruir a situação hipotética que, sem tal falta, existiria), ou seja, o tribunal da acção de indemnização deve adoptar a perspectiva do tribunal que teria que decidir o processo e não exactamente o seu prisma de decisão (..), uma vez que, insiste-se, o que está verdadeiramente em causa, em termos de configuração jurídica, é a reconstituição do curso hipotético dos acontecimentos sem o evento/facto lesivo (reconstituição de que a decisão hipotética do processo, na perspectiva do tribunal que teria decidido o processo, é instrumental) (..).
(…) Questão diferente e a jusante da prova da existência de dano (da prova da consistência e seriedade da concreta chance processual comprometida), é a … questão da avaliação e fixação do quantum indemnizatório devido em caso de perda de chance consistente e séria.
(…) … devendo, todavia, reconhecer-se a dificuldade da prova do montante do dano da perda de chance, a dificuldade em quantificar a exacta probabilidade de sucesso da chance/oportunidade de ganho do processo, o que por certo levará a que, em muitos casos, haja lugar à fixação equitativa, nos termos do art. 566.º/3 do C. Civil, dum montante indemnizatório pelo dano da perda de chance; reparação por recurso à equidade que, no seguimento de tudo o que se referiu, só poderá acontecer … após, no seguimento/termo do incidental “julgamento dentro do julgamento”, se ter concluído pela consistência e seriedade da perda de chance, ou seja, após ter-se considerado provada a probabilidade suficiente (no referido limiar mínimo) de existência dum dano de chance indemnizável (sabido que a indemnização equitativa dum dano pressupõe que o dano está provado, ou seja, no caso, que a consistência e seriedade do dano da perda de chance está previamente provada, apenas se desconhecendo o valor exacto do mesmo).
Probabilidade suficiente de verificação do resultado favorável que se perdeu (a tal chance consistente e séria), que há de extrair-se da factualidade alegada e provada pelo lesado, pelo que, sem tal factualidade, fica o tribunal (que julga o pedido de indemnização com base na perda de chance) sem elementos para poder concluir pela existência do dano da perda de chance, não podendo/devendo sequer passar ao momento seguinte respeitante à quantificação da indemnização.
Como refere Patrícia Cordeiro da Costa (..), “a chance indemnizável não é [...] uma chance abstracta e filosófica, no campo das possibilidades gerais, mas uma chance séria, concreta e consistente, apoiada numa probabilidade igualmente séria e consistente de ocorrência da vantagem perdida não fora o facto ilícito. Sob pena de se transformar a perda de chance num mecanismo de atribuição irrestrita de indemnizações, bastando a presença de uma mera suspeita de probabilidade, a acção de indemnização deve ser preparada, em termos de alegação de facto e de produção de prova, de forma a que o tribunal, na decisão a tomar, tenha dados de facto suficientes para, desde logo, concluir pela existência duma chance séria. [...] A indemnização pela chance perdida depende da prova efectiva da existência de uma chance séria [...]” “A intervenção do art. 566.º/3 do C. C. só pode operar num momento em que o tribunal já estabeleceu a existência de uma chance séria e consistente, ainda que num intervalo de probabilidade mínima e máxima, mas permitindo o limite mínimo desse intervalo afirmar a existência de uma chance séria, faltando apenas quantificar a indemnização. Se persiste a dúvida quanto à existência de uma chance e à seriedade da mesma, o art. 566.º/3 não pode ser convocado para, com recurso à equidade, resolver um problema de falta de prova, nomeadamente em termos salomónicos. Esta norma destina-se a estabelecer um critério de quantificação da indemnização, não da prova dos factos.” Assim, em casos como o do Acórdão fundamento, após o incidental “julgamento dentro do julgamento”, concluindo-se que “se não pode estabelecer (no caso) o grau de probabilidade da amplitude do êxito da acção, sem afastar, inclusive, a sua improcedência”, a conclusão imediata e “automática” será a de, então, dizer que não se provou a consistência e seriedade da perda de chance, ou seja, que não se provou um dano de perda de chance susceptível de indemnização, não se podendo assim passar, justamente por não se ter provado o requisito (da responsabilidade civil) do dano (..), à fixação duma indemnização com base na equidade (nos termos do art. 566.º/3 do C. Civil).»
Apliquemos então esta jurisprudência uniformizada ao caso concreto.
Procurando fazer o «julgamento dentro do julgamento» o primeiro aspecto que se anota é que embora o autor alegue na petição inicial que foi informado pelo réu «da posição do Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, no sentido de que este pugnava por uma pena de prisão de cinco anos suspensa na execução e de que era séria a probabilidade da pena que lhe viesse a ser aplicada ser suspensa na sua execução» (artigo 28.º) e que « tinha a convicção, incutida pelo R., de que a pena de prisão que lhe seria aplicada em sede de acórdão proferida pela Relação, seria com muita probabilidade, suspensa na sua execução» (artigo 35.º), nem na petição inicial nem agora nas alegações de recurso o autor defende que se o recurso tivesse sido interposto em tempo, a pena de prisão em que seria condenado seria de facto suspensa na sua execução. O que está sustentado por exemplo na conclusão CC- é que «considerando o juízo de prognose póstumo, o grau de probabilidade de o recorrente ter visto modificada a sentença no que respeita à medida da pena única que lhe foi aplicada, é sério e elevado».
Este aspecto é particularmente importante na avaliação a fazer no presente processo.
Com efeito, não vem defendido (e os dados do processo negam por completo essa possibilidade) que se o recurso tivesse sido apresentado tempestivamente o arguido seria absolvido e não teria de cumprir qualquer pena de prisão, ao invés, aceita-se a condenação em pena de prisão pela prática dos crimes cujos factos constitutivos já estavam julgados provados por decisão transitada em julgado.
Desse modo, porque o acto ilícito gerador da responsabilidade imputada ao réu é a não apresentação do recurso (e não propriamente as expectativas ou prognósticos que o réu comunicou ao autor sobre o desfecho do processo, do que nunca adviria responsabilidade civil) e o dano a que corresponde o pedido de indemnização formulado é o cumprimento da pena de prisão, para a acção poder proceder não é suficiente que a medida da pena de prisão pudesse ser reduzida, uma vez que se isso sucedesse mas ainda assim a pena fosse efectiva o autor sempre teria de cumprir pena de prisão, podendo, quando muito, discutir-se quantos meses a menos teria de ter cumprido, o que ainda assim excluiria o grosso da medida dos danos alegados na petição inicial.
O que cabe tentar apurar é pois se havia a probabilidade séria e consistente de a execução da pena vir a ser suspensa, o que, como vimos, nem o autor chega a defender de forma consistente.
O autor foi inicialmente condenado pela prática de um crime de violência doméstica p.p. no artigo 152º, nº 1, al. a) e nº 2 do Código Penal, na pena de 4 anos e 3 meses de prisão, pela prática de um crime de detenção ilegal de arma p.p. no artigo 86º, nº 1, al. c) da Lei nº 5/2006, de 23/2, na pena de 3 anos e 4 meses de prisão; pela prática de um crime de detenção ilegal de arma p.p. no artigo 86º nº 1, alínea d) da Lei nº 5/2006, de 23/2, na pena de 1 ano e 10 meses de prisão. Em cúmulo jurídico das penas de prisão, o autor foi condenado, na parte que aqui interessa, na pena única de 6 anos e 9 meses de prisão.
O Acórdão desta Relação que apreciou o recurso dessa decisão da 1.ª instância confirmou a matéria de facto julgada provada no Acórdão condenatório e a subsunção jurídica desses factos quanto ao crime de violência doméstica, p.p. no artigo 152º, nºs 1, alínea a), e 2 do Cód. Penal. Este segmento da decisão ficou logo ali definitivamente assente, razão pela qual o recurso da segunda decisão proferida pela 1.ª instância, que não foi apresentado em tempo, jamais poderia obter a modificação da factualidade provada ou reverter a qualificação jurídica do crime de violência doméstica, designadamente no tocante a tratar-se de um crime agravado, punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
Todavia, como vimos, para além deste crime o autor praticou ainda crimes p.p. na Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, que aprovou o regime jurídico das armas e munições. Foi quanto à qualificação jurídica desses crimes e quanto à determinação das medidas concretas de cada um dos crimes e da pena unitária em cúmulo jurídico que a Relação do Porto anulou parcialmente a decisão da 1.ª instância e determinou a reformulação do respectivo Acórdão.
O fundamento dessa anulação parcial foi a «nulidade decorrente de insuficiência de fundamentação no que concerne à qualificação/subsunção jurídica dos restantes factos provados e à determinação das penas (parcelares e unitária)». Ficou assim em aberta a possibilidade de a 1.ª instância qualificar de forma distinta os factos previstos e punidos pela Lei das Armas e justificar cabalmente as penas aplicadas a cada um dos crimes e em cúmulo jurídico.
No tocante a este aspecto o Acórdão da Relação menciona a dado passo o seguinte: «(…) E atentando nos fundamentos em que se louvou o tribunal recorrido há que dar razão ao recorrente uma vez que, aludindo à necessidade de “sopesar as circunstâncias agravantes e atenuantes”, se limitou a discorrer sobre a gravidade da conduta, intensidade da ilicitude e da culpa, bem como sobre as exigências de prevenção geral e especial, olvidando completamente a referência às condições pessoais e económicas do arguido - designadamente o facto de já se encontrar divorciado da ofendida tendo cessado a génese desta conduta delituosa - omitindo a ausência de antecedentes criminais e a circunstância do mesmo ser imputável mas padecer de um desvio de personalidade (perturbação narcísica) e parafilias (sadismo, voyeurismo) que interferem necessariamente na análise de alguns dos comportamentos integradores do crime de violência doméstica e que poderão (ou não, o tribunal o dirá) reflectir-se na medida da pena (…)».
O autor interpreta esta passagem (na qual essencialmente funda a sua tese de que em resultado do recurso a sua situação seria muito provavelmente melhorada) como indiciadora de que a Relação entendeu que a pena de prisão fixada pelo crime de violência doméstica era excessiva por na sua fixação o tribunal recorrido não ter levado em consideração circunstâncias (as condições pessoais e económicas do arguido, o facto de já se encontrar divorciado da ofendida, a ausência de antecedentes criminais, os desvios de personalidade do arguido) «que interferem necessariamente na análise de alguns dos comportamentos integradores do crime de violência doméstica e que poderão (ou não, o tribunal o dirá) reflectir-se na medida da pena».
Todavia, não só não é isso que o Acórdão afirma, como, tendo decidido que estava perante uma nulidade que obrigava a reformular a decisão recorrida, não era sobre isso que a Relação se podia pronunciar naquela ocasião.
O que o Acórdão afirma é somente que na fundamentação da decisão não é feita referência a circunstâncias que deviam ser analisadas e que devem sê-lo no novo Acórdão, por serem circunstâncias com influência na medida da pena. Naturalmente se essas circunstâncias não foram abordadas na fundamentação deve entender-se que não tiveram peso na decisão.
Mas o Acórdão não afirma que a pena aplicada era excessiva e devia ser reduzida sem mais por efeito da ponderação dessas circunstâncias (o que teve o cuidado de dizer que cabia ao tribunal recorrido fazer), pela simples razão de que também não emite qualquer pronúncia sobre a ponderação que foi feita das circunstâncias agravantes, podendo até dar-se o caso de a Relação as ponderar de forma mais grave que a 1.ª instância e a medida da pena ser sempre resultado da ponderação conjugada e relacionada de ambas, das circunstância agravantes e das circunstâncias atenuantes.
Por outras palavras, deste segmento do Acórdão da Relação nada resultava que impedisse a 1.ª instância de reformular o Acórdão e, ponderando todas as circunstâncias determinantes da medida da pena, fixar a mesma pena de prisão, conforme aliás fez, ou obrigasse a Relação, num futuro recurso do novo Acórdão da 1.ª instância, a fixar uma pena de prisão inferior à antes fixada, mesmo levando em conta as circunstâncias cuja não abordagem na fundamentação do primeiro Acórdão recorrido motivara a sua anulação parcial.
Nessa medida, reconhecendo-se embora que a citada passagem do Acórdão indiciava a possibilidade de vir a ocorrer uma redução da pena, entendemos que esse indício é insuficiente para conferir a essa essa possibilidade um grau relevante de probabilidade que sem mais justifique estarmos perante uma perda de chance juridicamente relevante.
É certo, refere o autor e bem, que na resposta ao recurso do primeiro Acórdão da 1.ª instância, o Ministério Público assinala que «o concreto Ministério Público, em 1.ª Instância, ora respondente, pugnou pela pena única de cinco anos de prisão ... visando a possibilidade legal da suspensão da execução da pena (condicionada)...». Tal menção parece querer dizer que nas alegações de recurso o Magistrado do Ministério Público que esteve na audiência terá defendido a aplicação de uma pena única de cinco anos para ser possível a suspensão da respectiva execução.
Curiosamente na página anterior (página 9) da mesma resposta o Ministério Público afirma entender «que as concretas penas parcelares aplicadas estão devidamente fundamentadas, quer na escolha da pena, quer no seu quantitativo concreto, mostrando-se ponderadas, equilibradas, conformes à culpa evidenciada pelo arguido e conformes aos fins das penas», não se vislumbrando como seria possível, em função dos critérios jurisprudenciais normalmente usados para determinação da pena única, três penas de 4 anos e 3 meses, 1 ano e 10 meses e 3 anos e 4 meses, respectivamente, conduzirem em cúmulo jurídico a uma pena única não superior a 5 anos de prisão.
Como quer que seja, essa resposta não apaga o Parecer emitido pelo Procurador-Geral Adjunto nesta Relação, subscrito, aliás, segundo julgamos saber, por magistrado particularmente escutado nas secções criminais deste Tribunal pela qualidade, mérito e objectividade dos seus Pareceres (aliás, no caso, o Acórdão da Relação apenas se afastou do aludido Parecer ao incluir no vício da nulidade parcial a fundamentação da pena pelo crime de violência doméstica, parte que no Parecer não era considerada nula).
Pois nesse Parecer é tomada posição final sobre o crime de violência doméstica e quanto a este menciona-se expressamente que «examinada a fundamentação do acórdão, não poderá deixar de concluir-se que a decisão tomada, no que respeita ao crime de violência doméstica observou e ponderou devidamente todos os critérios legais ao caso convocáveis (arts. 40º, 70º e 71º do CPP), não se nos afigurando, por isso, merecedora de qualquer reparo. O elevado grau de ilicitude da sua conduta, a intensidade do dolo, directo, com que agiu, tal como as evidentes necessidades de prevenção especial, inviabilizam por si só a possibilidade de acolhimento de qualquer das pretensões formuladas pelo recorrente: não vislumbramos, com efeito, por qualquer forma minimamente relevante, nenhuma circunstância que permita diminuir quer a ilicitude ou a sua culpa, quer a necessidade e/ou a medida concreta da pena de 4 anos e 3 meses de prisão, que lhe foi aplicada».
Também no Parecer apresentado nesta Relação no recurso do autor que acabou por ser rejeitado do segundo Acórdão da 1.ª instância (na resposta do Magistrado do Ministério Público na 1.ª instância esse aspecto não é visado) é afirmado que «não se nos afigura que as penas aplicadas, quer as parcelares ou a resultante do cúmulo jurídico, sejam desproporcionais ao grau de culpa do arguido e à gravidade dos ilícitos perpetrados bem evidenciado na sentença, e bem assim às necessidades de prevenção geral e especial que o caso concreto impõe».
Nesse contexto, a nosso ver, não é possível concluir, com o grau de probabilidade assinalado no AUJ n.º 2/2022, que se o recurso apresentado pelo arguido tivesse sido interposto em prazo e, por via disso, tivesse sido admitido, a pena de prisão em que o arguido foi condenado pelo crime de violência doméstica seria reduzida pelo Tribunal da Relação do Porto e/ou suspensa a sua execução.
Refira-se que essa probabilidade não é incrementada pela mera circunstância de a pena se ter aproximado do limite máximo da respectiva moldura legal. Em rigor, aliás, dentro da amplitude da moldura (três anos, correspondente à diferença entre 2 e 5) a pena fixada ficou ainda a ¼ do limite máximo (9 meses, no intervalo possível de 36 meses ou 3 anos), o que nos parece uma distância razoável desse limite máximo.
E não adianta como faz o autor querer comparar a situação com outras porque a pena é sempre fixada caso a caso consoante as particularidades do caso e as concretas circunstâncias que o caracterizam.
O autor procura estabelecer a comparação com os Acórdãos desta Relação de 21/09/201, proc. nº 310/09-1GAPPVZ.P1 (trata-se sim do Acórdão de 29/09/2011 proferido no proc. n.º 310/09.1GAPVZ.P1), de 28/09/2011, proc. nº 170/10.0GAVLC.P1, e de 17/06/2015, proc. nº 194/148.0GBAND.P1 (trata-se sim do proc. n.º 194/14.8GBAND.P1), que estão disponíveis na base de dados do ITIJ, sustentando que em todos «a condenação aplicada ao respectivo arguido, quanto ao crime de violência doméstica é substancialmente inferior à pena que lhe foi aplicada». No primeiro a publicação não inclui os factos provados e a descrição parcial feita para sustentar a medida da pena é absolutamente distinta da do presente caso. No segundo e terceiro a factualidade provada encontra-se nos antípodas da frequência, intensidade, duração e manifestação das práticas criminosas do aqui autor, sendo que em nenhum deles a Relação chegou a pronunciar-se sobre a pena de prisão aplicada (!).
O autor invoca ainda o Acórdão da Relação de Évora de 15/10/2013, proc. nº 5/12.9GRMZ.E1 (é de novo lapso do autor, trata-se do processo n.º 5/12.9GCRMZ.E1), mas é fácil de estabelecer a profunda diferença entre os factos ali provados e os factos provados no processo em que o arguido foi condenado. E ainda o Acórdão da Relação de Coimbra de 10/01/2018, proc. 1641/16.9T0VIS.C1 (é antes o processo n.º 1641/16.0T9VIS.C1) no qual a Relação não foi chamada a reapreciar as penas pelos crimes de violência doméstica e de detenção de arma proibida e a factualidade provada tinha um cariz totalmente distinto do dos autos centrada nos crimes de abuso sexual de criança agravado e de coacção agravado.
Desses Acórdãos não é, pois, possível deduzir uma qualquer tendência jurisprudencial sobre a medida da pena a aplicar nos crimes de violência doméstica, muito menos com as características de ilicitude e de culpa que o processo em que o autor foi condenado revestiu, as quais muito embora não estejam reflectidas no elenco da matéria de facto se encontram demonstradas pela certidão judicial do aludido processo junta logo após a petição inicial.
Sucede que para além do crime de violência doméstica o autor foi igualmente condenado pela prática de um crime de detenção ilegal de arma p.p. no artigo 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, em concurso aparente com o crime da alínea d) da mesmo Lei, na pena de 4 anos de prisão.
Não há nos autos qualquer argumento válido sobre o excesso desta pena para além da comparação com alguns dos Acórdãos antes mencionados, nos quais era referida igualmente a prática de crime desta natureza e da circunstância de a pena se aproximar do limite máximo.
Este crime era punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias, tendo o arguido sido condenado na pena de 4 anos de prisão.
Atente-se somente na quantidade de armas, munições e acessórios que foram apreendidos e que se provou pertencerem ao arguido, para além de vários outros em que esta demonstração não foi alcançada: «1 espingarda “caçadeira" da qual foi retirada a coronha e substituída por um punho de pistola, 1 espingarda “caçadeira”; 1 espingarda "caçadeira", qual foi retirada a coronha e substituída por um punho de pistola; 1 espingarda, de marca e modelo não referenciados; 1 embalagem de aerossol de defesa; 1 embalagem de aerossol de defesa; 1 embalagem de aerossol de defesa; 1 embalagem de aerossol também conhecido por “gás de pimenta”; 1 embalagem de aerossol de defesa também conhecido por “gás de pimenta”; 217 cartuchos de caça em condições de ser imediatamente disparados; 42 munições de percussão de calibre .22 em condições de serem imediatamente disparadas; 70 munições de percussão central, de calibre 6.35 em condições de ser imediatamente disparadas; 79 munições de calibre 32 em condições de serem imediatamente disparadas; 30 munições de calibre 32 em condições de serem imediatamente disparadas; 5 munições de calibre 357 em condições de ser imediatamente disparadas; 1 coronha, própria para espingarda; 1 navalha de abertura automática da lâmina, medindo cerca de 178 mm de comprimento total, com lâmina do tipo corto-perfurante; 1 arma eléctrica com descarga de alta voltagem; 1 silenciador próprio para ser adaptado a arma de fogo; 1 caixa de munições de arma de fogo, contendo 50 munições de calibre 22; 1 caixa de munições de arma de fogo, contendo 35 munições de calibre 22; 2 caixas de munições de 50 munições; 10 munições 357 Magnum Special GF1; 1 munição calibre 38 Special GFL; 12 munições de calibre mais baixo; 1 bolsa de tiracolo de couro, que no seu interior continha 6 coldres de cor preta, sendo 4 de cintura e o outro de tornozelo; 1 caixa de munições de calibre 6,35 mm. de 50 munições com 38 munições; 1 pistola calibre 8 mm; 1 carregador com 3 munições calibre 6,35 mm GFL; 1 caixa com 26 munições; 1 caixa de 50 munições; 1 caixa com 50 munições; 2 caixas de munições calibre 76, uma completa com 50 munições e outra com 5 munições; 1 caixa de munições com 20 munições calibre 32; 1 caixa com 44 munições calibre 32; 1 caixa com 14 cartuchos».
A este rol imenso de armas, munições e acessórios há que acrescentar que resulta dos factos provados no processo crime em que foi condenado que o arguido pediu ainda a terceiros para lhe guardarem outras armas e munições; que parte delas se encontravam na habitação do arguido que ele partilhava com o filho menor que desse modo podia aceder às mesmas e incorrer nos perigos inerentes ao seu uso inadvertido; que o arguido usou algumas delas para a prática de actos que consubstanciam o crime de violência doméstica; que o arguido possui uma personalidade violenta, um padrão duradouro de experiência interna e comportamento que se desvia marcadamente do esperado na cultura da pessoa, sentimentos grandiosos de auto-importância (confirmado pela inscrição da tatuagem que no braço: “Deus e eu somos únicos’’), crenças de que é “especial” e “único”, que é impulsivo e denota irritabilidade e agressividade, bem como ausência de remorso, como é demostrado pela racionalização e indiferença com que reage após ter magoado ou maltratado alguém, que procura tirar partido dos outros para atingir os próprios fins, ausência de empatia: incapacidade para reconhecer ou identificar-se com os sentimentos e necessidades dos outros.
Dentro deste quadro uma pena de 4 anos de prisão numa moldura de 1 a 5 anos está muito longe de se mostrar excessiva ou desadequada ao grau de ilicitude e de culpa ou, pelo menos, está muito longe de permitir que se aceite como suficientemente provável que tal pena viesse a ser reduzida por um tribunal de recurso e/ou suspensa a sua execução.
Por tudo isso, procedendo ao juízo de prognose póstuma referido pelo AUJ n.º 2/2022 e procurando por essa via reconstituir a decisão que o processo teria tido se o réu nele tivesse cumprido os seus deveres profissionais, concordamos com a decisão da 1.ª instância de entender que nas circunstâncias concretas que se provaram nesse processo-crime, não é possível, à luz da forte probabilidade que o AUJ elege como critério para aferir a existência de uma perda de oportunidade juridicamente tutelável, concluir que se não fosse aquela falha o autor seria condenado numa pena suficientemente diferente para menos ou, tão pouco, que teria obtido a suspensão da execução da pena de prisão em que seria condenado.
Improcede, por isso, o recurso.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.

Custas do recurso pelo recorrente, o qual, beneficiando de apoio judiciário as não paga, cabendo ao IGFEJ o dever de reembolso dos réus da taxa de justiça paga.
*

Porto, 11 de Janeiro de 2024.
*

Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 791)
Isabel Silva
Ana Luísa Gomes Loureiro




[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]