Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
12397/20.1T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MENDES COELHO
Descritores: INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAL DE FAMÍLIA E MENORES
FAMÍLIA
Nº do Documento: RP2021042612397/20.1T8PRT.P1
Data do Acordão: 04/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A Constituição não admite a redução do conceito de família à união conjugal baseada no casamento, isto é, à família “matrimonializada”; constitucionalmente, o casal nascido da união de facto juridicamente protegida também é família;
II – O Juízo de Família e Menores, face à previsão da alínea g) do nº1 do art. 122º da LOSJ, é o materialmente competente para a preparação e julgamento de uma acção em que é pedido o reconhecimento da existência de união de facto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº12397/20.1T8PRT.P1
(Comarca do Porto – Juízo de Família e Menores do Porto – Juiz 5)

Relator: António Mendes Coelho
1º Adjunto: Joaquim Moura
2º Adjunto: Ana Paula Amorim

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

B… e C… propuseram acção declarativa comum contra o Estado Português no Juízo de Família e Menores do Porto, pedindo que se reconheça que vivem desde Setembro de 2016 em condições análogas às dos cônjuges com vida e economia em comum, reconhecendo-se por isso a sua união de facto desde aquela data.
Alegam para tal um conjunto de factualidade tendente a demonstrar tal situação, uma vez que o seu reconhecimento judicial é requisito legal para o autor C… poder obter a nacionalidade portuguesa [já que, conforme se dispõe no art. 3º nº3 da Lei da Nacionalidade (Lei 37/81 de 3 de Outubro, na sua redacção mais recente, que é a introduzida pela Lei Orgânica nº2/2020 de 10/11) “O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível”].
Recebida a petição em juízo, pela Sra. Juíza foi proferido despacho liminar no qual considerou ocorrer incompetência absoluta do tribunal onde a acção foi proposta, por via de infracção das regras de competência em razão da matéria e, nessa conformidade, absolveu o Réu da instância.
É o seguinte o teor de tal decisão:
Da exceção dilatória da incompetência deste tribunal, em razão da matéria.
Dispõe o art. 65, do C.P.C., aprovado pela Lei 41/2013, de 26/06, que “as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada”.
Por sua vez, preceitua o art. 122 da Lei nº 62/2013, de 26/08, vulgarmente designada por LOSJ, quais as causas que competem às secções de família e menores preparar e julgar.
Como decorre da leitura da p.i., a presente ação destina-se ao reconhecimento da situação de união de facto em que alegadamente vivem os requerentes.
Não se enquadrando os presentes autos naquele dispositivo legal.
Assim, o tribunal competente para decidir a presente causa é o Juízo Local Civel e não este tribunal.
Nesta conformidade, ao abrigo do disposto nos sobreditos preceitos legais e ainda do preceituado nos arts. 96 a 99 do C.P.C. declaro este tribunal incompetente, em razão da matéria, para dirimir a lide.
Termos em que julgo verificada a exceção dilatória da incompetência, em razão da matéria e, em consequência, absolvo o Réu da instância (arts. 576 e 577, al. a) do C.P.C.).”

De tal decisão veio a Autora interpor recurso – pugnando pela sua revogação e pela prolação de decisão que considere competente aquele tribunal –, tendo na sequência da respectiva motivação apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
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O Mº Pº, através da Sra. Procuradora da República junta a tal tribunal, apresentou alegações de resposta, defendendo que deve ser reconhecida razão aos Recorrentes.

Foram dispensados os vistos ao abrigo do art. 657º nº4 do CPC.
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas suas conclusões (art. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), há apenas uma questão a apurar: saber se o Juízo de Família e Menores é competente em razão da matéria para conhecer da acção proposta pelos Recorrentes.
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II – Fundamentação

Os dados a ter conta são os que se retiram do relatório e, como deles se vê, estando em causa acção para reconhecimento da existência de união de facto entre os Autores/Recorrentes, cumpre averiguar se a norma de competência material do Juízo de Família e Menores constituída pela previsão da alínea g) do nº1 do art. 122º da Lei 62/2013, de 26/8 (Lei de Organização do Sistema Judiciário) abrange ou não tal acção.
Na norma em causa, integrada naquele art. 122º, o qual tem como epígrafe a “Competência relativa ao estado civil das pessoas e família”, prevê-se a competência do Juízo de Família e Menores para preparar e julgar, além dos processos de jurisdição voluntária e das acções referidas sob as alíneas a) a f) [respectivamente, processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges, processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum, acções de separação de pessoas e bens e de divórcio, acções de declaração de inexistência ou de anulação de casamento civil, acções intentadas com base nos arts. 1647º e 1648 nº2 do C.Civil e acções e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges], “Outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família”.

Antes de entrar propriamente no tratamento de tal questão, não podemos deixar de dar conta da evidente secura da decisão recorrida no que diz respeito à fundamentação do raciocínio de incompetência material a que chegou: diz apenas, de forma absolutamente conclusiva e sem nada explicar, que os presentes autos “não se enquadram” no dispositivo legal constituído pelo art. 122º da lei supra referida, o que, a nosso ver, roça praticamente a ausência de fundamentação e é pouco condizente com um conhecimento minimamente esclarecido e esclarecedor sobre o âmbito da competência material do tribunal, sobretudo quando, como é o caso, está em causa uma competência especializada (art. 40º nº2 da LOSJ).
Mas vamos então agora à questão.
Esta foi já objecto de tratamento e decisão em vários arestos de tribunais da Relação e todos eles no sentido da afirmação da competência material do Juízo de Família Menores para a acção em causa, como são os casos, por exemplo (todos eles disponíveis em www.dgsi.pt):
- do Acórdão da Relação de Coimbra de 8/10/2019 (proc. 2998/19.6T8CBR.C1, rel. Luís Cravo), onde se conclui:
• “A acção intentada com vista à obtenção do reconhecimento judicial da situação de união de facto, nos termos e para efeitos dos nos 2 e 4, do art. 14º, do DL nº 237-A/2006, de 14 de Dezembro [“REGULAMENTO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA”], integra a previsão do art. 122º, nº1, al.g), da “LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO” [Lei nº 62/2013 de 26 de Agosto - LOSJ]”;
• “É que, ao aludir a referida al.g) do nº 1 do art. 122º da LOSJ, a acções relativas ao “estado civil” das pessoas, o legislador utilizou tal expressão – na sua acepção mais restrita - atendendo ao seu significado na linguagem corrente e apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, mas sempre com o sentido e desiderato de abranger toda e qualquer acção que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida.
- da decisão sumária desta mesma Relação de Coimbra de 15/7/2020 (proc. 160/20.4T8FIG.C1, rel. Vítor Amaral), onde se conclui:
• “É o “conceito de família alargada”, fruto da evolução recente das condições sócio-familiares, incluindo as relações de união de facto, que deve operar na interpretação do disposto no art.º 122.º, n.º 1, al.ª g), da LOSJ, que prevê a competência dos juízos de família e menores para preparar e julgar “outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família”;
“Tais juízos de família e menores são competentes, em razão da matéria, para uma acção declarativa cível em que é pedido o reconhecimento judicial de união de facto duradoura
- do Acórdão da Relação de Lisboa de 11/12/2018 (proc. 590/18.1T8CSC.L1-6, rel. António Santos), onde se conclui exactamente nos mesmos termos em que se conclui no Acórdão da Relação de Coimbra supra identificado;
- e do Acórdão da Relação de Lisboa de 30/6/2020 (proc. 23445719.8T8LSB.L1-7, rel. José Capacete), onde se conclui:
• “O conceito de família não é estanque, antes se mostrando recetivo a fenómenos que pela sua evidência social mereçam o seu abrigo.
• “A união de facto atingiu uma proeminência tal que a sua aceitação social como entidade familiar não pode já ser posta em causa, sobretudo a partir do momento em que, nos termos do n.º 1 do art. 36.º da CRP, passou a beneficiar de proteção constitucional, devendo, por isso, ser considerada uma relação familiar, apesar de não constar do elenco das fontes jurídico-familiares do art. 1576.º, do Código Civil.
• “Por conseguinte, os Juízos de Família e Menores são os materialmente competentes para a preparação e julgamento de uma ação em que é pedido o reconhecimento da união de facto.”.
Dificilmente diríamos algo mais que o que se diz e argumenta em qualquer daqueles arestos no sentido, que inequivocamente partilhamos, da verificação da competência material do Juízo de Família e Menores para conhecer da acção proposta pelos Recorrentes com base naquela alínea g) do nº1 do art. 122º da LOSJ [por não verificação de nenhuma das concretas previsões relativamente aos processos e acções previstas nas anteriores alíneas a) a f)].
De resto, sobre o alcance do conceito “família” ali previsto não podemos deixar de lembrar – como escrevem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, na sua “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Vol. I, 4ª edição, 2007, pag. 561 – que por via do disposto no seu art. 36º, “[c]onjugando, naturalmente, o direito de constituir família com o de contrair casamento (nº1), a Constituição não admite todavia a redução de tal conceito à união conjugal baseada no casamento, isto é, à família “matrimonializada”: para isso apontam não apenas a clara distinção das duas noções do texto do nº1 daquele preceito (“constituir família” e “contrair casamento”), mas também o seu nº4 sobre a igualdade dos filhos, nascidos dentro ou “fora do casamento” (e não fora da família)”, acrescentando logo a seguir que “[c]onstitucionalmente, o casal nascido da união de facto juridicamente protegida também é família”.

Como tal, concluindo-se pela competência material do Juízo de Família e Menores para a acção em causa, há que revogar a decisão recorrida e ordenar o prosseguimento dos autos em tal tribunal.
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Sumariando o decidido (art. 663 º nº7 do CPC):
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III – Decisão
Pelo exposto, acordando-se em julgar procedente o recurso, revoga-se a decisão recorrida e ordena-se o prosseguimento da acção no Juízo de Família e Menores em que foi proposta, por ser o materialmente competente.
Sem custas.
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Porto, 26/4/2021
Mendes Coelho
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim