Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0110881
Nº Convencional: JTRP00033173
Relator: ANDRÉ DA SILVA
Descritores: FURTO QUALIFICADO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
OBJECTO
SUBTRACÇÃO
Nº do Documento: RP200201090110881
Data do Acordão: 01/09/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 1 J CR V N GAIA
Processo no Tribunal Recorrido: 212/98
Data Dec. Recorrida: 07/06/2000
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO. REVOGADA A DECISÃO.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMÓNIO.
Legislação Nacional: CP95 ART203 N1 ART204 N1 E.
Sumário: A subtracção de objectos deixados no interior de um veículo automóvel, tendo para o efeito o agente partido um vidro da viatura, integra a autoria de um crime de furto qualificado previsto e punido pelos artigos 203 e 204 n.1 alínea e) do Código Penal, pois o veículo funciona como receptáculo com o sentido da previsão desta última norma.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal de Relação do Porto

No Tribunal da Comarca de....., sob acusação do M.P. respondeu a arguida, Ana....., a quem foi imputada, a prática de um crime de furto qualificado p.p. pelos art.º 203 n.º1 e 204 n.º2 al. e) do C.P.
Fim do julgamento foi proferida a seguinte sentença :
A) Julgar a acusação improcedente quanto ao referido crime.
B) Julgar a acusação precedente no que concerne à prática da arguida em autoria material de um crime de furto simples p.p. pelo art.º 203 n.º 1 do C.P.
C) Julgar válida e relevante a desistência da queixa, e em consequência declarar extinto o procedimento criminal contra a arguida com o arquivamento dos autos.
Inconformado o M.P. recorreu tendo formulado
as seguintes conclusões :
Não concorda com a posição do Tribunal ao integrar a factualidade dos autos na prático do crime do furto simples, do art.º 203 n.º 1 do C.P..
Que a arguida incorreu antes na prática do crime de furto qualificado p.p. art.º 204 n.º1 al. e). Devendo por isso ser condenada por tal ilícito.
A fls. 140 o recurso foi admitido.
À motivação do recurso, respondeu o Sr.º Proc. Geral Adjunto, promovendo que se designasse dia para audiência.
Cumpriu-se o disposto no art. 417 n.º2 do C.P.P. , e nada foi requerido.
Nada foi requerido.
Colheram-se os vistos legais.
Procedeu-se ao julgamento.
Vejamos a matéria de facto dada como provada:
Em hora não concretamente apurada, mas entre as 00h00 e as 07h00 do dia 7 de Novembro de l997 a arguida passou na rua ..... área desta comarca. Vendo que ali se encontrava estacionado o veiculo automóvel de marca Renault Express e matricula ..-..IV pertencente a Cândido....., logo formulou o propósito de aceder ao interior do mesmo a fim de retirar e fazer seus os objectos de valor que aí encontrasse.
Em execução desse plano e com o emprego de um meio mecânico que em concreto não se apurou, partiu o vidro do lado direito do veiculo, por ali logrando acesso ao interior do mesmo de onde retirou um blusão em couro e um telemóvel “pionner”, pertencentes igualmente ao Cândido..... no valor de 90 mil escudos e 25 mil escudos, respectivamente.
Da posse de tais objectos a arguida afastou-se do local procurando realizar dinheiro com a sua venda, motivo pelo qual quando interpelada, umas horas mais tarde, por um cunhado do ofendido de nome Alberto que reconhecera o blusão que ela trazia, acedeu vender-lho pela quantia de 10 mil escudos.
Após insistência dos agentes de autoridade que a interpelaram, a arguida acabou por devolver o telemóvel.
O ofendido entregou ao seu cunhado a Alberto, 10 mil escudos, correspondentes à quantia que aquele despendeu para reaver o blusão da posse da arguida, sofrendo assim a perda correspondente a esse montante e ainda o prejuízo consistente na colocação de novo vidro no veiculo, cujo o valor se cifrou em 8 mil escudos.
A arguida agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que forçava a sua entrada em veiculo automóvel, no qual o seu acesso não estava autorizado e que se apossava de objectos que não lhe pertenciam, em ambos os casos contra a vontade do respectivo dono, sabendo ser proibido tal comportamento.
A arguida é solteira, tem dois filhos menores, encontrando-se detida no E.P. do Porto, e não aufere qualquer rendimento, tendo como habilitações literárias a 4º classe.
Na altura dos factos era toxicodependente.
Mostrou-se arrependida, tem antecedentes criminais.
FACTOS NÃO PROVADOS
Que estivesse acompanhada por alguém cuja identidade não se logrou apurar e que com ela terá colaborado na sua execução.
Que o blusão tivesse o valor de 45 mil escudos.
Que a arguida tivesse sido interpelada pelo ofendido, que reconhecera como seu o blusão que ele trazia e que aquele lhe tivesse sido vendido pela quantia de 10 mil escudos, o que o Cândido..... fez por julgar se o único meio de poder recuperar em tempo útil a sua peça de roupa.
FUNDAMENTAÇÃO
O tribunal alicerçou a sua convicção nas declarações prestadas pela arguida que confessou a prática dos factos, não obstante ter referido não ter retirado o telemóvel directamente do interior do veiculo, mas que o mesmo se encontrava na altura no bolso do blusão de que aquela se apoderou.
No que concerne ao valor dos objectos furtados o tribunal ancorou-se no depoimento prestado pelo ofendido Cândido que referiu ter o blusão o valor de 90 mil escudos e o telemóvel no valor de 25 mil escudos, o seu depoimento mostrou-se isento e revelou conhecimento directo desses factos pelo que mereceu colhimento da parte do Tribunal.
Quanto aos factos não provados o tribunal ancorou-se no facto do ofendido ter referido não ter sido ele quem interpelou a arguida e lhe comprou o blusão de couro, o que foi confirmado no depoimento prestado por Alberto....., agente da PSP que acorreu ao local e a quem foi entregue o telemóvel em causa pela arguida.
Relativamente à participação de outra pessoa nos factos anunciados, cumpre referir que a arguida afirmou ter agido sozinha e não foi produzida qualquer prova no sentido de infirmar as suas declarações.
Relativamente às condições sócio – económicas foram relevantes as suas próprias declarações.
Quanto aos antecedentes criminais, fundamentou o tribunal a sua convicção no certificado junto a fls . 5 e seguintes.
O julgamento foi efectuado sem documentação dos actos de audiência pelo que o presente recurso é circunscrito à meteria de direito – art.º 428 e 364 do C.P.P. – sem obstáculo porem desta Relação poder conhecer amplamente, sendo caso disso, nas hipóteses previstas nos n.º 2 e 3 do art.º 410 também do C.P.P. .
No caso em análise nenhum do vícios elencado em tal artigo se verifica bem como qualquer nulidade que seja de conhecimento oficioso.
Considera-se assim definitivamente assente a matéria de facto dada como provada.
Como ficou escrito a arguida foi acusada por um crime de furto qualificado previsto e punido pelo art.º 203 n.º1 e 204 n.º2 al. e) do C.P.
O Tribunal entendeu que a conduta da arguida não integrava a previsão da al. e) do n.º 2 do art. 204 do C.P. , mas o crime de furto simples p.p. pelo art.º 203 n.º1 do mesmo código.
Atendendo à desistência entretanto manifestada nos autos, o Meritíssimo Juiz A Quo homologou a mesma e considerou extinto o procedimento criminal contra a arguida.
A questão central e única nos presentes autos, e colocada à apreciação deste Tribunal Superior é saber se, e como pretende o excelentíssimo recorrente, os factos dados como provados na sentença recorrida, são subsumíveis à previsão da al. e) do n.º1 do art.º 204 do C.P. .
O Meritíssimo Juiz entendeu na sua douta sentença, que a arguida não integra a previsão da al. e) do n.º1 , porque a expressão receptáculo pressupõe que a finalidade primacial desse receptáculo seja de guardar coisas com o mínimo de segurança, e que o automóvel está longe de ter como fim o de servir de caixa, cofre ou gaveta para guardar o que quer que seja, portanto não está abrangido pelo referido preceito.
Por seu turno o M.P. recorrente entende que a arguida praticou o crime de furto qualificado, de acordo com o disposto no art.º 204 n.º1 al. e) do mesmo Código, devendo por isso ser condenada.
Assim, entende, “nada impede que se considere um veiculo automóvel, equipado com fechadura, obviamente destinada à sua segurança, como um receptáculo, já que o cerne desta agravante radica na circunstancia da coisa móvel se encontrar fechada ou encerrada no seu interior”.
Diz o art.º 204 n.1 al. e) do C.P. , “quem furtar coisa móvel alheia :
fechada em gaveta, cofre ou outro receptáculo, equipados com fechadura ou outro dispositivo, especialmente destinado à sua segurança é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias”
No caso sob análise, perante a matéria de facto dada como provada, não restam quaisquer duvidas de que o automóvel estava fechado, tendo a arguida partido o vidro da porta do lado direito, logrando o acesso ao interior do veiculo, de onde retirou um blusão em couro, e um telemóvel, pertencentes ao ofendido, no valor de 90 mil escudos e 25 mil escudos respectivamente.
Muito se tem dito e redito acerca da subsunção dos factos de tal natureza em relação às alíneas b) e) e f) do art. 204 n.º 1 do C.P. .
Vejam-se por exemplo acórdãos do STJ de 1 de Março de 2000 e de 28 de Junho de 2000 in CJ tomos 1 e 2 páginas 212 e 230 respectivamente , bem como acórdão do STJ de 28 do 11 de 91 na CJ ano XVI página 15.
No que nos diz respeito entende-se que a factualidade dada como provada é subsumível à al. e) do referido preceito legal, pois entende-se que um automóvel com as portas fechadas deve ser considerado como um receptáculo no sentido que vem descrito em tal alínea.
Afinal o que é que pretende a lei?
É dificultar o acesso a estranhos relativamente aos veículos devidamente fechados, à chave, quer seja o porta luvas, quer seja a bagageira, quer seja ao interior no seu todo.
O que o legislador pretendeu, foi acautelar tais espaços. E não é que as pessoas costumam reservar tais espaços para protegerem os seus bens ou valores? É obvio que sim! No conceito de receptáculo equipado com fechadura, é perfeitamente enquadrado o veiculo automóvel.
Resumindo e concluindo peder-se-a afirmar que a subtracção de um blusão e de um telemóvel de um veiculo automóvel, tendo a arguida para o efeito, partido um vidro da viatura, integra a autoria de um crime de furto qualificado p.p. pelo art.º 203 e 204 n.1 al. e) , porquanto o veiculo funciona como receptáculo com o sentido de previsão da referida norma.
Neste sentido ver C.P. 3ª edição , II volume de Leal Henriques e Simas Santos, anotação ao n.º1 da al. f) página 651.
Assim e sem necessidade de mais considerações, dir-se-a que estão reunidos os pressupostos objectivos e subjectivos do referido tipo legal, impondo-se por isso a condenação da arguida pelo crime de furto qualificado, p.p. pelo art.º 204 n.º1 al. e) do C.P. .
A pena cominada em tal preceito, é de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias.
Do Artigo 70 do Código Penal diz:
Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência adequada à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Como anota Maia Gonçalves (in Cpanotado, 9ª edº, 353) “neste artigo condensa-se toda a filosofia subjacente ao sistema punitivo do Código. Embora aceitando-se a existência da prisão como pena principal para os casos em que a gravidade dos crimes ou de certas formas de vida impõem, afirma-se claramente que o recurso às penas privativas de liberdade só será legitimo quando, dadas as circunstâncias, se não mostrem adequadas as sanções não detentivas” (no mesmo exacto sentido, vd, por todos, o Acórdão deste Tribunal de 21.06.95, Recº n.º 484/95 – 1ª sº)
Consagra-se, assim, na moderna política criminal, a primazia generalizada da pena de multa como sanção contra a pequena delinquência, ainda se situando no sector inferior da criminalidade média – cfr. Hans Heinrisch Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte Geral 4º Ed 705 e seg. – e como sucedâneo das curtas penas privativas da liberdade (mas, da sua utilidade, em diversos outros pontos de vista, veja-se Cuello Calón, Derecho Penal, Parte General, I, 806 )
De entre os critérios de determinação da pena, ao Juiz penal, dentro de uma discricionariedade juridicamente vinculada, surge, em primeiro lugar, o critério da culpa do agente, que impõe um retribuição justa, reafirmando o principio da culpabilidade essencial , seja, a culpa é fundamentadora e limitadora da pena. – vd. Art. 40 n,º1 e 2 do C.P.
(A culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas – sejam de prevenção geral positiva ou antes negativa, de integração ou antes de intimidação, sejam de prevenção especial positiva ou negativa, adequado à culpa que não pode ser ultrapassado – in Figueiredo Dias, Direito Penal Português, parte geral II 230)
Segue-se, as exigências do fim preventivo especial, ligado à reinserção social do delinquente, e do fim preventivo geral.
Dispõe o artigo 71º do C.P.
A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
a intensidade do dolo ou da negligência;
os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
as condições pessoais do agente e a sua situação económica;
a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3 – (...)
Estabelece o artigo 47 do mesmo texto legal:
A pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º1 do art.º71, sendo, em regra, o limite mínimo de 10 dias e o máximo de 360.
Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 200.00 e 100.000.00, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.
No caso, então, qual a pena a aplicar?
Como se disse se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artigo 70 º. do C.P.).
No caso dos autos o ilícito cometido pela arguida prevê a pena de prisão ou a pena de multa.
Está provado que arguida tem antecedentes criminais tendo sido condenada em 26. de Outubro de 1992 na pena de 40 dias de prisão substituída por multa por posse de estupefacientes, voltando a ser condenada agora 2.11.92 na pena de 22 meses de prisão suspensa na sua execução por 3 anos, sendo que esta ultima condenação foi por crime de furto tudo isto de acordo com o C.R.C. de fls. 6 o qual a fls 7 nos dá conta de 2 despachos de recebimento de acusações um 6.1.95 por furto qualificado e um de 29 de Março de 95 também por furto qualificado.
Mais uma vez e agora em 97 a arguida volta a cometer um crime de furto qualificado. Partiu o vidro de um automóvel e daí retirou os objectos identificados integrando-os no seu património contra a vontade e sem autorização do seu legitimo proprietário.
Dadas as circunstâncias dos autos não se mostram adequadas sanções não detentivas, podendo concluir-se mesmo que a arguida tem propensão para os crimes contra o património. Opta-se, pois, pela pena privativa da liberdade.
A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção atendendo o tribunal a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra aquele, e como diz o artº. 71 do C.P. que enumera exemplificativamente alguns desses factores. E a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa _ ver artº. 40º. Nº 2 do mesmo Código.
Pois bem: a arguida tinha perfeito conhecimento da ilicitude da sua conduta, sendo que é elevada. O dolo foi intenso e directo.
Assim, face ao disposto pelo artigo 71º, do C.P. e atendendo às necessidades de prevenção geral perante a frequência de crimes contra o património, e perante a frequência de crimes de furto em veículos e atendendo à necessidade de prevenção especial, designadamente de fazer a arguida compreender a gravidade que tem a violação do património de cada um entende-se adequado fixar a pena em 1 (um) ano de prisão.
Atendendo à data da prática dos factos tal pena será perdoada em face da lei 29/99 de 12 de Maio.
DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos Acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso do Mº.Pº. revogando a decisão recorrida, e, condenando a arguida ANA....., como autora material de um crime de furto qualificado p.p. pelo artigo 204 nº. 1 al. e) do C.P. na pena de um ano de prisão.
De acordo com os artigos 1º., e 7º. al. d) da Lei 29/99 de 12.05 declara-se perdoada toda a pena de prisão, sob a condição resolutiva prevista no artigo 4º.da referida Lei.
Sem tributação.
Porto, 09 de Janeiro de 2002
Luís Dias André da Silva
Francisco Marcolino de Jesus
Fernando Manuel Monterroso Gomes
Joaquim Costa de Morais