Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ERNESTO NASCIMENTO | ||
Descritores: | NULIDADE DO CONTRATO CONTRATO DE REPRESENTAÇÃO EFEITOS DA NULIDADE | ||
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Nº do Documento: | RP202409267943/23.1T8PRT.P1 | ||
Data do Acordão: | 09/26/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - São nulos os contratos de representação ou intermediação celebrados com empresários desportivos que não se encontrem inscritos no registo referido no presente artigo. II - Não pode ser considerada como intoleravelmente atentatória do princípio da confiança, de modo a traduzir abuso de direito, o facto e a outra parte, réu, no processo, em que a causa de pedir é o seu não cumprimento do contrato, invoca a nulidade. III - Desde logo, inexiste uma situação de imputação da confiança, uma vez a causa da nulidade é apenas imputável ao autor. IV - A declaração de nulidade do contrato arrasta consigo a destruição retroactiva das atribuições patrimoniais, como se o negócio não tivesse sido realizado. V - Sob pena de enriquecimento injustificado, o réu, por via da decretada nulidade, fica obrigado à restituição do valor que recebeu pela celebração do contrato nulo. VI - Se, por um lado, beneficia da nulidade, para se escusar ao cumprimento das obrigações daí advenientes e ao pagamento da cláusula penal pelo seu incumprimento, não pode o réu deixar de, por via da nulidade, ter que restituir o que recebeu pela celebração do contrato nulo. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo 7943/23.1T8PRT - Acção de Processo Comum – do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim - Juiz 1 Relator – Ernesto Nascimento Adjunta – Maria Manuela Barroco Esteves Machado Adjunta – Isoleta Almeida Costa I. Relatório Foot A... Lda. intentou a presente acção comum contra AA, pedindo a condenação deste a pagar: - a quantia correspondente a 10% do salário bruto anual e dos prémios de assinatura estipulados no contrato de trabalho e no contrato de cedência de direitos de imagem, celebrados entre o réu (e sua empresa) e o B...., cuja quantia deverá ser liquidada em sede de execução de sentença; - a quantia de € 500.000,00, a título de clausula penal pelo incumprimento, conforme previsto no nº5 da clausula c) do contrato de representação, por não ter cumprido os deveres e as obrigações previstas na cláusula B) e nos n.ºs 1 e 2 da cláusula c) do contrato de representação, tudo, sem prejuízo dos respectivos juros vencidos e dos vincendos, à taxa de juro comercial, até efectivo e integral pagamento. O réu devidamente citado, além de invocar nulidade da citação – que veio a ser julgada improcedente – defendeu-se por impugnação, alegando, ainda, em resumo, que a autora não se encontra credenciada para desenvolver a actividade de empresária desportiva, que o contrato de representação não é válido, sendo nulo e, ainda, que assim não se entendesse, foi violado o dever de informação, as cláusulas contratuais são abusivas e o contrato, sempre será anulável por vício da vontade. A autora respondeu, alegando que o réu age em abuso de direito e requerendo a sua condenação no pagamento da quantia de € 65.333,33 que recebeu por assinar o contrato de representação, acrescido do montante de 5% do rendimento bruto do jogador correspondente ao período de duração do contrato de trabalho celebrado com a C... SAD e do contrato de trabalho celebrado com o B.... O réu respondeu pugnando pelo indeferimento da alteração do pedido e da causa de pedir e, se assim não se entender, defendendo a improcedência do pedido e da excepção invocada. De seguida foi proferido o seguinte despacho: “a autora apresenta articulado de resposta à contestação e, nessa sede, peticiona a condenação do réu no pagamento da quantia de € 65.333,33, que recebeu pela assinatura do contrato de representação, acrescido do montante de 5% do rendimento bruto do jogador correspondente ao período de duração do contrato de trabalho celebrado com a C... SAD e do contrato de trabalho celebrado com o B.... Alega, em síntese, que, para o caso de serem improcedentes os pedidos formulados, por se entender serem procedentes as excepções deduzidas pelo réu, subsidiariamente deve condenar-se o réu no pagamento das referidas quantias. O réu veio opor-se a tal ampliação. Cumpre decidir Estes autos não admitem réplica, porque não foi deduzida reconvenção. Nesta fase, após os articulados, a ampliação da causa de pedir não é já admissível. Note-se que, em rigor, não há qualquer ampliação do pedido formulado. A autora, e como, aliás, refere, formula um novo pedido subsidiário, já não assente na validade e consequente incumprimento do contrato invocado, por parte do réu, mas sim na nulidade deste, caso se conclua pela mesma, pretendendo introduzir-se assim uma nova causa de pedir. Ainda que se entendesse que está em causa um novo pedido, este não é nem consequência nem desenvolvimento do pedido primitivo, pelo que a ampliação não seria também possível, não havendo acordo da parte contrária. Com efeito, conforme dispõe o artigo 265.º do CPC, no seu n.º 2, que: “o autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1ª instancia se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo”. Sublinhe-se que apos a estabilização da instância – artigo 564.º alínea b) do CPC, isto é, após a citação do réu, apenas é admitida a ampliação ou redução do pedido. Não se admite assim o novo pedido subsidiário formulado pela autora. Custas do incidente pela autora, que se fixa em 1 Uc”. Na mesma ocasião foi designada data para a realização de audiência prévia que terá como objecto: a) A conciliação das partes; b) Prosseguimento dos autos, com a fixação do objecto do litígio e dos temas da prova; c) Calendarização da audiência”. De seguida, o Tribunal entendeu que podia desde já conhecer do pedido formulado, nos termos do artigo 595.º/1 alínea b) CPCivil, tendo dado conhecimento às partes em sede de audiência prévia, tendo, então, sido proferido despacho saneador-sentença que julgou a acção manifestamente improcedente e absolveu o réu do pedido. Inconformada, recorre a autora, pugnando pela revogação da decisão recorrida, rematando o corpo da motivação com as conclusões que se passam a transcrever: 1. O presente recurso de apelação tem como objecto a sentença proferida ao abrigo do disposto no art.º 595.º, n.º 1, al. b) do C.P.C., que considerou que o contrato de representação celebrado entre Autora e Réu é inexistente juridicamente. 2. O Tribunal "a quo" aplicou a Lei n.º 28/98 de 26 de Junho que foi revogada pela Lei n.º 54/2017, de 14 de Julho. 3. De facto a Autora não se encontrava registada como empresário desportivo à data da celebração do contrato de representação (01.07.2020) nem durante o período da sua vigência. 4. Ao contrato de representação celebrado em 01.07.2020, entre Autora e Réu, aplica-se a Lei n.º 54/2017, de 14 de Julho. 5. Nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 37.º da Lei n.º 54/2017, de 14 de Julho, consta que: "3 - São nulos os contratos de representação ou intermediação celebrados com empresários desportivos que não se encontrem inscritos no registo referido no presente artigo." 6. O Réu age em claro e flagrante abuso de direito ao ter exigido a quantia de € 65.333,33 para assinar o contrato de representação, e alegar a nulidade do contrato de representação, para se eximir às obrigações pelo incumprimento do mesmo. 7. A figura do abuso de direito não é incompatível com o regime da nulidade. 8. O Tribunal "a quo" deveria ter marcado data para a realização de audiência julgamento, de forma a ser discutida e apreciada a questão de abuso de direito, uma vez que o regime da nulidade jurídica é compatível com o abuso de direito. 9. Mesmo que se considere que não existe a figura do abuso de direito, o Tribunal "a quo" deveria ter considerado que o contrato de representação era nulo e condenado o Réu a devolver à Autora a quantia que recebeu por assinar o contrato de representação, por força do disposto no n.º 1 do art.º 289 do Código Civil. 10. A sentença recorrida violou, entre outros, o disposto nos artigos 37.º/3 da Lei 54/2017, de 14 de Julho, 286.º e 289.º/1 CCivil. Contra-alegou o autor defendendo a improcedência do recurso, tendo formulado as seguintes conclusões: A) A sentença recorrida não padece dos vícios elencados nas alegações de apelação, não estando preenchidos os requisitos ou fundamentos de que dependeria a procedência deste recurso; B) Ao contrário do alegado pela Recorrente, a sentença recorrida encontra-se devidamente fundamentada com base no regime consagrado pela Lei 54/2017 de 14 de Julho e não procede à aplicação de qualquer norma da Lei 28/98 de 26 de Junho; C) Face à matéria de facto julgada como assente, resulta indisputável que a ora Recorrente não se encontrava registada como intermediária junto da FPF aquando da outorga do contrato de representação subjudice, nem durante a sua vigência, de onde resultaria a nulidade desse contrato de representação, atento, nomeadamente, o disposto no art.º 37.º n.º3 da Lei 54/2017; D) Entendeu o Tribunal a quo dar especial enfase ao vício contratual de que padecia tal contrato, fazendo referência à sua “inexistência jurídica”. Ao fazê-lo procurou valorizar negativamente tal contrato e em especial a sua total inaptidão para produzir quaisquer efeitos jurídicos pelo facto de lhe faltarem ab initio requisitos elementares, nomeadamente o licenciamento para o exercício de actividade; E) No caso em análise, a cominação do vício do contrato em apreço com a sua inexistência jurídica ou nulidade, implica, sempre e em qualquer caso, que o contrato não produza efeitos jurídicos, não vinculando as partes e conduzindo invariavelmente à improcedência dos pedidos formulados nos autos pela ora Recorrente; F) A causa de pedir destes autos assenta na alegação da existência de um contrato de representação desportivo válido celebrado entre as Partes, alegadamente incumprido pelo Réu, de onde teriam resultado danos para a Autora, consistindo o respectivo pedido na condenação do ora Recorrido na quantia de € 500.000,00, a título de cláusula penal, acrescida do valor correspondente a 10% do salário bruto do anual e prémios a auferir pelo Réu ao serviço do “B....” G) A pretensão e pedidos formulados pela Recorrente nos n.ºs 6, 8 e 9 das suas conclusões (ao alegar um suposto abuso de direito do Réu e pugnar pela sua condenação no valor de € 65.333,33), extravasa o objecto da presente acção e atenta contra a força de caso julgado de decisão judicial anteriormente proferida; H) A questão do alegado abuso de direito foi suscitada em sede de resposta a contestação, em cujo ato foi igualmente formulado um novo pedido de condenação do Réu no valor de €65.333,33; I) Tais questões são completamente novas, contrariando inclusive a relação material controvertida tal qual foi definida na petição inicial e extravasando objecto dos autos, para além de que, em momento algum, se admitiu a discussão neste processo das referidas questões novas; J) Acresce que a postura contraditória da Autora, que na petição inicial afirma estar licenciada para o exercício de actividade de empresária (sendo esse um dos elementos que integravam a causa de pedir) para, posteriormente, quando confrontada com a falta dessa licença, confessar a sua omissão e alegar abuso de direito do Réu, revela notório venire contra factum proprium – inviabilizando a tutela jurídica da sua pretensão; K) Por fim, de salientar que a pretensão expressa pela Recorrente nos n.ºs 6, 8 e 9 das suas conclusões esbarra com a autoridade e força de caso julgado do despacho prolatado a 11.12.2023 pelo Tribunal a quo, no qual se rejeitou as modificações da instância preconizados na resposta à contestação pela então Autora; L) Muito embora a Recorrente possua legitimidade processual para interpor o presente recurso, a verdade é que a mesma encontra-se desprovida de interesse em agir para o efeito. M) Mesmo em caso de eventual procedência do presente recurso, a recorrente não extrairia do mesmo qualquer efeito útil, uma vez que a nulidade do contrato subjudice conduziria invariavelmente à improcedência dos seus pedidos; N) A sentença recorrida encontra-se fundamentada de forma suficiente e adequada, remetendo-se para as razões de facto e de Direito ali expostas por razões de economia processual, sendo nessa medida inatacável! O) Em consequência, deverá o Recurso em apreço ser julgado improcedente e não provado, confirmando-se a Sentença recorrida, com o que se fará a costumada Justiça. O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo. Recebido o processo nesta Relação foi proferido despacho onde se teve o recurso por próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, uma vez que a tal nada obsta. II. Fundamentação II. 1. Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões da motivação apresentada pelo recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas - a não ser que sejam de conhecimento oficioso - e, que nos recursos se apreciam questões e não razões, bem como, não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, então, as questões suscitadas são as de saber se, - a invocação da nulidade do contrato de representação pelo réu na contestação é susceptível de integrar a figura do abuso de direito; - a decisão recorrida violou, entre outros, o disposto nos artigos 37.º/3 da Lei 54/2017, de 14 de Julho, 286.º e 289.º/1 CCivil. II. 2. Vejamos, primeiramente, os fundamentos da decisão recorrida. II. 2. 1. De facto. Factos provados. 1 - A Autora é uma sociedade comercial por quotas que tem como objeto: “Gestão e promoção da carreira de desportistas, praticantes de qualquer modalidade desportiva, incluindo a aquisição de direitos de inscrição e representação, consultadoria, intermediação e negociação dos direitos dos referidos desportistas, bem como a gestão e negociação dos direitos de personalidade, direitos de imagem, direitos de autor e de direitos conexos e de direitos relativos à publicidade. Atividades de marketing e publicidade, representação comercial de empresas e entidades desportivas, organização e promoção de eventos, exploração, aquisição e venda de marcas ou outros direitos de propriedade industrial, Formação profissional, comercialização, promoção e desenvolvimento de sessões de ensino de técnicas e conceitos para a prática de desportos. Gestão de atividades desportivas e/ou atividades económicas ligadas ao desporto e instalações desportivas. Comércio por grosso e a retalho, importação, exportação, representação de equipamentos e roupa desportiva”, conforme certidão junta. 2 - O Réu AA é praticante desportivo profissional de futebol, dedicando-se com regularidade, em exclusividade e mediante remuneração, à prática do futebol, sempre em representação e sob a autoridade e direção de um clube desportivo, fazendo disso profissão. 3 - Atualmente, e pelo menos desde 26.04.2023, o R. desenvolve a atividade de jogador de futebol profissional, representando o “B...”, pertencente à Confederação Brasileira de Futebol. 4 - Em 1 de Julho de 2020, Autora e Réu assinaram o documento designado de Contrato de Representação, junto como doc. n.º 2, com a pi, cujo teor se dá por integralmente por reproduzido. 5 - Nos termos do referido contrato, e conforme estipulado no n.º 1 da Cláusula A) do Contrato de Representação: “O JOGADOR contrata os serviços do AGENTE, que aceita, para nos termos do presente contrato, gerir a sua carreia profissional de futebol e representá-lo nas negociações com vista à celebração e/ou renovação de contratos de trabalho desportivo.” 6 - Conforme estipulado no n.º 3 da Cláusula A) do Contrato de Representação: “Este contrato será válido por 24 (VINTE E QUATRO) MESES, com início na data da assinatura.” 7 – Tendo, assim, vigorado entre 1 de Julho de 2020 e 30 de Junho de 2022. 8 - Nos termos do n.º 1 da Cláusula C) do Contrato de Representação: “Fica claro que, com relação à negociação com vista à celebração ou renovação de qualquer contrato de trabalho desportivo do JOGADOR com um clube de futebol, os serviços contratualizados serão prestados em EXCLUSIVIDADE pelo AGENTE ou seu representante legal”. 9 - Nos termos do n.º 2 da Cláusula C) do referido Contrato de Representação: “O JOGADOR compromete-se, durante a vigência do presente contrato, a informar o AGENTE de quaisquer contactos ou pedidos de informação que lhe sejam dirigidos, direta ou indiretamente, seja por seu intermédio, de familiar ou qualquer outra pessoa ou entidade, quer seja de forma pessoal, por escrito, via telefónica, transmissão eletrónica ou por qualquer outro meio de comunicação com vista à celebração ou renovação de um contrato de trabalho desportivo ou de transferência.” 10 – Estipula ainda o n.º 3 da Cláusula C) do referido Contrato de Representação, que: “No caso de o JOGADOR celebrar ou renovar um contrato de trabalho desportivo sem a intervenção ou conhecimento do AGENTE, para além do estabelecido na cláusula 2ª, do presente contrato, fica ainda obrigado a pagar ao AGENTE o montante correspondente a 10% (dez por cento) do salário bruto anual e dos prémios de assinatura devido ao jogador, a título de cláusula penal pelo incumprimento da cláusula 4.ª, n.º 1 do presente contrato.” 11 - Nos termos do n.º 5 da Cláusula C do Contrato de Representação: “O incumprimento pelo JOGADOR de qualquer das obrigações do presente contrato confere ao AGENTE o direito a receber daquele, a título de cláusula penal, o montante de 500.000,00 € (quinhentos mil euros), com a exceção do estabelecido na cláusula 4.ª, n.º 1, cuja cláusula penal pelo incumprimento de tal obrigação está já convencionada no n.º 3 da referida cláusula 4.ª, a que deverá somar-se o valor de todas as despesas suportadas pelo AGENTE no âmbito da execução do presente contrato.” 12 - O Réu celebrou contrato de trabalho desportivo com a entidade referida em 3 sem a intervenção e o conhecimento da A. 13 – A A remeteu ao R, a carta datada de 19.10.2022 e enviada a 20.10.2022, que o R recebeu, junta como Doc nº12 com a pi, cujo teor se dá por reproduzido. 14 – A A à data de 1.07.2020 e durante o período de vigência do contrato referido em 4 não se encontrava registada na Federação Portuguesa de Futebol como estando licenciada para o exercício da atividade de intermediação. II. 2. 2. De direito. Reclama a autora, ao abrigo de um contrato de representação, celebrado, com exclusividade, entre autora e réu, a condenação deste no pagamento da quantia correspondente a 10% (dez por cento) do salário bruto anual do réu e dos prémios de assinatura estipulados no contrato de trabalho e no contrato de cedência de direitos de imagem, celebrados entre o réu (e sua empresa) e o B...., cuja quantia deverá ser liquidada em sede de execução de sentença, bem como a quantia de € 500.000,00, a título de cláusula penal pelo incumprimento, conforme previsto no n.º 5 da cláusula c) do contrato de representação. Alega a autora que o réu não cumpriu os deveres e as obrigações previstas na cláusula b) e nos n.ºs 1 e 2 da cláusula c) do contrato de representação, tudo, sem prejuízo dos respetivos juros vencidos e dos vincendos, à taxa de juro comercial, até efetivo e integral pagamento. Vejamos Decorre dos autos que o contrato com base no qual assenta a pretensão da autora é um “contrato de intermediação desportiva”. O contrato de intermediação desportiva está, essencialmente, sujeito ao regime jurídico aprovado pela Lei n.º 54/2017 de 14 de julho, que revogou a Lei n.º 28/98 de 26 de junho (cfr. artigo 43.º do primeiro dos citados diplomas legais) e estabeleceu o regime ainda hoje vigente para os empresários desportivos (v.g. artigo 1.º), que são definidos no artigo 2.º al. c) como: «a pessoa singular ou coletiva que, estando devidamente credenciada, exerça a atividade de representação ou intermediação, ocasional ou permanente, na celebração de contratos desportivos». Nos termos do artigo 36.º n.º 1 da Lei n.º 54/2017 de 14 de julho (que aprova o Regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo, do contrato de formação desportiva e do contrato de representação ou intermediação), só podem exercer a atividade de empresário desportivo as pessoas, singulares ou coletivas, devidamente autorizadas pelas entidades desportivas, nacionais e internacionais, competentes. De acordo com o n.º 2 do citado normativo legal “A pessoa que exerça a atividade de empresário desportivo só pode agir em nome e por conta de uma das partes da relação contratual, apenas por esta podendo ser remunerada, nos termos do respetivo contrato de representação ou intermediação.” Em conformidade com a norma do artigo 36.º, dispõe o artigo 37.º/1 do mesmo diploma legal, «(…) os empresários desportivos que pretendam exercer a respetiva atividade devem registar -se como tal junto da federação desportiva, que, para este efeito, deve dispor de um registo organizado e atualizado». Ou seja, impõe-se aos empresários desportivos o ónus de se registarem junto da respetiva federação desportiva, que para o efeito deve dispor de um registo organizado. Ainda nos termos do n.º 3 de tal normativo legal, “São nulos os contratos de representação ou intermediação celebrados com empresários desportivos que não se encontrem inscritos no registo referido no presente artigo.” Na mesma senda, a Federação Portuguesa de Futebol aprovou um Regulamento para o exercício da atividade de intermediário desportivo no quadro da atividade desportiva federada por si organizada (Regulamento de Intermediários da Federação Portuguesa de Futebol), definindo, no seu artigo 4.º, intermediário como: «a pessoa singular ou coletiva que, com capacidade jurídica, contra remuneração ou gratuitamente, representa o jogador ou o clube em negociações, tendo em vista a assinatura de um contrato de trabalho desportivo ou de um contrato de transferência». Sendo que no artigo 6.º sujeita essa atividade à obrigação de registo na F.P.F.. Efetivamente, decorre explicitado desse artigo 6.º que: «1. Só podem exercer a atividade de Intermediário as pessoas singulares ou coletivas registadas na F.P.F.. 2. O Intermediário deve requerer previamente o seu registo sempre que participe numa transação. 3. Sem prejuízo do disposto no número anterior, o registo de Intermediário pode ser requerido para uma época desportiva, sendo emitido o respetivo documento comprovativo.» Nessa sequência, o artigo 7.º do mesmo Regulamento da F.P.F. estabelece os requisitos do registo de um intermediário financeiro, o que obriga à apresentação da documentação aí mencionada, de que se sobreleva: a identificação civil e fiscal; o registo criminal atualizado; a apólice de seguro de responsabilidade civil adequado ao exercício da atividade, cobrindo responsabilidade por danos até ao montante de € 50.000,00; a declaração de inexistência de situação de insolvência; e a certidão comprovativa de ter a situação contributiva regularizada. O n.º 5 do mesmo preceito refere ainda que: «5. Pelo registo ou renovação de registo como Intermediário é devida uma taxa de 1.000 (mil) euros». Refira-se, ainda, que o artigo 38.º/2 da Lei n.º 54/2017 de 14 de julho obriga a que o contrato de representação ou intermediação fique sujeito à forma escrita, nele devendo ser estabelecidos de forma clara o tipo de serviços a prestar pelo empresário desportivo, bem como a remuneração que lhe seja devida e as condições de pagamento. O n.º 4 do mesmo preceito obriga também a que o contrato tenha uma duração determinada e limita essa duração ao máximo de 2 anos. Daqui decorre que a Federação Portuguesa de Futebol é o organismo competente para o licenciamento dessa atividade de intermediário desportivo e para certificar a existência do correspondente registo. Trata-se, portanto, este de um contrato de prestação de serviços relativo ao exercício duma atividade económica muito particular, sujeita a um regime jurídico especial, mas ao qual se podem ainda aplicar as disposições legais estabelecidas no Código Civil para o contrato de mandato, em tudo o que não esteve especificamente regulado no diploma legal e Regulamento da F.P.F. que já fomos mencionando, tendo em atenção os artigos 1154.º, 1156.º e 1157.º e ss do CCivil. No caso dos autos importa ter em consideração que o mesmo foi celebrado por escrito, assinado por ambas as partes, mostrando-se datado de 1 de julho de 2020 (cfr. doc. 2 junto com a pi). Ora, decorre dos autos que a autora à data de 1.07.2020 e durante o período de vigência do contrato em causa nos autos, não se encontrava registada na Federação Portuguesa de Futebol como estando licenciada para o exercício da atividade de intermediação. Conforme vimos, o registo não é só condição de validade do contrato de intermediação desportiva (cfr. artigo 37.º/3 da Lei n.º 54/2017 de 14/7), é igualmente, e fundamentalmente, condição necessária para o exercício regular dessa atividade (cfr. artigo 36.º/1 do mesmo diploma legal). Ou seja, não se encontrando a autora, à data da celebração do contrato, bem como durante a sua vigência, licenciada para o exercício da atividade de intermediária desportiva, existe uma impossibilidade objetiva de cumprimento do contrato pela sua parte, conforme decorre do disposto no artigo 36.º/1 da Lei n.º 54/2017, de 14.07. Sem o licenciamento administrativo pela autoridade competente para o efeito, não é permitido ao intermediário desportivo, exercer essa atividade económica. É isso que decorre explicitamente do disposto no citado artigo. Assim, a partir do momento em que a autora não está registada como licenciada para o exercício da atividade de intermediário desportivo, não pode exercer essas funções por imperativo legal. Logo, objetivamente, está em incumprimento do contrato de intermediação desportiva que celebrou com o réu, por não ser possível a sua prestação, por causa a si exclusivamente imputável (artigo 801.º/1 CCivil). Mais, não só a autora não pode prestar os serviços incluídos nas funções de intermediário desportivo, como não pode exigir da contraparte que esta cumpra a obrigação de exclusividade, na estrita medida em que a subsistência desta depende necessariamente da possibilidade da autora poder cumprir regularmente a sua prestação. Ou seja, o réu não pode estar obrigado pelo regime de exclusividade relativamente a uma pessoa (singular ou coletiva) que objetivamente não pode garantir o cumprimento dos serviços que lhe foram solicitados. O problema não é, assim, de invalidade do contrato de intermediação desportiva. O problema é de impossibilidade objetiva de cumprimento desse contrato por parte da autora, no que se refere à realização regular da sua prestação (artigo 36.º/1 da Lei n.º 54/2017 de 14/7); de inexigibilidade, nessas condições, do cumprimento da correspetiva obrigação de exclusividade por parte do réu; e, consequentemente, de impossibilidade da autora poder exigir do réu o pagamento de uma indemnização a que só poderia ter direito caso fosse um intermediário desportivo registado, no âmbito de contrato em regime de exclusividade efetiva. Incumbia à autora o ónus de se registar junto da Federação Portuguesa de Futebol como intermediária e manter o licenciamento da sua atividade de intermediária desportivo durante toda a vigência do contrato de intermediação que celebrou com o réu. Não o tendo feito, só a si é imputável a impossibilidade objetiva de cumprimento do contrato. Nestas condições, não só está a autora impedida de cumprir as suas obrigações como “intermediário desportivo” (artigo 36.º/1 da Lei n.º 54/2017), como não pode, na mesma medida, reclamar o pagamento de remuneração/indemnização apenas exigível por quem tivesse a qualidade legal de “intermediário desportivo”. Alega ainda a autora que o R incorre, porém, em abuso de direito, o que deverá ser conhecido pelo tribunal e bem assim, sendo nulo o contrato de representação celebrado entre as partes, deverá ser restituído tudo o que tiver sido prestado, nomeadamente a quantia que recebeu para assinar o contrato no montante de € 65.333,33, acrescido do montante de 5% do rendimento bruto do jogador correspondente ao período de duração do contrato de trabalho celebrado com a C... SAD e do contrato de trabalho celebrado com o B.... Ora, conforme vimos, face à inexistência jurídica, o negócio jurídico celebrado não produz qualquer efeito jurídico, como é próprio do seu regime. Assim, sendo juridicamente inexistente o contrato de prestação de serviço, com poderes de mandato, não pode advir da sua celebração quaisquer direitos e obrigações, sendo irrelevante, por isso, o incumprimento imputado. Em face da inexistência jurídica do contrato celebrado, distinta da nulidade, não há que apreciar do alegado abuso do direito, com referência a um contrato nulo. Com efeito, o regime da inexistência jurídica é incompatível com a verificação do abuso do direito, tal como este é definido pelo artigo 334.º CCivil. Efetivamente, não podendo, por efeito da inexistência jurídica, o negócio jurídico celebrado produzir qualquer efeito jurídico, obviamente que também não pode, através do instituto do abuso do direito, produzir os efeitos jurídicos que, de outro modo, nunca poderia produzir. Ou seja, por efeito da inexistência jurídica do contrato celebrado, a autora não pode exigir o pagamento de qualquer valor previsto nesse contrato ou dele decorrente – nesse sentido se decidiu no Acórdão do STJ de 28.09.2017 (10 145/14.4T8LSB.L1.S1) e 30.06,2021, ambos disponíveis in www.dgsi.pt. Afigura-se-nos que alude ainda a autora, ao instituto do enriquecimento sem causa, quando requer a condenação do réu no pagamento da quantia de € 65.333,33, que recebeu por assinar o contrato de representação – quantia relativamente à qual nenhuma referência é feita em sede de petição inicial. Refira-se que, por efeito do princípio do dispositivo, o enriquecimento sem causa, nomeadamente quanto aos seus requisitos, carece de ser alegado na ação. Ora, ainda que assim fosse, o que não é claro da alegação da autora, tal pedido subsidiário, por processualmente inadmissível, não foi admitido, por decorrente de alteração da causa de pedir em sede de resposta, sendo por tal irrelevante para a decisão, uma vez que não pode ser considerado. Com efeito, os pedidos deduzidos e admitidos processualmente têm apenas por base o alegado incumprimento de um contrato o qual, por efeito de inexistência jurídica, não produz qualquer efeito jurídico. Assim, em conclusão, os factos alegados, ainda que integralmente provados, não suportam, salvo melhor opinião, a solução jurídica preconizada pela autora e refletida no pedido por si deduzido, não admitindo, por outro lado, qualquer solução jurídica alternativa que possa ser adotada sem violação do princípio da estabilidade da instância ou dos direitos de defesa do réu, pelo que se impõe reconhecer a manifesta improcedência da ação proposta”. II. 3. A isto que contrapõe a autora? Alegando que a decisão recorrida aplicou a Lei 28/98 de 26.6, que foi revogada pela Lei 54/2017 de 14.7 – que se aplicará ao caso concreto - mostra a autora discordar do entendimento sufragado na decisão recorrida ao considerar juridicamente inexistente o contrato de representação que celebrou com o réu a 1.7.2020 – quando não se encontrava registada como empresário desportivo. E, assim, invoca o disposto no artigo 37.º/3 deste último diploma - “que dispõe que "são nulos os contratos de representação ou intermediação celebrados com empresários desportivos que não se encontrem inscritos no registo referido no presente artigo" – para defender que o réu age em claro e flagrante abuso de direito ao ter exigido a quantia de € 65.333,33, para assinar o dito contrato de representação e, vir, agora, alegar a sua nulidade, para se eximir às obrigações pelo incumprimento do mesmo. E, assim, mostra discordar do facto de se ter julgado a acção nesta fase, já que deveria ter sido designada data para julgamento, de forma a ser discutida e apreciada a questão do abuso de direito – uma vez que a nulidade é compatível com o instituto do abuso de direito. Para finalmente, defender que, mesmo que se considere que não existe a figura do abuso de direito, deveria ter sido considerado que o contrato de representação era nulo e condenado o réu a devolver-lhe a quantia que recebeu por assinar o contrato de representação, ao abrigo do artigo 289.º/1 CCivil. Decidindo como se decidiu, mostra-se violado o disposto nos artigos 37.º/3 da Lei 54/2017, de 14 de Julho e 286.º e 289.º/1 CCivil. A discordância da autora centra-se no facto de se ter decidido que a falta de registo do intermediário tem como consequência jurídica a inexistência do contrato e não a nulidade do contrato, o que impede o tribunal de apreciar o alegado abuso de direito. II. 4. Enquadramento do recurso. Daqui resulta que a questão submetida à apreciação deste Tribunal se reporta a saber se, por aplicação do disposto no artigo 37.º/3 da Lei 54/2017, que comina o contrato com o vício da nulidade, pela falta de registo da autora como empresária desportiva, actua o réu com abuso de direito, por vir, ele próprio, invocar aquela causa de invalidade. E, deixando cair os pedidos que formulou na petição inicial e que foram julgados improcedentes, aqui e agora, pretende extrair como consequência, a condenação do réu a devolver o valor que recebeu pela celebração do contrato. Isto porque entende que o réu age em claro e flagrante abuso de direito ao ter exigido a quantia de € 65.333,33 para assinar o contrato de representação e vem agora alegar a nulidade do contrato de representação, para se eximir às obrigações pelo incumprimento do mesmo. É certo, como refere a autora, que ao contrário da figura da inexistência – invocada na decisão recorrida, para justificar o não conhecimento da questão do abuso de direito - o instituto do abuso de direito já não é incompatível com a nulidade. Donde, imporá aqui e agora avaliar se perante a invocada e decretada - apesar de como é sabido ser de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 286.º CCivil - nulidade do contrato, cominada no referido artigo 37.º/3 da Lei 54/2017, será caso de integrar a sua conduta processual na figura do abuso de direito. Que, em caso afirmativo, terá como consequência fazer paralisar a pretensão do réu. Pretensão do réu, consubstanciada e traduzida, na invocação da nulidade. O que nada tem que ver com o pedido subsidiário, entretanto deduzido pela autora – para a eventualidade de vir a proceder a defesa do réu, estruturada na nulidade do contrato – atinente com o pagamento da quantia de € 65.333,33, que recebeu pela assinatura do contrato de representação, acrescido do montante de 5% do rendimento bruto do jogador correspondente ao período de duração do contrato de trabalho celebrado com a C... SAD e do contrato de trabalho celebrado com o B..., que foi indeferido, por decisão, não impugnada e, que por isso, transitou em julgado. Assim, importa enfrentar a questão de saber se o réu ao invocar a nulidade do contrato agiu com abuso de direito. É claro que, não obstante, a autora, esgota a questão, pretendendo, por um lado, ver a actuação do réu como integradora da figura do abuso de direito – para o que defende que o processo deveria continuar para a fase do julgamento, para conhecer tal matéria – com a invocação como normas violadas, da que prevê, por um lado, a falta de registo como causa de invalidade e, por outro, das que prevêem o regime legal de tal instituto. E, por outro, alega que, mesmo que se considere que não existe a figura do abuso de direito, a decisão recorrida deveria ter considerado que o contrato de representação era nulo e condenado o réu a devolver à autora a quantia que recebeu por assinar o contrato de representação, por força do disposto no n.º 1 do artigo 289.º CCivil. É evidente que a questão a decidir na decisão recorrida se reportava a saber se ao réu podiam ser exigidos os valores pedidos pela autora, decorrentes do alegado incumprimento do contrato de representação. II. 5. Vejamos. O contrato é, incontornavelmente, nulo. Com efeito. Estamos perante um contrato de prestação de serviços relativo ao exercício duma actividade económica muito particular, sujeita a um regime jurídico especial, mas ao qual se podem ainda aplicar as disposições legais estabelecidas no Código Civil para o contrato de mandato, em tudo o que não esteja especificamente regulado no diploma legal e Regulamento da FPF, tendo em atenção os artigos 1154.º, 1156.º e 1157.º e ss. CCivil. Assim a Lei 54/2017 - a propósito do contrato de intermediação e da questão atinente às consequências da falta de registo do intermediário desportivo – alterou a anterior previsão, constante do artigo 23.º/4 da Lei 28/98, que cominava com a inexistência os contratos de mandato desportivos sem registo, passando a prever que, a celebração de contratos de representação ou intermediação, com empresários desportivos que não se encontrem inscritos no registo, importa a sua nulidade. Com efeito. Sobre o exercício da actividade de empresário desportivo, o artigo 36.º da Lei 54/2017 dispõe que, “1 - Só podem exercer atividade de empresário desportivo as pessoas singulares ou coletivas devidamente autorizadas pelas entidades desportivas, nacionais ou internacionais, competentes. 2 - A pessoa que exerça a atividade de empresário desportivo só pode agir em nome e por conta de uma das partes da relação contratual, apenas por esta podendo ser remunerada, nos termos do respetivo contrato de representação ou intermediação. 3 - É vedada ao empresário desportivo a representação de praticantes desportivos menores de idade”. E o artigo 37.º, reportado ao registo dos empresários desportivos, que: “1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, os empresários desportivos que pretendam exercer a respetiva atividade devem registar-se como tal junto da federação desportiva, que, para este efeito, deve dispor de um registo organizado e atualizado. 2 - O registo a que se refere o número anterior é constituído por um modelo de identificação do empresário, cujas características serão definidas por regulamento federativo. 3 - São nulos os contratos de representação ou intermediação celebrados com empresários desportivos que não se encontrem inscritos no registo referido no presente artigo”. E, ainda, o artigo 38.º, sobre o denominado “contrato de representação ou intermediação”, que, “1 - O contrato de representação ou intermediação é um contrato de prestação de serviço celebrado entre um empresário desportivo e um praticante desportivo ou uma entidade empregadora desportiva. 2 - O contrato está sujeito a forma escrita, nele devendo ser definido com clareza o tipo de serviços a prestar pelo empresário desportivo, bem como a remuneração que lhe será devida e as respetivas condições de pagamento. 3 - No caso de contrato de representação ou intermediação celebrado entre um empresário desportivo e um praticante desportivo, a remuneração paga pelo praticante não pode exceder 10 % do montante líquido da sua retribuição e o dever de pagamento apenas se mantém enquanto o contrato de representação ou intermediação estiver em vigor. 4 - O contrato tem sempre uma duração determinada, não podendo, em qualquer caso, exceder dois anos de duração. 5 - O contrato caduca aquando da verificação do termo resolutivo estipulado, podendo ser renovado por mútuo acordo das partes, mas não sendo admissíveis cláusulas de renovação automática do mesmo. 6 - O incumprimento culposo dos deveres decorrentes do contrato atribui ao contraente lesado o direito de o resolver com justa causa e com efeitos imediatos. 7 - A parte que promover indevidamente a rutura do contrato deve indemnizar a outra do prejuízo que esta sofrer. 8 - As partes podem fixar, por acordo, o montante da indemnização a que se refere o número anterior. 9 - Quando o dever de indemnizar recaia sobre o praticante desportivo, o respetivo montante não pode exceder o que resultar da aplicação do n.º 3 ao período remanescente do contrato.”. Assim, de acordo com o prescrito no n.º 3 do artigo 37.º da Lei n.º 54/2017, de 14 de julho, os contratos de representação ou intermediação celebrados com empresários desportivos que não se encontrem inscritos no registo existente para tal atividade junto da federação desportiva respetiva (no caso do futebol, a Federação Portuguesa de Futebol) são nulos”. Deste regime resulta o seguinte: - os contratos de representação ou intermediação celebrados com empresários desportivos que não se encontrem inscritos no registo existente para tal actividade junto da federação desportiva respectiva, no caso do futebol, a FPF, são nulos; - o registo como intermediário desportivo junto da entidade federativa competente é condição necessária para o exercício regular dessa actividade económica, que deve existir, ou ter lugar, previamente à contratação a que tal intermediação se refira. E, assim, vem-se entendendo, cfr. neste sentido acórdão da RL de 8.6.2021, 18.11.2021, de 30.11.2022 e de 12.10.2023, consultados nesta data no site da dgsi, estarmos perante a nulidade do contrato de intermediação desportiva por falta de registo do intermediário desportivo junto da FPF, que pode ser invocada a qualquer momento por qualquer interessado e pode declarada oficiosamente pelo tribunal nos termos do artigo 286.º CCivil. Será de referir, contudo, que, no debate sobre quais as consequências da celebração de um contrato de intermediação celebrado por intermediário não registado, já no âmbito da Lei 28/98, a jurisprudência inclinou-se, mesmo no âmbito desse regime legal, para a consideração de que, o vício daí resultante – aí expressamente previsto como de “inexistência”- deveria estar sujeito, em termos de regime e de consequências, pelo menos, as próprias de um contrato nulo, cfr. neste sentido, entre outros, os acórdãos, do STJ de Justiça de 15.11.2011 e da RL de 6.12.2017 e de 23.3.2021. Nulidade que foi invocada pelo réu. E, a decisão recorrida apesar de aplicar, inquestionavelmente, a norma legal que prevê tal vício, afinal, veio a tratar como se o vício fosse de inexistência. E, assim, sendo hoje líquido e expressamente previsto na lei vigente que, o contrato de intermediação celebrado por agente ou intermediário não autorizado/não registado na respectiva federação terá como consequência a nulidade do contrato que seja celebrado nesses termos, cfr. artigo 294.º CCivil, cumpre extrair as pertinentes consequências. Está, em causa no recurso e, por consequência, decidir, desde logo, se a actuação do réu, ao invocar a nulidade do contrato, configura abuso de direito na modalidade de “venire contra factum proprium”. Isto, porque, sendo a resposta afirmativa tal acarretará a paralisação do direito do réu, de ver decretada a nulidade do contrato. Será, pois, esta a ordem do conhecimento das questões suscitadas. II. 6. Apreciando. II. 6. 1. O abuso de direito. Dispõe o artigo 334.º CCivil que, “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. Pode-se dizer, em síntese, que existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apoditicamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou fim social ou económico desse direito. Agir de boa fé é agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, e ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correcção e probidade, a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte, e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar. Já a noção de bons costumes pode ser entendida como um conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente, contrários a laivos ou conotações de imoralidade ou indecoro social. Não está aqui em causa nem o fim social nem económico do direito, do réu, no caso concreto. Segundo Menezes Cordeiro in “Do abuso de direito: estado das questões e perspectivas, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Castanheira Neves”, II, Coimbra Editora, Stvdia Ivridica, Dez 2008, 169 e 170, a base ontológica do abuso de direito é a disfuncionalidade intra-subjectiva, ou seja, o exercício do direito que contraria o sistema: o abuso de direito reside na disfuncionalidade de comportamentos jurídico-subjectivos por, embora consentâneos com normas jurídicas permissivas concretamente em causa, não confluírem no sistema em que estas se integram. Entre os comportamentos abusivos, Menezes Cordeiro in “Da Boa Fé no Direito Civil”, 1984, 742 e ss. aponta o “venire contra factum proprium”, que traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. A boa fé, no dizer de Jorge Coutinho de Abreu in “Do Abuso de Direito”, 55 significa que, no exercício dos seus direitos e deveres, nomeadamente em cumprimento dos seus compromissos contratuais, as pessoas devem assumir um comportamento honesto, correto e leal, tudo por forma a não defraudar a legítima confiança ou as expectativas de outrem. Trata-se de uma aplicação do princípio da confiança, que, na expressão de Baptista Machado, in o estudo Tutela da confiança e “venire contra factum proprium”, in “Obra Dispersa”, I, 345 e ss. é um princípio ético-jurídico fundamental. “Poder confiar é uma condição básica de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens; e assegurar expectativas é uma das funções primárias do direito», pelo que, «nos casos em que é aplicável a proibição do venire, “a «responsabilidade pela confiança” funciona em regra em termos preventivos, paralisando o exercício de um direito ou tornando ineficaz aquela conduta declarativa que, se não fosse contraditória com a conduta anterior do mesmo agente, produziria determinados efeitos jurídicos”. Para este autor, o ponto de partida do venire contra factum proprium é “uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também, no futuro, se comportará, coerentemente, de determinada maneira”, ob e loc. citados, 415 e ss. Também Menezes Cordeiro, loc e op cit,, 752 e ss. situa a justificação do venire contra factum proprium no princípio da confiança como concretização da fórmula vaga da boa fé, referindo que “a confiança permite um critério de decisão: um comportamento não pode ser contraditado quando ele seja de molde a suscitar a confiança das pessoas. O investimento da confiança, por fim, pode ser explicitado com a necessidade de, em consequência ao factum proprium a que aderiu, o confiante ter desenvolvido uma actividade tal que o regresso à situação anterior, não estando vedado de modo específico, seja impossível em termos de justiça”. E, ainda segundo o mesmo autor, no parecer publicado na revista “O Direito”, ano 126.º, 701, os pressupostos da protecção da confiança através do venire contra factum proprium passam por: “1. uma situação de confiança, traduzida na boa fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium); 2. uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis; 3. um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma conduta na base ao factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara; 4. uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível”. Certo que a doutrina e a jurisprudência apesar de admitirem a paralisação dos efeitos da declaração da nulidade do negócio jurídico decorrente da preterição das normas imperativas que, à data da respectiva celebração, regiam a forma do ato, através da invocação do venire contra factum proprium, certo é defenderem o recurso a esta solução de “inalegalibilidade pela parte de um vício formal” apenas em casos excepcionais ou de limite, a ponderar casuisticamente, atentas as razões de interesse público de certeza e segurança do comércio jurídico que estão subjacentes às disposições legais respeitantes à forma. Como fazem notar os Acórdãos do STJ, de 8.6.2010 e de 17.03.2016, ambos consultados no site da dgsi, não se pode generalizar nem banalizar o recurso à figura do abuso de direito de modo a fazer precludir a aplicação sistemática da norma imperativa que regula a forma legalmente exigida para o ato, dependendo a subsistência do invocado abuso de direito da alegação e prova de ter ocorrido um particular e fundado “investimento de confiança” na estabilidade e definitividade do contrato. Reportando-se aos casos excepcionais susceptíveis de justificar a cedência da nulidade perante a proibição do venire contra factum proprium, Baptista Machado in RLJ, 118.º, 10/11, propõe o concurso dos seguintes pressupostos: “a) ter a parte confiado em que adquiriu pelo negócio uma posição jurídica; b) ter essa parte, com base em tal crença, orientado a sua vida por forma a tomar posições que ora são irreversíveis, pelo que a nulidade provocaria danos vultuosos, agora irremovíveis através de outros meios jurídicos; c) poder a situação criada ser imputada à contraparte, por esta ter culposamente contribuído para a inobservância da forma exigida, ou então ter o contrato sido executado e ter-se a situação prolongado por largo período de tempo, sem que hajam surgido quaisquer dificuldades”. Em consonância com esta orientação, como naquele último acórdão se dá devida nota, a jurisprudência tem admitido a paralisação da invocabilidade da nulidade por vício de forma, designadamente: “ - quando é claramente imputável à parte que quer prevalecer-se da nulidade a culpa pelo desrespeito das regras legais que impunham a celebração do negócio por determinada forma qualificada, obstando a que possa vir invocar-se um vício que a própria parte causou com o seu comportamento no momento da celebração do negócio, agindo de modo preterintencional ou, pelo menos, com culpa grave”, cfr. acórdão do STJ de 28.11.2002 - onde se decidiu que atua com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o locador que, convencendo o arrendatário de que mais tarde fariam a escritura correspondente, celebra contrato de arrendamento para comércio em simples documento particular e, depois de adiar a celebração dessa escritura, vem interpor acção em que pede a declaração da nulidade do contrato, invocando, precisamente, a falta de escritura notarial; - quando a conduta das partes, sedimentada ao longo de período temporal alargado, se traduziu num escrupuloso cumprimento do contrato, sem quaisquer pontos ou focos de litigiosidade relevante, assumindo estas inteiramente os direitos e obrigações dele emergentes – e criando, com tal estabilidade e permanência da relação contratual, assumida prolongadamente ao longo do tempo, a fundada e legítima confiança na contraparte em que se não invocaria o vício formal, verificado aquando da celebração do acto”, cfr. acórdão do STJ de 30.10.2003.. Baixando ao caso concreto, depois destes breves, mas cremos que esclarecedores apontamentos, não haverá grandes dúvidas de que a actuação processual do réu não será susceptível de poder ser considerada como abusiva. Não pode ser considerada como intoleravelmente atentatória do princípio da confiança. Desde logo, inexiste uma situação de imputação da confiança, uma vez a causa da nulidade é apenas imputável à autora. Não se sabe, sequer, se aquando da celebração do contrato o réu tinha conhecimento dela. E, se mesmo assim o celebrou cm a intenção de o não cumprir e vir, então, alegar a apontada nulidade. Não se vislumbra, pois, como podem a autora pretender que a conduta do réu tenha criado nela a confiança de que iria cumprir o contrato e, não o fazer e invocar a sua nulidade. Curiosamente num dos acórdãos invocados pela autora, a propósito da consequência da falta de registo do intermediário desportivo, acórdão da RL de 8.6.2021, consultado nesta data no site da dgsi, confirma-se o entendimento que vimos de manifestar, ao considerar-se, a propósito da questão do abuso de direito que, “(…) 3 - Constando do contrato de intermediação desportiva que ambas as partes estão cientes que a parte outorgante como intermediário ainda estava «a organizar o seu processo de registo, na qualidade de intermediário, junto da Federação Portuguesa de Futebol» e assumindo a contraparte que não se opunha à celebração do contrato, renunciando ao direito de invocar esse vício para não cumprir a obrigação de pagamento a que ficaria vinculada, sendo que se verificou que se veio a concluir o respectivo processo de licenciamento e registo junto da F.P.F., sanou-se o vício inicialmente verificado. 4 - O princípio da boa-fé e a tutela da confiança impediriam que a contraparte, nestas condições, pudesse invocar a nulidade formal do contrato, sob pena de abuso de direito (Art. 334.º do C.C.). (…)”. Não existe, pois, abuso de direito, por parte do réu, ao invocar a nulidade do contrato. II. 6. 2. A consequência da aplicação do regime da nulidade, previsto na conjugação das normas contidas nos artigos 37.º/3 da Lei 54/2017 e 289.º/1 CCivil. É certo, como vimos já, que a autora formulou um pedido subsidiário – traduzido na condenação do réu no pagamento da quantia de € 65.333,33, que recebeu pela assinatura do contrato de representação, acrescido do montante de 5% do rendimento bruto do jogador correspondente ao período de duração do contrato de trabalho celebrado com a C... SAD e do contrato de trabalho celebrado com o B... - na sequência da invocação da nulidade do contrato de representação, pedido que não foi admitido, por decisão não impugnada e transitada em julgado. E, agora no recurso pede, que na sequência da verificação e afirmação do vício da nulidade, previsto no artigo 37.º/3 da Lei 54/2017, seja o réu condenado a restituir aquele primeiro valor, que recebeu, pela celebração do contrato nulo. Não se revela aqui, ao contrário do que diz o réu, qualquer falta de interesse em agir, por parte da autora. Se, como reconhece o réu, a apreciação do interesse em agir tem de ser feita à luz da utilidade que a autora prossegue com a sua acção e da aptidão da mesma a proporcionar-lha, então, já vimos na apreciação do abuso de direito - subsequente ao reconhecimento da nulidade do contrato - a sua utilidade. Foi conhecido, apesar de se entender que não se verifica. Tivesse-se entendido que se verificava, tal facto paralisaria a defesa do réu e, então teria que se conhecer do mérito da pretensão formulada pela autora na petição inicial. Da mesma forma, como se verá perante a prevista e constatada nulidade do contrato, sempre a autora verá este Tribunal apreciar da violação do estatuído no artigo 289.º/1 CCivil. Donde, manifestamente que a autora tem interesse em agir no presente recurso. Naturalmente que não, agora, em sede de procedência dos pedidos formulados na petição inicial – nem a autora o pretende, de resto. Tão pouco, se verifica a formação de caso julgado sobre o fundo da questão. Esta agora não se traduz no conhecimento da indeferida ampliação do pedido, mas sim, no facto de sendo o contrato nulo, o Tribunal não poder deixar de aplicar o regime estatuído no artigo 289.º/1 CCivil. E, como vimos já, tal constitui matéria do conhecimento oficioso. Está, desde logo, fora de causa o pedido formulado na petição inicial, com base no incumprimento contratual por parte do réu – condenação no pagamento de € 500.000,00, a título de cláusula penal, acrescida do valor correspondente a 10% do salário bruto do anual e prémios a auferir pelo réu ao serviço do “B....”. Mas tal não implica, como defende o réu, que não exista qualquer outra questão passível de apreciação e decisão judicial - para além daquela matéria de facto que constitui a causa de pedir e integra o pedido formulado na petição inicial. Se é verdade que a questão do abuso de direito e da condenação no pagamento do valor que recebeu pela celebração do contrato constituem questões novas, esta afirmação merece uma apreciação mais fina. São novas no sentido de que não foram alegadas nos articulados e não foram tratadas nem abordadas na decisão recorrida. Mas constituem, ambas, matéria do conhecimento oficioso e que não carecem, por isso, de ser invocadas pelas partes. Apesar de virem invocadas em sede recurso, sempre, sobre elas, este Tribunal se teria que pronunciar. Naturalmente, haveria pronúncia, se se viesse a entender que a actuação do réu poderia ser qualificada como de abuso de direito. Ou se se entendesse que o Tribunal não extraiu as correctas e devidas consequência imediatas e mediatas da constatada falta de registo da autora. E, com maior propriedade o faz, agora, que afinal ambas as questões são suscitadas no recurso. Como o deveria ter feito a decisão recorrida, não fosse o caso de ter entendido que o conhecimento de ambas ficou prejudicado pela solução dada a outras questões. Não abordou nem o abuso de direito nem a questão da restituição do valor recebido pelo réu, pela celebração do contrato, porque, afinal, se entendeu que o contrato era inexistente, o que não permitia apreciar nem uma nem outra das questões. Tivesse-se entendido que o contrato era nulo e então, não poderia a decisão recorrida ter deixado de sobre elas se pronunciar. Como nós, aqui e agora, vemos fazendo. Se, sem dúvida o objecto do processo está delimitado pela forma como foi delineada a petição inicial, a sobrevinda questão da nulidade do contrato, cujo incumprimento está na base dos pedidos da petição, introduz aqui uma nuance digna de relevo. Ao contrário do que defende o réu não será caso de não poder este Tribunal conhecer – como já conheceu – do abuso de direito, nem agora, da questão (não do pedido de condenação no pagamento de € 65.333,33) mas sim da consequência da nulidade do contrato - da restituição daquele valor, recebido pelo réu, pela celebração do contrato, declarado nulo e cujo incumprimento constituía a causa de pedir dos pedidos formulados na petição inicial. E esta questão não foi já objecto de rejeição. Tão pouco se pode considerar, dada apontada oficiosidade, como não integrando o objecto do processo. Carece, assim, de fundamento, a asserção formulada pelo réu de que mesmo que por absurdo, a pretensão da autora no recurso viesse a ser atendida, este Tribunal estaria impedido de analisar a questão do alegado abuso de direito, assim como de conhecer da questão da restituição - para utilizar o termo legal - do referido valor de € 65.333,33. E, então decretada nulidade do contrato, como prevê o artigo 37.º/3 da Lei 54/2017, vejamos qual o seu regime e respectivas consequências. A nulidade opera “ipso jure”, podendo ser declarada oficiosamente pelo tribunal, para além de poder ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado, nos termos do artigo 286.º CCivil. A regra geral sobre os efeitos da declaração de nulidade está consagrada no artigo 289.º/1 CCivil, segundo o qual, a mesma, tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente. A traduzir que a declaração de nulidade do contrato arrasta consigo a destruição retroactiva das atribuições patrimoniais, como se o negócio não tivesse sido realizado. Mesmo para a situação em que o Tribunal conheça oficiosamente da nulidade, fixou o STJ jurisprudência através do, então, assento 4/95 no sentido de que, “quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no n.º 1 do artigo 289.º CCivil”. E, assim, importa, no caso extrair da declaração de nulidade – aqui decretada depois de invocada pelo réu - todas as devidas consequências, fazendo operar os efeitos da prevista retroactividade. Como entende Mafalda Miranda Barbosa in Comentário ao Acórdão do STJ de 28.9.2017, Contrato de prestação de serviço de empresário desportivo e inscrição na federação desportiva, online, disponível em: http://bdjur.almedina.net/fartigo.php?id=113, publicado, também, no Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, v. 95 n.º 1 (2019), 213 e ss: “A declaração de nulidade do negócio tem efeito retroactivo, nos termos do artigo 289º/1 CC. As partes devem, de acordo com o dispositivo legal, restituir tudo o que tiver sido prestado, ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente. Nos contratos de prestação de serviços, de que o mandato é uma modalidade, é evidente que não é possível a restituição em espécie. Haverá, portanto, que entregar o valor correspondente. Ora, este valor é, conforme ensina Menezes Cordeiro, o valor da contraprestação acordada. O autor preocupa-se, sobretudo, com os contratos de execução continuada, onde integra o mandato. Atentemos na lição do autor a este propósito: “sendo um arrendamento declarado nulo, deve o senhorio restituir as rendas recebidas e o inquilino o valor relativo ao gozo de que desfrutou e que equivale, precisamente, às rendas. Ambas as prestações restitutórias se extinguem, então, por compensação, tudo funcionando, afinal, como se não houvesse eficácia retroactiva nestes casos. (…) Isto porque se estabelece, de facto, ao nível das prestações restituitórias, um verdadeiro sinalagma, que integra o que na doutrina alemã vem conhecida por relação de liquidação e que, entre nós, Mota Pinto designou por relação de repristinação. Assim, é inequívoco que a retroactividade da nulidade que se acabou de afirmar obriga a decretar a restauração in pristinum o que não encontra causa justificativa (já que o negócio não produz efeitos) para ser alterado. De outro modo, abrir-se-iam as portas a um enriquecimento injustificado por parte de um dos sujeitos da relação (…)”. No caso dos autos, o réu não efectuou o pagamento de qualquer valor, atente-se que a causa de pedir da acção era precisamente o facto de o contrato não ter sido cumprido por parte do réu. E é claro que, sendo o negócio nulo, não o teria que fazer. Mas terá de restituir ao empresário o que este haja prestado a título de cumprimento, correspondendo esse valor ao montante convencionado. Sob pena de enriquecimento injustificado, o réu, por via da decretada nulidade, fica obrigado à restituição do valor que recebeu pela celebração do contrato nulo. Se, por um lado, beneficia da nulidade, para se escusar ao cumprimento das obrigações daí advenientes e ao pagamento da cláusula penal pelo seu incumprimento, não pode deixar de, por via da nulidade, ter que restituir o que recebeu pela celebração do contrato nulo. Restituição não fundada no cumprimento do contrato, mas sim, como consequência decorrente da declaração de nulidade do contrato. Este será o resultado final da declaração de nulidade do contrato, a traduzir o necessário e pressuposto equilíbrio patrimonial, que deve ser restabelecido, apagando qualquer alteração que deixe de ter causa justificativa. Prestação, ainda assim, pecuniária, que, naturalmente nada tem a ver e, que não se confunde, com o cumprimento de qualquer dever de prestação principal, que deixa de existir, por via da nulidade. Sendo que a autora não prestou qualquer serviço ao réu – que a ter existido, o réu, não podendo restituir em espécie, teria que restituir em termos do valor correspondente. E, naturalmente, a existir prestação por parte do empresário, também ela teria que ser restituída. No caso a autora nada recebeu do réu e, por isso nada terá que restituir. Por, outro lado e, por via do efeito retroactivo e através da remissão feita pelo n.º 3 do artigo 289.º CCivil para os artigos 1269.º e ss. CCivil, conclui-se que a obrigação de restituir fundada na nulidade abrange não só o que tiver sido prestado, mas também, os juros legais contados desde a interpelação para cumprir – citação ou interpelação extrajudicial, se a tiver havido - nos termos dos artigos 212.º, 1260.º e 1271.º CCivil, dado que os juros são frutos civis. Como vimos a declaração de nulidade surge depois de aquela invalidade ter sido invocada pelo réu, na contestação, sem que a autora haja feito interpelar, pessoalmente, o réu, para cumprir, no caso para restituir o valor que pagou aquando da celebração do contrato. Encontra-se, então, o réu, igualmente, obrigado a pagar juros de mora, em cada momento vigentes para obrigações comerciais, vencidos desde o trânsito em julgado desta decisão, até efectivo e integral pagamento. Está, pois, o recurso, na sua totalidade, votado ao sucesso. II. 7. Das custas. O critério de distribuição da responsabilidade pelas custas assenta no princípio da causalidade e, apenas subsidiariamente, no da vantagem ou proveito processual, cfr. artigo 527.º/1 e 2 CPCivil. Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. Vencido é quem não obtenha, no recurso, satisfação total ou parcial dos seus interesses, a aferir em função da repercussão da solução jurídica dada à sua pretensão. Em conformidade com o exposto, a responsabilidade tributária inerente incidirá, no caso, sobre o apelado que, para efeitos tributários, decaiu integralmente na pretensão recursória deduzida - cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC. III. Sumário ……………………………… ……………………………… ……………………………… IV. Decisão. Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem este Tribunal em conceder provimento ao recurso interposto pela autora e declarar a nulidade do negócio jurídico entre ambos celebrado e, em consequência determinar a restituição, pelo reu à autora, da quantia de € 65.333,33, que recebeu pela assinatura do contrato de representação, acrescida de juros de mora, à taxa legal para obrigações comerciais, desde a data do trânsito desta decisão e até efectivo e integral pagamento. Custas, na acção e no recurso, a cargo do réu, apelado, vencido, atentas as regras do decaimento contidas no artigo 527.º CPCivil. Porto, 26/9/2024 Ernesto Nascimento Manuela Machado Isoleta de Almeida Costa Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o signatário. |