Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
17658/23.5T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUÍSA LOUREIRO
Descritores: CASO JULGADO
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
VALOR
Nº do Documento: RP2024070417658/23.5T8PRT.P1
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A norma enunciada no art. 100.º do Cód. Proc. Civil deve ser interpretada restritivamente, devendo entender-se que, em nova ação, decalcada da primeira, o mesmo tribunal se encontra vinculado à sua anterior decisão de incompetência, nos casos em que esta assentou numa apreciação jurídica qualificativa da relação material controvertida, devendo absolver o réu da instância, por força da eficácia extra processual do caso julgado formal – autoridade de caso julgado, por vinculação do órgão decisório à identidade de julgamento de certo objeto pelo seu impedimento à contradição e à não repetição de uma decisão anterior sobre esse objeto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 17658/23.5T8PRT.P1 – Apelação
Tribunal a quo Juízo Central Cível do Porto – Juiz 1
Recorrente(s) A..., L.da
Recorrido(a/s) AA


Sumário
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Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

Identificação das partes e indicação do objeto do litígio

A..., L.da, instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra AA, pedindo a condenação do réu no “pagamento da quantia de 74.496,90€, à autora, acrescido de juros após a citação, a título de indemnização pelos danos nela (autora) provocados.”.
Para tanto, alegou que o réu exerceu as funções de gerente (formal) da autora, desde a sua constituição e até 8 de junho de 2022. Durante esse período, causou prejuízos à autora no valor de € 74.496,90, com a sua atuação como gerente.

Liminarmente, o tribunal a quo julgou-se materialmente incompetente para a ação.

Inconformada, a autora apelou desta decisão, concluindo, no essencial:
I. No caso presente, existem duas decisões conflituantes, a saber:
i) a sentença proferida pelo Juízo de Comércio;
ii) e, outra, prolatada pelo Juízo Cível a quo (…).
II. O objeto do presente recurso recai sobre a temática da competência material dos tribunais portugueses, para a ação de responsabilidade de gerentes ou administradores das sociedades comerciais, proposta pela sociedade, nos termos do art. 75.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC). (…)
XIII. A competência do tribunal do comércio é definida restritivamente: no âmbito do direito das sociedades comerciais, cabe-lhe não preparar e julgar todas as causas cujo objeto tenha a ver com a respetiva atividade ou funcionamento; mas, apenas as que são, taxativamente, enunciadas nas alíneas a) a i) do art. 128,º, n.º 1, LOSJ, entre as quais as relativas ao “exercício de direitos sociais”, que figura na alínea c).
XIV. (…) não são “direitos sociais” os direitos da sociedade em face do sócio ou de terceiro, os de terceiro perante a sociedade; e, também perante a sociedade, os direitos individuais do sócio, alheios à sua participação social ou dela autonomizados.
XV. Radica na sociedade, e não no sócio, o direito à indemnização por ato ilícito (em violação do dever legal, estatutário ou contratual) praticado pelo administrador ou gerente.
XVI. O exercício do direito à indemnização, pela sociedade (…) não visa assegurar o regular funcionamento da sociedade; mas sim, reparar danos verificados, em consequência da atuação passada do seu gerente; e, por isso, não constitui um direito social, mas um direito da sociedade contra terceiro devedor perante aquela. (…)
O apelado contra-alegou, pugnando pela manutenção de decisão do tribunal a quo recorrida.

Este tribunal ad quem proferiu despacho convidando a apelante a pronunciar-se sobre a possibilidade de a decisão final proferida no processo n.º 1998/23.6T8PRT do Juízo Central Cível do Porto obstar ao conhecimento do mérito da ação (se se entender que formou caso julgado material, impedindo a autora de instaurar nova ação, sem que se mostre sanado o obstáculo que justificou a decisão de indeferimento liminar proferida naquele processo).
A apelante respondeu sustentando ser a causa vertente diferente da presente na ação com processo n.º 1998/23.6T8PRT.

II – Questões a decidir:

São duas as questões a decidir:
a) caso julgado material formado por decisão pretérita;
b) não ocorrendo repetição de causas, competência material do tribunal a quo para a preparação e julgamento da causa.
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III – Fundamentação:

Factos processuais assentes

1. Ação com processo comum n.º 1998/23.6T8PRT

1 – Em 30 de janeiro de 2023 a ora autora instaurou contra o ora réu, perante o Juízo Central Cível do Porto, ação declarativa de processo comum, à qual foi atribuído o n.º 1998/23.6T8PRT, concluindo com o seguinte pedido:
Termos em que, deve a presente ação ser julgada provada e procedente; e, por conseguinte, deverá Vossa excelência condenar o réu ao pagamento da quantia de 74.496,90 €, à autora, acrescido de juros após a citação, a título de indemnização pelos danos nela provocados.
2 – Em 3 de fevereiro de 2023, no processo referido no ponto 1 – factos assentes –, pelo tribunal foi proferida a seguinte decisão:
Pelo exposto, sem, por manifesta desnecessidade, ouvir previamente as partes, declara-se este Tribunal materialmente incompetente para conhecer do presente processo que, assim, ao abrigo das citadas disposições legais e do art. 590.º, n.º 1, do CPC, se indefere liminarmente.
3 – A decisão referida no ponto 2 – factos assentes – não foi impugnada, tendo transitado em julgado.

2. Ação com processo comum n.º 1769/23.0T8VNG

4 – Em 27 de fevereiro de 2023 a ora autora instaurou contra o ora réu, perante o Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, ação declarativa de processo comum, à qual foi atribuído o n.º 1769/23.0T8VNG, concluindo com o seguinte pedido:
Termos em que, deve a presente ação ser julgada provada e procedente; e, por consequência, deverá Vossa Excelência condenar o réu ao pagamento da quantia de 74.496,90 €, à autora, acrescido de juros após a citação, a título de indemnização pelos danos nela (autora) provocados.
5 – Em 6 de julho de 2023, no processo referido no ponto 4 – factos assentes –, pelo tribunal foi proferida a seguinte decisão:
Pelo exposto, declaro os Juízos do Comércio incompetentes, em razão da matéria, para preparar e julgar a presente ação e, em consequência, absolvo o réu da instância.
6 – A decisão referida no ponto 5 – factos assentes – não foi impugnada, tendo transitado em julgado.

3. Ação com processo comum n.º 17658/23.5T8PRT.P1

7 – Em 17 de outubro de 2023 a ora autora instaurou contra o ora réu, perante o Juízo Central Cível do Porto, ação declarativa de processo comum, à qual foi atribuído o n.º 17658/23.5T8PRT.P1 (ação vertente), concluindo com o seguinte pedido:
Termos em que, deve a presente ação ser julgada provada e procedente; e, por consequência, deverá Vossa Excelência condenar o réu ao pagamento da quantia de 74.496,90 €, à autora, acrescido de juros após a citação, a título de indemnização pelos danos nela (autora) provocados.
8 – Em 24 de outubro de 2023, no processo referido no ponto 7 – factos assentes –, pelo tribunal foi proferida a seguinte decisão:
Pelo exposto, sem, por manifesta desnecessidade, ouvir previamente as partes, declara-se este Tribunal materialmente incompetente para conhecer do presente processo que, assim, ao abrigo das citadas disposições legais e absolver a ré da presente instância.
9 – A decisão referida no ponto 8 – factos assentes – foi objeto do presente recurso.

4. Fundamentos dos processos n.º 1998/23.6T8PRT e n.º 17658/23.5T8PRT.P1

10 – São, no essencial, os seguintes os fundamentos apresentados nos processos n.º 1998/23.6T8PRT e n.º 17658/23.5T8PRT.P1:
Processo 17658/23.5T8PRT (este)Processo 1998/23.6T8PRT
26. Os atos em questão acham-se descritos e quantificados de forma sintetizada em quadro (…) que se anexa à presente petição e cujo montante do prejuízo (…) causado à sociedade ascende a 65.571,90 €. (...)25. Os atos em questão acham-se descritos e quantificados de forma sintetizada em quadro (…) que se anexa à presente petição e cujo montante do prejuízo (…) causado à sociedade ascende a 65.571,90 €. (…)
32. (…) o demandado procedeu ao levantamento do cheque n.º ..., datado de 8 de junho de 2022, sacado sobre o Banco 1..., no valor de 8.925,00 €; cujo montante foi levado à classificação contabilística de “Caixa”; sendo certo que a cifra levantada foi utilizada integralmente pelo réu, em seu benefício próprio, porquanto tal pecúnia inexistia (“em caixa”) na altura da cessão de quotas. (…)31. (…) o demandado procedeu ao levantamento do cheque n.º ..., datado de 8 de junho de 2022, sacado sobre o Banco 1..., no valor de 8.925,00 €; cujo montante foi levado à classificação contabilística de “Caixa”; sendo certo que a cifra levantada foi utilizada integralmente pelo réu, em seu benefício próprio, porquanto tal pecúnia inexistia (“em caixa”) na altura da cessão de quotas. (…)
34. (…) para além de outros prejuízos não passíveis de quantificação através da análise contabilística, podemos afirmar perentoriamente e com toda a certeza que o réu causou danos à sociedade autora no valor de 74.496,90 €. (…)33. (…) para além de outros prejuízos não passíveis de quantificação através da análise contabilística, podemos afirmar perentoriamente e com toda a certeza que o réu causou danos à sociedade autora no valor de 74.496,90 €. (…)
38. O réu desempenhou o cargo de gerente (…) exclusivo da autora, desde o seu início até 9 de junho de 2022.37. O réu desempenhou o cargo de gerente (…) exclusivo da autora, desde o seu início até 9 de junho de 2022.
39. Era, pois, o réu que tinha poderes (…) exclusivos para obrigar a autora no giro comercial e praticar todos os atos de gerência a ela inerentes, até 9 de junho de 2022.38. Era, pois, o réu que tinha poderes (…) exclusivos para obrigar a autora no giro comercial e praticar todos os atos de gerência a ela inerentes, até 9 de junho de 2022.
40. Acontece que, durante a gerência (…) do réu, foram praticados, por este, atos contrários aos fins societários da autora, em manifesta violação dos deveres de um gerente criterioso e ordenado; atos esses, que causaram danos à impetrante (…).39. Acontece que, durante a gerência (…) do réu, foram praticados, por este, atos contrários aos fins societários da autora, em manifesta violação dos deveres de um gerente criterioso e ordenado; atos esses, que causaram danos à impetrante (…).
41. Perante a constatação supra relatada, a autora reuniu em assembleia geral, “aos 27 dias do mês de janeiro de 2023, pelas 11.00 horas”, e deliberou – por unanimidade – “a propositura de acção judicial de responsabilização de AA por atos praticados durante a sua gerência”. (…).[inexistente]

Análise dos factos processuais e aplicação da lei

São as seguintes as questões de direito parcelares a abordar:
1. Tutela do caso julgado formado sobre decisão pretérita
1.1. Afirmação da repetição de causas
1.2. Caso julgado da decisão sobre a relação processual
1.3. Objeções à ineficácia extraprocessual do caso julgado formal
1.4. Exceção de autoridade de caso julgado
1.5. Conclusão
2. Incompetência absoluta do tribunal
3. Responsabilidade pelas custas

1. Tutela do caso julgado formado sobre decisão pretérita

1.1. Afirmação da repetição de causas

Em 30 de janeiro de 2023 a autora, aqui apelante, instaurou a ação que correu termos no processo com o n.º 1998/23.6T8PRT, perante o Juízo Central Cível do Porto. Esta ação veio a terminar com a absolvição do réu da instância, por ter o tribunal decidido ser incompetente em razão da matéria.
Vencida, mas não convencida – de acordo com o que alegou no requerimento de 06-05-2024 (ref. 388847), em que exerceu o contraditório quanto à invocação na resposta do apelado à existência de repetição de anterior ação igualmente intentada nos juízos centrais cíveis (veja-se o art. 11.º do referido requerimento) –, a autora, em 27 de fevereiro de 2023 instaurou a mesma ação perante o Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, ação essa à qual foi atribuído o n.º 1769/23.0T8VNG. Esta ação veio a terminar com a absolvição do réu da instância, por ter o tribunal – Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – decidido ser incompetente em razão da matéria.
Vencida e, desta feita, convencida – de acordo com o alegado na parte final da petição inicial da ação agora em recurso –, em 17 de outubro de 2023, invocando a mesma causa de pedir e formulando o mesmo pedido, relativamente à causa de pedir e ao pedido apresentados nas anteriores demandas, a autora e aqui apelante instaurou a ação vertente.
Em todas estas ações as partes são as mesmas, a causa de pedir é a mesma e o pedido é o mesmo. Acresce que, nas primeira e a última ações, o tribunal também é o mesmo. Entre estas duas ações (n.º 1998/23.6T8PRT e n.º 17658/23.5T8PRT.P1) ocorre uma absoluta coincidência entre causas, designadamente, para efeitos de litispendência (se ambas as causas estiverem pendentes) ou de caso julgado (máxime, se a lide anterior terminou por julgamento do mérito do pedido) – art. 581.º do Cód. Proc. Civil.
É desprovida de mérito a posição adotada pela apelante, de acordo com a qual estas duas causas não seriam idênticas, por ser diferente a causa de pedir. A única diferença sinalizada pela apelante – constante do art. 41.º da petição inicial, transcrito no ponto 10 – nada tem a ver com a relação material controvertida que preenche os pressupostos da responsabilidade civil do gerente ou administrador.

1.2. Caso julgado da decisão sobre a relação processual

A referida ação tramitada sob n.º 1998/23.6T8PRT terminou por decisão de absolvição da instância, por se ter decidido ser o Juízo Central Cível do Porto absolutamente incompetente. Dispõe o art. 100.º do Cód. Proc. Civil que “A decisão sobre incompetência absoluta do tribunal, embora transite em julgado, não tem valor algum fora do processo em que foi proferida (…)”. É esta norma que analisaremos.
Explicava Alberto dos Reis que, “quando se julga procedente a exceção de incompetência, o julgamento tem naturalmente um duplo aspecto: negativo e positivo. Ao mesmo tempo que se nega a competência do tribunal perante o qual a ação foi proposta, afirma-se a competência dum outro tribunal” – cfr. José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 1.º, Coimbra, Coimbra Editora, 1960, p. 323. Diferentemente do que ocorre no julgamento de incompetência relativa – onde os dois aspetos estão presentes −, na decisão (afirmativa) proferida sobre a incompetência absoluta só vale o aspeto negativo: o tribunal tido por competente não está vinculado pela decisão anterior, podendo declarar-se incompetente.
Destas considerações pode retirar-se que o sentido a atribuir à norma prevista no art. 100.º do Cód. Proc. Civil, interpretada restritivamente, é apenas o de que a decisão proferida não tem força vinculativa para o tribunal designado competente, e não que a decisão é desprovida de qualquer efeito externo, relativamente à ulterior instauração da mesma ação num novo processo.
No entanto, Alberto dos Reis dava mais um passo e defendia que, mesmo no aspeto negativo, a decisão “não tem valor fora do processo em que foi proferida. O próprio tribunal que num processo se julgou incompetente, não está inibido de noutro processo se considerar competente para a mesma ação”. E explicava: “o princípio que está na base desta doutrina é o de que cada tribunal tem o poder de conhecer da sua própria competência” − idem, ibidem, p. 324.

1.3. Objeções à ineficácia extraprocessual do caso julgado formal

Esta interpretação da norma é (compreensivelmente) nitidamente historicista, sendo desenvolvida num contexto processual civil marcadamente autoritário. Tal posição é hoje dificilmente sustentável.
Por um lado, não deve prevalecer nesta discussão o perfil do juiz (concreto), autocrático e ferozmente individualista, mas sim a ideia de um tribunal que apenas existe para servir os cidadãos, garantindo o acesso ao Direito – desenvolvendo a sua função para os cidadãos. Não tem hoje sentido, a pretexto de se tutelar o poder do juiz conhecer a sua própria competência, desconsiderar a pronúncia do mesmo tribunal sobre a sua incompetência. Na verdade, tendo o tribunal emitido pronúncia sobre a questão, não há qualquer valor digno de tutela legal que justifique o reconhecimento de uma prerrogativa do juiz – do mesmo juiz ou de outro juiz do mesmo tribunal – de se desdizer, afirmando, em contradição com anterior decisão, a competência do tribunal. Prevalecente será, sim, a proibição de adoção de comportamentos contraditórios por parte do tribunal.
Por outro lado, estando o Processo Civil ao serviço das partes (hoc sensu), não pode deixar de se considerar ser um verdadeiro abuso do processo a repetição da mesma ação com as mesmas patologias adjetivas, a coberto da putativa inexistência de efeito extraprocessual das decisões que, nas causas anteriores, julgaram verificadas tais patologias processuais. A lei não se deve preocupar aqui mais com o poder autocrático do juiz (preocupação legítima noutros domínios, mas aqui perfeitamente deslocada) do que com o direito da contraparte a um processo equitativo – melhor, a um sistema processual civil equitativo (coerente e consequente com as decisões proferidas sobre questões concretas).
Afigura-se-nos que a interpretação da norma vertida no art. 100.º do Cód. Proc. Civil, no sentido de caucionar novas demandas por parte do autor vencido (na questão da competência do tribunal), obrigando a contraparte a defender-se em cada caso, não é conforme à Constituição (art. 20.º da Const. Rep. Portuguesa). O demandado também tem direito a um processo equitativo − incluindo, no caso, a que se recuse à contraparte o direito de repetir causas −, também gozando de garantia de acesso ao Direito, compreendendo este o direito a ver a questão definitivamente decidida (não ficando permanentemente sujeito à eventual prolação de uma decisão contraditória) e a beneficiar da prévia pronúncia final favorável de um tribunal (sobre a mesma exata ação), notando-se que, como parte vencedora, não pode lançar mão do mecanismo previsto no art. 101.º do Cód. Proc. Civil.
Não procede aqui o argumento de que o tribunal tem sempre o poder de conhecer da sua própria competência. Tal poder existe, ressalvados os casos previstos na lei – como na incompetência relativa (art. 105.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil) –, mas já foi exercido na primeira ação pelo mesmo tribunal, sendo que não se pode afirmar a existência do poder do tribunal de se contradizer sobre a sua competência.

1.4. Exceção de autoridade de caso julgado

De acordo com este entendimento, nalguns casos, o autor deverá ficar impedido de instaurar nova ação perante o mesmo tribunal, sem que se mostre sanado o obstáculo que justificou a decisão de absolvição da instância proferida no primeiro processo – admitindo que, mantendo-se um vício impeditivo (não sanado) que fundou a absolvição da instância, a repetição da causa possa colidir com a exceção dilatória de caso julgado (material), cfr. José lebre de Freitas, «Um polvo chamado autoridade do caso julgado», ROA, vol. III-IV, jul./dez., 2019, p. 708, Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. II, Coimbra, Almedina, 1982, p. 16, e Maria José Capelo, A sentença entre a Autoridade e a Prova, Coimbra, Almedina, 2015, p. 96 e segs., bem como o Ac. do STJ de 30-11-2017, proc. n.º 3074/16.9T8STR.S1; sobre a temática, ver ainda os Acs. do STJ de 15-11-1995, proc. n.º 004314, e de 06-03-2008, proc. n.º 08B402; mais próximo da afirmação da exceção perentória de autoridade de caso julgado, nestas circunstâncias, cfr. Miguel Teixeira de Sousa, «O objeto da sentença e o caso julgado material (o estudo sobre a funcionalidade processual)», BMJ, n.º 325, abril, 1983, p. 157; também Castro Mendes se manifestou contra o entendimento comum de acordo com o qual a nossa lei reservou o efeito de caso julgado material para decisão de mérito – cfr. João Castro Mendes, Direito Processual Civil, Vol. II, 2014, AAFDL, p. 518, incluindo nota de rodapé n.º 651.
Desenvolve, a propósito, Teixeira de Sousa que “a inaceitabilidade da atribuição de caso julgado material às decisões de forma não impede (…) a admissão de uma eficácia extraprocessual do caso julgado formal” – cfr. Miguel Teixeira de Sousa, «O objeto da sentença e o caso julgado material (o estudo sobre a funcionalidade processual)», BMJ, n.º 325, abril, 1983, p. 157. No entanto, a eficácia extraprocessual do caso julgado formal restringe-se “aos processos subsequentes em que se aprecia a existência de uma mesma condição processual numa mesma individualização” – idem, ibidem, p. 158.
Adverte ainda o mesmo autor que, “ainda que com este restrito âmbito, a eficácia extraprocessual do caso julgado formal não significa a existência de uma exceção de caso julgado formal, pois aquela relevância externa não é um impedimento do órgão decisório à apreciação de determinado objeto pela sua vinculação à não contradição e à não repetição de uma decisão anterior sobre esse objeto, mas a vinculação do órgão decisório à identidade de julgamento de certo objeto pelo seu impedimento à contradição e à não repetição de uma decisão anterior sobre esse objeto: o que releva no processo subsequente não é a impossibilidade de apreciar determinado objeto, mas a sujeição a julgar identicamente certo objeto” – idem, ibidem, p. 159; sublinhado nosso. Podemos concluir, tentando não desvirtuar o pensamento de Teixeira de Sousa, que o autor reconhece a existência de autoridade de caso julgado (também) no que ao caso julgado formal diz respeito – veja-se, sobre a autoridade de caso julgado e a exceção de caso julgado, idem, ibidem, p. 200 e segs..
Neste mesmo sentido, o pensamento dos dois últimos autores acima mencionados culmina e é ilustrado do seguinte modo: “Por exemplo: o tribunal absolveu o réu da instância com fundamento na sua incompetência material para apreciar a ação; o autor insiste e propõe uma nova ação no mesmo tribunal; este tribunal está vinculado à absolvição da instância proferida na primeira ação” – cfr. João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume I, Lisboa, AAFDL, 2022, p. 638

1.5. Conclusão

Sopesados todos os argumentos esgrimidos, devemos concluir, considerando os termos adotados no enunciado do art. 100.º do Cód. Proc. Civil, que não é possível reconhecer à decisão proferida no processo anterior uma força de caso julgado que permita, nesta ação, afirmar a ocorrência de uma exceção de caso julgado (res judicata), embora o caso (isto é, a competência do tribunal) tenha sido efetivamente julgado. No entanto, não podemos deixar de acompanhar Teixeira de Sousa na afirmação de um comprometimento positivo do tribunal – do mesmo tribunal, sublinhe-se (Juízo Central Cível do Porto) – relativamente ao sentido da decisão anterior por si proferida (tendo-se, ainda, presente que a lei não torna dependente da invocação do interessado o conhecimento da exceção de autoridade de caso julgado – art. 579.º do Cód. Proc. Civil), considerando o interesse público tutelado. Esta vinculação do tribunal à sua decisão, proferida perante as mesmas partes, deverá ser afirmada ao menos nos casos em que esta assentou numa apreciação jurídica qualificativa da relação material controvertida – por exemplo, qualificando-a como sendo um contrato de trabalho ou como gerando uma posição jurídica que não se inscreve no direito societário –, tal como aqui sucede.
Assim, na ordem interna, deve entender-se que em nova ação, decalcada da primeira, o mesmo tribunal se encontra vinculado à sua anterior decisão de incompetência material, assim se abrindo as portas ao mecanismo de impugnação por via do conflito de competência.
Concluímos, deste modo, que a decisão de absolvição da instância proferida é forçosa. Tal equivale a dizer que o apelante, querendo dirimir a questão, deve suscitar o conflito de competência no processo n.º 1769/23.0T8VNG, no âmbito qual poderá expor as suas muito pertinentes considerações sobre a competência do tribunal a quo.

2. Incompetência absoluta do tribunal

Face à conclusão acabada de expor, mostra-se prejudicado o conhecimento da segunda questão a resolver anteriormente enunciada (art. 608.º, n.º 2, ressalva da primeira parte, do Cód. Proc. Civil).

3. Responsabilidade pelas custas

A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art. 25.º do Reg. Cus. Proc.).
A responsabilidade pelas custas (da causa e da apelação) cabe à apelante, por ter ficado vencida (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).

IV – Dispositivo:

Pelo exposto, na improcedência da apelação, acorda-se em confirmar a decisão recorrida, embora com fundamento não inteiramente coincidente.

Custas a cargo da apelante.
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Notifique.

Porto, 04 de julho de 2024
Ana Luísa Loureiro
Ana Vieira
Paulo Duarte Mesquita