Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | CARLA JESUS COSTA FRAGA TORRES | ||
Descritores: | CONTRATO DE EMPREITADA FALTA DE FORMA ABUSO DO DIREITO | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RP20241211115/24.0T8AMT-A.P1 | ||
Data do Acordão: | 12/11/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGAÇÃO | ||
Indicações Eventuais: | 5. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I - A falta de redução a escrito do contrato de empreitada cujo valor exija esta forma é susceptível de gerar uma nulidade por falta de forma. II - A invocação desta nulidade em determinadas circunstâncias concretas pode constituir abuso de direito passível de paralisar o seu exercício que é do conhecimento oficioso. III - O Tribunal não pode conhecer daquela excepção havendo factualidade controvertida passível de determinar a existência ou o afastamento de um eventual abuso de direito por parte de quem a invoca. | ||
Reclamações: | |||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 115/24.0T8AMT-A.P1 – Apelação em separado Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo Local Cível ... – Juiz 1 Relatora: Carla Fraga Torres 1.º Adjunto: António Mendes Coelho 2.º Adjunto: Miguel Fernando Baldaia Correia de Matos Acordam os juízes subscritores deste acórdão da 5.ª Secção Judicial/3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto: I. Relatório. Recorrente: Condomínio do Edifício ... Recorrida: A..., Lda. A..., Lda. propôs contra Condomínio do Edifício ..., representado por “Condomínio ao 2...” acção declarativa de condenação pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de 7.885,19 €, acrescida de juros à taxa legal vencidos e vincendos desde Novembro de 2023 até integral pagamento. Para o efeito, alegou, em síntese, que em cumprimento de um contrato de empreitada celebrado com o R. Condomínio procedeu e concluiu em Outubro de 2023 os trabalhos de restauro do respectivo edifício orçamentados no valor de 51.228,00 € (Doc. 1 junto com a PI) acrescido de IVA no valor de 6.557,19 €, num total de 57.785,19 €, de que este, tendo apenas pago 49.900,00 €, lhe deve 7.885,19 €. Citada, além da excepção da incompetência territorial que veio a ser julgada procedente e da defesa por impugnação, a R. começou por invocar a excepção da nulidade do contrato de empreitada por não ter sido reduzido a escrito, com base na qual deduziu pedido reconvencional, reconhecendo, por um lado, que, a seu pedido, a A. lhe entregou o orçamento de 51.228,00 €, cujos trabalhos foram adjudicados àquela por deliberação da assembleia de condóminos do R. realizada no dia 12/12/2022, e, por outro, que pelos trabalhos executados a A. emitiu as facturas juntas com a PI num total de 57.785,19 €, dos quais, como admitido por esta, já pagou 49.900,00 €. Do mesmo passo, invocou a excepção de não cumprimento alegando que a A. não cumpriu com as suas obrigações ao não terminar a obra e ao não eliminar os defeitos que lhe foram comunicados. Assim, e finalmente, impugnou que a A. tenha terminado a obra e tenha executado trabalhos no valor orçamentado de € 51.228,00. Na Réplica, a A. pronunciou-se sobre o pedido reconvencional e sobre a matéria das excepções, pugnando pela sua improcedência, no que respeita à excepção da nulidade do contrato de empreitada por o orçamento, em seu entender, conter a descrição detalhada de todos os serviços a prestar por si, bem como os materiais a empregar nos mesmos, e ter sido discutido em Assembleia de Condóminos do R. a 12/11/2022 (Doc. 2 junto com a PI), altura em que foi aprovado por unanimidade, e, consequentemente, adjudicado à A. e, assim, se devendo considerar reduzido a escrito. Na fase do saneamento do processo, o Tribunal julgou improcedente a invocada excepção da nulidade do contrato de empreitada nos seguintes termos: “Arguiu a Ré que in casu ocorre a não redução a escrito do contrato de empreitada (que no caso ultrapassa os 10% do limite fixado para a classe 1) o que gera a sua nulidade. Nulidade essa, que o Réu, na qualidade de dono de obra, requer que seja declarada. Declarada a nulidade do contrato de empreitada, por vício de forma, nos termos do artigo 289.º do Código Civil, deve ser restituído pelas partes tudo o que houver sido prestado, com efeitos rectroactivos, ou se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente A A. pugna pelo improcedência de tal excepção. Cumpre apreciar. Efectivamente, o número 1 do artigo 26.º da Lei n.º 41/2015, de 03 de Junho, consagra a forma escrita para o contrato de empreitada de obra particular de construção civil, com o valor superior a 16.600,00€ (dezasseis mil e seiscentos euros): “1 - Os contratos de empreitada e subempreitada de obra particular sujeitos à lei portuguesa, cujo valor ultrapasse 10 /prct. do limite fixado para a classe 1, são obrigatoriamente reduzidos a escrito, neles devendo constar, sem prejuízo do disposto na lei geral, o seguinte: a) Identificação completa das partes contraentes; b) Identificação dos alvarás, certificados ou registos das empresas de construção intervenientes sempre que previamente conferidos ou efetuados pelo IMPIC, I. P., nos termos da presente lei; c) Identificação do objeto do contrato, incluindo as peças escritas e desenhadas, quando as houver; d) Valor do contrato; e) Prazo de execução da obra.. A inobservância dessa forma escrita acarreta a nulidade (nº 3 do artº 26) do contrato em consonância com o regime geral consagrado no art. 220º do Código Civil. Simplesmente – como certeiramente se observou no Acórdão da Relação de Guimarães de 31/5/2012 (Proc. nº 1085/10.7TBBCL-A.G1; relator – MANUEL BARGADO), cujo texto integral está acessível on-line in: www.dgsi.pt -, trata-se duma nulidade atípica, que não só não é de conhecimento oficioso, mas apenas pode ser invocada pelo dono da obra (no caso das empreitadas) e pelo empreiteiro (no caso das subempreitadas). No caso sub judice a circunstância de a Ré ter dado, por escrito em acta de assembleia de condóminos nº 7 junta como doc. 2 da PI, a sua aquiescência expressa aos orçamentos que a Autora lhe remeteu e aí junto como doc. 3 é suficiente para se dever concluir que não faltou, in casu, a forma escrita exigida pelo cit. art. 26º/1 da Lei 41/2015, de 03 de Junho. Nestes termos improcede a invocada excepção de nulidade do contrato de empreitada”. Do mesmo passo, foi proferido o seguinte despacho “A acção prossegue assim apenas para apreciar a excepção de não cumprimento e de harmonia com o disposto no artigo 596º, n.º 1 do NCPC, cumpre proceder à identificação do objecto do litígio e à enunciação dos temas de prova, que se faz do seguinte modo: Objecto do litígio: Determinar se a obrigação assumida pela A no contrato de empreitada que fez no prédio da A. e resultante do orçamento junto como orçamento doc. 3 anexo ao doc. 2 da petição inicial foi integralmente cumprido de acordo com as legis artis”. Subsequentemente, foram fixados os correspondentes temas de prova. Inconformada com esta decisão, dela interpôs recurso a R., que, a terminar as respectivas alegações, formulou as seguintes conclusões: I) “Nos presentes autos, veio a Recorrida, em 25 de Janeiro de 2024, através da presente acção de processo comum, reclamar junto do Recorrente o pagamento da quantia de 7.885,19€ (sete mil, oitocentos e oitenta e cinco euros e dezanove cêntimos), acrescida de juros vencidos e vincendos, desde Novembro de 2023 até efectivo e integral pagamento. II) Para justificar a petição de tais valores invocou a Recorrida a existência de um contrato de contrato de empreitada celebrado com o ora Recorrente. III) O Recorrente, nos artigos 7.º a 25.º da Contestação por si apresentada arguiu, na qualidade de dono da obra, a nulidade do contrato de empreitada, por vício de forma. IV) Nos artigos 7.º e seguintes da Réplica apresentada pela Recorrida, esta veio pugnar pela improcedência de tal excepção, invocando nesse sentido, que o contrato de empreitada foi reduzido a escrito, na medida em que o orçamento que enviou à administração do Recorrente, foi aprovado pela assembleia de condóminos e consta dos documentos que integram a acta número sete, respeitante à Assembleia de Condóminos do Edifício ... realizada a 10 de Novembro de 2022: V) Em sede de Despacho Saneador o Tribunal a quo, julgou parcialmente improcedente a excepção de nulidade do contrato de empreitada, fundamentando nesse sentido que “a circunstância de a Ré ter dado, por escrito em acta de assembleia de condóminos nº 7 junta como doc. 2 da PI, a sua aquiescência expressa aos orçamentos que a Autora lhe remeteu e aí junto como doc. 3 é suficiente para se dever concluir que não faltou, in casu, a forma escrita exigida pelo cit. art. 26º/1 da Lei 41/2015, de 03 de Junho.” VI) O Recorrente não se conforma com tal solução jurídica. VII) O número 1 do artigo 26.º da Lei n.º 41/2015, de 03 de Junho, consagra a forma escrita para o contrato de empreitada de obra particular de construção civil, com o valor superior a 16.600,00€ (dezasseis mil e seiscentos euros). VIII) Os contratos de empreitada e de subempreitada de obra particular de valor superior a 16.600,00€ (dezasseis mil e seiscentos euros), são contratos formais, que têm de ser obrigatoriamente reduzidos a escrito e de conter o conteúdo mínimo fixado no n.º 1 desse artigo 26.º. IX) Essas exigências formais constituem formalidades “ad substantitam”, sendo que a sua inobservância fere o contrato de nulidade. X) A Recorrida e o Recorrente não celebraram, por escrito, qualquer contrato de empreitada. XI) A Recorrida, a pedido do legal representante do Recorrente, enviou-lhe o orçamento que se encontra junto como documento n.º 1 na Petição Inicial, no valor total de 51.228,00€ (cinquenta e um mil, duzentos e vinte e oito euros). XII) Na assembleia de condóminos realizada em 12 de Novembro de 2022 foi aprovado por unanimidade dos condóminos presentes a adjudicação das obras a realizar no edifício à empresa “A...” nos termos constantes do orçamento pela referida empresa enviado, tendo por isso o referido orçamento ficado a fazer parte integrante da referida ata (Cfr. anexo nº 3 junto ao documento nº 2 junto com a petição inicial). XIII) O referido orçamento apenas descreve os trabalhos a executar, o valor a pagar pelos mesmos (sem o apuramento dos competentes impostos) e o seu prazo de validade. XIV) O referido orçamento não contempla: a) A identificação completa das partes contraentes; b) Identificação dos alvarás, certificados ou registos das empresas de construção intervenientes, sempre que previamente conferidos ou efetuados pelo IMPIC, I. P., nos termos da presente lei (não é feita qu d) Valor do contrato; c) Prazo de execução da obra; XV) À assembleia dos condóminos, órgão deliberativo composto por todos os condóminos, compete decidir sobre os problemas do condomínio que se refiram às partes comuns, encontrando soluções para os resolver, delegando no administrador a sua execução e controlando a atividade deste. XVI) Ao administrador, órgão executivo do condomínio, cabe o desempenho das funções referidas no artigo 1436.º do CC, próprias do seu cargo, bem como as que lhe forem delegadas pela assembleia ou cometidas por outros preceitos legais, competindo-lhe a função de representação orgânica do condomínio. XVII) As deliberações da assembleia representam a vontade colegial e são vinculativas para os condóminos, não vinculando quaisquer terceiros, com excepção dos terceiros titulares de direitos relativos às fracções autónomas (Cfr. nº 2 do artigo 1º do DL 268/94). XVIII) O orçamento junto com a petição inicial, ainda que aprovado em assembleia de condóminos, não pode confundir-se com o contrato de empreitada que teria de ser, sob pena de nulidade, obrigatoriamente reduzido a escrito pelo empreiteiro, em virtude do seu valor ser superior a 10% do limite fixado para a classe 1 das habitações (cfr. artigo 26º, n.º 1, 2 e 3, da Lei 41/2015, de 3 de Junho). XIX) Após a vontade manifestada em assembleia de se proceder à adjudicação dos trabalhos constantes do orçamento à Recorrida, o contrato de empreitada, com o conteúdo mínimo fixado no n.º 1 desse artigo 26.º, teria ainda de ser reduzido a escrito por esta e assinado pelo legal representante de ambas as partes, nomeadamente pelo administrador de condomínio da Recorrente, pois é este que organicamente representa o condomínio. XX) O orçamento em causa não é um contrato de empreitada, nem contém, conforme acima referido, o conteúdo mínimo exigido pela Lei 41/2015 de 03 de Junho. XXI) O orçamento não contém o conteúdo mínimo prescrito no n.º 1 do artigo 26.º da Lei 41/2015 de 03 de Junho. XXII) O orçamento em apreço, não faz qualquer menção ao número de identificação fiscal das partes, assim como não identifica, os seus representantes legais, não indica o nome completo, estado civil, número de identificação civil e fiscal dos mesmos e a qualidade em que outorgam. XXIII) Não faz qualquer menção ao alvará da Recorrida, o qual é obrigatório, atento o valor da empreitada. XXIV) Não estipula o prazo de execução da obra. XXV) Não indica o valor total do contrato, sendo omisso quanto à taxa de IVA a aplicar, o que se revela de extrema importância, porque parte dos trabalhos foram tributados à taxa de 6% e outros à taxa de 23% (conforme decorre das facturas juntas à petição inicial como documentos nº 3, 4 e 5). XXVI) Deste modo, ainda que o orçamento, tenha sido aceite e aprovado em assembleia de condóminos, tal não é suficiente para que se se considere o contrato validamente celebrado, para efeitos do disposto no artigo 26.º da Lei 41/2015, de 03 de Junho, uma vez que este normativo impõe que o documento escrito cumpra com o referido conteúdo mínimo legal, impondo-se à autonomia privada das partes. XXVII) O Tribunal Recorrido, ao considerar improcedente a excepção da nulidade do contrato de empreitada, violou por erro de interpretação e aplicação o preceituado nos nºs 1 e 3 do artigo 26.º da Lei 41/2015, de 03 de Junho e 289.º do Código Civil. XXVIII) Por tudo o supra exposto, deve o Douto Despacho Saneador ser parcialmente revogado, na parte em que julgou improcedente a excepção da nulidade do contrato de empreitada objecto dos presentes autos, impondo-se a prolação de decisão que: a) julgue procedente tal excepção; b) condene os contraentes por via do contrato inválido a restituírem tudo o que houver sido prestado ou, não sendo a restituição em espécie possível, o valor correspondente; c) determine a prossecução da instância para apuramento/liquidação dos valores a restituir por cada uma das partes por via do contrato invalidamente celebrado” * A recorrida não apresentou contra-alegações.* O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.* Recebido o processo nesta Relação, proferiu-se despacho a considerar o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com o efeito e o modo de subida adequados.* Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.* II. Questões a decidir. Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam a este Tribunal são as de saber: · Se o contrato de empreitada dos autos foi submetido à forma escrita e, em caso negativo; · Se o contrato pode ser nulo por falta de forma, e, em caso positivo, · Se o tribunal podia conhecer de tal excepção na fase do saneador. * III. Fundamentação de facto. Os factos a considerar para apreciar as questões objecto do presente recurso são os que constam do relatório supra e ainda o que resulta dos Docs. 1 (Orçamento) e 2 (acta n.º 7 da assembleia geral de condóminos) da petição inicial a que o despacho recorrido faz referência: · Do orçamento da obra em causa e da acta n.º 7 relativa à assembleia de condóminos que deliberou adjudicá-la à A. não consta a identificação dos alvarás, certificados ou registos das empresas de construção intervenientes nem o prazo de execução da obra. * IV. Fundamentação de direito. Delimitada a questão essencial a decidir, nos termos sobreditos sob o ponto II, cumpre apreciá-la, para o que do regime jurídico aplicável ao exercício da actividade da construção contemplado na Lei 41/2015 de 3 de Junho começa por convocar-se o disposto no art. 26.º, n.º 1, segundo o qual os contratos de empreitada de obras particulares cujo valor ultrapasse 10% do limite fixado para a classe 1 estão obrigatoriamente sujeitos à forma escrita, neles devendo constar: a) Identificação completa das partes outorgantes; b) Identificação dos alvarás, certificados ou registos das empresas de construção intervenientes, sempre que previamente conferidos ou efetuados pelo IMPIC; c) Identificação do objecto do contrato, incluindo as peças escritas e desenhadas, quando as houver; d) Valor do contrato; e) Prazo de execução. Os valores das diferentes classes de habilitações a que o referido preceito apela estão previstos na Portaria n.º 212/2022, de 23 de Agosto - entrado em vigor no dia 24 de Agosto e, por isso, em vigor na data constante do orçamento (25/10/2022) e na referida data da assembleia de condóminos - mais concretamente no seu art. 1.º que para a classe 1 fixa em € 200.000,00 o valor máximo das obras permitidas. No caso, o valor do contrato da empreitada ascende a 51.228,00 € sem IVA, pelo que, ultrapassando o apontado valor de 10% do limite de 200.000,00 €, lhe é aplicável a forma escrita imposta pelo citado art. 26.º, n.º 1 da Lei n.º 41/2015. A exigência de forma escrita para a celebração destes contratos, com os elementos referidos nas diversas alíneas deste n.º 1, constitui uma formalidade ad substantiam, cuja não observância importa a nulidade do contrato. Trata-se, todavia, de uma nulidade atípica, pois que o n.º 3 do citado art. 26.º dispõe que a nulidade por falta de forma não pode ser invocada pela empresa contratada pelo dono de obra e, portanto, a existir, também não pode ser conhecida oficiosamente pelo Tribunal- cfr. acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 31/05/2012 (Proc. 1085/10.7TBBCL-A.G1); do Tribunal da Relação do Porto de 3/07/2012 (Proc. 814/10.3TBMCN-A.P1) e da Relação de Lisboa de 10/03/2015 (Proc. 215314/09.3YIPRT.L1-1). É um facto que os condóminos do Recorrente reunidos em 12/11/2022 em assembleia extraordinária de condomínio (Doc. 2 com a PI) aprovaram o orçamento apresentado pela A., adjudicando-lhe a obra de reabilitação do prédio. Esta manifestação de vontade exarada em acta ao contrário do que foi decidido pelo Tribunal recorrido, pode, no entanto, ser insuficiente para se concluir pela redução a escrito do contrato de empreitada. A propósito de contratos públicos mas com interesse para os contratos particulares, atenta a semelhança do procedimento, a adjudicação, de acordo com o art. 73.º, n.º 1 do Código dos Contratos Públicos (DL n.º 18/2008, de 29 de Janeiro), é o acto pelo qual o órgão competente para a decisão de contratar aceita a única proposta apresentada ou escolhe uma de entre as propostas apresentadas, dispondo o art. 77.º, n.º 2 desse diploma legal que, juntamente com a notificação da decisão de adjudicação, o órgão competente para a decisão de contratar deve notificar o adjudicatário para se pronunciar sobre a minuta de contrato, quando este for reduzido a escrito (al. d)). Assim, adjudicação e contrato são conceitos jurídicos diversos e, portanto, a deliberação do condomínio Recorrente de aprovação do orçamento e adjudicação da obra não dispensa as partes de celebrarem, como manda a lei, o competente contrato de empreitada sob a forma escrita. Acresce que, da deliberação do condomínio, mesmo que cotejando-a com o orçamento, não resulta a identificação dos alvarás, certificados ou registos da empresa de construção interveniente nem o prazo de execução da obra, elementos esses obrigatórios de acordo com o citado art. 26.º, n.º 1 da Lei 41/2015 (al. b) e e)). Para mais, como foi explicado no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 3/10/2017 (Proc. 6327/13.4TBSXL.L1-7) “…a preterição de forma escrita tem, também, uma consequência de natureza processual: exigindo a lei que o contrato seja reduzido a escrito, e estando em causa um requisito ad substantiam [6], desrespeitado o referido normativo, a prova do contrato, do seu conteúdo [7], apenas por via documental (de força probatória superior) pode ser feita, não admitindo outro meio de prova, nem testemunhal, nem por confissão (arts. 354º, al. a), 364º e 393º, nº 1 do CC)”. Ora, os documentos juntos aos autos (orçamento e acta), carecendo, como vimos, das exigências de conteúdo previstas nas als. b) e e) do n.º 1 do art. 26.º da referida Lei n.º 41/2015, não têm força probatória bastante para prova do contrato celebrado entre Recorrente e Recorrida - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/06/2020 (Proc. 1901/17.2T8VRL.G1). Note-se, porém, que no caso de preterição da forma legal escrita, as restrições probatórias dos contratos de empreitada que decorrem do art. 364.º, n.º 1 do CC, apenas têm a ver com a validade substancial do negócio, pelo que a impossibilidade de recurso ao uso de outra prova, como a documental, testemunhal, por confissão ou por presunção judicial, releva apenas e tão só para efeitos de prova da celebração válida do contrato, ou seja, para não permitir que se façam valer os efeitos do contrato como se este fosse válido, mas já não para impedir a prova efectiva e real da celebração do negócio nulo por falta de forma e, através daqueles meios probatórios, fazer prova da sua existência e correspondente materialidade e, por essa via, alcançar os efeitos decorrentes, não do negócio, mas da respetiva nulidade- cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/06/2020 supra citado. Se assim é, ou seja podendo estar-se perante uma nulidade formal do contrato de empreitada dos autos, importa saber se, em face dos contornos do caso concreto já reconhecidos pelas partes, o comportamento da R. a impede de exercer o direito de invocar a respectiva excepção. Na verdade, além de não questionar a celebração do contrato, a R. admite a sua execução, necessariamente continuada, pela A. numa dimensão substancial, de que é sintomático o valor já pago de 49.900,00€ num total de 57.785,19 € reclamados por esta. Ora, o exercício de um direito, à luz do art. 334.º do CC, pode ser ilegítimo quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, como sucede com o chamado venire contra factum proprium ou comportamento contraditório que, nas palavras de Henrich Ewald Höster, consiste na adopção pelo titular do direito de “um comportamento positivo no sentido de não querer exercer o mesmo, tendo esta atitude como consequência as correspondentes disposições da outra parte”. Pertencem aqui, prossegue o mesmo autor, “por ex., as situações criadas na sequência de negócios nulos e – como tais – sem os efeitos pretendidos em que as partes, ou uma delas, procedem como se o negócio fosse válido, criando com esta sua conduta, ulterior ao negócio, a confiança de que a nulidade não seria invocada…Aqui pode chegar-se a uma situação de confiança, em que a outra parte faz fé, que impede o titular, devido à estabilidade da sua conduta durante certo prazo, de se fazer valer do seu direito. Estes casos têm, no entanto o seu “quê” na medida em que é ilidida a sanção da nulidade e desconsiderada a razão na qual ela está fundada. Por outro lado, deve ser evitado que se invoquem meras posições formais, já sem fundamento material justificativo. Sobretudo quando critérios formais são invocados depois de ter passado muito tempo poder-se-á desconfiar que as verdadeiras razões (subjacentes) são outras” (in “A Parte Geral do Código Civil Português – Teoria Geral do Direito Civil”, Almedina, Coimbra, 1992, págs. 285/286). Neste sentido, também se tem pronunciado a jurisprudência dos nossos tribunais superiores de que é exemplo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/05/2003 (Proc. 3244/19.8STB.E1.S1) em que, com interesse, se pode ler, além do mais, que “Este Supremo Tribunal de Justiça, inicialmente mais formalista e recusando a invocação do abuso de direito nos casos de nulidade decorrente de inobservância da forma legal (16), veio depois, maioritariamente (posição a que aderimos) a reconhecer a admissibilidade dessa invocação desde que, no caso concreto, as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso de direito servirá de válvula de escape no nosso ordenamento jurídico, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo” (in www.dgsi.pt). Pois bem, retomando o caso dos autos, o que se verifica é que a par das circunstâncias supra referidas que, sendo pacificamente aceites pelas partes, podem apontar para uma situação de abuso de direito do R. na invocação da nulidade do contrato de empreitada, outras existem, como seja a existência ou não de trabalhos por realizar ou deficientemente executados, e eventual dimensão dos mesmos, que permanecendo controvertidos, não são indiferentes à apreciação do comportamento das partes, inclusive do R. no que respeita ao exercício dos seus possíveis direitos e, consequentemente, à definição de um eventual abuso de direito da parte deste. Sendo do conhecimento oficioso, o abuso de direito não tem de ser invocado pelas partes e pode ser apreciado pelo Tribunal (arts. 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 3 do CPC), desde que, naturalmente, esteja demonstrada toda factualidade que, alegada, possa concorrer para a sua verificação ou não (com interesse veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 4/10/2018,https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRG:2018:1047.14.5TBGMR.A.G1.F6/). Acresce que, constituindo o abuso de direito um obstáculo legal ao exercício do direito, no caso o de invocar a nulidade formal do contrato de empreitada, a decisão final sobre esta excepção não pode ter lugar sem que antes o Tribunal aprecie os factos respeitantes àquele instituto jurídico. Finalmente, como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 8/03/2012 - ainda que a propósito do conhecimento da excepção da prescrição em saneador-sentença -: “só pode conhecer-se do mérito da causa em saneador-sentença [e o conhecimento de uma excepção peremptória tem essa natureza] se o estado do processo o permitir sem necessidade de mais provas; e existindo mais do que uma solução plausível para a questão de direito, e factos controvertidos com relevância para alguma delas, é prematuro o conhecimento do mérito da causa no saneador. O prosseguimento do processo, com a produção de prova, será desnecessária apenas quando inexistam factos controvertidos que se mostrem relevantes para a solução da causa segundo as várias soluções plausíveis para a questão de direito (https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRE:2012:278.07.9.TBORQ.E1.2D/) Do que vem de se dizer, resulta, pois, que à luz das várias soluções plausíveis de direito sobre a consequência da falta da redução a escrito do contrato de empreitada dos autos, se mostra relevante, em caso de prevalência da nulidade formal invocada pelo R., apurar de toda factualidade alegada que seja susceptível de integrar ou afastar um eventual abuso de direito por parte daquele e, neste último caso, também a que diga respeito aos efeitos daquela nulidade. Em suma, não se considera que o estado dos autos, à luz das várias soluções plausíveis de direito, permitisse que Juiz de 1.ª Instância, ao abrigo do art. 595.º, nº 1, al. b) do CPC, conhecesse, sem necessidade de mais provas, da excepção da nulidade formal do contrato de empreitada em discussão, e, como tal, impõe-se revogar a decisão recorrida que conheceu dessa excepção e determinar o prosseguimento dos autos com vista à redefinição, em conformidade, do objecto dos autos assim como dos temas de prova que contemplem toda a matéria susceptível de preencher ou afastar um eventual abuso de direito do R. e que importe à determinação dos efeitos da possível procedência daquela nulidade. As custas são da responsabilidade da Recorrente, posto que, não havendo vencimento quanto à questão objecto do recurso, a revogação da decisão recorrida é a si que desde já aproveita (art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC). * Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º, n.º 7 do CPC): ……………………………………………. ……………………………………………. ……………………………………………. * V. Decisão Perante o exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em, julgando parcialmente procedente o recurso, revogar a decisão recorrida que conheceu da excepção peremptória da nulidade do contrato de empreitada dos autos e em determinar o prosseguimento dos autos com vista à redefinição do objecto dos autos assim como dos temas de prova que contemplem toda a matéria susceptível de preencher ou afastar um eventual abuso de direito do R. e que importe à determinação dos efeitos da possível procedência daquela nulidade. Custas pela Recorrente. Notifique. Porto, 11/12/2024 Carla Jesus Costa Fraga Torres Mendes Coelho Miguel Baldaia de Morais |