Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação do Porto:
Por decisão proferida no ….º Juízo Criminal do Porto, foi o arguido B……………….., condenado pela prática de um crime de difamação agravado pela publicidade, previsto e punido pelos artigos 180º, 183º, n.º 2 e 184º, com referência ao artigo 132º, n.º 2, j) do Código Penal, na pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa, à taxa diária de 9,00 €, e ainda a pagar ao demandante C……………….., o montante de €4.000,00, a título de danos de natureza não patrimonial.
O arguido inconformado com a condenação interpôs o presente recurso rematando a pertinente motivação com as seguintes conclusões:
1. A sentença sob recurso não aplicou correctamente os dispositivos constitucionais e penais relevantes sendo, antes, a expressão de um evidente preconceito cultural e de um apriorismo judicial, hipervalorizando uma pretensa honra e desvalorizando totalmente a liberdade de expressão e de opinião.
2. A sentença sob recurso não teve em devida conta o valor da liberdade de opinião num debate público com o relevo e a relevância que tinha o debate sobre a D……………….. e em que o assistente interviera na «esfera pública» de forma «violenta» ao pedir a demissão do artista E…………….. da direcção da D…………….
3. Ao não reconhecer a existência de uma causa de exclusão de ilicitude, o direito de opinião do ora recorrente, o tribunal «a quo» violou o disposto nos artºs 31º n.º2 b) do Código Penal e 10º da CEDH.
4. Deverão ser dados como não provados os pontos 4, 5 e 6 e 16 e 21 a 24 dos factos [não] provados e provado que «o arguido jogou com o sentido da palavra “energúmeno” no sentido de pessoa que possuída por uma obsessão, pratica desatinos» e, ainda, «que o assistente gosta de (e caracteriza-se, até por), praticar atitudes polémicas, pouco razoáveis ou desatinada», conforme resulta dos depoimentos.
5. O tribunal, ilegitimamente, fixou um sentido único à palavra energúmeno que considerou, à partida, ofensivo e criminalmente punível, aplicando incorrectamente o art.º 180º do Código Penal.
6. Sendo certo que, no sentido dado pelo arguido ao termo “energúmeno” e que deverá ser dado como provado, como «pessoa que possuída por uma obsessão, pratica desatinos», é perfeitamente razoável a sua utilização no debate político, não pondo nunca em causa a honra e o bom nome do assistente, pelo que deveria o ora recorrente ter sido absolvido por inexistência de qualquer ilícito.
7. O ora recorrente não teve sequer a noção de que poderia ofender o assistente pelo que sempre deveria ser absolvido, por inexistência de dolo, violando a sentença sob recurso, neste aspecto, o disposto nos art.º 13º, 14º e 180º do Código Penal.
8. Deverá, igualmente, ser revogada a decisão cível, absolvendo-se o demandado, por inexistência de ilícito e de danos relevantes com nexo de causalidade com a utilização da referida expressão no artigo em causa.
9. Termos em que deverá o recorrente ser absolvido.
Admitido o recurso o Ministério Público e o assistente responderam concluindo pela manutenção da decisão recorrida.
Já neste Tribunal o Ex.mo Procurador Geral Adjunto foi de parecer o recurso não merece provimento.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417º n.º 2 do Código Processo Penal e após os vistos realizou-se audiência, não tendo sido suscitadas, nas respectivas alegações, novas questões.
Factos provados:
1. Na edição do dia 22 de Junho de 2003 do Jornal “F…………..”, na sua página 6, foi publicado um escrito da autoria do arguido e por ele assinado, sob o título “………………..(I)”;
2. Nesse escrito, a propósito da D……………., o arguido escreveu: “No momento em que o energúmeno que encabeça a maioria PSD/CDS/PCP, na Câmara Municipal do Porto e seus apaniguados encetaram uma lógica repressiva de silenciamento, á cata de “delito de opinião”, ainda assim será da D……………… que se falará porque o que neste momento se nos oferece fruir e avaliar é um projecto cultural de uma envergadura e seriedade absolutamente ímpares»;
3. Tal parágrafo aparece também em destaque como cabeçalho do referido escrito;
4. Ao empregar a expressão “energúmeno”, o arguido não ignorava o seu significado, o qual segundo o Dicionário de Língua Portuguesa, edição da Porto editora, é o de «possesso pelo demónio, pessoa que cominada por uma obsessão pratica desatinos» e segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, (Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001) é o de «indivíduo desprezível, que não merece confiança; boçal, ignorante;
5. Não ignorava ainda o arguido que o artigo que escreveu iria ser amplamente divulgado, por força da sua publicação em jornal diário e que ao dirigir tal expressão à pessoa do Presidente da Câmara Municipal do Porto, o aqui assistente, que a mesma era ofensiva do respeito, da honra, do prestígio e do bom nome que naquela qualidade e por força do exercício de tais funções, lhe são devidos;
6. O arguido sabia a sua conduta proibida;
Da acusação particular provou-se ainda que:
7. O Jornal Diário “F………….” é um conhecido periódico português, com distribuição diária por todo o território nacional, desde o ano de 1989, que teve, no mês de Maio do ano de 2004, uma tiragem média total de 80.045 exemplares;
8. Para além da Edição impressa diária, o Jornal Diário “F…………….” também se encontra acessível, diariamente, com difusão planetária, no ciberespaço, no sítio www………..pt, onde esteve publicado o texto em causa;
9. No escrito referido nos autos o Arguido/Demandado imputou ao Assistente/Demandante a prática de uma lógica repressiva de silenciamento, à cata de “delito de opinião”.
Do pedido cível provou-se ainda que:
10. O Assistente/Demandante é economista e exerce, actualmente – tal como à data da prática dos factos – as funções de Presidente da Câmara Municipal do Porto;
11. O Arguido/Demandado é colunista, com periodicidade semanal (Domingo), na Secção “…………”, do jornal Diário “F……………..”;
12. O artigo referido em 1), publicado na edição do dia 22 de Junho de 2003 (Edição n.º 4840, Ano XIV do Jornal “F…………….”), na sua página 6 tem o seguinte texto integral:
……
……
…….
13. O artigo de opinião transcrito também esteve acessível, bem como toda a Edição do “F………….” em que vinha inserido, no sítio www………..pt, durante, pelo menos, sete dias, onde o texto do participado estava acessível a todos aqueles que entraram no referido sítio;
14. O Autor do artigo supra transcrito, ora Arguido/Demandado, dirigiu o artigo de opinião em causa a todos os leitores do jornal em que o mesmo foi publicado;
15. À data da publicação do artigo de opinião em causa – dia 22 de Junho de 2003 – era o Assistente/Demandante que encabeçava a maioria PSD/CDS/PCP no executivo da Câmara Municipal do Porto, exercendo funções de Presidente deste Município;
16. Sobre o Assistente/Demandante foi formulado, pelo Arguido/Demandado, um juízo de possesso pelo Demónio, ofendeu a honra, dignidade e consideração do Assistente/Demandante que se sentiu humilhado por ver a sua pessoa ser publicamente enxovalhada por directa conotação a um ente que, no espírito de todos, congrega tudo o que há de mais negativo;
17. O Dr. G…………….., Presidente da Câmara Municipal do Porto, ora Assistente/Demandante, é titular de um cargo autárquico de elevada responsabilidade – Presidente da Câmara Municipal do Porto considerado, pelo menos pelas testemunhas do pedido cível, como sendo um político sério e impoluto;
18. O demandante foi eleito pelo povo por meio de sufrágio directo e universal, no âmbito de uma acto eleitoral livre;
19. Pelo menos pelas testemunhas do pedido cível, o demandante é considerado um cidadão exemplar, personalidade instruída, culta e bem formada, servidora da causa pública, cultor dos valores humanos e democráticos e bom pai de família;
20. Pelo menos segundo as testemunhas do pedido cível, o demandante é respeitado e querido pelos seus entes próximos e amigos, como pessoa e homem de bem, íntegro, de honra e princípios;
21. O demandante é considerado pela maioria dos cidadãos do concelho do Porto, como uma pessoa que reúne as qualidades para assumir e exercer as funções de Presidente da edilidade;
22. Ao associar à pessoa do Assistente/Demandante uma imagem tão negativa, o Arguido/Demandado lacerou a honra, dignidade e consideração do Assistente/Demandante, desferindo um golpe no prestígio e reputação, pública e privada, que toda a sua vida se orgulha de ter cultivado;
23. A conduta do Arguido/Demandado abalou a honra e consideração do Assistente/Demandante;
24. O arguido ao escolher a frase acima transcrita para servir de caixa ao artigo publicado, estava ciente, por experiência e conhecimento directo, que o grande número dos leitores da imprensa escrita lê, em primeiro lugar e muitas vezes exclusivamente, os títulos ou os resumos dos artigos que as caixas representam;
*
Das contestações, com interesse para a decisão da causa, provou-se ainda que:
25. O arguido escreveu os artigos documentos 1 a 3 juntos que aqui se dão por integralmente por reproduzidos;
26. O arguido é um colaborador regular do jornal em causa, autor de uma coluna semanal, publicada na secção “…………..”, onde habitualmente tece comentários (muitas vezes, violentos e contundentes) sobre assuntos culturais, num tom, muitas vezes, irónico e polémico, independentemente da cor politico-partidária dos visados;
27. Quanto ao assistente, em concreto, o arguido por diversas vezes manifestou a sua discordância relativamente às suas posições e opções políticas na área da cultura;
28. No caso dos autos, o arguido formou a sua opinião sobre o assistente, a partir das posições que este assumiu publicamente sobre questões culturais, e que o arguido considera revelarem uma concepção provinciana, se não mesmo pacóvia, da cultura;
29. No entender do arguido, o assistente, depois de ser eleito, foi progressivamente deslocando as prioridades culturais do município para a dita “cultura popular” (ou “pimba”), em detrimento da “cultura clássica”, o que foi, e continua a ser, muito criticado por diversos agentes culturais;
30. Pelo menos na altura em que escreveu o artigo, o arguido entendia que o assistente revelava uma posição hostil e de desconfiança, e assumido posições que obstavam ao normal e saudável desenvolvimento do projecto da D………….., que para o arguido é um projecto único e de uma importância capital em termos de desenvolvimento cultural do norte;
31. Para o arguido a gota de água” que fez “transbordar o copo” foi a polémica que surgiu na sequência de uma entrevista que E…………… concedeu ao Jornal de……….., em 18 de Junho de 2003, em que este denunciou uma série de comportamentos do assistente (e de outros) que revelavam uma total incompreensão e desvalorização do projecto – doc. N.º 4, junto com o requerimento de abertura de instrução e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
32. O assistente exigiu publicamente a demissão de E………………. do cargo de administrador da D……………… na sequência das declarações deste;
33. Esta sequência de eventos suscitou um amplo e intenso debate nos meios culturais e na comunicação social, tendo inclusivamente o Presidente da República afirmado, aquando da sua visita ao Porto para presenciar os festejos do São João, que era importante a permanência de E……………. no projecto da D………………. ;
34. Foram estas e outras posições assumidas publicamente pelo assistente que contribuíram para a formação da opinião do arguido;
35. O artigo ora em causa foi publicado logo a seguir à referida entrevista de E……………… e quando a polémica estava no seu auge;
36. O jornal F…………….. tem um público leitor de nível cultural médio e elevado.
*
Provou-se ainda que:
37. O arguido tem como habilitações literárias a licenciatura e uma pós-graduação em sociologia;
38. Aufere um rendimento mensal incerto mas no valor médio anual declarado ao Fisco de 22.000,00 €;
39. Vive em casa arrendada pelo valor mensal declarado de 768,00 €;
4. O arguido não tem antecedentes criminais.
Não se provaram quaisquer outros factos, designadamente:
- Que o arguido tivesse desferido um rude golpe no prestígio e reputação, pública e privada do assistente;
- Que a conduta do arguido tivesse abalado muito, a honra e consideração do Assistente/Demandante;
- Que o assistente se tenha sentido profundamente humilhado por ver a sua pessoa ser publicamente enxovalhada por directa conotação a um ente que, no espírito de todos, congrega tudo o que há de mais negativo;
- Que o arguido jogou com o sentido da palavra “energúmeno” - pessoa que possuída por uma obsessão, pratica desatinos;
- Que o assistente gosta de (e caracteriza-se, até por), praticar atitudes polémicas e pouco razoáveis ou desatinada.
Motivação:
A convicção do Tribunal fundamentou-se no seguinte:
O arguido e o assistente, mantiveram no essencial as suas versões dos factos nos termos apresentados respectivamente na contestação e na acusação e no pedido de indemnização cível.
Para além do que resulta directamente da prova documental junta aos autos no que diz respeito ao teor do próprio artigo, o tribunal valorou as declarações do arguido e do assistente e os depoimentos das testemunhas ouvidas nos seguintes termos:
O arguido confirmou a autoria do texto em causa, acrescentando que é da sua responsabilidade o texto do mesmo.
Referiu que escreveu o artigo porque entendia que o assistente colocava entraves sucessivos ao projecto da D………………, tendo-se posicionado de forma obsessiva, assumindo posições públicas prepotentes que o arguido entendeu criticar.
O arguido acrescentou que o texto retracta uma apreciação política assente na discussão de ideias e não de pessoas.
Escreveu o artigo em causa tendo como destinatários a generalidade dos leitores do “F……………”, utilizando o termo “energúmeno” no sentido de pessoa que provoca desatinos e desordens, desacatos (manifestações coléricas por exemplo), sendo esse o sentido que teria sido compreendido pelos leitores do jornal uma vez que se trata de um público esclarecido.
Admitiu que a palavra em causa pode ser usado com agressividade, reconhecendo também que tem um sentido corrente ofensivo, negando que a utilização do termo tivesse qualquer relação com a vida pessoal do assistente.
O assistente além do mais, alegou que o artigo era insultuoso porque traduz a ideia de uma pessoa que não tem princípios sem respeito pelas regras de conduta mais elementares.
Afirmou que se sentiu injuriado e difamado com o artigo em causa porque a palavra “energúmeno” quer dizer que é uma pessoa desprezível.
Admitiu ainda o assistente, além do mais, que o projecto da D……………… era um “dossier polémico”.
Quanto às testemunhas de acusação e do pedido cível, há que referir que as mesmas prestaram os seus depoimentos de forma isenta e convincente de forma a confirmarem a matéria de facto nos termos em que acima se deram com provados.
Assim e com relevância para a decisão da matéria de facto e além do mais, referiram o seguinte:
A testemunha H………………… ligado profissionalmente ao assistente, referiu além do mais, que este ficou agastado com a notícia, tendo-se sentido ofendido com a notícia. O artigo foi comentado na Câmara Municipal do Porto.
A testemunha I……………… com uma ligação mais próxima do assistente, afirmou que esteve com este no dia em que saiu o artigo no “F……………..”, tendo-o encontrado desanimado e aborrecido o artigo em, causa. Admitiu porém que o assistente já se encontrava fragilizado com o problema do relacionamento com um clube de futebol da cidade pelo que o artigo teria sido a “gota de água”.
A testemunha acrescentou, além do mais, que o termo “energúmeno”, reveste um carácter insultuoso por se referir a alguém que não tem princípios.
A testemunha J………………, amigo do assistente há cerca de 30 anos, além do mais referiu que esteve também com este no dia em que o artigo saiu no jornal, antes e depois de ter o lido, tendo notado uma diferença no seu estado de espírito. Referiu que o assistente ficou chocado com o artigo, sentindo-se insultado e revoltado.
Referiu ao tribunal que o termo em causa é insultuoso por traduzir alguém que não tem princípios, que não é civilizada.
A testemunha referiu que viu no dia dos factos, o assistente “muito em baixo”.
Quanto às testemunhas de defesa e com interesse para a decisão da matéria de facto:
A testemunha E……………….., além do mais que efectivamente, o projecto da D………………, segundo a sua opinião, estava a sofrer mudanças na altura em que o arguido saiu, tendo começado a ficar “esvaziado”. Acrescentou que o artigo teria sido escrito fazendo eco das críticas que se levantaram então, quanto à alegada mudança no rumo do projecto da D………………….
A testemunha manifestou a sua visão sobre a postura do assistente em relação aos agentes culturais, afirmando que a mesma se caracterizava pelo desprezo.
Admitiu a testemunha que o termo “energúmeno” é uma expressão “forte”. Para si esta palavra tem o significado de pessoa possuída pelo demónio.
A testemunha L………………, pronunciou-se quanto à pessoa do arguido, manifestando a sua opinião que este é “uma presença fundamental no panorama cultural português”, encarando com frontalidade e com polémica, as questões que se levantam no meio cultural. Segundo acrescentou, a testemunha também foi alvo das críticas do arguido.
A testemunha também referiu que na altura em que o arguido foi escrito, havia uma polémica entre o assistente e a testemunha E……………….. no que diz respeito ao projecto da D…………………….
Admitiu que o artigo em causa nestes autos, é “particularmente” duro e violento, reconhecendo também que não gostaria de ver utilizada a mesma expressão em relação a si próprio por se tratar de uma expressão pejorativa.
Esclareceu porém que entende a utilização da expressão e o artigo no seu todo, não como um ataque pessoal.
A testemunha M…………….. manifestou em audiência o seu entendimento que o arguido é uma voz essencial no domínio da cultura por ter uma opinião própria, de grande independência.
Confirmou o que também resulta dos autos, ou seja, que o artigo aqui em causa foi publicado depois de ter sido publicada no Jornal de…………, uma entrevista a E…………...
A testemunha referiu que a expressão “energúmeno” teria sido utilizada pelo arguido como crítica, no plano político e não no plano pessoal. Admitiu que a expressão traduz a ideia de uma pessoa que faz mal as coisas: “é uma frase contundente”, reconhecendo que ficaria “aborrecido” se lhe chamassem a mesma coisa, mas não se sentiria ofendido.
Finalmente, a testemunha N………….., manifestou também o seu entendimento que se verificava na altura em que o arguido foi publicado, uma mudança na orientação do projecto da D………………., num sentido mais popular por influência do assistente. Explicou que se tratava do confronto entre duas visões de política cultural.
A testemunha referiu que o arguido teria escrito a palavra “energúmeno” e o texto em causa como ataque à política cultural dominante. Admitiu porém que a palavra “energúmeno” desqualifica a pessoa porque se refere a alguém que é “inculto, agressivo”.
Valorou ainda o Tribunal os documentos juntos aos autos, incluindo as cópias do próprio notícia, os documentos juntos a folhas 12 a 17, 117 a 119, o CRC do arguido e outros documentos, devidamente apreciados em audiência.
Quanto às condições sócio-económicas do arguido, o tribunal, na falta de outros elementos valorou as próprias declarações dos mesmos que nesta parte se mostraram suficientemente sinceras.
O Direito:
No seu ordenamento lógico as questões a decidir são as seguintes:
a) Se o arguido utilizou a palavra energúmeno no sentido de possesso pelo demónio, pessoa que possuída por uma obsessão pratica desatinos, tem atitudes polémicas, pouco razoáveis ou desatinadas; indivíduo desprezível, boçal e ignorante;
b) Se a liberdade de opinião e a sua tutela constitui causa de exclusão de ilicitude;
c) Se o arguido agiu com dolo.
Nos termos do artigo 180.º, n.º 1 do Código Penal, comete o crime de difamação «quem dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo...».
De acordo com o n.º 2 do mesmo artigo, a conduta não é punível quando:
a) a imputação for feita para realizar interesses legítimos; e;
b) o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
A boa fé exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.
De acordo com o disposto no artigo 183.º, n.º 2, se o crime de difamação ou de injúrias forem cometidos através de meio de comunicação social, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias.
A primeira das pretensões do arguido é a de que «deverão ser dados como não provados os pontos 4, 5, 6, 16 e 21 a 24 dos factos provados» e provado que «o arguido jogou com o sentido da palavra “energúmeno” no sentido de pessoa que possuída por uma obsessão, pratica desatinos» e, ainda, «que o assistente gosta de (e caracteriza-se, até por), praticar atitudes polémicas, pouco razoáveis ou desatinada», conforme resulta dos depoimentos.
A expressão energúmeno é polissémica.
O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, 2001, refere “energúmeno” como sendo a pessoa que se supõe estar possessa do demónio, ou pessoa que possuída por uma obsessão, pratica desatinos. O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Círculo de Leitores, Lisboa, 2003, define e dá os seguintes sinónimos: possuído pelo demónio; possesso; indivíduo que, exaltado, grita e gesticula excessivamente, indivíduo desprezível, que não merece confiança; boçal, ignorante; indivíduo obsessivo, que se entrega a desatinos. Endemoninhado, possuído do demónio; possesso, indivíduo desnorteado, exaltado, é o significado segundo o Dicionário Universal de Língua Portuguesa, Texto Editora. Pessoa que se supõe estar possessa do demónio; endemoninhado, possesso; pessoa que, possuída por uma obsessão, pratica desatinos, é a definição do Dicionário de Língua Portuguesa Contemporâneas, da Academia das Ciências de Lisboa, Verbo e Fundação Calouste Gulbenkian. Possesso; pessoa que, dominada pela paixão, pratica desatinos; fanático intolerante, é o sentido que se colhe no Novo Dicionário Lello de Língua Portuguesa. Indivíduo que se supõe possesso do demónio; indivíduo que se exalta, que se exprime por brados e gestos violentos, é a noção apresentada pelo Dicionário Prático Ilustrado, Lello & Irmão – Editores.
Segundo a decisão recorrida foi essencialmente no sentido de indivíduo desprezível, que não merece confiança; boçal, ignorante que o arguido utilizou o termo em causa, face ao texto do artigo e dos artigos que foram juntos com o requerimento de abertura de instrução e face à sua versão apresentada nestes autos. E continua a decisão recorrida: «efectivamente como o arguido refere no artigo 16.º da sua contestação, “formou a sua opinião sobre o assistente, a partir das posições que este assumiu publicamente sobre questões culturais, e que o arguido considera revelarem uma concepção provinciana, se não mesmo pacóvia, da cultura”. Ou seja, por outras palavras, o assistente, ao defender um projecto diferente para a D……………….. (de cariz mais popular ou ”pimba” como lhe chama o arguido), é um indivíduo “boçal, ignorante”».
Conclui depois a decisão recorrida: «a palavra energúmeno está mais associada a pessoas que actuam sem princípios, a ignorantes e a pessoas desprezíveis do que propriamente, a pessoas possuídas pelo demónio. As pessoas menos dotadas em termos de conhecimento e de cultura, porventura nem conhecerão o termo».
Temos alguma dificuldade em acompanhar a decisão recorrida, quando, perante a polissemia da palavra, a variedade de sentidos possíveis, da paleta da sinonímia individualiza e dá relevo apenas a alguns sentidos e aos mais deselegantes, apesar dos seus sentidos diversos. Segundo a decisão recorrida quando o arguido chama ao assistente “energúmeno”, quis dizer ignorante, pessoa desprezível, boçal... Ora, uma coisa é ser ignorante, outra ser desprezível e por aí adiante. O senhor A pode ser ignorante e, ao mesmo tempo, a mais adorável das pessoas. Ou, ao contrário, o senhor A pode ser o supra sumo de tudo e mais qualquer coisa e, ao mesmo tempo, o mais desprezível dos seres humanos.
A expressão energúmeno, tendo em vista lograr saber o sentido com que foi utilizada, tem que ser contextualizada no todo que é o artigo do arguido. O que releva é o sentido com que o arguido utilizou a expressão, isto é a sua intencionalidade.
Todos estão de acordo que a causa próxima do texto jornalístico foi a polémica em torno da D……………... Mais uma das muitas. Do artigo em questão, como dos diversos pronunciamentos do arguido e do assistente, ressalta que ambos tinham perspectivas diversas quanto ao modelo de gestão e programação da D……………. . E a polémica subiu de tom e, como normalmente também acontece, desceu de nível, quando foi questionada a continuação de E…………… no projecto. A título de mera ilustração do afirmado, para o arguido, conhecido crítico da área cultural em jornais nacionais de referência, «a D……………… não pode deixar de vir a considerar chamar a si a responsabilidade de formação do primeiro conjunto instrumental barroco profissional neste país» [citação retirada do texto escrito pelo arguido]. Já em data anterior, em 28 de Julho de 2002, sob o título «E o Porto, Pimba!», o arguido escreveu no Público, entre o mais, que «A inesperada vitória autárquica de G………….. foi-me simpática (...). Tinha dele uma imagem de homem de princípios e de isenção». Depois dirigi-lhe uma crítica cerrada pelas suas políticas culturais, rematando o artigo: «quem sabe se G………….. não estará na “vanguarda” das políticas culturais do PSD, de um desejo de “pimbização” em curso? E nós? Pimba!
Do artigo em causa nos autos, donde foi retirada a expressão energúmeno, assim como do artigo acabado de referir, parece-nos não resultar que o arguido considere o arguido uma pessoa desprezível. Não vemos, assim, apoio, de um «ponto de vista impessoal»(1) de ponderação do conteúdo do escrito, para o conclusão da decisão recorrida quando realça esse sentido. Nem a decisão fornece qualquer esclarecimento dessa sua opção na motivação: isto é, porque razão, de entre os diversos sentidos de uma palavra, escolheu uns e não outros, e logo aqueles que sustentam um juízo negativo.
Não há, assim, apoio para concluir como se concluiu no n.º 5 e 6 dos factos provados, que a expressão foi usada no sentido de indivíduo desprezível. Menos ainda para concluir e afirmar como se fez no n.º 16 que sobre o Assistente/Demandante foi formulado, pelo Arguido/Demandado, um juízo de possesso pelo Demónio, ofensivo da honra, dignidade e consideração do Assistente/Demandante que se sentiu humilhado.
Quanto mais não seja pela invocação do princípio in dubio pro reo, que aqui teria pleno cabimento e levaria a esta mesma conclusão. Se o arguido, conforme refere a sentença na motivação, afirmou em audiência «que escreveu o artigo porque entendia que o assistente colocava entraves sucessivos ao projecto da D..............................., tendo-se posicionado de forma obsessiva, assumindo posições públicas prepotentes que o arguido entendeu criticar» e que «o texto retracta uma apreciação política assente na discussão de ideias e não de pessoas (...) utilizando o termo “energúmeno” no sentido de pessoa que provoca desatinos e desordens, desacatos (manifestações coléricas por exemplo), sendo esse o sentido que teria sido compreendido pelos leitores do jornal uma vez que se trata de um público esclarecido», (...) «negando que a utilização do termo tivesse qualquer relação com a vida pessoal do assistente», não vemos como, sem explicar e fundamentar porquê, o tribunal descarta a explicação do arguido, que até tem apoio no texto do artigo em causa e no contexto de outros artigos de opinião que o arguido escreveu, enquanto jornalista, quanto à D............................... e trilha um caminho desfavorável ao arguido. Se o arguido diz que utilizou a palavra com um dos sentidos possíveis que ela comporta; se o artigo, no seu todo, numa abordagem «impessoal» não afasta essa explicação, o tribunal não pode «escolher», acrítica e subjectivamente, do catalogo variegado, o sentido querido pelo arguido, como também não pode, sem mais, dar guarida ao sentir subjectivo do ofendido. Tem que prestar contas pela opção tomada, tem que explicar a razão pela qual se convenceu que o arguido utilizou a palavra com o sentido que lhe atribuiu. Ora nada disso foi feito.
No caso, ocorre, pelo menos, um estado de dúvida que o tribunal só pode, só podia, ultrapassar de acordo com o princípio in dubio pro reo. Este princípio, tem consagração constitucional, via presunção de inocência, no art.º 32º n.º 2 da Constituição, norma directamente aplicável por força do art.º 18º da Constituição; está também consagrado nos artºs 11º da DUDH, 6º n.º 2 da Convenção Europeia para a protecção dos direitos e liberdades fundamentais e 14º n.º 2 do Pacto Internacional de direitos civis e políticos, instrumentos também aplicáveis por força do art.º 16º da Constituição. Assenta na ideia de que a impunidade do culpado é mais tolerável do que a condenação de um inocente(2) Na presunção de inocência filia-se a regra de apreciação da prova de que a culpabilidade só pode ser afirmada com base em provas das quais resulte que se ultrapassou a dúvida razoável: não basta uma certeza puramente subjectiva, menos ainda uma impressão de certeza. A subsistência ou insubsistência de uma dúvida razoável só pode ancorar-se em dados objectivos. A afirmação da culpabilidade tem que ser objecto de uma prova tão rigorosa que seja capaz de resistir a qualquer objecção minimamente sensata e de convencer pela sua argumentação e conformação com as regras da experiência e da lógica(3).
Numa outra formulação, o princípio in dubio pro reo é o resultante de dois postulados processuais – o postulado processual da exigência dirigida ao juiz de decidir sempre (....) e o postulado processual criminal que tem como inadmissível uma condenação penal em que se não tenha convencido o arguido da sua responsabilidade e culpabilidade(4). Assim decorre do in dubio pro reo que todos os factos relevantes para a decisão que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal, também não possam considerar-se como provados. Um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz que omita a decisão, como acima se acentuou – tem de ser sempre valorado a favor do arguido, é a lapidar lição de Figueiredo Dias.
No caso, não explicando o julgador porque não aceita a explicação possível e plausível do arguido, resta-nos um estado de incerteza. Não tendo o julgador certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa, a consideração do princípio in dubio pro reo impunha ao julgador, que decidisse de forma favorável ao arguido, aceitando o sentido indicado pelo arguido para a palavra energúmeno.
Pressupondo, então, que o arguido quando chama ao assistente “energúmeno”, quer significar que o mesmo é ignorante e boçal, em termos de política e gosto cultural, que pratica destinos [a defesa/exigência da demissão de E………………..], e que esta sua última atitude se insere numa lógica repressiva de silenciamento, à cata de “delito de opinião”, será que essa crítica, inequivocamente cáustica para o ofendido, ultrapassa os limites desenhados pela lei penal?
Uma primeira nota para recordar que o arguido é um jornalista, que escreve sobre temas culturais e o assistente é o Presidente da Câmara Municipal do Porto. Daqui não se retire, apressada conclusão, que o homem público tem de «ouvir e calar». Não é a leitura que fazemos do nosso ordenamento jurídico. Importa realçar que no nosso ordenamento jurídico, o âmbito de protecção do direito ao bom nome e reputação, contrariamente ao que por vezes se ouve e lê, não é menos intenso na esfera política do que na esfera pessoal.
Atendendo à natureza das questões discutidas, questões de interesse público e comunitário, não divisamos fundamento para a afirmação da decisão recorrida de que o arguido pôs «em causa a pessoa e não apenas as suas opções políticas». Parece-nos que, pelo contrário, apenas as políticas culturais estão em causa, e num segmento de «gosto», mais popular ou erudito, com o que isso tem de relativo. Por outro lado, e imbricada nesta, está a questão da gestão da D................................ Questões do âmbito político e cultural e não pessoal, o que se afirma apesar da dificuldade inerente a estas distinções, e reconhecendo, em determinadas zonas, a artificialidade da distinção. Afinal não deixa de ser, como diz o locutor, a «vida».
Para dissipar qualquer dúvida - de que a questão se situava no âmbito político -, basta lembrar «a dança das administrações» subsequente às mudanças governativas. É pura constatação.
A liberdade de opinião e de expressão são indissociáveis. A primeira só se realiza plenamente com a segunda. Se é verdade que não há machado que corte a raiz ao pensamento, só a liberdade e a possibilidade de o revelar publicamente dá verdadeiro sentido à liberdade de pensamento. Neste contexto é incontestado o entendimento de que a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais da sociedade democrática. Estas liberdades são também protegidas pela CEDH; e o TEDH vem afirmando que a liberdade de expressão vale também para as ideias que ferem, chocam ou inquietam(5) e qualquer restrição a essa liberdade só é admissível se for proporcionada ao objectivo legítimo protegido.
A referência à CEDH e ao TEDH apenas pretende cumprir o desígnio do art.º 16º da Constituição: os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras de direito internacional; os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a DUDH.
O direito ao bom nome e à reputação é um direito pessoal - direito de personalidade na nomenclatura civilística - reconhecido pela Constituição, art.º 26º n.º1. O direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento tem assento constitucional, art.º 37ºda Constituição. É um direito imbricado na liberdade de imprensa, art.º 38º da Constituição.
Nenhum destes direitos, - bom nome e liberdade de imprensa - é absoluto. O direito ao bom nome constitui um limite, um fundamento constitucional de restrição da liberdade de comunicação e por isso se fala de conflito dos direitos de personalidade com a liberdade de expressão e de imprensa. À imprensa incumbe comunicar informações e ideias sobre questões políticas e outras questões de interesses geral e o público tem o direito de as receber; por outro lado, a liberdade de imprensa fornece um bom meio de conhecer e julgar as ideias e as atitudes dos dirigentes(6). Mas esse desiderato só pode ser prosseguido dentro dos limites do direito, sem ofensa do bom nome. Há assim uma «relação de tensão» entre os direitos de personalidade e as liberdades de expressão(7).
Como já dissemos o âmbito de protecção do direito ao bom nome e reputação, contrariamente ao que parece ser entendimento de alguns, não é menos intenso na esfera política do que na esfera pessoal, agora o que deve é ser harmonizado e balanceado com a liberdade do debate político e com a liberdade de crítica política, inerentes à democracia(8). No confronto dos dois direitos, só a «ponderação ou balanceamento» do caso concreto, afastando-se qualquer ideia de supra ou infravaloração abstracta, permite concluir o que é ou não penalmente censurável.
Nessa «ponderação e balanceamento», na procura da «concordância prática»(9) importa ter presente que em contraponto ao direito do ofendido não está apenas o direito de expressão de um cidadão individual, está isso e algo mais: o direito fundamental, nas sociedades democráticas, de liberdade de expressão e de imprensa. Isto é, a discussão, aberta e desinibida, na esfera pública dos assuntos de interesse geral. Nesta tarefa a imprensa – e neste caso, correndo o risco de alguma má interpretação não estamos perante a «petite presse»... - funciona como instância de ligação e controlo entre o povo e os representantes eleitos, assegurando a transparência dos estados e movimentos de opinião como referiu o Tribunal Constitucional alemão no caso Spiegel(10) permitindo que o cidadão avalie criticamente as decisões políticas.
Se, como vimos, os direitos fundamentais devem ser interpretados de harmonia com a DUDH, conforme impõe o art.º 16º da nossa Constituição, nessa tarefa interpretativa o TEDH, o seu labor jurisprudêncial, é um «incontornável e qualificado protagonista»(11) na leitura desses direitos.
Importa iniciar a predita tarefa de «ponderação e balanceamento» com a prévia advertência de que ao direito penal não cabe a realização de uma qualquer ordem moral, mas a tutela dos bens jurídicos, necessariamente referidos à ordem axiológica constitucional não sendo nossa a tarefa de avaliar, fora do direito penal, a (in)correcção da conduta do arguido.
Energúmeno, no sentido que o arguido admitiu ter usado - ignorante e boçal, em termos de política e gosto cultural, que pratica destinos [a defesa/exigência da demissão de E………………..], e que esta sua última atitude se insere numa lógica repressiva de silenciamento, à cata de “delito de opinião” -, que é o que releva em virtude da aplicação do princípio in dubio pro reo, pode suportar uma crítica objectiva. Coenvolve a expressão de uma opinião, quanto ao que o Presidente da Câmara Municipal do Porto queria para a D..............................., com a qual o arguido estava em franco desacordo. Desde logo a demissão de E…………….., decisão que o ofendido defendeu nos jornais, e a continuação de E……………. que o arguido considerava imprescindível. Não vemos como o propósito do arguido se reconduza a um insulto para denegrir o ofendido. Do artigo de um «ponto de vista impessoal» resulta o propósito de alertar o público quanto ao propósito do ofendido e da sua maioria política de dar à D............................... um destino/orientação, que o arguido entendia desadequado. A expressão, com o sentido de ignorante ou mesmo boçal em matéria cultural, não é dirigida contra a pessoa do ofendido mas contra o dirigente político da maioria que governava a Câmara Municipal do Porto, contra o seu presidente. O texto do artigo e o contexto da disputa, amplamente documentada nos autos, com opiniões, declarações e entrevistas de várias pessoas, são elucidativos quanto à dimensão [exclusivamente] política da discussão, que até teve o pronunciamento de S. Exª o Presidente da República...
Estando em causa uma conflitualidade político-cultural acerca de uma opção quanto ao modelo de gestão e programação da D……………….., assunto de inegável interesse público, se a conflitualidade se desenvolve no campo da mera discussão pública com ataques e defesas dos respectivos pontos de vista, com maior ou menor elevação, mas dentro dos limites do normal em discussões públicas, não deve ser o direito, e muito menos o direito penal, a aniquilar uma das partes em conflito se, e enquanto, ele decorre no campo do admissível. Importa ter presente que o ordenamento jurídico tem patamares distintos de intervenção: o administrativo, que cabe a uma entidade administrativa, art.º 39º da Constituição e Lei n.º 53/2005, de 8.11 [ERCS], o direito civil e o direito penal. Lembrando que o direito penal, pouco preocupado com a «espuma dos dias», visa uma tutela subsidiária (ou de ultima ratio) de bens jurídicos dotados de dignidade penal. A protecção do «mínimo ético» da vida social é reservada pelo direito penal, para as violações graves do direito de personalidade(12).
A paixão no debate, que por vezes leva a exageros, é, deve ser, tão só a face de uma moeda – a moeda corrente do debate público – que tem de ter no outro lado, no seu verso, a tolerância. Como escrevia Daniel Innerarity no El País, cujo eco nos chegou pelo Courrier internacional, n.º 92, somos seres humanos quando temos tanto amor à liberdade que estamos dispostos a pagar o preço de ter de viver com a irreverência e o mau gosto. Não é preciso que as piadas nos façam rir, que uma argolado teológica nos empolgue ou que aplaudamos desenfreadamente uma encenação com cabeças cortadas. Talvez tenhamos descoberto que o mau gosto e as opiniões peregrinas tornam a coexistência muito difícil, mas a sua interdição torna-a radicalmente impossível. É essencial, como referia Timothy Garton Ash, no The Guardian, que se retorne ao espírito de Voltaire: discordo do que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito a dizê-lo.
Isto não significa que os jornalistas estão dispensados, como por vezes se ouve, de obediência à lei. Numa sociedade democrática não vigora o «vale tudo». Agora numa sociedade democrática, a crítica é um exercício de cidadania, de que não se deve ter medo e muito menos perseguir penalmente, se a mesma se contém dentro dos limites lícitos, que são suficientemente amplos como vamos ver, quando estão em causa questões de interesse público.
O TEDH, a propósito do art.º 10º da CEDH, vem repetindo, a função da imprensa é essencial numa sociedade democrática; se a imprensa não deve ultrapassar certos limites, particularmente no que respeita à reputação e aos direitos de terceiros, o seu dever consiste em transmitir informações e ideias em todas as matérias de interesse público, de modo consistente com a suas obrigações e responsabilidades. Os limites da crítica admissível são mais exigentes em relação a um cidadão do que em relação a políticos ou aos governos, e o exercício da liberdade de informação contempla a possibilidade de recurso a um certo grau de exagero ou mesmo de provocação(13) (14).
Foi o que, no caso Vicente Jorge Silva [fundador do jornal Público] c. Portugal(15), O TEDH teve oportunidade de recordar: sem prejuízo do n.º2 do art.º 10º da CEDH, a liberdade de expressão é válida não apenas para as «informações» ou «ideias» admitidas favoravelmente ou consideradas como inofensivas ou indiferentes, mas também para as que ferem, chocam ou causam inquietação. Assim o exigem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura sem os quais não há «sociedade democrática». Tal como refere o art.º 10º, o exercício desta liberdade está sujeito a formalidades, condições, restrições e sanções que todavia devem ser estritamente interpretadas, devendo a sua necessidade ser estabelecida de maneira convincente. Se a imprensa não deve ultrapassar os limites fixados em vista, nomeadamente, «da protecção da reputação de outrem», incumbe-lhe contudo transmitir informações e ideias sobre questões políticas bem como sobre outros temas de interesse geral. O homem político expõe-se inevitável e conscientemente a um controlo atento dos seus factos e gestos, tanto pelos jornalistas como pela generalidade dos cidadãos, e deve revelar uma maior tolerância sobretudo quando ele próprio profere declarações públicas susceptíveis de crítica. Ora foi no seguimento da entrevista do ofendido a defender a demissão do músico E……………….. que o arguido reagiu com o texto de opinião em causa.
Idêntica foi a postura do TEDH no caso Oberschlick c. Áustria. Estava em causa a condenação de um jornalista por ofensa a um homem político: o requerente tinha publicado num jornal um texto no qual utilizava o termo Trottel [imbecil]. O TEDH entendeu que o escrito do requerente, em particular o vocábulo Trottel, podendo passar por polémico, não continha um ataque pessoal gratuito(16).
Decidir os limites da crítica legítima é por vezes difícil. O arguido não foi delicado na sua crítica, sendo certo que o direito penal não trata, como já enfatizamos, dessa dimensão dos comportamentos. Mas também não nos parece ocorrer ataque pessoal gratuito: o artigo de opinião em causa é apenas mais um, em que o recorrente desanca de modo desabrido a política cultural do ofendido, que na opinião do recorrente era errada. Importa não esquecer a importante e pertinente distinção, que S. Ruhdie estabeleceu: atacar pessoas é uma coisa, criticar as suas crenças ou as suas ideias é outra.
Na nossa sociedade democrática, a crítica é um exercício indispensável de cidadania, de que não se deve ter medo e muito menos perseguir; a crítica legítima, está bom de ver. Ora a crítica que o arguido levou a cabo, a respectiva acção, não é sequer penalmente típica(17) pelo que se impõe a sua absolvição, quer em sede penal, quer em relação ao pedido de indemnização. Consequentemente, fica prejudicado o conhecimento das demais questões.
Decisão:
Absolve-se o arguido, quer em sede penal, quer quanto ao pedido de indemnização.
Custas pelo assistente fixando-se a taxa de justiça em 2UC.
Porto, 31 de Outubro de 2007
António Gama Ferreira Ramos
Luís Eduardo B. de Almeida Gominho
Abílio Fialho Ramalho
Arlindo Manuel Teixeira Pinto
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(1) Jónatas Machado, Liberdade de imprensa, p. 777.
(2) Cavaleiro de Ferreira, Curso Processo Penal, II, 1981, p. 310.
(3) Tomás Vives Antón, El proceso penal de la presunción de inocencia, in Jornadas de direito processua penal e direitos fundamentais, pág.34.
(4) Castanheira Neves, Sumários de processo penal, 1968, 55-6.
(5) Como referiu o TEDH em Dezembro de 1976, no caso do Pequeno livro vermelho, editado pelo cidadão britânico, Richard Handyside.
(6) Lopes Rocha, A liberdade de expressão como direito do homem, Sub Judice, 15/16, p. 12.
(7) Jónatas Machado, ob. cit., p. 750.
(8) Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição anotada, 4º ed. I vol. p. 466.
(9) Costa Andrade, Liberdade de imprensa e inviolabilidade pessoal, p. 34.
(10) Costa Andrade, ob. cit. p. 52.
(11) Parafraseando Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição anotada, 4º ed. I vol. p. 5.
(12) Costa Andrade, ob. cit. p. 62 e Jónatas Machado, ob. cit. p. 776.
(13) Henriques Gaspar, Jurisprudência crítica, TEDH, RPCC, 15 (2005) n.º4, p. 656.
(14) Sem prejuízo da afirmação, que reiteramos, de que o âmbito de protecção do direito ao bom nome e reputação não é menos intenso na esfera política do que na esfera pessoal. O que pode acontecer, como também realçamos, é que a «ponderação e balanceamento» dos direitos é feita por referência a direitos fundamentais que não são coincidentes; se de um lado está sempre a honra e consideração, do outro pode estar só a liberdade de expressão ou a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa.
(15) RPCC 11 (2001) p. 139 e 140.
(16) Cfr. a resenha de Henriques Gaspar na RPCC 8 (1998), Fasc. 4, p. 667 a 669.
(17) Costa Andrade, Liberdade de imprensa e inviolabilidade pessoal, p. 233, 238 e 240.