Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
97392/23.2YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: PROCEDIMENTO DE INJUNÇÃO
CONTRATO DE SEGURO DE CRÉDITO
USO INDEVIDO DO PROCESSO
Nº do Documento: RP2024050997392/23.2YIPRT.P1
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, o Tribunal de recurso apenas pode conhecer de questões que tenham sido objeto de conhecimento pelo Tribunal recorrido.
II - Um contrato de seguro de crédito não integra uma transação comercial para efeitos de aplicabilidade do regime do Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio, na medida em que inexiste qualquer fornecimento de bens ou prestação de serviços contra remuneração.
III - A maior ou menor complexidade das questões que possa vir a ter de se apreciar num procedimento de injunção, designadamente em virtude da oposição deduzida, não consta da lei como impedimento ao recurso ao regime da injunção.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 97392/23.2YIPRT.P1







ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO



I – Resenha do processado

1. A..., SA instaurou requerimento de injunção contra B..., L.da, pretendendo obter desta o pagamento total de €10.072,59, englobando €9.573,80 de capital, mais juros moratórios.
Fundamentou o seu pedido que no exercício da sua atividade seguradora, celebrou com a Ré um contrato de seguro de crédito, tendo ela ficado obrigada ao pagamento dos respetivos prémios. A Ré não pagou os prémios no valor total peticionado (que foram discriminados nas faturas discriminadas no requerimento).
Notificada, a Ré deduziu oposição na qual excecionou com a ineptidão do requerimento de injunção (falta de alegação de factos, dado não terem sido juntas as faturas). Em sede de impugnação, alegou que era obrigação da Autora conceder garantia para os créditos dos clientes da Ré, nomeadamente através da cobertura dos riscos de crédito, incluindo a mora do cliente que subsista em prazo superior ao prazo constitutivo do sinistro. Sucede que, tendo-lhe sido comunicado um sinistro, a Ré não cumpriu. Por essa razão, a Ré resolveu o contrato em 31/03/2023.
Para além disso, deduziu reconvenção pelos prejuízos causados pelo incumprimento da Autora, no valor de €69.630,00, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos.
Face à oposição, os autos foram remetidos à distribuição, tendo sido transmutados em ação especial de cumprimento de obrigações pecuniárias (Decreto-Lei nº 268/98, de 01 de setembro).
Já no tribunal, a Autora foi convidada ao aperfeiçoamento do seu requerimento de injunção e a pronunciar-se sobre as exceções, o que cumpriu.
A Ré exerceu o contraditório e a Autora também.
Depois, a M.mª Juíza emitiu despacho a convidar a Autora para se pronunciar sobre a exceção do uso indevido do procedimento de injunção.
Em resposta, a Autora considerou não se verificar a dita exceção e invocou que, face à dedução de reconvenção, os autos devem ser transmutados para ação de processo comum, com a consequente incompetência do Tribunal em razão do valor.



2. Posto o que a M.mª Juíza proferiu a seguinte decisão:

«I.- DO USO INDEVIDO DO PROCEDIMENTO DE INJUNÇÃO:
Conforme decorre do disposto no artigo 1.º do diploma preambular do DL n.º 269/98 e do artigo 7.º do regime anexo ao mesmo, o procedimento de injunção é uma providência cuja principal finalidade é a obtenção de um título executivo referente a uma obrigação pecuniária emergente de um contrato de valor não superior a €15.000,00.
Entretanto, foi publicado o DL n.º 62/2013, de 10/05, prevendo acerca de medidas contra os atrasos no pagamento de transacções comerciais, que, no seu artigo 13º, revogou o DL nº. 32/2003, com excepção dos artigos 6º e 8º, mantendo ainda este em vigor “no que respeita aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do presente diploma”, ou seja, celebrados até 30/06/2013 – cf., o artº. 15º. Acrescentou, ainda, que “as remissões legais ou contratuais para preceitos do Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro, consideram-se efetuadas para as correspondentes disposições do presente diploma, relativamente aos contratos a que o mesmo é aplicável nos termos do artigo seguinte”. Assim, o procedimento da injunção passou a ser utilizável no caso do cumprimento das obrigações a que se refere o art 1º do diploma preambular – obrigações pecuniárias emergentes de contrato – e a obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo DL n.º 62/2013, de 10 de maio e DL 32/2003 de 17/2, na parte ainda em vigor, aqui independentemente do valor.
Trata-se de um mecanismo marcado pela simplicidade e celeridade, com vista a permitir a cobrança de dívidas cuja apreciação não seja especialmente complexa. Como vem entendendo a jurisprudência, “Importa acentuar qual a realidade subjacente à criação do regime em apreço: o crescimento exponencial das acções de cobrança de dívidas por parte dos grandes utilizadores que invadindo os tribunais ameaçavam convertê-los, sobretudo nos grandes centros urbanos, em meras extensões dessas empresas, pondo em causa a decisão em tempo útil de outras questões que interessam aos cidadãos. Não esqueceu também o legislador que “a par de um aumento explosivo da litigiosidade, esta se torna repetitiva, rotineira, indutora da «funcionalização» dos magistrados que gastam o seu tempo e as suas aptidões técnicas na prolação mecânica de despachos e sentenças”.
Foi confrontado com a necessidade de melhorar um sistema que estava a permitir uma instrumentalização do poder soberano dos tribunais, transformando-os em agências de cobranças de dívidas, que o legislador criou o procedimento da injunção.
Resulta do exposto que o objectivo do legislador, neste tipo de processos simplificados, não é fácil enquadrar, a bem da Justiça pretendida, situações factuais em que como causa de pedir emerge, além dos valores reportados às obrigações pecuniárias e juros em dívida, cláusulas penais reportadas à quebra do vínculo contratual com os inerentes encargos decorrentes da cessação antecipada do contrato. Tal como não é fácil enquadrar, a bem da mesma preocupação de Justiça, situações de contornos complexos referentes a responsabilidade civil obrigacional, cujos pressupostos não são de fácil e liminar verificação, antes exigindo, as mais das vezes, aturada discussão e trabalhosa decisão, mormente quando os próprios contratos em discussão são de natureza complexa pelos feixes de direitos e deveres recíprocos que movimentam.
Assim se compreende que “o processo simplificado que o legislador pretendeu com a criação do regime especial da injunção, com vista a facultar ao credor de forma célere obtenção de um título executivo, em acções que geralmente apresentam grande simplicidade, não é adequado a decidir litígios decorrentes de contratos que revestem alguma complexidade, como obrigações decorrentes de contratos de utilização de lojas em centros comerciais.”. E também é pacífico na jurisprudência que, “não sendo o procedimento adequado, existe um obstáculo que impede o tribunal de conhecer do mérito da causa, o que se configura como uma excepção dilatória, dando lugar à absolvição da instância” (sublinhado nosso).
Ora, da análise da concreta questão controvertida em equação, resulta claro não estarmos, sem mais, perante o mero ou simples (in)cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente do contrato de seguro de crédito descrito.
Com efeito, analisado o quadro conflitual exposto, não estamos apenas perante a simples cobrança de uma dívida de fácil balizamento ou delimitação, nem está apenas em equação o mero (in)cumprimento de obrigações pecuniárias.
Efectivamente, o litígio reporta-se à discussão da cobertura do contrato de seguro de crédito titulado pela apólice n.º ...19, concretamente no pagamento pela Ré dos prémios de seguros e facturas de serviços, que lhe foram reclamados pelos documentos de cobrança, no total de € 9.573,80, que vêm discriminados sob art.º 6.º da pi aperfeiçoada. Sendo que haverá ainda que aferir das condições do cálculo e determinação dos valores dos prémios de seguros nos termos do artº 9.º e 10.º das Condições Gerais da Apólice ponto IV das Condições Particulares da Apólices.
Ou seja, urge ponderar e apreciar acerca da relação contratual existente, donde emana um complexo de direitos e deveres para ambas as partes, desde logo assentando o peticionado quanto à existência e amplitude da cobertura dos valores seguros e pagamento do respectivo prémio de seguro assim como seu cálculo como sendo o devido pela Requerida.
Pelo que, nas palavras do douto Acórdão da Relação de Lisboa de 27/11/2014 [Relatora: Octávia Viegas, Processo nº. 1946/13.3TJLSB.L1-8, in www.dgsi.pt], a controvérsia em equação nos presentes autos está longe do “processo simplificado que o legislador teve em vista com a criação do regime especial da injunção, com vista a facultar ao credor de forma célere a obtenção de um título executivo, em acções que normalmente se revestem de grande simplicidade”. Donde resulta que, nestas situações, não é adequado nesta forma processual “decidir litígios decorrentes de contratos que revestem alguma complexidade, como são as obrigações decorrentes de contratos de utilização de lojas em centros comerciais” ou outros de complexidade similar.
É certo que, no entendimento de Paulo Duarte Teixeira [in, Os Pressupostos Objetivos e Subjetivos do Procedimento de Injunção, Revista Themis, VII, n.º 13, páginas 169-212], “o critério de aferição da propriedade ou impropriedade da forma de processo consiste em determinar se o pedido formulado se harmoniza com o fim para o qual foi estabelecida a forma processual empregue pelo autor. Nesta perspetiva, a determinação sobre se a forma de processo adequada à obrigação pecuniária escolhida pelo autor ou requerente se adequa, ou não, à sua pretensão diz respeito apenas com a análise da petição inicial no seu todo, e já não com a controvérsia que se venha a suscitar ao longo da tramitação do procedimento, quer com os factos trazidos pela defesa quer com outros que venham a ser adquiridos ao longo do processo por força da atividade das partes”.
Mas tal não significa que basta olhar e ponderar, apenas, se estamos ou não perante o cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente de contrato de valor não superior a 15.000 € nos termos do DL 269/98, ou se se tratam de obrigações emergentes de transacções comerciais ao abrigo do DL 62/2013.
Antes urgindo, igualmente, para além da verificação e preenchimento de tais pressupostos, indagar se o pedido formulado está em consonância com o fim para o qual foi estabelecida ou criada a forma processual a que o autor recorreu, bem como ter em atenção e ponderação se o litígio subjacente e natureza do contrato/relação obrigacional em causa implica o conhecimento de questões complexas e carecidas de um desenvolvimento e trato mais exigente, de forma a acautelar os direitos das partes em litígio.
Pelo exposto, e in casu, apesar do concreto preenchimento daqueles pressupostos objectivos exigidos para a utilização do procedimento de injunção – cumprimento de obrigação pecuniária emergente de contrato, concretamente tratando-se de uma obrigação comercial nos termos do DL 62/2013 –, a complexidade das questões apreciandas, nos termos supra expostos, ilegitimam o uso, por parte da Requerente, do procedimento de injunção.
O que, nos termos expostos, configura excepção inominada, obstativa do conhecimento do mérito da causa e determinante de decisão de absolvição da instância, nos quadros dos artigos 577º e 578º, ambos do Cód. de Processo Civil.
II. - DA ADMISSIBILIDADE DO CONHECIMENTO DE TAL EXCEPÇÃO:
Veio a Autora, no req. de 18.12.2023, além de pugnar pela adequação do procedimento de injunção, pronunciar-se no sentido de que atenta a dedução do pedido reconvencional pela requerida, tal implica automaticamente a elevação do valor da acção para valor superior a €50.000,00.
Concluindo que tal implicará que seja declarada a incompetência deste Juízo Local Cível em razão do valor para apreciar a presente ação e competente o Juízo Central Cível, o que requer.
Vejamos,
Aqui chegados, urge aferir acerca da admissibilidade da aferição dos enunciados pressupostos exigidos para a utilização do procedimento injuntivo, ou seja, determinar se, deduzida oposição a este, que determinou a transmutação do processo em acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos – cf., artigos 16º e 17º do Anexo ao DL nº. 269/98 -, ainda será possível apreciar acerca do preenchimento daqueles pressupostos.
Ora aqui há que ter presente o exarado do douto acórdão do STJ de 14 de fevereiro de 2012 (relatado pelo Sr. Conselheiro Salazar Casanova, proferido no processo nº 19937/10.3YIPRT.L1.S1, integralmente acessível em www.dgsi.pt) ao decidir que “(…) as condições que a lei impõe para que seja decretada a injunção são condições de natureza substantiva que devem verificar-se para que a injunção seja decretada; no entanto, ultrapassada esta fase, elas não assumem expressão na fase subsequente do processo que venha a ser tramitado sob a forma de processo comum ordinário quando o seu valor seja superior à alçada da Relação ( artigo 7.º/2 do DL n.º32/2003). Com efeito, neste caso, a circunstância de o crédito não se enquadrar na transação comercial a que alude o artigo 2.º/1 e 3.º do Decreto-Lei n.º 32/2003 não exerce nenhuma influência, rectius, não tem qualquer correlação com a forma de processo a tramitar em momento subsequente.” – sublinhado nosso.
Mas assim não acontece, como também ali se assinala, “(…) na ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos que a lei determina que seja a aplicável nos casos em que, em razão da oposição[2], se converteu a providência de injunção respeitante a transações comerciais de valor inferior à alçada da Relação.” – sublinhado nosso -, sendo que nestas circunstâncias, como resulta do mesmo acórdão, o processo não pode ser aproveitado, por verificação de exceção dilatória inominada de uso inadequado do procedimento de injunção.
Também no sentido de que o uso indevido do procedimento de injunção compromete a ação para cumprimento de obrigação emergente de contrato em que aquele se transmutou, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, prolatado em 20 de maio de 2014 (processo 30092/13.6YIPRT.C1, acessível em www.dgsi.pt): “(…) estamos perante uma situação em que não se mostram reunidos os pressupostos legalmente exigidos para a utilização da injunção, o que impede o tribunal de conhecer do mérito da causa. Importa assim rejeitar a utilização do procedimento injuntivo (e do processo especial para cumprimento de obrigação pecuniária emergente de contrato), já que, não estando em causa uma transacção comercial, também não se evidencia uma qualquer obrigação pecuniária que emirja do contrato celebrado entre as partes.
Esta situação configura uma excepção dilatória inominada que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, nos termos do n.º 2 do art.º 576º (e art.º 577º), do CPC de 2013, e não de erro na forma de processo, ainda que, nesta segunda perspectiva, possa conduzir a idêntico resultado processual. Na verdade, tal excepção dilatória inominada, afectando o conhecimento e o prosseguimento da acção especial em que se transmutou o procedimento de injunção, por não se mostrarem reunidos os pressupostos legalmente exigidos para a sua utilização (as condições de natureza substantiva que a lei impõe para que seja decretada a injunção), não permite qualquer adequação processual ou convite a um aperfeiçoamento; caso contrário, estava encontrado o meio para, com pensado propósito de, ilegitimamente, se tentar obter título executivo, se defraudar as exigências prescritas nas disposições legais que disciplinam o procedimento de injunção.
7. A transmutação do procedimento de injunção, por via de oposição que seja deduzida, em acção declarativa de condenação - acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato -, não legitima a utilização indevida daquele, derivada da falta de pressupostos que o possibilitariam. E nesse mesmo enquadramento adjectivo, se o crédito reclamado não for nenhum daqueles que a lei correlaciona com este processo especial, a acção não poderá proceder, estado de coisas que, como vimos, também ocorre no presente caso.”
Volvendo ao caso dos presentes autos temos que o procedimento injuntivo se transmutou em acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, desde logo atento o valor peticionado de 9.970,59€.
Depois, quanto a saber se afinal deveria seguir como acção comum ante a reconvenção deduzida, como alegado pela requerente.
De facto, aqui quanto à posição a assumir não é indiferente o valor da ação, e muito concretamente se para efeitos daquela apreciação o valor a atender é o valor da ação dado pelo valor do pedido apresentado pela requerente, ou se é o resultado da soma desse valor com o valor do pedido reconvencional entretanto apresentado pela requerida.
Defende a Requerente que o valor é esta soma; e assim, sendo o valor inicial da ação de €9.970,59, e o oferecido à reconvenção de €69.630,00, na sua óptica estamos perante um valor superior a €50.000,00 (no que aqui interessa), e portanto seria por esse prisma que a questão do prosseguimento da acção deveria ser apreciada.
Ora, dispõe o artº. 18º do anexo do DL nº. 269/98 de 1/09, que o valor da injunção e da ação declarativa que se lhe seguir é o do pedido (…).
Ao contrário do pretendido pela Requerente, para efeitos de prosseguimento da acção (e até de admissibilidade da reconvenção, acrescentamos nós) é esta a determinação que interessa ao caso, não sendo de aplicar nesta fase o resultado do disposto no artº. 299º, nº. 1, do C.P.C., desde logo face à ressalva do seu nº. 3 – o aumento do valor da causa que resultaria da soma daqueles valores só produz efeitos quantos aos termos posteriores à reconvenção, logo não serve de base para a sua admissibilidade (sob pena de “viciação” de premissa). Também é o valor do pedido que preside ao critério da distribuição da ação (-valor superior ou inferior a metade da alçada do Tribunal da Relação) –artº. 10º, nº. 2, do DL nº. 62/2013 de 10/05.
Outra questão seria se, no caso concreto, a reconvenção seria admissível face ao valor da reconvenção somado ao valor do pedido inicial; mas, não nos debruçaremos sobre a mesma, uma vez que se encontra prejudicada porque posterior à apreciação que ora se impõe (a admissibilidade da reconvenção prende-se neste caso com o disposto no artº. 266º, nºs. 1 e 2, c), que, não se desconhece envolvida em divergência jurisprudencial e doutrinal sobre se assumiria a posição no sentido de que ser admitida como compensação de créditos ou se tem sempre de operar por via reconvencional).
Decidida a questão prévia, que aqui se prende sim com o ser o valor do pedido que tem de presidir para a distribuição, então temos uma injunção no valor de €9.970,59, que por força da apresentação de oposição é distribuída como ação para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15.000,00 (metade da alçada do Tribunal da Relação), ou seja, sujeita ao regime previsto nos artºs. 1º, nº. 4, 3º e 4º do citado anexo, por força dos artºs. 16º e 17º do mesmo. Cfr. ainda o artº. 10º, nº. 2, do DL nº. 62/2013 de 10/05.
Nesta ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, resulta do ensinamento do supra citado aresto do STJ de 14/02/2012, reportando-se aliás a obrigações emergentes de transacções comerciais, que excepto nas situações em que, mediante a apresentação de oposição, o procedimento injuntivo se transmuta em acção sob a forma de processo comum, os pressupostos de admissibilidade de recurso ao processo, podem e devem ser objecto de aferição por parte do julgador, como condições de natureza substantiva que devem verificar-se para que a injunção seja decretada.
Pelo exposto, e sem ulteriores delongas, conclui-se que a circunstância de, na presente situação concreta, a primitiva e intentada injunção se ter transmutado em acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, não legitima a utilização indevida daquela (injunção).
III. Decisão:
Pelo que supra em I. e II. se deixou exposto, julgo verificado o preenchimento da excepção dilatória inominada, obstativa do conhecimento do mérito da causa, e em consequência determino a absolvição da Ré da instância, nos quadros dos artigos 576.º, 577º e 578º, do Cód. de Processo Civil.»



3. Inconformada com tal decisão, dela apelou a Autora, formulando as seguintes conclusões:

1.ª A presente acção iniciou-se com a apresentação pela recorrente do requerimento de injunção no Balcão Nacional de Injunções, requerendo o pagamento de obrigações pecuniárias decorrente de contrato, configurando uma transação comercial, nos termos regulamentados no Decreto-Lei 62/2013, no valor de €10.072,59 tendo sido notificada a requerida que veio deduzir oposição ao requerimento e formular pedido reconvencional no valor de €69.630,00, pelo que o valor da causa automaticamente ascendeu a €79.702,59, nos termos do disposto no artigo 299.º n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, já que a soma dos pedidos formulados na acção e na reconvenção não depende da admissibilidade da reconvenção, antes se verifica pela sua dedução, motivos pelos quais não podia o Tribunal a quo fixar o valor da causa em € 9.970,59.
2.º Contrariamente ao que resulta da sentença recorrida, o invocado artigo 18.º do anexo do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, aliás, todo o anexo e mesmo o diploma preambular, não contempla a hipótese de ser deduzida reconvenção, pelo que o mesmo não impede, de todo, a aplicação na fase jurisdicional, que se inicia pela remessa dos autos ao Tribunal competente e respectiva distribuição, do artigo 299.º do Código de Processo Civil, sem prejuízo do disposto no artigo 10.º n.º 2 do Decreto-Lei 62/2013 de 10 de Maio, no qual expressamente se funda a dedução do requerimento de injunção e que estipula que a dedução de oposição determinam a remessa dos autos para o Tribunal competente e a distribuição sob a forma de processo comum quando estejam em causa, como nos autos, valores superiores a metade da alçada da Relação, o que devia ter obrigado à remessa dos autos para o Tribunal competente e à sua distribuição sob aquela forma e não à segunda espécie em Tribunal relativamente incompetente, conforme expressamente requerido e devia ter sido suscitado oficiosamente, pelo que deve ser revogada a decisão em crise e fixar-se o valor da causa em €79.702,59.
3.ª Por outro lado, a fixação do valor da causa como devido, determina a incompetência do Juízo Local de Santa Maria da Feira para o julgamento da causa e, designadamente, para a decisão de julgar verificado a excepção dilatória inominada oficiosamente suscitada, que deve ser revogada, por verificação da incompetência relativa do Tribunal recorrido, pois, o artigo 66.º do Código de Processo Civil, estipula que as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, pelo seu valor, se inserem na competência do Juízo Central e do Juízo Local, decorrendo do art. 117.º, n.º 1, al. a), da LOSJ (Lei da Organização do Sistema Judiciário), que compete aos Juízos Centrais Cíveis o julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a €50.000,00, estipulando o seu n.º 3 que devem ser remetido aos Juízos Centrais Cíveis nos casos em que se verifique alteração do valor susceptivel de determinar a sua competência, o que o Tribunal recorrido violou, apesar de ter sido expressamente requerido e até devia ter sido suscitado oficiosamente, pelo que para além da revogação da decisão recorrida, deve ser ordenada a remessa dos autos para o competente Juízo Central Cível para nesse Tribunal ser distribuída a primeira espécie.
4.ª O requerimento de injunção não foi recusado nos termos do artigo 11.º do anexo ao Decreto-Lei 269/98, de 1 de Setembro, pelo que após a indevida distribuição e ordenado o aperfeiçoamento do requerimento de injunção e a resposta a uma excepção suscitada pela requerida e ao pedido reconvencional, como aconteceu nos autos, o Tribunal a quo já não estava perante um procedimento de injunção que lhe permitisse ajuizar sobre a adequação sobre o procedimento de injunção, que não foi recusado nos termos legalmente previstos, mas antes perante uma acção judicial em que aquele se transmutou e que não merece censura susceptível de impedir o Tribunal recorrido, ou o Tribunal competente, conhecer de mérito da causa, nem, de resto, aquela acção se encontra censurada no sentido de não ser adequada ao prosseguimento dos autos, pois, a decisão em crise refere-se apenas ao procedimento de injunção e não à acção judicial em que aquele se transmutou por efeito da distribuição e por força das disposições legais aplicáveis, pelo que o Tribunal a quo, não podia decidir uma questão temporalmente ultrapassada e não tinha competência para a decisão de considerar inadequado o recurso ao procedimento de injunção, não só porque o artigo 11.º do anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, apenas lhe atribui competência para a reclamação da decisão de recusa, que pertence exclusivamente ao secretário de justiça, mas também porque não tinha competência já que os autos deviam ter sido remetidos para o Juízo Central e a questão não podia ter sido decidida no Juízo Local Cível que é incompetente, sendo também certo que a decisão não se consegue compreender, na medida em que os autos encontram-se em fase avançada, com apresentação dos articulados admissíveis (e até dos inadmissíveis) para o julgamento da causa (acção e reconvenção).
5.ª Analisado o requerimento de injunção em causa nos autos, não deve existir qualquer dúvida que o mesmo respeita integralmente os conceitos e critérios que o permitem e que são absolutamente objectivos e fixados legalmente, não constando entre os mesmos qualquer referência à complexidade ou a falta dela para ser admissível o recurso ao procedimento em causa, sendo certo que tal procedimento foi introduzido na Ordem Jurídica por se encontrar especialmente vocacionado para contratos de massas como é o contrato de seguro dos autos, não existindo dúvida que o procedimento de injunção em causa respeita integralmente o estabelecido legalmente, pois, invoca o contrato de seguro de créditos celebrado entre as partes e que comporta obrigações pecuniárias que a ré incumpriu quanto ao pagamento dos prémios de seguro e serviços e que são de valor inferiores a € 15.000,00, e que, para além disso, decorrem de uma transacção comercial, nos termos definidos no art. 3.º alínea b) do Decreto-Lei 62/2013 de 10 de Maio e que também permite o recurso ao procedimento de injunção que se encontra duplamente justificado.
6.ª Sem prejuízo da conclusão anterior, o despacho de 6-12-23 (referência 130408406) que, sem fundamento, convidou a recorrente a pronunciar-se sobre a excepção de uso indevido de procedimento de injunção, foi justificado “pela leitura do requerimento injuntivo e do aperfeiçoamento apresentados bem como da oposição à requerida”, apesar de ser certo que a leitura da oposição em nada poderia contribuir para ajuizar da adequação do recurso do procedimento de injunção, até porque a requerida nem sequer invocou tal inusitada excepção.
7.ª Ora, daquele despacho, que precede a decisão da verificação da excepção referida, nenhuma fundamentação consta sobre que motivos teriam resultado da leitura do requerimento de injunção ou do respectivo aperfeiçoamento (ou até mesmo da oposição) que pudessem fundamentar aquele convite, pois sem conhecer os mesmos, não era possível a ora recorrente, pronunciar-se quanto ao mesmos, motivos pelos quais arguiu a nulidade daquele despacho, o que não foi conhecido pela decisão recorrida, a implicar a nulidade da sentença proferida e ora recorrida, nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1 al d) do Código de Processo Civil e a determinar a sua revogação.
8.ª Para além disso, a decisão recorrida é, também, nula por constituir decisão surpresa com influência na decisão da causa, na medida em que à recorrente não foi concedido o direito de contraditório sobre os motivos que determinaram o convite à pronúncia, que só ficou a conhecer com a decisão recorrida, com violação do disposto no artigo 3.º n.º 3 do Código de Processo Civil, pois era imprescindível que os fundamentos da questão suscitada oficiosamente fossem dados a conhecer, fundamentando o convite, concedendo a oportunidade das partes se pronunciarem sobre os motivos concretos que suscitam a questão, o que é manifestamente violado quando apenas se diz: “da leitura do requerimento… convida-se… “, sendo certo que tal convite não concede efectivamente o direito a qualquer contraditório e apenas visa impedir o normal desenvolvimento da lide, sem qualquer respeito pelos direitos constitucionalmente garantidos das partes e em termos que configuram denegação de Justiça e violação do principio contraditório, tendo as partes sido impedidas de tomarem posição sobre questão oficiosamente suscitada, e que influiu na decisão da causa, o que implica nulidade a que se refere o artigo 195.º n.º 1 do Código de Processo Civil, a determinar a revogação da sentença recorrida.
9.ª Para além disso, a sentença recorrida entendeu que a recorrente fez um uso indevido do procedimento de injunção, porquanto entendeu, mal, não estarmos perante um simples incumprimento de uma obrigação pecuniária emergente do contrato de seguro de crédito, porquanto entendeu que não é fácil balizar ou delimitar e nem está apenas em causa o mero incumprimento de obrigações pecuniárias, pois o litigio reporta-se à cobertura do contrato de seguro de crédito, concretamente no pagamento pela ré dos prémios de seguros e facturas de serviços reclamados, mais entendendo que, para além disso, haverá que aferir das condições de cálculo e determinação dos valores dos prémios seguros nos termos da apólice, o que não corresponde à verdade, pois o requerimento de injunção em causa, apresenta-se mesmo, por causa de um mero “incumprimento de obrigações pecuniárias não superiores a €15.000,00 decorrente de contrato e de transacções comerciais”, conforme resulta das nossas anteriores conclusões, sendo certo que embora a sentença recorrida até reconheça o preenchimento dos pressupostos objectivos exigidos para a utilização do procedimento de injunção, entendeu que a complexidade das questões apreciandas ilegítima o seu uso.
10.ª Ora, não é verdade que exista qualquer complexidade na apreciação das questões suscitadas no requerimento de injunção, que não ultrapassa a análise e apreciação do contrato de seguro de créditos, nem, de resto, a quantificação dos prémios e serviços devidos foi sequer posta em causa pela requerida que apenas defende não estar em incumprimento, por ter resolvido o contrato, pelo que não corresponde sequer à verdade que houvesse de analisar quaisquer condições de cálculo, para além de ser indesmentível que não é requisito legal do uso do requerimento de injunção a simplicidade das suas questões, pelo que a decisão recorrida não pode manter-se, já que a Lei aplicável não faz depender o recurso ao procedimento de injunção da falta de complexidade das questões suscitadas, a implicar a revogação da sentença recorrida, por introduzir como requisito para uso do procedimento de injunção a ausência de complexidade das pertinentes questões e que não existe legalmente, tendo a recorrente cumprido todos os requistos objectivos e substantivos previstos, estando legitimada a recorrer ao procedimento de injunção para requerer o cumprimento de obrigações pecuniárias decorrentes de contratos que consubstanciam transacção comercial tal como definida legalmente.
11.ª Destarte, a sentença em crise é nula nos termos do artigo 195.º n.º 1 e 615 n.º 1 al d) ambos do Código de Processo Civil e violou o disposto nos artigos 3.º n.º 3; 212.º e 299.º do mesmo Código, artigo 117.º n.º 1 al a) e n.º 3 da LOSJ e artigo 1.º do Decreto-Lei 264/98, de 1 de Setembro e artigo 11.º do diploma anexo, bem como artigo 10.ºn.º do Decreto-Lei 62/2013 de 10 de Maio, pelo que deve ser revogada e consequentemente:
1.º Ser fixado como valor da causa €79.702,59;
2.º Ser ordenada a remessa dos autos para o Tribunal competente, Juízo Central de Santa Maria da Feira;
3.º Ser ordenada a distribuição dos autos naquele Tribunal à primeira espécie, ou seja, acção de processo comum;
4.º Revogar-se a decisão que julgou verificado o uso indevido do procedimento de injunção e ordenar-se o prosseguimento dos autos no Tribunal competente.
Assim se fazendo Justiça.


4. A Ré contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.



II - FUNDAMENTAÇÃO

5. Apreciando o mérito do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, trata-se de apurar:
· como questão prévia, se podem ser aqui conhecidas todas as questões suscitadas pela Apelante;
· se a decisão é nula;
· se no caso ocorreu o uso indevido do procedimento de injunção. Vejamos.



5.1. Questão prévia

Nas suas conclusões, a Apelante suscita a questão do valor da causa, da distribuição e do Tribunal competente, terminando a pedir:
1.º Ser fixado como valor da causa €79.702,59;
2.º Ser ordenada a remessa dos autos para o Tribunal competente, Juízo Central de Santa Maria da Feira;
3.º Ser ordenada a distribuição dos autos naquele Tribunal à primeira espécie, ou seja, acção de processo comum;
Ora, nenhuma destas questões foi conhecida na decisão recorrida, que se limitou a julgar verificada a exceção dilatória inominada do uso indevido do procedimento de injunção, e a absolver a Ré da instância.
É de ter em conta que o regime consagrado entre nós para os recursos ordinários é de «(…) reponderação e não de reexame, visto que o tribunal superior não é chamado a apreciar de novo a acção e a julgá-la, como se fosse pela primeira vez, indo antes controlar a correcção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último.». [[1]]
Daqui decorre que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, os recursos não podem conhecer de questões novas, no sentido de não terem sido colocadas perante o Tribunal recorrido ou de não terem sido objeto da decisão recorrida.
Sobre este entendimento, existe unanimidade na jurisprudência, como se colhe do acórdão do STJ de 11/01/2024, processo nº 3547/17.6T8LLE-B.E1-A.S1: «Os recursos destinam-se á reapreciação ou reponderação da decisão de questões oportunamente suscitadas, salvo quando se trate de questões de conhecimento oficioso.» [[2]]
A não ser assim, o Tribunal de recurso ver-se-ia na contingência de decidir a questão pela primeira vez, prejudicando o direito ao recurso das partes, ao arrepio do nosso sistema de recursos.
Em sede de recurso, o Tribunal da Relação só pode pronunciar-se sobre a decisão “em si mesma” e, como refere Miguel Teixeira de Sousa [[3]] «[n]os vícios da decisão incluem-se apenas aqueles que a ela respeitam directamente. Quer isto dizer que não é considerado um vício da decisão a realização de um acto não permitido ou a omissão de um acto obrigatório antes do seu proferimento: tais situações são nulidades processuais, submetidas, na falta de qualquer regulamentação específica, ao respectivo regime geral (art. 201º, nº 1; cfr. STJ – 14/1/1993, BMJ 423,406).».
Consequentemente, não nos pronunciaremos sobre as aludidas questões.



5.2. Legislação a ter em conta

Na decisão recorrida invocam-se 3 diplomas, pelo que incumbe averiguar da respetiva aplicabilidade.
Como se viu, a Autora alegou como causa de pedir que no exercício da sua atividade seguradora, celebrou com a Ré um contrato de seguro de crédito, tendo ela ficado obrigada ao pagamento dos respetivos prémios. A Ré não pagou os prémios no valor total peticionado (que foram discriminados nas faturas discriminadas no requerimento), sendo € 9.573,00 de capital e € 356,79 de juros moratórios.
§ 1º - O Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro (regime especial relativo aos atrasos de pagamento em transações comerciais) foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio, com exceção dos seus artigos 6º (que havia alterado o Código Comercial na parte respeitante aos juros comerciais) e 8º (que alterara vários preceitos do procedimento de injunção estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro).
Segundo se colhe dos autos, a apólice do contrato aqui em causa tinha vigência entre 06/2022 e 05/2023 e a falta de pagamento dos prémios que se imputa à Ré respeita ao período de 2022 e 2023.
Dado que esses preceitos (artigos 6º e 8º) foram já sujeitos a alteração por diplomas posteriores ao Decreto-Lei n.º 269/98, também não são aqui aplicáveis na versão anterior, devendo atender-se apenas à respetiva versão atualizada consignada no Decreto-Lei n.º 269/98.
Aliás, o art.º 13º do diploma que o revogou (Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio) consigna expressamente que os artigos 6º e 8º se mantêm em vigor apenas “no que respeita aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do presente diploma”, o que não é aqui o caso.
Concluindo, o Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro não é aqui aplicável.

§ 2º - Quanto ao Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio (que estabeleceu medidas contra os atrasos no pagamento de transações comerciais) entrou em vigor no dia 01/07/2013 (cf. seu art.º 15º) e refere que se aplica a todos os pagamentos efetuados como remuneração de transações comerciais (art.º 2º nº 1).
Estamos também perante um processo especial, com as implicações atrás referidas.
Ora, a transação comercial tida em vista por este Decreto-Lei n.º 62/2013 tem um âmbito bem específico e mostra-se definida no seu art.º 3º al. b): uma transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinada ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração.
Assim, face a esta definição impõe-se averiguar se os prémios de um contrato de seguro de crédito (que é o que foi acionado no requerimento de injunção) integra o conceito de transação comercial para efeitos do Decreto-Lei n.º 62/2013.
Estamos em crer que não. Desde logo porque num contrato de seguro de crédito inexiste qualquer fornecimento de bens ou prestação de serviços por parte da seguradora. E, por parte do segurado, o pagamento do prémio também não corresponde ao preço de algum bem ou dum serviço.
Na verdade, no contrato de seguro a seguradora apenas cobre ao tomador do seguro a ocorrência de um risco previamente determinado entre ambos, e no pressuposto de que ele venha a ocorrer; por seu lado, o tomador do seguro obriga-se a pagar um prémio (art.º 1º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril, regime jurídico do contrato de seguro).
Daí a sua natureza aleatória: a existência de um risco (evento futuro e danoso), ou a possibilidade da sua ocorrência é o elemento essencial do contrato. Bem pode o tomador do seguro pagar todos os prémios devidos pelo período contratado que, se o risco não ocorrer, a seguradora nunca chegará a pagar a indemnização contratada.
Como refere José Engrácia Antunes, a sinalagmaticidade deste contrato tem um conteúdo bem próprio. Apesar de ser «(…) um contrato sinalagmático e oneroso ─ donde resultam obrigações para ambas as partes, consubstanciadas em atribuições e custos patrimoniais recíprocos (o segurador assume um risco alheio mas encaixa um preço, e o tomador paga um prémio alijando um risco) ─ mas também um contrato aleatório ─ caraterizado por uma álea intrínseca, onde reina um estado de incerteza quanto ao significado patrimonial do contrato para os contraentes (sendo impossível saber, à partida, quais os ganhos ou perdas dele decorrentes para estes).» [[4]]
Aprofundando o tema, e abordando as várias teorias, Margarida Lima Rego considera que o contrato de seguro é sinalagmático, mas admite a inexistência de correspetividade entre uma “obrigação incondicional” (o pagamento do prédio pelo tomador) e uma “obrigação condicional” (o pagamento da indemnização pela seguradora), pugnando antes por um conceito de “troca entre as atribuições das partes” e concluindo que «Somos então forçados a reconhecer a possibilidade de um sinalagma não obrigacional, e a aceitar que, mesmo do lado do segurador, o sinalagma não se estipula por referência a uma obrigação: a sua obrigação de indemnizar, uma vez constituída, não chega a integrar o sinalagma.
O que disse bastar-me-ia para entender que deve adoptar-se um conceito amplo de sinalagma, que tenha em consideração que os pontos de referência da relação de troca consistem não só em obrigações e prestações, mas também noutras atribuições das partes.» [[5]]
Concluindo, um contrato de seguro de crédito não integra uma transação comercial para efeitos de aplicabilidade do regime do Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio, na medida em que inexiste qualquer fornecimento de bens ou prestação de serviços contra remuneração.
Como tal, o Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio, também não é aqui aplicável.

§ 3º - Por fim, o Decreto-Lei n.º 269/98, de 01 de setembro (vulgarmente conhecido por “injunção”), constituindo também um processo especial.
O mesmo foi já sujeito a muitas alterações, devendo aqui atender-se à sua versão mais recente, operada pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro.
O que significa também que a jurisprudência produzida no seu âmbito deve ser atendida com as decidas adaptações.
Estatui sobre o regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a € 15 000 (art.º 1º).
Os prémios de um contrato de seguro de crédito constituem uma obrigação pecuniária emergente dum contrato, pelo que tal regime é aplicável ao caso presente.



5.3. Sobre o uso indevido do procedimento de injunção

§ 1º - Exceção de uso indevido do procedimento de injunção versus erro na forma de processo
Ocorre erro na forma de processo quando o Autor utiliza uma via processual que não é adequada ao pedido que formula. Trata-se de uma irregularidade de ordem formal/processual, que acarreta nulidade, de conhecimento oficioso (art.º 196º CPC), mas apenas dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei, exceto se do facto resultar uma diminuição de garantias do réu. A correção do meio processual é efetuada oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados (art.º 193º CPC).
Já o denominado uso indevido do processo do procedimento de injunção é uma exceção dilatória inominada de índole substantiva, contendendo com questões de fundo. [[6]]
Esse procedimento de injunção constitui um processo especial, pelo que está sujeito às estipulações legais que lhe são próprias, bem como pelas disposições gerais e comuns e, em tudo o quanto não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum: art.º 546º nº 2 e 549º nº 1 do CPC.
Nos termos do art.º 547º do CPC, impõe-se ainda ao juiz que adote a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adapte o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo.
Determina o art.º 1º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 01 de setembro que tal procedimento apenas pode ser usado quando se pretende o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a 15 mil euros.
E, como ensina Lebre de Freitas sobre o erro na forma de processo: «Este erro é aferido em face do pedido deduzido, e não perante a natureza objetiva da relação material controvertida ou da situação jurídica que serve de base à ação, sem prejuízo da adequação da forma de processo (art.º 547).
Não deve, efetivamente, confundir-se a questão de fundo com a questão de forma: se o pedido for deduzido com base num direito que o autor não tem, embora tendo outro direito em que podia ter fundado um pedido diverso que desse lugar a uma forma de processo distinta, o erro está no pedido e não na forma de processo, pelo que a consequência a tirar é a improcedência da ação». [[7]]
Ora, é isso que pretende a Autora, o cumprimento de uma obrigação pecuniária (pagamento de prémios de seguro), em valor inferior a 15 mil euros, pelo que se verifica legitimado o recurso ao procedimento de injunção.

§ 2º - Se ocorre a exceção de uso indevido do procedimento de injunção
Na decisão recorrida considerou-se que o procedimento de injunção se carateriza pela simplicidade e celeridade, não podendo ser usado quando as questões a apreciar sejam de natureza complexa. E, dado que nos autos se teria de apreciar toda a “relação contratual existente, donde emana um complexo de direitos e deveres para ambas as partes, desde logo assentando o peticionado quanto à existência e amplitude da cobertura dos valores seguros e pagamento do respectivo prémio de seguro assim como seu cálculo como sendo o devido pela Requerida”, considerou-se ser esta uma questão complexa, razão de se ter concluído pelo uso indevido do processo.
Mas não pode ser assim.
O uso indevido do procedimento só ocorre quando falta algum dos pressupostos objetivos e/ou subjetivos da injunção. A título de pressuposto objetivo será o caso, por exemplo, de se pretender acionar uma obrigação de entrega de coisa certa ou uma pretensão indemnizatória por responsabilidade extracontratual ou não se tratar de uma transação comercial com o conteúdo definido no Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro.
Isto porque é expressamente consignado no regime da injunção que a mesma só pode ser usada para “obrigações pecuniárias emergentes de contratos” ou para pagamentos respeitantes a “transações comerciais” (art.º 1º do diploma e 7º do Anexo).
A maior ou menor complexidade das questões que possa vir a ter de se apreciar, designadamente em virtude da oposição deduzida, não consta da lei como impedimento ao recurso ao regime da injunção e, caso constasse, poderia até gerar problemas de constitucionalidade pois, como se refere no acórdão da Relação de Guimarães, «(…) a utilização do procedimento de injunção (e, em decorrência da oposição, da transmutada ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos) ficaria dependente do que cada julgador entendesse configurar uma complexidade incompatível com o objetivo pretendido pelo legislador do DL nº 269/98. Sendo certo que a complexidade da causa é um conceito indeterminado e que inexiste qualquer referencial que permita operar essa qualificação, nem sequer seria possível prever, em cada caso concreto, a medida da complexidade da oposição suscetível de ser apresentada e muito menos se poderia determinar um limite dessa complexidade a partir do qual não seria admissível o recurso a esse procedimento.» [[8]]
Ou seja, incorrer-se-ia numa previsão legal do arbítrio de cada julgador.
Que a complexidade das questões não afeta o recurso ao procedimento de injunção tem vindo a ser o entendimento maioritário, se não unânime, da jurisprudência, como decorre dos acórdãos do TRG de 08/02/2024 (processo nº 47892/23.1YIPRT.G1) e de 16/11/2017 (processo nº 68450/16.1YIPRT.G1); do TRL de 25/05/2021 (processo nº 37398/20.6YIPRT.L1-7) ou deste TRP, acórdãos de 21/02/2022 (processo nº 52737/21.4YIPRT.P1), de 14/12/2022 (processo nº 22114/22.6YIPRT.P1).
Parafraseando o entendimento expresso no acórdão do TRG de 16/11/2017 (processo nº 68450/16.1YIPRT.G1):
«Dir-se-á, assim, que por força da pressão económico-social, acentuada em tempos de crise, com inequívoco reflexo nas pendências dos Tribunais, se foi procurando generalizar o recurso ao procedimento de injunção, inicialmente limitado a acções de menor valor, e progressivamente estendido a transacção comerciais sem limitação do mesmo (à semelhança do verificado noutros países da União Europeia, e por isso replicado em legislação própria desta).
Verifica-se ainda que, em nenhum momento desta sucessão legislativa, se elegeu a simplicidade ou complexidade do litígio subjacente às obrigações pecuniárias cujo cumprimento se pretendia exigir como requisito/limite de aplicação do procedimento de injunção, nomeadamente reservando-o para as acções de baixa litigiosidade.
Com efeito, se inicialmente se pressupôs que o mesmo teria nelas o seu campo preferencial de aplicação (sendo disso reflexo o limite da alçada do Tribunal de 1ª instância, num pressuposto comummente aceite de que ao menor valor corresponderá a maior simplicidade, traduzida inclusivamente em simplificada forma de acção), certo é que rapidamente se alterou esse entendimento, ao progressiva e inelutavelmente se elevarem os montantes das obrigações pecuniárias envolvidas, até se prescindir de quaisquer limites.»
Diremos ainda que aquilo que se pretendeu simples e célere, sempre redundará em maior complexidade e morosidade a partir do momento em que se admite a oposição, na qual podem ser suscitadas as mais variadas exceções dilatórias ou perentórias que, todos sabemos, envolvem às vezes substancial complexidade.


5.4. Quanto às nulidades invocadas
Merecendo o nosso acolhimento, transcrevemos aqui o teor do já referido acórdão do TRP de 21/02/2022 (processo nº 52737/21.4YIPRT.P1):
«Ora, independentemente da ocorrência, no caso vertente, do apontado vício formal, haverá que registar que nem sempre o tribunal ad quem tem de se pronunciar sobre nulidade de sentença como condição prévia do conhecimento do objeto do recurso.
Com efeito, como a este propósito sublinha TEIXEIRA DE SOUSA, nos casos (como o presente) em que o apelante, além de basear o recurso num dos seus fundamentos específicos, invoque a própria nulidade da decisão recorrida, admite-se que o tribunal de recurso possa revogar ou confirmar a decisão impugnada, arguida de nula, sem previamente conhecer do vício da nulidade. Isso sucederá, designadamente, quando ao tribunal hierarquicamente superior, malgrado a decisão impugnada se encontre ferida com aquele vício, seja possível revogar ou confirmar, ainda que por outro fundamento, a decisão recorrida. Sempre que isso suceda, é inútil a apreciação e o suprimento da nulidade, e o tribunal ad quem deve limitar-se a conhecer dos fundamentos relativos ao mérito do recurso e a revogar ou confirmar, conforme o caso, a decisão impugnada.
Na esteira de tal entendimento e atentas as implicações neste domínio do princípio da limitação dos atos plasmado no art. 130º do Cód. Processo Civil, não haverá, por conseguinte, que apreciar a suscitada nulidade (e extrair as inerentes consequências do reconhecimento da sua ocorrência), posto que, perante a procedência do recurso - com a consequente revogação da decisão recorrida -, o seu conhecimento se tornou concretamente irrelevante ou espúrio.» [[9]]



6. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)

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III. DECISÃO

7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se o prosseguimento dos autos.

Custas do recurso a cargo da Ré, face ao decaimento.






Porto, 09 de maio de 2024
Relatora: Isabel Silva
1º Adjunto: António Carneiro da Silva
2º Adjunto: Isoleta de Almeida Costa

__________________________
[1] José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 3º, Tomo I, 2ª edição, 2008, Coimbra Editora, pág. 7/8.
No mesmo sentido, António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2ª edição, 2014, Almedina, pág. 27.
[2] Disponível em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
No mesmo sentido, e do mesmo STJ, acórdãos de 23/01/2024, processo nº 5294/21.5T8VNF-A.G1.S1 e de 04/04/2002, processo nº 02B749, bem como os demais arestos neles citados.
[3] In “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 2ª edição, 1997, pág. 216.
[4] José Engrácia Antunes, “O Contrato de Seguro na LCS de 2008”, Revista da Ordem dos Advogados, 2009, ano 69, vol. III/IV, pág. 823/824.
[5] Margarida Ramalho de Lima Rego, “Contrato de Seguro e Terceiros”, pág. 373 e seguintes, em especial pág. 322 e 347, disponível em https://www.academia.edu/6847613/Contrato_de_seguro_e_terceiros_Estudo_de_direito_civil
[6] Cf. acórdão do STJ, de 14/02/2012, processo nº 319937/10.3YIPRT.L1.S1.
[7] In “A ação declarativa comum – à luz do Código de Processo Civil de 2013”, 4ª edição, Gestlegal, 2017, pág. 62.
[8] Acórdão de 08/02/2024, processo nº 47892/23.1YIPRT.G1.
[9] A citação de Teixeira de Sousa respeita ao seu “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, pág. 471.