Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
505/17.4GCSTS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VÍTOR MORGADO
Descritores: MINISTÉRIO PÚBLICO
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
JIC
INTERVENÇÃO EM PROCESSO
TRIBUNAL COMPETENTE
DIAP
SECÇÃO INTEGRADA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ABREVIADAMENTE
SEIVD
Nº do Documento: RP20200908505/17.4GSTS-A.P1
Data do Acordão: 09/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: CONCEDER PROVIMENTO AO RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A criação de departamentos de investigação e ação penal, por iniciativa do Procurador-Geral da República, deliberação do Conselho Superior do Ministério Público e depois homologada por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça está em consonância com a Lei da Organização do Sistema Judiciário e respectiva regulamentação.
II – Tal legitima, além do mais, a criação de uma Secção Especializada Integrada de Violência Doméstica (SEIVD) no pólo sediado em Matosinhos, abrangendo a área territorial dos municípios de Maia, Matosinhos, Póvoa do Varzim, Santo Tirso, Trofa e Vila do Conde.
III – Assim sendo, compete ao Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos, e não ao Juízo de Local Criminal de Santo Tirso, a competência para a apreciação e concordância relativamente à suspensão provisória do processo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso 505/17.4GCSTS-A.P1
Origem: T.J. da Comarca do Porto, Matosinhos- Juízo de Instrução Criminal - Juiz 2
Acordam, em conferência, na 1ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO
No processo principal de inquérito de que foi extraído o presente recurso em separado, o Ministério Público, entendendo indiciarem-se factos que, em seu critério, permitiriam imputar ao arguido B… um crime de violência doméstica, proferiu despacho em que, nos termos dos nºs 1 e 6 do artigo 281º do Código de Processo Penal, promoveu que os autos fossem conclusos ao Juiz de Instrução Criminal a fim de colher a concordância com a suspensão provisória do processo.
Remetidos os autos principais ao Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos, Juiz 2, o Ex.mo Juiz proferiu despacho, a final do qual decidiu:
«a) Declarar este Juízo de Instrução Criminal territorialmente incompetente para proferir despacho de concordância/discordância com a ponderada suspensão provisória do processo, por caber essa competência à Secção Local Criminal de Santo Tirso;
b) Determinar que, após trânsito deste despacho, o presente Inquérito seja remetido para esse efeito àquele Juízo Local Criminal.»
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Não se conformando com o assim decidido, veio o Ministério Público interpor o presente recurso, cuja motivação condensou nas seguintes conclusões:
«1) O D.L. n° 49/2014, de 27 de março, determina, no seu art° 93°, que "O Tribunal Judicial da Comarca do Porto integra secções de instância central, designadamente a 1ª Secção de instrução criminal, com sede no Porto - cfr. n° 1, al. g) - e a 2ª Secção de instrução criminal, com sede em Matosinhos - cfr. n.° 1, al. h).
2) Determina ainda o art° 115° do mesmo D.L. n° 49/2014 que, "Nos casos previstos no estatuto do Ministério Público, podem ser criados e extintos departamentos de investigação e ação penal, por iniciativa do Procurador-Geral da República e deliberação do Conselho Superior do Ministério Público, que é homologada por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.".
3) O Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n° 68/2019, de 27 de agosto, veio criar os DIAP regionais, sediados na comarca sede da procuradoria-geral regional, atribuindo-lhe competência para dirigir o inquérito e exercer a ação penal em matéria de criminalidade violenta, económico-financeira, altamente organizada ou de especial complexidade - cfr. art° 70°.
4) O n° 4 daquele artigo refere ainda que nos DIAP regionais podem ser criadas equipas de investigação e unidades de missão destinadas a articular segmentos específicos da atividade do departamento.
5) Por deliberação do Conselho Superior do Ministério Público, datada de 8 de outubro de 2019, foi aprovada a constituição, no âmbito da secção distrital do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) da comarca sede da área da Procuradoria-Geral Distrital do Porto, de uma Secção Especializada Integrada de Violência Doméstica (SEIVD), compreendendo um Núcleo de Ação Penal (NAP) e um Núcleo de Família e Crianças (NFC), a sediar e localizar na Procuradoria-Geral Distrital do Porto - Comarca do Porto - com um Pólo sediado no Porto, abrangendo a área territorial dos municípios do Porto, Gondomar, Valongo e Vila Nova de Gaia, e um Pólo sediado em Matosinhos, abrangendo a área territorial dos municípios de Maia, Matosinhos, Póvoa do Varzim, Santo Tirso, Trofa e Vila do Conde.
6) No que especificamente concerne às secções especializadas integradas de violência doméstica (SEIVD), o seu modelo organizacional e funcional foi concebido como unidades especializadas e, em certos casos, desconcentradas (cfr. n° 4 do artigo 70° do NEMP) dos DIAP regionais /distritais.
7) Dispõe também o artigo 120°, n° 3, da Lei n.° 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) que "Nas comarcas em que o movimento processual dos tribunais o justifique e sejam criados departamentos de investigação e ação penal (DIAP), são também criados juízos de instrução criminal com competência circunscrita à área abrangida."
8) Conclui-se, assim, que a competência da Instância Central de instrução criminal do Tribunal Judicial da Comarca do Porto está circunscrita ou corresponde à área abrangida pelo correspondente DIAP da comarca e, bem assim, pelo DIAP Regional, de acordo com uma interpretação atualista da lei à luz do Novo Estatuto do Ministério Público aprovado pela Lei n° 68/2019, de 27 de agosto.
9) Nessa conformidade, se à Secção Especializada Integrada de Violência Doméstica do Porto compete dirigir o inquérito e exercer a ação penal relativamente aos crimes de violência doméstica na área da comarca do Porto, não poderá deixar de concluir-se que as Secções do Tribunal Central de Instrução Criminal do Tribunal Judicial da Comarca do Porto têm competência territorial para praticar os atos jurisdicionais dos inquéritos tramitados pela SEIVD do DIAP Regional do Porto.
10) Tendo em conta que a 4ª Secção do DIAP Regional do Porto - NAP se encontra sediada em Matosinhos e tem a seu cargo a direção do inquérito e o exercício da ação penal relativamente aos crimes de violência doméstica que nela correm os seus trâmites, só poderá concluir-se que compete à 2ª Secção do Tribunal Central de Instrução Criminal do Porto, também sediada em Matosinhos, a prática dos atos jurisdicionais nos inquéritos instaurados na SEIVD do Porto - Núcleo de Matosinhos para investigação dos crimes classificados como violência doméstica.
11) O art° 119°, n° 1, da LOSJ determina que compete ao Juiz de instrução criminal, entre outros atos, exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, salvo nas situações, previstas na lei, em que as funções jurisdicionais relativas ao inquérito podem ser exercidas pelos juízos locais criminais ou pelos juízos de competência genérica.
12) Quer isto dizer que, nos Tribunais onde houver Instância Central de Instrução Criminal, é esta competente para os atos jurisdicionais de inquérito; quando a não haja, a competência caberá aos Juízes da Instância Local Criminal ou de Competência Genérica.
13) O escopo da norma consagrada no art° 119°, n° 1, da LOSJ é o de atribuir à instância local a competência para a prática de atos jurisdicionais na fase do inquérito, fora do município no qual se encontra instalada a secção central de instrução criminal.
14) Contudo, tal pressupõe que o inquérito respetivo esteja a correr os seus termos em Secção do DIAP sediada no município onde se encontra instalada a instância local, o que não sucede no caso vertente, porquanto os inquéritos em investigação na SEIVD do Porto - Pólo de Matosinhos correm termos no município de Matosinhos.
15) Assim, os atos jurisdicionais a praticar nos inquéritos a correr termos no município de Matosinhos deverão ser praticados no município de Matosinhos.
16) A formulação legal do art° 119°, n° 1, da LOSJ não exclui, portanto, a competência dos Senhores Juízes da 2ª Secção de Instrução Criminal do Porto para a prática dos atos jurisdicionais no inquérito, nos casos em que tais inquéritos corram termos na 4ª Secção do DIAP Regional do Porto - NAP, com sede em Matosinhos.
17) Esta é a única interpretação do art° 119°, n° 1, da LOSJ que se mostra consentânea com o espírito da lei, mais concretamente com a sua occasio legis, ou seja, com os fatores conjunturais que presidiram à sua consagração.
18) Mais ainda, o art° 130°, n° 2, al. a), da LOSJ determina que compete aos juízos locais criminais "proceder à instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, onde não houver juízo de instrução criminal ou juiz de instrução criminal" (sublinhado nosso).
19) Ora, no município de Matosinhos encontra-se instalada uma Secção do Tribunal Central de Instrução Criminal do Porto.
20) Concatenando o teor das disposições legais supracitadas, terá inevitavelmente de se concluir que a 2ª Secção de instrução criminal do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, com sede em Matosinhos, é territorialmente competente para a prática dos atos jurisdicionais nos inquéritos que se encontram em investigação na 4ª Secção do DIAP Regional do Porto - NAP, sediada em Matosinhos (independentemente da área territorial em que tenham sido cometidos os factos).
21) E, como tal, competente para a prática de qualquer ato jurisdicional no âmbito do presente inquérito, como seja a apreciação e concordância relativamente à suspensão provisória do processo nos termos propostos ao abrigo do disposto no art° 281° do Código de Processo Penal.»
Termina o Ministério Público o seu recurso pedindo se revogue a douta decisão em crise, e que, reconhecendo-se a competência territorial do Tribunal recorrido, se ordene que este se pronuncie quanto à requerida concordância, relativamente à suspensão provisória do processo nos termos propostos, seguindo-se os ulteriores termos processuais.
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Já nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.
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Cumpre decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar [1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
Levando em conta o teor do despacho recorrido acima transcrito (em que não se decidiu a questão de fundo) e das conclusões do recurso interposto, a única questão a decidir é a de saber se o Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos é ou não territorialmente competente para a realização do ato jurisdicional requerido no inquérito (de que foi extraído o presente recurso) por crime de violência doméstica praticado fora do município onde se encontra sediado aquele Juízo.
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É o seguinte o teor integral do despacho recorrido:
«Promove a Digna Magistrada do Ministério Público que os autos sejam conclusos ao Juiz de Instrução Criminal a fim de colher a concordância com a suspensão provisória do processo.

Aqui chegados, impõe-se-nos que apreciemos se é da nossa competência funcional e em razão do território a prática do ato.
Importa ter presente que neste Inquérito se investigam factos que se traduzirão num crime de violência doméstica consumado na Trofa, o que tem consequências ao nível da definição do tribunal territorialmente competente ao longo de todo o processo, à luz do art. 7º do Código Penal e do art. 19º do Código de Processo Penal, o que bem explica que os autos tenham vindo a ser tramitados pela Secção de Santo Tirso do DIAP; como importa ter presente que o Inquérito apenas passou a correr na 2ª Secção do DIAP de Matosinhos a partir da remessa determinada a fls. 175, decerto decorrente da recente reorganização interna dos Serviços do Ministério Público que é do conhecimento público, que passou pela criação, em Matosinhos, por ora a título experimental, de Secções Especializadas Integradas de Violência Doméstica, compostas por Núcleos de Ação Penal e Núcleos de Família e Crianças.
Pergunte-se então: tem o Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos competência para a prática de atos jurisdicionais em Inquéritos que respeitem a crimes cometidos no município da Trofa (que pertence à jurisdição de Santo Tirso)?
Pergunte-se de outra forma: tem o Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos competência para colher declarações para memória futura em Inquéritos que passaram a ser tramitados em Matosinhos apenas por via de uma reorganização interna e experimental dos Serviços do Ministério Público?
Entendemos que a resposta a ambas as questões, ligadas entre si, é negativa.

Vejamos porquê.

A competência funcional e territorial do juiz de instrução, de qualquer juiz ou tribunal, aliás, é a fixada na lei, lida esta no seu sentido geral e abstrato, não podendo estar dependente de decisões, deliberações, recomendações, pareceres ou atos administrativos de outra natureza provindos de entidades externas, como o é, respeitosamente o dizemos, o Ministério Público (cfr. arts. 2º e 3º da Lei da Organização do Sistema Judiciário).
Se assim não for entendido, então teríamos que estar disponíveis para a prática de atos jurisdicionais em inquéritos, fossem esses inquéritos quais fossem, desde que, por uma qualquer opção organizativa interna que nunca poderia ser judicialmente sindicada, a hierarquia do Ministério Público achasse por bem concentrá-los, no caso, em Matosinhos.
No limite, que nos permitimos convocar como auxiliar de raciocínio, podiam até ser deslocados para Matosinhos todos os inquéritos do país relativos a violência doméstica, que o juiz de instrução aqui sediado nada podia fazer senão praticar os atos que em abstrato coubessem dentro da sua jurisdição funcional.
Mais: com a agravante, acrescente-se, de a reorganização em causa dos Serviços Internos do Ministério Público ser experimental, o que significa que, porventura daqui a meses, poderá haver uma inversão da reorganização deliberada ou uma alteração sensível dos seus termos, ficando os Juízos de Instrução Criminal postos perante a contingência de se defrontarem com mexidas significativas nas suas competências materiais sem que tais mexidas resultem de lei.
Regressemos ao ponto inicial: a competência funcional e territorial do juiz de instrução, de qualquer juiz ou tribunal, diga-se, é a fixada na lei.
Que lei e que nos diz ela?
O diploma de referência é, naturalmente, a Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ – Lei nº 62/2013, de 26/08).
No nº 1 do seu art. 119º, diz-nos essa Lei o seguinte: “compete aos juízos de instrução criminal proceder à instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, salvo nas situações, previstas na lei, em que as funções jurisdicionais relativas ao inquérito podem ser exercidas pelos juízos locais criminais ou pelos juízos de competência genérica”
Bem se vê, portanto, que o legislador, antevendo a coexistência de juízos de instrução criminal e de juízos locais criminais ou de juízos de competência genérica, admite genericamente que haja situações, previstas na lei, em que as funções jurisdicionais relativas ao inquérito sejam exercidas pelos juízos locais criminais ou pelos juízos de competência genérica.
E, congruentemente com essa previsão, verifica-se que, mais adiante, quando enuncia as competências dos juízos locais criminais e dos juízos de competência genérica, a LOSJ concretiza-as dizendo o seguinte [art. 130º/2]: “a) proceder à instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, onde não houver juízo de instrução criminal ou juiz de instrução criminal; b) fora dos municípios onde estejam instalados juízos de instrução criminal, exercer as funções jurisdicionais relativas aos inquéritos penais, ainda que a respetiva área territorial se mostre abrangida por esse juízo especializado”
Ora, a situação que nos ocupa cai por inteiro na previsão da citada alínea b): o Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos tem jurisdição sobre a Trofa, mas com jurisdição criminal sobre esta localidade funciona também um Juízo com valência criminal [arts. 93º/1 h) e 93º/2 f) do Regime Aplicável à Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – D.L. nº 49/2014, de 27/03 – e o Mapa III anexo a este]
Significa o exposto e em síntese que, tratando-se de um inquérito em que o crime investigado se tenha consumado na área da Trofa, é o Juízo com competência criminal de Santo Tirso que deve proceder à prática dos atos jurisdicionais em Inquérito como o em causa nestes autos, como aliás tem vindo a suceder até hoje, não constituindo a reorganização interna dos Serviços do Ministério Público razão para dar origem a uma mudança administrativa e não legal das regras de competência dos tribunais.
Face ao exposto, decidimos:
a) Declarar este Juízo de Instrução Criminal territorialmente incompetente para proferir despacho de concordância/discordância com a ponderada suspensão provisória do processo, por caber essa competência à Secção Local Criminal de Santo Tirso;
b) Determinar que, após trânsito deste despacho, o presente Inquérito seja remetido para esse efeito àquele Juízo Local Criminal
Notifique.
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Entretanto, regressem os autos aos Serviços do Ministério Público (DIAP/2ª Secção de Matosinhos), para a prática dos atos de inquérito que aí se entenda deverem ser praticados, devendo regressar a este Juízo de Instrução Criminal decorrido que seja o prazo do trânsito em julgado do presente despacho, tendo em vista a sua ulterior remessa para Santo Tirso
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A suscitada questão da competência do JIC de Matosinhos
Constituem a base indiscutida do tema do presente recurso as seguintes circunstâncias substantivas e processuais:
- no inquérito de que emergiu o presente recurso, investigam-se factos que, a provarem-se, se traduzirão em um crime de violência doméstica, consumado na área do município de Trofa;
- tais factos terão ocorrido até agosto de 2017;
- tendo o seu início em 14/08/2017, o inquérito foi tramitado pela Secção do DIAP de Santo Tirso até 9/01/2020, data em que foi remetido à Secção Especializada Integrada de Violência Doméstica (SEIVD) – inserida na estrutura do DIAP Regional, 4ª Secção, sediada em Matosinhos – entretanto criada, a título experimental, pelo Conselho Superior do Ministério Público.
- a 22/01/2020, o Ministério Público proferiu despacho a determinar a suspensão provisória do processo, a final do qual ordenou a remessa dos autos ao Tribunal de Instrução Criminal a fim de aí ser tomada a posição a que aludem os nºs 1 e 6 do artigo 281º do Código de Processo Penal.
Entende o recorrente que, tendo em conta que a 4ª Secção do DIAP Regional do Porto - NAP se encontra sediada em Matosinhos e tem a seu cargo a direção do inquérito e o exercício da ação penal relativamente aos crimes de violência doméstica que nela correm os seus trâmites, só poderá concluir-se que compete à 2ª Secção do Tribunal Central de Instrução Criminal do Porto, também sediada em Matosinhos, a prática dos atos jurisdicionais nos inquéritos corram termos na SEIVD do DIAP do Porto, Núcleo de Matosinhos, para investigação dos crimes classificados como violência doméstica.
Já o Tribunal recorrido, como vimos, professa o entendimento de que a mera reorganização interna dos Serviços do Ministério Público não constitui motivo suficiente para dar origem a uma mudança das regras de competência territorial e funcional dos tribunais, por não influir, sem mais, no regime legal que fixa tal competência.
Estamos em crer que é a posição do recorrente a mais correta.
Com efeito, no artigo 120°, n° 3, da Lei n.° 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário), determina-se que “Nas comarcas em que o movimento processual dos tribunais o justifique e sejam criados departamentos de investigação e ação penal (DIAP), são também criados juízos de instrução criminal com competência circunscrita à área abrangida.”
Concretizando este modelo organizacional, o Decreto-Lei n° 49/2014, de 27 de março – que regulamentou a referida LOSJ e estabeleceu o regime aplicável à organização e funcionamento dos tribunais judiciais – determinou, no seu artigo 93°, que “O Tribunal Judicial da Comarca do Porto integra secções de instância central, designadamente a 1ª Secção de instrução criminal, com sede no Porto - cfr. n° 1, al. g) - e a 2ª Secção de instrução criminal, com sede em Matosinhos - cfr. respetivo n.° 1, al. h).
Estabeleceu ainda o artigo 115° do mesmo regulamento da LOSJ que, “Nos casos previstos no estatuto do Ministério Público, podem ser criados e extintos departamentos de investigação e ação penal, por iniciativa do Procurador-Geral da República e deliberação do Conselho Superior do Ministério Público, que é homologada por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.”.
Em consonância com tal regime de regulamentação do sistema judiciário, por sua vez, o novo Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n° 68/2019, de 27 de agosto, no nº 1 do respetivo artigo 70º, veio criar os DIAP regionais, sediados na comarca sede da procuradoria-geral regional, atribuindo-lhes competência exclusiva para dirigirem o inquérito e exercerem a ação penal em matéria de criminalidade violenta, económico-financeira, altamente organizada ou de especial complexidade, mas sem prejuízo de, nos termos do n° 4 do mesmo artigo se prever a possibilidade de, nos DIAP regionais, serem criadas equipas de investigação e unidades de missão destinadas a articular segmentos específicos da atividade do departamento.
É neste contexto de legitimidade organizacional que se inscreve a Deliberação do CSMP de 11 de outubro de 2019, pela qual aquele Conselho deliberou constituir, no âmbito das secções distritais dos DIAP de Lisboa e do Porto, Secções Especializadas Integradas de Violência Doméstica (SEIVD), deliberação essa que tem o seguinte teor:
“O Conselho Superior do Ministério Público deliberou constituir, no âmbito das secções distritais dos DIAP de Lisboa e do Porto, Secções Especializadas Integradas de Violência Doméstica (SEIVD).
As SEIVD são criadas num momento em que se verifica um aumento de mortes em contexto de violência doméstica, desfechos letais, por vezes presenciados por crianças. Também na área da família, surgem cada vez mais processos relacionados com a vivência, por crianças, de quadros familiares violentos.
Com vista a uma maior eficácia no combate ao fenómeno, as SEIVD, para além da especialização na investigação da violência doméstica, têm outro núcleo de atribuições que, partindo de uma análise abrangente e integrada do quadro familiar onde ocorre o crime, permite a definição célere de procedimentos, designadamente nas vertentes de articulação com os órgãos de polícia criminal, com as entidades vocacionadas para a proteção das vítimas e, em especial, com a jurisdição de família e crianças.
Este modelo organizativo começará a ser implementado, a título experimental, em Lisboa, Seixal, Porto e Matosinhos.”
Na sequência desta Deliberação, os autos de inquérito em causa passaram a ser processados pela SEIVD inserida na estrutura do DIAP Regional, 4ª Secção, sediada em Matosinhos.
A competência dos juízos especializados de instrução criminal para exercerem as funções jurisdicionais relativas ao inquérito constitui a regra, na área abrangida pelos mesmos (cfr. o disposto, nomeadamente, nos artigos 119° e 120º da LOSJ), podendo, por isso dizer-se que, à partida, a competência para o ato jurisdicional requerido é do JIC de Matosinhos, atendendo a que, nos termos do Regulamento da LOSJ, tem a sua área de competência territorial estendida aos “municípios da Maia, Matosinhos, Póvoa de Varzim, Santo Tirso, Trofa e Vila do Conde”.
Já a competência dos juízos locais criminais e de competência genérica sediados na área abrangida por juízos de instrução criminal se apresenta, em tal matéria, como residual, como denuncia o disposto no nº 1 do citado artigo 119º da LOSJ, ao ressalvar da competência dos juízos de instrução criminal as “situações, previstas na lei, em que as funções jurisdicionais relativas ao inquérito podem ser exercidas pelos juízos locais criminais ou pelos juízos de competência genérica”.
E mais se confirma a excecionalidade da competência dos juízos locais para a prática de atos jurisdicionais próprios dos tribunais de instrução criminal nas áreas abrangidas por estes, quando, no artigo 130º da LOSJ – depois de se estabelecer, na alínea b) do seu nº 2, a competência daqueles juízos locais para exercerem as funções jurisdicionais relativas aos inquéritos penais, fora dos municípios onde estejam instalados juízos de instrução criminal (ainda que a respetiva área territorial se mostre abrangida por esse juízo especializado) – se dispõe, no respetivo nº 3, que, “Nas situações a que se reporta a alínea b) do número anterior, o Conselho Superior da Magistratura define, detalhadamente, os atos jurisdicionais a praticar por cada um dos juízos locais e juízos de competência genérica”.
É verdade que a Trofa se situa fora do município onde está instalado o juízo de instrução criminal em causa, isto é, o de Matosinhos. Por isso, poderia entender-se – como o faz o despacho recorrido – que incumbiria ao Juízo Local Criminal de Santo Tirso “exercer as funções jurisdicionais” relativas ao presente inquérito penal.
Só que esta hipótese excecional sempre estaria delimitada pelo estatuído no n.º 3 do referido artigo 130º.
A Lei remeteu, pois, para o CSM a definição dos concretos atos jurisdicionais a praticar pelos Juízos locais ou de competência genérica.
Importa, por isso, convocar a deliberação do CMJ, aplicável ao caso.
Ora, por despacho de 3 de Setembro de 2015, o Senhor Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura acolheu a proposta apresentada através do ofício n° 89/2015- GP/CSM emanado pelo Gabinete da Presidência do Tribunal Judicial da Comarca do Porto relativo à competência dos senhores juízes de Instrução Criminal na Comarca do Porto que refere expressamente “e em conclusão” que:
“1. Com início no próximo dia 1 de Setembro de 2015, o exercício de funções pelos Ex.mos Senhores juízes de direito da 2ª secção de instrução criminal da instância central, também nas secções criminais locais da Maia, Póvoa do Varzim/Vila do Conde e Santo Tirso, exercício de funções esse circunscrito à prática dos seguintes atos jurisdicionais em sede de inquérito nos processos criminais das unidades do Ministério Público sediadas naqueles municípios:
a) proibição e imposição de condutas; caução;
b) proceder ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação;
c) ordenar/autorizar a realização de exames, revistas, buscas, apreensões e escutas telefónicas;
d) apreciar o pedido de habeas corpus por detenção ilegal.
e) A realização dos interrogatórios judiciais de arguidos detidos, realizar interrogatório judicial de arguido detido;
2. Aplicar as medidas de maior gravidade (prisão preventiva; obrigação de permanência na habitação; seja canalizada para a 2ª secção de instrução criminal.
3. Quanto aos demais atos jurisdicionais relativos ao inquérito, que sejam praticados na 2ª secção de instrução, caso os senhores juízes de instrução entendam fazê-lo e os meios técnicos disponíveis o permitam, designadamente recorrendo ao sistema Citius ou ao envio das necessárias peças e elementos processuais via correio eletrónico.”
Ainda por despacho de 30 de Dezembro de 2016, o Senhor Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura determinou que se mantenham todas as medidas homologadas e em vigor quanto à jurisdição de instrução criminal e aos atos a praticar pelas então Instâncias Centrais de Instrução Criminal e Instâncias Locais com competência em matéria Criminal, agora quanto aos Juízos de Instrução Criminal e aos Juízos Locais com competência em matéria Criminal.
Assim, por um lado, o ato jurisdicional em causa não diz respeito a um qualquer ato jurisdicional abrangido pela decisão do CSM.
Em todo o caso, mesmo que se entendesse que o referido despacho do CSM estava afetado por qualquer invalidade/inconstitucionalidade, verifica-se que o mesmo ato jurisdicional não tem origem em qualquer unidade do Ministério Público sediada em Santo Tirso – não nos cabendo emitir qualquer juízo de valor sobre a validade da remessa do inquérito ao DIAP regional de Matosinhos, porque tal diz respeito à orgânica do Ministério Público, que goza de autonomia e dirige a fase de inquérito [2].
Não tem, por isso, competência para a apreciação e concordância relativamente à suspensão provisória do processo, nos termos propostos ao abrigo do disposto no artigo 281° do Código de Processo Penal, o Juízo de Local Criminal de Santo Tirso, estando a mesma atribuída por lei ao Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos.
Deverá, por isso, proceder o recurso, revogando-se o despacho recorrido.
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III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 1ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, revogando o douto despacho recorrido, reconhecem a competência territorial do Tribunal recorrido para que este se pronuncie quanto à requerida concordância, relativamente à suspensão provisória do processo, nos termos propostos, seguindo-se os ulteriores termos processuais.
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Sem custas.
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Porto, 8 de setembro de 2020
Vítor Morgado
Maria Joana Grácio
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[1] Tal decorre, desde logo, de uma atenta interpretação do disposto no nº 1 do artigo 412º e nos nºs 3 e 4 do artigo 417º do Código de Processo Penal. Ver também, nomeadamente, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, 3ª edição (2009), página 347 e jurisprudência uniforme do S.T.J. (por exemplo, os acórdãos. do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, página 196, e de 4/3/1999, CJ/S.T.J., tomo I, página 239).
[2] Em idêntico sentido, se pronunciou esta Relação do Porto, na recente decisão proferida no conflito negativo de competência dirimido no processo 733/19 8T9MAI-A.P1, a que tive acesso através do seu douto prolator, Dr. Francisco Marcolino, Presidente desta 1ª Secção.