Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
164/21.0T8ARC.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: EMPREITADA DE CONSUMO
DEFEITOS
ELIMINAÇÃO DOS DEFEITOS
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP20231123164/21.0T8ARC.P1
Data do Acordão: 11/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Tem sido entendimento jurisprudencial que, perante a existência de defeitos, os direitos conferidos ao dono da obra pelos artigos 1221º e 1222º do CC terão de ser exercidos por ordem de prioridade e sequencialmente: (1º) exigir a eliminação dos defeitos, se estes puderem ser suprimidos; (2º) exigir uma nova construção, se os defeitos não puderem ser eliminados; (3º) exigir a redução do preço ou, em alternativa, a (4º) resolução do contrato.
II - Porém, segundo o regime do Decreto-Lei n.º 67/2003 (a dita empreitada de consumo), não existe ordem de prioridade, ficando o recurso a qualquer um desses direitos à escolha do consumidor, desde que “tal não se manifeste impossível ou constitua abuso de direito”.
III - Não configura abuso de direito a conduta do dono da obra, consumidor, que procede à resolução do contrato após conceder ao empreiteiro 3 tentativas de eliminação dos defeitos, que se revelaram goradas, e persistentes na utilização da mesma técnica, que não era apropriada para os fins em vista.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 164/21.0T8ARC.P1

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I – Resenha histórica do processo
1. A..., Lda, instaurou ação contra AA, e mulher, BB, pedindo a sua condenação a pagar-lhe 5.301,10 €, acrescidos de juros de mora, vencidos e vincendos.
Em resumo, estribou o seu pedido alegando um contrato de empreitada que celebrou com os Réus (fornecimento e colocação de diversos móveis na casa destes), não tendo os Réus pago, sob invocação de defeitos, que não existiram.
Em contestação, os Réus impugnaram parcialmente a factualidade alegada. Excecionaram também com o deficiente cumprimento, dado que a Autora, apesar de diversas tentativas, não logrou eliminar.
Deduziram ainda reconvenção, pedindo a condenação da Autora a pagar-lhes € 8.614,30, quantia que pagaram a uma nova empresa, que se viram obrigados a contratar.
A Autora replicou, respondendo à exceção e impugnando a matéria reconvencional.
Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que decidiu:
● Julga-se procedente a invocada exceção do não cumprimento do contrato e, em consequência, absolvem-se os réus AA e BB do pedido deduzido pela autora A..., Lda.
● Julga-se totalmente improcedente o pedido reconvencional deduzido pelos réus/reconvintes AA e BB e, em consequência, absolve-se a autora/reconvinda A..., Lda.

2. Para assim decidir, considerou-se a seguinte factualidade:
«Factos provados
1.º A autora é uma sociedade que dedica a sua actividade ao comércio de mármores e cantarias.
2.º No âmbito da sua actividade foi contactada pelos Réus para o fornecimento e
colocação de diversas bancadas na casa destes, sita no Lugar ..., ..., em Arouca, designadamente:
a) Uma bancada de cozinha em G. Golden Bird 0.02 Liso;
b) Quatro bancadas para lavatórios de casas de banho;
c) Uma bancada para lavandaria;
d) Dois nichos de casa de Banho em Quartz Guidoni Ultra Blanco a0.02 liso;
e) Um escorredor de cozinha.
3.º Além do fornecimento dos móveis supra, estava incluída a assistência e montagem dos mesmos no local.
4.º Todos os materiais fornecidos foram objecto de escolha prévia por parte dos Réus junto do fornecedor da Autora.
5.º Tendo sido estes a escolher, perante amostras de material, quer o tipo de material, quer as cores, etc.
6.º Isto além de selecionar os modelos, indicar medidas e tudo o mais relacionado com a execução dos móveis e posterior colocação.
7.º Executadas as bancadas, a autora procedeu à colocação das mesmas em obra, nos locais previamente definidos.
8.º Dadas as características do serviço a efectuar, o mesmo não ficou totalmente concluído na primeira visita de montagem.
9.º Tendo ficado por colocar uma pedra que era necessário polir.
10.º Esta pedra foi colocada no local dois dias depois.
11.º Os RR denunciaram verbalmente, em finais de Setembro de 2020, logo após a colocação das bancadas, um erro de corte em montagem, que fissurou a extrema da bancada da cozinha, nichos da casa de banho assimétricos, colocação de pedras sem alinhamento, defeito no polimento, bancadas da casa de banho afastadas das paredes laterais.
12.º A autora de imediato enviou trabalhadores seus à obra em causa, de forma a suprir os defeitos apontados, mas os mesmos tentaram por três vezes disfarçar os defeitos com colocação de silicone, sem os eliminarem.
13.º Os réus não mais permitiram que os trabalhadores da Autora entrassem na obra, e por carta datada de 09.10.2020 expondo por escrito os defeitos oportunamente comunicados à autora verbalmente, recusam a reparação que a autora executou por três vezes sempre de forma deficiente comunicando-lhe a resolução do contrato, e que podia levantar todas as bancadas, tendo impedindo os trabalhadores da autora de continuarem a tentar a reparar os defeitos verificados recorrendo sempre a uma solução de remedeio com silicone.
14. A A. respondeu por carta com data de 16-10-2020 enviando a fatura de FT 20/436 no montante de €2,899.73 emitida a 26 de setembro de 2020, relativa a parte dos materiais colocados em obra, e remetendo formulário de reclamação sob a referência ....
15. A 23 de Novembro de 2020 a autora interpelou os réus para proceder ao pagamento da factura FT 20/436 e emitiu a factura FT 20/522 datada de 23.11.2020 no montante de 2.401,37€
16. Em data não concretamente apurada mas anterior a 02.12.2020 os RR contrataram a empresa B... para lhes executar as bancadas em substituição das bancadas que anteriormente a autora lhes tinha fornecido e que estes retiraram da obra atentos os defeitos que as mesmas ostentavam e que sem sucesso a autora havia por três vezes tentado reparar.
17. O material agora escolhido para as bancadas é distinto daquele que os réus escolheram e encomendaram à autora.
18.Alem do fornecimento dos bens, no serviço da B..., também estava incluída a assistência e montagem.
19.A empresa contratada procedeu à montagem da cozinha e móveis.
20.Os RR/reconvintes despenderam o montante de € 8.614,30 no pagamento à B....
21. Os RR. procederam à devolução de faturas e impugnaram as mesmas, informando a A. que as pedras podiam ser levantadas, tudo por carta registada com aviso de receção datada de 30-12-2020 sob a referência ...
22. Em 09-03-2021 teve lugar uma reunião entre a A. representada pelo menos pelo gerente CC e os RR, tendo ficado combinado que a A. daria uma resposta para resolver extrajudicialmente o diferendo.
23. A 16-04-2021 a autora interpelou de novo os RR para pagamento dos montantes das referidas facturas.
24. Em 30-04-2021 os RR. enviaram resposta sob a referência ... a negar a responsabilidade pela divida reiterando que as bancadas estavam à disposição da autora para proceder ao seu levantamento.
Factos não provados:
a) Desde o início da execução dos trabalhos e muito antes de os mesmos finalizados, os Réus começaram a colocar sucessivos defeitos na forma como os mesmos estavam a ser executados.
b) Tendo deixado escapar perante funcionários da Autora que não gostavam dos materiais com que os móveis tinham sido executados.
c) Os defeitos invocados são frequentes neste tipo de serviços.
d) Os trabalhos que os funcionários da autora foram impedidos de executar pelos RR resumiam-se a pequenas rectificações ou acertos de juntas, colocação de silicone e limpezas.
e) Quando a autora deu a obra por concluída, todos os serviços estavam realizados, não obstante alguma pequena correcção que eventualmente pudesse ainda ser necessária,
f) Os defeitos invocados pelos RR não existiam.
g) Sem qualquer interpelação prévia para uma eventual regularização de defeitos, os Réus resolveram o contrato de fornecimento de bens e serviços.
h) Sem darem oportunidade à autora de concluir, sequer, os pequenos trabalhos de limpezas em falta (que constituem grande parte das queixas dos Réus).
i) Os Réus, porque não gostaram do resultado final do material que eles próprios escolheram, trataram de criar inúmeros problemas, de forma a que se pudessem eximir do dever de pagamento dos mesmos.
j) Nunca os réus procuraram reparar os eventuais defeitos que elencaram de que reclamavam.
k) Os defeitos elencados pelos Réus, dizem respeito a aspectos de colocação e nunca dos próprios móveis fornecidos.»

3. Inconformado com tal decisão, dela apelou a Autora, formulando as seguintes conclusões:
A) Encontra-se incorretamente julgada parte da matéria de facto apreciada pelo Tribunal recorrido.
B) O ponto 12 dos factos provados encontra-se erradamente julgado, já que os defeitos alegadamente objeto de tentativa de disfarce com silicone se resumem uma pedra da banca da cozinha e não a todos os demais elencados pelos Réus.
C) Também a obra em causa em momento algum foi dada como terminada, já que os trabalhadores da autora ainda se encontravam a realizar os acabamentos.
D) E o facto de se tentar resolver o problema com recurso a silicone, não pode ser entendido como uma recusa em resolver definitivamente o problema.
E) Da prova produzida em audiência, não pode resultar provado em 12º que: A autora de imediato enviou trabalhadores seus à obra em causa, de forma a suprir os defeitos apontados, mas os mesmos tentaram por três vezes disfarçar os defeitos com colocação de silicone, sem os eliminarem.
F) Mas sim, face à prova produzida, que: A autora de imediato enviou trabalhadores seus à obra em causa, de forma a suprir os defeitos apontados, tendo os mesmos tentado solucionar o problema da junta da banca com recurso a silicone, e que, perante tal facto a Ré os expulsou a obra.
G) Deve ainda acrescer à matéria de facto provada que aquando da expulsão pela Ré dos funcionários da Autora, a obra ainda não havia sido dada como concluída.
H) E ainda que, previamente à expulsão dos funcionários da autora da obra, nunca os Réus interpelaram a mesma para qualquer incumprimento, designadamente com qualquer cominação, tanto mais que entre o início dos trabalhos e a expulsão dos trabalhadores da obra decorreram menos de 15 dias.
I) Já que os mesmos se iniciaram em 25 de setembro e no dia 9 de Outubro foi remetida a carta (já posteriormente à dita expulsão).
J) Desta forma, por se tratar de matéria absolutamente essencial para a boa decisão, e por ter sido objeto de prova absolutamente inequívoca, deverá ser aditada aos factos provados a seguinte factualidade:
i. A colocação dos materiais iniciou-se no dia 25 de setembro, tendo a Ré expulso os trabalhadores da obra, ainda não terminada, em momento anterior ao dia 9 de Outubro.
ii. A Ré expulsou os funcionários da Autora da obra, ainda no decurso da mesma e sem qualquer tipo de interpelação com cominação previa à Autora.
iii. A Autora havia mostrado total disponibilidade para resolver os defeitos, ainda que com a substituição da pedra em causa.
K) Concomitantemente, deve a factualidade constante dos factos não provados constante de d), g) e h), ser eliminada, por manifestamente incompatível com o acima vertido.
L) O aspeto jurídico essencial em discussão nos presentes autos é um contrato de empreitada, o seu cumprimento e, sobretudo, a validade da resolução levada a cabo pelos Réus.
M) E, a final, as consequências jurídicas a retirar dessa resolução contratual.
N) Cremos, salvo o devido respeito por melhor entendimento, que o tribunal faz uma apreciação manifestamente enviesada da factualidade apurada e, consequentemente, aplica de forma errada o direito.
O) No caso dos autos, estamos perante um contrato de empreitada.
P) Temos assente que os Réus expulsaram os funcionários da Autora da Obra, impedindo-os de reparar os defeitos existentes e concluir a obra.
Q) Ainda que os trabalhos em curso não fossem suficientes para reparar os defeitos, existia ainda a possibilidade de, a expensas da autora, ser realizada obra nova, o que significa a substituição da pedra por uma pedra nova.
R) O que os Réus nunca exigiram.
S) Também nunca estipularam prazo para a reparação dos defeitos ou substituição do material.
T) Nem fixaram qualquer cominação.
U) Por último, e não menos importante, em causa estava, “tão só” uma questão de defeitos nas juntas das pedras das bancas.
V) Tal defeito, por relevante que seja na perspetiva do dono da obra, não a tornam inadequada ao fim a que se destina.
W) A resolução contratual operada pelos Réus é absolutamente ilícita e injustificada, à luz do que se acaba de expor.
X) Não se podendo os mesmos valer de qualquer exceção pelo não cumprimento contratual.
Y) A decisão do tribunal viola o disposto nos artigos 1221º e 1222º, conjugados com o disposto nos artigos 804º e 805º, todos do CC.
Z) Sendo certo que, para além da própria ilicitude da resolução do contrato de empreitada, foram os réus quem tornaram o cumprimento da obrigação da autora impossível, com a retirada dos moveis e colocação de outros.
AA) A sentença deverá, portanto, ser revogada, por violação dos dispositivos citados.
BB) Devendo os Réus ser condenados no pagamento do valor peticionado pela Autora relativamente à obra efetuada, já que, como se expos, tendo sido estes quem tornou o cumprimento da obrigação impossível, não se podem fazer valer de qualquer exceção pelo não cumprimento do contrato.
CC) Pelo que deve a sentença recorrida ser revogada.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente e, por força dessa procedência, ser revogada a sentença proferida, nos termos invocados. Assim se decidindo, será feita a habitual justiça.»

4. Os Réus contra-alegaram, sustentando a improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
5. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, são as seguintes as QUESTÕES A DECIDIR:
● Se é de reapreciar a matéria de facto e, em caso afirmativo, a tal proceder;
● Se existiu erro de julgamento no tocante à subsunção dos factos ao direito.

5.1. Se é de reapreciar a matéria de facto
Nas suas contra-alegações, os Réus suscitam que não estão reunidas as condições legais para tal reapreciação, considerando que a Recorrente não apresenta as razões de discordância ou quais os meios de prova que impunham decisão diversa.
Efetivamente, assim é no que toca às conclusões. Porém, ao longo da motivação, a Recorrente foi elencando os diversos depoimentos ouvidos e transcrevendo os excertos que considerou relevantes.
A questão tem sido objeto de vários acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que tem considerado que a avaliação do cumprimento dos ónus imposto pelo art.º 640º do CPC deve ser feito com ponderação, refutando o excesso de formalismo.
Assim, a título de mero exemplo:
«III - O ónus de especificação, imposto no art. 640 nº 1 a), b) e c) e nº 2 a) CPC, visa afastar a possibilidade de uma impugnação generalizada, e os concretos pontos de facto impugnados devem ser feitos nas respectivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão. Já quanto à especificação dos meios probatórios, a lei não impõe que seja feita nas conclusões, podendo sê-lo no corpo da motivação, mas em todo o caso exige-se a obrigatoriedade de cerzir cada facto censurado com os elementos probatórios correspondentes.
IV - Ainda que o ónus secundário (art. 640 nº 2 a) CPC) se revele deficiente, o recurso não deve ser rejeitado se o apelante indicou, embora sem integral precisão, as passagens da gravação, mas procedeu à transcrição das passagens que entendeu relevantes, a apelada compreendeu perfeitamente os fundamentos da impugnação, respondendo com a análise da prova.
V - O art. 640 nº 2 a) CPC deve ser interpretado restritivamente, no sentido de que a letra diz mais do que o seu espírito, ou seja, em face do objectivo da norma, a rejeição só se impõe quando haja total omissão da indicação das passagens da gravação de cada uma das testemunhas, e por via disso se ignore em que passagens do depoimento o recorrente se baseia. A não ser assim, a norma seria materialmente inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade, porque não se podendo considerar excessivo o ónus (secundário), o mesmo não sucede com a gravidade das consequências que se revela claramente excessiva e por consequência desproporcionada, quando tal deficiência não inviabiliza análise pelo tribunal, nem o contraditório da contraparte.» [1]
Aderindo a este entendimento, e dado que no corpo da motivação estão indicados o nome da testemunha e o excerto do respetivo depoimento, consideramos ser de proceder à reapreciação dos pontos de facto, indeferindo-se a pretendida rejeição nessa parte.

5.2. Reapreciação da matéria de facto
Quanto ao facto provado 12
12.º A autora de imediato enviou trabalhadores seus à obra em causa, de forma a suprir os defeitos apontados, mas os mesmos tentaram por três vezes disfarçar os defeitos com colocação de silicone, sem os eliminarem.
A Recorrente pretende a sua alteração para:
A autora de imediato enviou trabalhadores seus à obra em causa, de forma a suprir os defeitos apontados, tendo os mesmos tentado solucionar o problema da junta da banca com recurso a silicone, e que, perante tal facto a Ré os expulsou a obra.
Para o efeito, invoca os depoimentos de CC (legal representante da Autora) e DD (carpinteiro, que realizou os trabalhos).
Em primeiro lugar, cumpre assinalar que a alteração pretendida não se reporta propriamente à mesma matéria de facto. Ou seja, aceitando como correto que a Autora enviou os seus trabalhadores à obra para eliminar os defeitos, que os mesmos tentaram por três vezes disfarçar os defeitos com colocação de silicone, mas não os eliminaram, pretende-se agora aditar que essa falta de eliminação dos defeitos se ficou a dever exclusivamente ao facto de terem sido expulsos da obra.
Sucede que essa recusa de aceitar de novo os trabalhadores da Autora (ou “expulsão”, no dizer da Recorrente) resulta bem claro no facto provado nº 13, com explicitação das circunstâncias: 13.º Os réus não mais permitiram que os trabalhadores da Autora entrassem na obra, e por carta datada de 09.10.2020 expondo por escrito os defeitos oportunamente comunicados à autora verbalmente, recusam a reparação que a autora executou por três vezes sempre de forma deficiente comunicando-lhe a resolução do contrato, e que podia levantar todas as bancadas, tendo impedindo os trabalhadores da autora de continuarem a tentar a reparar os defeitos verificados recorrendo sempre a uma solução de remedeio com silicone.
Donde, resulta inútil qualquer alteração.
Quanto ao aditamento dos seguintes factos:
i. A colocação dos materiais iniciou-se no dia 25 de setembro, tendo a Ré expulso os trabalhadores da obra, ainda não terminada, em momento anterior ao dia 9 de Outubro.
ii. A Ré expulsou os funcionários da Autora da obra, ainda no decurso da mesma e sem qualquer tipo de interpelação com cominação previa à Autora.
iii. A Autora havia mostrado total disponibilidade para resolver os defeitos, ainda que com a substituição da pedra em causa.
Quanto ao facto (i), afigura-se também inútil pela razão apontada, ou seja, resulta já do facto provado 13 que a recusa dos Réus em receber os trabalhadores foi comunicada formalmente por carta datada desse dia 9.
Quanto ao facto (ii), já está adquirido nos autos (sem impugnação da Recorrente) que os trabalhadores da Autora não foram mais aceites em obra, ao fim de 3 tentativas falhadas da eliminação dos defeitos; é evidente que não pode aceitar-se a ausência de interpelação da Autora, já que consta do facto provado 13 o envio de uma carta. E que existiu uma interpelação anterior, de forma verbal, resulta do depoimento do legal representante da Autora (“automaticamente não me permitiu fazer mais nada e mandou-me embora”), isto já depois de a Ré não lhe ter permitido os trabalhadores e numa última tentativa em que ele ainda foi a casa dela e com ela conversou.
No tocante ao faco (iii), pode efetivamente ter relevância na decisão.
Para o pretendido aditamento, a Recorrente invoca o depoimento da Ré BB (foi ouvida em declarações de parte, pelo que não pode falar-se em confissão do ponto de vista técnico jurídico). Sucede que desse depoimento se extrai exatamente o contrário, como se vê do seguinte excerto:
─ Em algum momento vos foi colocada a possibilidade de ser reduzido o preço, ter havido uma alternativa, colocar outra pedra?
– Não.
– Houve alguma proposta nesse sentido?
– Não.
– O que foi dito foi sempre que eram retificados os defeitos?
– Sim, sim.
Quanto ao depoimento do legal representante da Autora, é certo que ele referiu o seguinte: “Mas eu próprio disse “eu faço aquilo que você me disser para fazer” eu tiro as pedras por respeito ao meu cliente, o Sr. DD. Eu tiro as pedras e torno a colocar sem prejuízo para o cliente, “para si”.”
Temos, assim, uma contradição entre ambos os depoimentos, restando saber qual deles seria o verdadeiro. Sem outros elementos probatórios a corroborar um ou outro, é de atender ao contexto. Ora, o legal representante da Autora teria dito isso na conversa que teve com a Ré, já depois de os trabalhadores da Autora terem lá ido 3 vezes para reparar, sem sucesso, e ela lhes ter dito para não voltarem. Assim, é de crer que, se o legal representante da Autora tivesse efetivamente total disponibilidade para substituir as pedras em causa, o teria/deveria ter feito antes, pelo menos ao ter constatado que a 2ª tentativa de eliminar os defeitos não resultou.
Assim, não se aditará esse facto.
Quanto à eliminação dos factos não provados constante de d), g) e h):
Esta eliminação vem suscitada com o único fundamento da procedência do aditamento anterior, considerando que se entraria em contradição e incompatibilidade.
Tendo improcedido a alteração do ponto anterior, esta também soçobra.

5.3. Do erro de julgamento na subsunção dos factos ao direito
§ 1º - Começando pelo regime jurídico aplicável ao caso
Na sentença recorrida qualificou-se o contrato entre Autora e Réus como de empreitada, qualificação essa que ninguém contesta e que também acolhemos.
Mas com uma nuance específica, trata-se de uma empreitada de consumo, pelo que, além do regime consignado no Código Civil (CC), há que atender às especificidades traçadas pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08 de abril (sobre a venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas), cujo art.º 1º-A nº 2 refere expressamente ser “aplicável, com as necessárias adaptações, aos bens de consumo fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada ou de outra prestação de serviços, bem como à locação de bens de consumo”.
Assim, tendo em conta as definições do art.º 1º-B do referido diploma, estamos perante uma empreitada de consumo. Resulta claramente dos autos que os Réus são pessoas singulares, sendo a Autora uma sociedade comercial. Os trabalhos a efetuar (no essencial, fornecimento e colocação de bancadas na cozinha e quartos de banho) foram para a casa de habitação dos Réus.
Ora, decorre do art.º 4º do Decreto-Lei n.º 67/2003, que os Réus tinham os seguintes direitos ao constatar a existência de defeitos:
● À sua reparação ou substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato
● Os direitos de resolução do contrato e de redução do preço podem ser exercidos mesmo que a coisa tenha perecido ou se tenha deteriorado por motivo não imputável ao comprador.
● O consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais.
Resulta daqui um regime bem mais favorável que o do CC.
Na verdade, tem sido entendimento jurisprudencial que, perante a existência de defeitos, os direitos conferidos ao dono da obra pelos artigos 1221º e 1222º do CC terão de ser exercidos por ordem de prioridade e sequencialmente: (1º) exigir a eliminação dos defeitos, se estes puderem ser suprimidos; (2º) exigir uma nova construção, se os defeitos não puderem ser eliminados; (3º) exigir a redução do preço ou, em alternativa, a (4º) resolução do contrato. [2]
Já segundo o regime do Decreto-Lei n.º 67/2003, não existe ordem de prioridade, ficando o recurso a qualquer um desses direitos à escolha do consumidor, desde que “tal não se manifeste impossível ou constitua abuso de direito”.
Assim o refere João Cura Mariano «Se, relativamente ao conteúdo dos direitos do dono da obra, o regime da empreitada de consumo não apresenta significativas especialidades, já quanto ao modo de articulação dos diferentes direitos no seu exercício existe uma diferença substancial. Enquanto no regime do CC vigoram regras rígidas que estabelecem várias relações de precedência e subsidiariedade entre aqueles direitos, que condicionam severamente o seu exercício, no âmbito do D.L. nº 67/2003 os direitos do dono da obra consumidor são independentes uns dos outros, estando a sua utilização apenas restringida pelos limites impostos pela proibição geral do abuso de direito (…). Em princípio, perante a existência de faltas de conformidade na obra realizada, o dono desta pode exercer livremente qualquer um dos direitos conferidos pelo art.º 4º nº 1, do D.L. nº 67/2003. Essa liberdade de opção pelo direito que melhor satisfaça os seus interesses deve, contudo, respeitar os princípios da boa fé, dos bons costumes e a finalidade económico-social do direito escolhido (art.º 334º, do C.C.).» [3]

§ 2º - Da alegação da Recorrente extrai-se que o erro de julgamento vem suscitado no pressuposto de estar assente que os Réus expulsaram os funcionários da Autora da obra, impedindo-os de reparar os defeitos existentes e concluir a obra.
Efetivamente, a dar-se o caso de os Réus terem denunciado defeitos e, após, tivessem impedido a Autora de os eliminar/reparar, poderíamos estar perante um abuso de direito que, naturalmente, neutralizaria o direito exercido.
Porém, não foi isso que se passou.
Já vimos na reapreciação da matéria de facto que os trabalhadores da Autora lá foram por 3 vezes para eliminar os defeitos, mas essa “operação” consistiu em disfarçar os defeitos com colocação de silicone, sem os eliminarem.
E, só depois disso, é que o Réus não mais permitiram a entrada dos trabalhadores, comunicando à Autora que os defeitos se mantinham, que as reparações foram sempre de forma deficiente, pelo que resolviam o contrato, alertando-a de que podia levantar todas as bancadas.
Esta é uma situação bem diferente, pois ficou demonstrado que a técnica usada (colocação de silicone) é inviável ou inadequada para a reparação; na verdade, tratando-se de colocação de bancadas em lugares consabidamente sujeitos à utilização frequente de água (cozinha, quartos de banho e lavandaria), a utilização de silicone constitui um remedeio temporário.
«Tendo sido proposta a reparação, o comprador e o dono da obra não se devem opor a esta oferta se tal recusa contrariar a boa fé. Desde que a eliminação seja adequada e o credor não tenha perdido interesse na prestação, que é apreciado objectivamente (art. 808º), a proposta do vendedor ou do empreiteiro não deverá ser recusada. Todavia, tendo sido ineficaz a primeira eliminação do defeito, admite-se que o credor não esteja disposto a aceitar outra tentativa, não obstante manter interesse na prestação.»
Consideramos não ser exigível, a quem vai começar a viver “em casa nova”, que inicie essa utilização com bancadas com fissuras, “remendadas” com silicone. Da mesma forma que é bem compreensível que, ao fim de 3 vezes sem eliminarem os defeitos, os Réus tenham legitimamente perdido a confiança na capacidade técnica da Autora.
Não é também de equacionar que os Réus não tenham estipulado prazo para a reparação dos defeitos nem fixado qualquer cominação. Os Réus suportaram 3 tentativas de reparação, o que demonstra a sua boa fé.

§ 3º - Argumenta ainda a Recorrente que existia ainda a possibilidade de, a expensas da autora, ser realizada obra nova, o que significa a substituição da pedra por uma pedra nova.
Pelas razões já atrás referidas, as caraterísticas dos locais onde as bancadas iam ser colocadas exige completa estanquicidade às águas, o que não resulta com silicone, que é um material que tem pouca durabilidade e exige substituições/reposições frequentes.
Sendo a Autora quem detém os conhecimentos técnicos, devendo saber isso e a quem competia apresentar a obra em plena conformidade com o contratado, a substituição por pedras novas deveria ter sido logo a decisão inicial ou, pelo menos, depois de verificado que a 1ª tentativa de reparação saiu gorada.

§ 4º - Por último, quanto ao argumento de que estava em causa “tão só” uma questão de defeitos nas juntas das pedras das bancas, resulta do que vimos dizendo que não podemos concordar. Em lugares onde com toda a frequência são usadas águas, como é o caso de cozinhas, quartos de banho e lavandarias, é exatamente onde tudo tem de estar bem impermeabilizado. Ora, é nas “juntas das pedras” que, a não estarem perfeitas, as águas se vão infiltrando. E já para não falar no aspeto estético de quem vai começar a usar “casa nova” com defeitos. Portanto, é de considerar que as desconformidades verificadas eram relevantes na perspetiva do dono da obra e que a tornavam inadequada ao fim a que se destinava.

§ 5º - Por todo o exposto, a resolução contratual operada pelos Réus foi lícita e justificada, à luz das circunstâncias provadas.
Como atrás se disse, segundo o regime legal aplicável ao caso, o direito de resolução não necessitava do uso prévio dos outros possíveis, podendo a resolução operar independentemente e, até, ab initio, posto que não integre abuso de direito.
No caso não se vislumbra abuso de direito na conduta dos Réus, que concederam à Autora 3 tentativas de resolução do problema, que se revelaram goradas, e persistentes na utilização da mesma técnica (uso do silicone), que não era apropriada para os fins em vista. Foi, pois, legítimo e compreensível que os Réus tivessem perdido a confiança na capacidade técnica de resolução do problema.
«III. — Entre os casos em que a continuação (subsistência) da relação contratual não é exigível ao dono da obra estão aqueles em que há uma afectação irreversível da confiança do dono da obra na capacidade e na competência do empreiteiro para cumprir o contrato.» [4]

6. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, mantendo-se o decidido em 1ª instância.
Custas a cargo da Recorrente, atento o decaimento.

Porto, 23 de novembro de 2023
Isabel Silva
Ana Vieira
Isoleta de Almeida Costa
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[1] Acórdão do STJ, de 21/06/2022, processo nº 644/20.4T8LRA.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
[2] Vide, por todos, acórdão da Relação do Porto, de 10/05/2004, processo nº 0452150, bem como a jurisprudência e doutrina aí citada.
[3] João Cura Mariano, “Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra”, 2011, 4ª edição, Almedina, pág. 225-226.
[4] Acórdão do STJ, de 20/01/2022, processo 18575/17.3T8LSB.L1.S1, bem como a demais jurisprudência aí citada.