Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
218/20.0GCSTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RAÚL CORDEIRO
Descritores: INJÚRIA AGRAVADA
CRIME SEMI-PÚBLICO
QUEIXA
Nº do Documento: RP20220518218/20.0GCSTS.P1
Data do Acordão: 05/18/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O crime de injúria agravada, p. e p. pelos artigos 181.º, n.º 1, e 184.º do Código Penal, é de natureza semi-pública pois que o procedimento criminal depende de queixa ou participação.
II - A legitimidade para apresentar queixa, no prazo de seis meses “a contar da data em que o titular tiver conhecimento do facto e dos seus autores”, pertence ao “ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.” (n.º 1 do art. 113.º do CP).
III - A formulação de queixa para que o Ministério Público possa promover o processo tanto pode ocorrer perante essa autoridade judiciária como perante um órgão de policia criminal (n.º 2 do art. 49.º do CPP), sendo que a mesma (queixa) não está sujeita a qualquer regime especial ou fórmula sacramental, para tal bastando a manifestação de vontade do ofendido de onde resulte que o mesmo quer proceder criminalmente contra o autor ou autores dos factos ilícitos, pois que para o Ministério Público promover o processo a lei apenas exige que o ofendido lhe dê “conhecimento do facto” (n.º 1 do mesmo art. 49.º).
IV - A manifestação de vontade de queixa ou de participação quanto aos factos integradores do ilícito de natureza semipública (ou particular) tem ser inequívoca, ou seja, tem de resultar claro que o ofendido pretende que o Ministério proceda criminalmente contra o(s) seu(s) autor(es).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 218/20.0GCSTS.P1

CONFERÊNCIA DE 18-05-2022
I
Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
Nos presentes autos de Instrução n.º 218/20.0GCSTS, do Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos - Juiz 2, foi proferida, em 25-01-2022, decisão instrutória, a qual declarou nula a acusação pública, na parte em que imputou ao arguido AA a prática de dois crimes de injúrias agravadas, previstos e punidos pelos artigos 181.º, n.º 1, e 184.º do Código Penal, e não pronunciou o mesmo arguido pelo imputado crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do mesmo Código, determinando o oportuno arquivamento dos autos (ref.ª 432435133, de 25-01-2022).
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Não se conformando com tal decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, tendo apresentado a respetiva motivação e formulado as seguintes conclusões: (…)
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Admitido tal recurso, respondeu ao mesmo o arguido AA, tendo apresentado a respectiva argumentação, na qual, em síntese, rebateu os argumentos apresentados pelo recorrente, concluindo que deverá ser negado provimento ao recurso, julgando-se o mesmo manifestamente improcedente (ref.ª 313895868, de 06-04-2022).
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Remetidos os autos a esta Relação, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto, transcrevendo as conclusões do recurso e dizendo que relativamente ao crime de natureza semipública se afigura pertinente a análise da participação apresentada pelos elementos do Órgão de Polícia Criminal, bem como dos depoimentos prestados pelos mesmos no inquérito, além de, relativamente às questões da não pronúncia pelo crime de desobediência, transcrever extenso excerto de um acórdão desta Relação, concluiu que o recurso se encontra sustentado de facto e de direito, dizendo merecer apreciação deste Tribunal e apor o competente visto (ref.ª 15676445, de 26-04-2022).
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A Tal parecer respondeu o arguido AA, sustentando, em síntese, que o aí referido carece de fundamentação legal e factual, além de que o acórdão transcrito não é subsumível aos factos sub judice, pugnando pela manutenção do despacho de não pronúncia e pela improcedência do recurso (ref.ª 338803,de 06-05-2022).
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Efetuado o exame preliminar, foram colhidos os vistos, para decisão em conferência.
II
A motivação apresentada, sintetizada nas respectivas conclusões, delimita o objeto do recurso (arts. 412.º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso que pudessem suscitar-se, como é o caso dos vícios indicados no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo Código, mesmo que o recurso verse apenas sobre a matéria de direito (cfr. Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, in DR I, de 28-12-1995). Assim, não se descortinando quaisquer vícios de conhecimento oficioso, as questões a apreciar são as seguintes:
a) Legitimidade do Ministério Público para acusar pelos crimes de injúrias agravadas (conclusões I, II-A), III-A) e IV).
Resulta dos autos que o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AA pela prática, além do mais, de dois crimes de injúrias agravadas, previstos e punidos pelos artigos 181.º, n.º 1, e 184.º do Código Penal, tendo como alegados ofendidos os Guardas da GNR BB e CC (fls. 126 a 129).
O arguido requereu a abertura da instrução, no final da qual foi proferida a decisão instrutória agora sob recurso, onde se considerou, no que aqui releva, que não existe queixa ou participação dos ditos ofendidos quanto a tais crimes, decidindo-se declarar nula a acusação nessa parte e determinar-se o oportuno arquivamento dos autos (ref.ª 432435133, de 25-01-2022).
Cumpre apreciar.
Não há dúvidas de que o crime de injúria agravada é um crime semi-público, pois que o procedimento criminal quanto ao mesmo depende de queixa ou participação (cfr. arts. 181.º, n.º 1, 184.º e 188.º, n.º 1, alínea a), do C. Penal).
A legitimidade para apresentar queixa pertence ao “ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.” (n.º 1 do art. 113.º do mesmo Código).
O ofendido, para poder apresentar queixa, dispõe do prazo de seis meses “a contar da data em que o titular tiver conhecimento do facto e dos seus autores”, sob pena de tal direito se extinguir (art. 115.º, n.º 1, do C. Penal).
Relativamente a este tipo de crimes a lei estabelece, pois, uma condição objetiva para que o Ministério Público possa promover o processo penal, a qual consiste na apresentação de queixa ou participação pelo ofendido, em face do disposto nos artigos 48.º e 49.º do CPP.[1]
Contudo, a formulação de queixa para que o Ministério Público possa promover o processo tanto pode ocorrer perante essa autoridade judiciária como perante um órgão de policia criminal (n.º 2 do art. 49.º do CPP), sendo que a mesma (queixa) não está sujeita a qualquer regime especial ou fórmula sacramental, para tal bastando a manifestação de vontade do ofendido de onde resulte que o mesmo quer proceder criminalmente contra o autor ou autores dos factos ilícitos, pois que para o Ministério Público promover o processo a lei apenas exige que o ofendido lhe dê “conhecimento do facto” (n.º 1 do mesmo art. 49.º).
Trata-se, pois, de uma exceção ao princípio da oficialidade.
Mas, como é mencionado na decisão recorrida e também admitido pelo recorrente, não se impondo qualquer formalidade especial para a denúncia (cfr. n.º 1 do art. 246.º do CPP), a manifestação de vontade de queixa ou de participação quanto aos factos integradores do ilícito de natureza semipública (ou particular) tem ser inequívoca, ou seja, tem de resultar claro que o ofendido pretende que o Ministério proceda criminalmente contra o(s) seu(s) autor(es).
Como refere Jorge de Figueiredo Dias, a “queixa é o requerimento (…) através do qual o titular do respectivo direito (em regra, o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele”, podendo a mesma “ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por um certo facto.”[2]
Também António Henrique Gaspar sustenta que a queixa “exige que se manifeste nessa declaração uma vontade específica de perseguição criminal pelo facto.”[3]
Igualmente Fenando Gama Lobo menciona que a queixa “deve ser clara e inequívoca no sentido de traduzir uma manifestação de desejo de procedimento criminal relativamente a factos ilícitos concreto.”[4]
Em suma, como bem refere o recorrente, tem que conter “a pretensão de procedimento criminal” ou evidenciar “um verdadeiro desejo de procedimento criminal” (cfr. pág. 5 da motivação).
Atente-se que, sendo os referidos militares da GNR, individualmente considerados, os ofendidos no caso concreto (e não a própria GNR), em face do descrito no auto de notícia, essa queixa, nos termos enunciados, torna-se indispensável.
Importa então verificar se do auto de notícia elaborado e remetido ao Ministério Público e dos elementos constantes dos autos se poderá concluir, de forma minimamente inequívoca e segura, que tais militares da GNR apresentaram participação / queixa pelo crime de injúria agravada.
Respeitando a argumentação do recorrente, a resposta tem, a nosso ver, de ser negativa.
Com efeito, importa levar em conta, desde logo, que os alegados ofendidos não são um cidadão comum, como ressalva a Digna Procuradora da República recorrente, mas sim Guardas da GNR, os quais sabem (têm obrigação de saber) quais os procedimentos a observar para a apresentação de uma queixa ou participação pelos crimes cujo procedimento delas depende.
No caso presente consta do auto de notícia, então elaborado, que se tratou de um episódio ocorrido em 14-05-2020, pelas 23:27 horas, altura em que, tendo-se deslocado ao local, na sequência de chamada telefónica para o Posto da GNR, dando conta de um ajuntamento de pessoas junto ao Posto de Abastecimento de Combustível onde o agora arguido AA trabalhava como Operador de Caixa, os Guardas BB e CC, constatando a presença de cerca de 20 pessoas no exterior,[5] estabeleceram contacto com o dito AA, o qual referiu encontrar-se sozinho, proferindo para os militares as seguintes expressões: «“está um ajuntamento à porta do estabelecimento”, “em vez de irem passear para a concorrência, deviam passar cá mais vezes”, “aprendam a fazer o vosso trabalho”, “eu estou aqui sozinho não tenho que aturar isto, a fila já vai até à zona das lavagens”, “palhaços, só querem é passear”, “otários de merda”, “filhos da puta”
Mais consta do auto de notícia que «face à postura agressiva e insultuosa para com a patrulha foi o agora arguido informado que estava a incorrer num crime de coacção sob funcionário e injúria à autoridade policial, tendo sido solicitado a sua identificação, tendo este referido que não se identificava, foi advertido mais do que uma vez que caso não o fizesse incorreria no crime de desobediência e seria detido.» (cfr. fls. 4 e 5 dos autos, sendo o sublinhado nosso).
Mas em lado algum desse auto de notícia é mencionado que se pretende procedimento criminal pelo crime de “injúrias à autoridade policial”, através da menção da formulação de queixa ou participação ou mesmo de qualquer outra expressão similar (vide tal auto de notícia).
Efetivamente, foi elaborado esse auto de notícia e remetido o mesmo ao Ministério Público, mas daí não pode concluir-se, como se faz no recurso, que do mesmo “resulta inequivocamente que a ordem da GNR para que o arguido se identificasse só surge porque os agentes de autoridade pretendem queixar-se do arguido pelo crime de injúrias” (pág. 6 da motivação).
Com efeito, esta argumentação impõe duas observações: por um lado, segundo o próprio auto de notícia, o agora arguido estaria, com a sua conduta, a incorrer também no crime de “coacção sob funcionário”,[6] o qual seria (também) motivo para solicitar a sua identificação; por outro, uma coisa é a prática do crime de injúrias à autoridade e outra diferente é o agente policial visado pretender queixar-se por esse tipo de crime em concreto, sendo certo que teria o prazo de seis meses, após a sua ocorrência, para o fazer (n.º 1 do art. 115.º do C. Penal).
Na verdade, poderá ocorrer a prática de factos integradores de um crime de natureza semipública ou particular, que legitime a identificação do seu autor pela autoridade policia (n.º 1 do art. 250.º do CPP), e não chegar a haver procedimento criminal relativamente ao mesmo crime, precisamente porque o ofendido não formulou, depois, a respetiva queixa, não tendo, por isso, o Ministério Público legitimidade para a promoção do processo (arts. 48.º, 49.º e 50.º do CPP).
Questão diferente é a detenção do respectivo suspeito, pois que, no caso de crimes cujo procedimento criminal dependa de queixa, a mesma “só se mantém quando, em ato a ela seguido, o titular do respectivo direito, o exercer” (n.º 3 do art. 255.º do CPP).
No caso sub judice é manifesto, porque isso mesmo resulta do auto, que a detenção não ocorreu em virtude do dito crime de injúrias ou mesmo de coação sobre funcionário, mas sim porque o arguido teria incorrido no crime de desobediência, por alegadamente se ter recusado a identificar-se.
Daí não poder concluir-se, como faz o recorrente, que a ordem para o arguido se identificar surgiu porque os Guardas da GNR pretendiam queixar-se pelo crime de injúrias e que, se assim não fosse, não havia qualquer razão para tal identificação (pág. 6 da motivação).
Nem sequer é relevante para concluir como faz o recorrente Ministério Público o facto de no auto de notícia serem mencionadas as expressões injuriosas dirigidas aos militares da GNR, pois que tal auto, como é evidente, deverá sempre descrever a ocorrência na sua globalidade, independentemente de depois vir a ter lugar ou não procedimento criminal por todos os factos noticiados. Por isso é que é designado de “auto de notícia”.
Daí considerarmos que a mera descrição no auto de notícia, entre outros, de factos que poderiam integrar os crimes e natureza semi-pública, depois remetido ao Ministério Público, por imposição legal, não representa, só por si, uma queixa para que este proceda por tais factos, exigindo-se, ainda, que nesse auto, ou posteriormente, se manifeste a vontade de o agente dos mesmos ser, também por eles, perseguido criminalmente.[7]
Mas voltando ao auto de notícia junto, constata-se que na parte do “ENQUADRAMENTO” e especificamente no item “Tipificação do Crime” se escreveu “Desobediência” (pág. 4), não podendo desprezar-se o facto de nada se dizer, nessa parte, relativamente às descritas “injúrias à autoridade”.
Também no expediente relativo à “COMUNICAÇÃO DE DETENÇÕES” consta mencionado que o “Motivo da detenção” foi “DESOBEDIÊNCIA” (cfr. fls. 7).
Depois, tal como também se refere na decisão recorrida, quando os referidos militares da GNR foram inquiridos como testemunha nos autos, sendo o primeiro em 20-08 e o segundo em 14-09-2020, à pergunta se “É Lesado(a) / Ofendido(a)”, ambos responderam “Não”, sendo que igualmente responderam “Não” quanto à eventual pretensão de constituição como assistentes no processo (cfr. fls. 83/84 e 85/86, respetivamente).
É, pois, manifesto que os dois Guardas da GNR não se consideraram ofendidos nos autos, naturalmente no que respeita aos factos integradores dos alegados crimes de injúrias agravadas. E, sendo profissionais da Guarda, com participação direta nos factos, sabiam claramente que eram os ofendidos relativamente a tal crime, podendo então, até porque ainda estavam em tempo (citado n.º 1 do art. 115.º do C. Penal), afirmar a sua qualidade de ofendidos e manifestar interesse no prosseguimento dos autos quanto a esse crime de natureza semi-pública, mas optaram por não o fazer.
Diga-se, ainda, como também se refere na decisão recorrida e na resposta ao recurso, que o Guarda CC nem sequer tem a qualidade de participante, pois que não redigiu nem assinou o auto de notícia em causa, o que apenas foi feito pelo Guarda BB (fls. 4 e 5), pelo que, quando ao mesmo, na ausência de subscrição de tal auto de notícia ou de formulação de queixa, esta designadamente quando foi inquirido, nunca o Ministério Público, no que respeita a tal visado com aquelas expressões, poderia desencadear o procedimento criminal por injúria agravada.
Ou seja, desde logo quanto a este ofendido, é manifesta e inequívoca a falta de legitimidade para promover o processo penal por parte do Ministério Público.
Na verdade, se relativamente ao Guarda BB a questão poderia não ser clara, quando ao Guarda CC não se suscitavam quaisquer dúvidas quanto à falta de legitimidade do Ministério Público.
Também por isso não se percebe a argumentação do recorrente quando utiliza como argumento em favor do seu entendimento o facto de tais Guardas, quando ouvidos em inquérito, “não esclarecerem que assim não era” (pág. 7 da motivação), ou seja, que não pretendiam participação / queixa por tais factos. É que o recorrente parte do pressuposto que haveria queixa ou participação através do “auto de notícia” e, a nosso ver, tal não se verifica.
Assim sendo, também não faria sentido, como se alega no recurso, o Exm.º Juiz de Instrução chamar os referidos militares para os ouvir e esclarecer eventuais dúvidas sobre essa matéria, tanto mais que a eventual formulação de queixa / participação nessa altura já era extemporânea, pois que há muito se havia extinguido tal direito (n.º 1 do art. 115.º do C. Penal).
A argumentação do recorrente quanto ao relevo que atribui ao auto de notícia para concluir que do teor do mesmo se deduz que foram participados os crimes de injúrias agravadas, resultando, assim, legitimada a promoção do processo e a acusação por tais crimes, só poderia ter sustentação se tal auto de notícia tivesse sido elaborado apenas por esse tipo de ilícitos.
Com efeito, como se refere no despacho recorrido, entendimento diferente poderia equacionar-se se no auto de notícia, remetido ao Ministério Público, fossem descritos apenas factos integradores desse tipo de crimes, em que eram visados os ditos Guardas da GNR, pois que, nesse caso, poderia ser feita essa leitura. Mas assim não foi, pois que foi noticiada a prática de um crime público (desobediência) e a realização de uma detenção, pelo que esse auto tinha que ser lavrado, com descrição de toda a ocorrência, e remetido ao titular da acção penal, em conformidade com o disposto nos artigos 242.º, n.º 1, alínea a), 243.º, n.ºs 1 e 3, e 259.º, alínea b), do CPP.
Sendo assim, em face do teor do auto de notícia elaborado, de onde não se extrai, muito menos de forma clara e inequívoca, que tenha sido formulada queixa, e da posição depois manifestada pelo militares visados nos autos, aquando da sua inquirição como testemunhas, somos levados a concluir em sentido contrário ao pugnado no recurso, pois que, além de resultar que tal auto foi elaborado pelo crime de “desobediência”, os mesmos militares, não formulando qualquer queixa ou participação, disseram nessa segunda intervenção “não” serem lesados / ofendidos pelos factos denunciados.
Respeitando o entendimento do recorrente Ministério Público, estas conclusões afiguram-se coerentes e lógicas, em face dos elementos que os autos proporcionam.
Na ausência de queixa ou participação por esse tipo de crime, o Ministério Público não dispunha de legitimidade para promover o processo e acusar relativamente ao mesmo, sendo certo que a falta daquela não conduz à indicada nulidade insanável (al. b) do art. 119.º do CPP), pois que não se trata de “falta de promoção do processo”, mas sim de promoção do mesmo sem o titular da acção penal ter legitimidade para tal. Assim, ainda que o resultado final, para o que agora releva, seja idêntico, essa falta de legitimidade para a promoção, não estando especificada como nulidade, constitui uma irregularidade, que afeta o valor do ato praticado (art. 123.º, n.º 2, do CPP), a qual poderia ser reparada pela formulação da queixa, o que não se mostrava já viável aquando da decisão instrutória, pois que o respectivo direito se extinguiu pelo decurso do prazo para ser exercido (art. 115.º, n.º 1, do C. Penal).
Efetivamente, o regime das nulidades foi submetido ao princípio da legalidade (n.º 1 do art. 118.º do CPP).
Todos os outros vícios que inquinem atos processuais e que não sejam expressamente feridos de nulidade constituem uma irregularidade (n.º 2 do mesmo art. 118.º).
O regime regra da declaração da irregularidade é o de que esta seja feita a requerimento do interessado, nos estritos termos e prazos previstos na lei, ficando sanada se não for tempestivamente arguida perante o tribunal a quo (art. 123.º, n.º 1, do CPP).
Ressalva-se no n.º 2 do mesmo artigo 123.º a declaração e reparação oficiosa de irregularidades que possam afetar o valor do ato praticado, naturalmente limitadas pelo campo de proteção da norma que deixou de observar-se.
Assim, se a norma se destina a proteger unicamente interesses de determinado interveniente / sujeito processual e este não se tiver prevalecido da faculdade de invocar o vício, a irregularidade fica definitivamente sanada, não sendo possível declará-la oficiosamente.
Mas se estiver em causa norma ordenadora ou que tenha subjacente a concretização no processo penal de valores inerentes ao Estado de Direito, já pode ser declarada oficiosamente sem qualquer restrição.
Este poder-dever restringe-se aos casos em que esteja em causa o interesse público e não um interesse privado disponível.[8]
Como também se escreveu no Acórdão do STJ n.º 5/2002, de 27-06-2002 (in DR I Série – A, de 17-07-2002), “a irregularidade afeta o valor do ato processual praticado quando da mesma decorre a violação de um interesse público (…)” – (pág. 5377).
E julgamos se esta a situação presente, pois que está em causa a promoção do processo penal, sendo este um relevante interesse púbico.
Porém, sendo o ato (procedimento e dedução de acusação pelas injúrias agravadas) inválido, já não é possível proceder à reparação de tal irregularidade.
Pelo exposto e não se mostrando violada qualquer normal legal atinente à questão, não pode acolher-se a pretensão do Ministério Público, improcedendo este segmento do recurso.
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b) Preenchimento dos elementos típicos do crime de desobediência (conclusões I, II-B) e C), III-B) e C) e IV). (…)
III
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo-se a decisão recorrida.
Sem custas (art. 4.º, n.º 1, al. a), do RCP).
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Notifique.
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Porto, 18-05-2022.
Raúl Cordeiro
Carla Oliveira
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[1] Quanto ao uso, na lei, das expressões “queixa” e “participação”, anota-se o referido a tal respeito na decisão recorrida, sem necessidade de outros considerandos.
[2] In Direito Penal Português - As Consequências jurídicas do crime, Reimpressão, Coimbra Editora, 2005, págs. 665 e 675)
[3] Veja-se o Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2021 – 3.ª Edição revista, pág. 145.
[4] Veja-se o Código de Processo Penal Anotado, 3.ª Edição Almedina, pág. 65.
[5] Tratava-se de uma época em que era proibido o ajuntamento de pessoas devido às restrições impostas pelas medidas adotadas em virtude da pandemia originada pelo COVID-19.
[6] Certamente se quis dizer “coação sobre funcionário”, crime previsto e punido pelo artigo 347.º do Código Penal.
[7] Em sentido idêntico se pronunciou o Acórdão da Relação de Coimbra de 15-03-2006 – Proc. 4349105, in www.dgsi.pt.
[8] Cfr. João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, 2019, Tomo I, pág.1295.