Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
11570/19.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA TENREIRO
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
VÍCIOS DA VONTADE
DOLO
OMISSÃO DE INFORMAÇÃO RELEVANTE
Nº do Documento: RP2021022311570/19.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 02/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Configura um comportamento doloso, por omissão, o vendedor que, face às circunstâncias e aos ditames da boa fé e da lealdade, não presta os esclarecimentos necessários, com transparência, ao comprador sobre as reais características do imóvel, objecto do negócio, decisivas para a formação da vontade de comprar.
II - O comprador que, na visita prévia realizada ao imóvel juntamente com as informações obtidas (essenciais na formação da sua vontade de comprar) percepcionou um espaço onde estava a ser explorado um alojamento temporário para turistas, com seis quartos, quando, na realidade, não possuía licença municipal que autorizava essa actividade e principalmente não é possível obter licença de utilização para habitação de um T6 mas apenas de um T1, formou, com erro-vício, a sua vontade negocial, causado por dolo omissivo.
III - A relevância do dolo omissivo, neste caso, em que se verifica a dupla causalidade (o dolo é causa do erro e este é causa do negócio) determina a anulabilidade do negócio jurídico.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 11570/19.0T8PRT.P1

Relatora : Anabela Tenreiro
Adjunta : Lina Castro Baptista
Adjunta : Alexandra Pelayo
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I - RELATÓRIO
B… intentou contra C… e “D…, Lda.” a presente acção declarativa condenatória, com processo comum, pedindo que:
- seja reconhecida a anulabilidade do contrato-promessa celebrado em 25 de junho de 2018 e o seu aditamento;
- os Réus sejam condenados a devolver a quantia de €190.000,00 entregue a título de sinal, acrescida de juros vencidos e vincendos.
Para tanto, alegou, em síntese, que é um cidadão estrangeiro e pretendeu comprar um imóvel para fazer investimento em alojamento local. O agente imobiliário sugeriu a compra de um imóvel onde já funcionava alojamento local e que seria necessário fazer um registo na Câmara Municipal para mudança de designação do espaço como armazém mas seria algo muito simples, sem problema. Com a assinatura do contrato-promessa de compra e venda foi paga a mencionada quantia a título de sinal. Através da avaliação do banco para concessão de empréstimo bancário, o Autor tomou conhecimento de que o alojamento local não estava legalizado e que o imóvel, destinado a armazém e atividades industriais, não pode ser alterado para aquele fim. O preço do prédio justifica-se apenas pela possibilidade do alojamento local e não sendo um mero armazém, avaliado em €120.000,00. Se tivesse conhecimento destes factos previamente à assinatura do contrato-promessa nunca o teria celebrado.
A 1.ª Ré contestou alegando que, desde a primeira hora, exigiu garantias pela imobiliária de que o possível comprador estava ciente que o imóvel, apesar das obras, estava licenciado para armazém com problemas de humidades, tendo transmitido essa situação pessoalmente ao Autor aquando da visita ao imóvel. Esgotado o prazo para realização da escritura, por motivo imputável ao Autor, resolveu o contrato-promessa em início de novembro.
Contestou também a 2.º Ré declarando, em resumo, que foi expressamente referido ao Autor que o espaço em causa apenas estava licenciado como armazém, pelo que era necessário avançar como pedido de alteração da licença para habitação. Forneceu todas as informações solicitadas e remeteu, em inglês, uma versão do contrato-promessa de compra e venda. O motivo pelo qual o negócio não foi concretizado foi por falta de verbas do Autor.
O Autor respondeu.
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Proferiu-se sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a Ré do pedido.
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Inconformado com a sentença, o Autor interpôs recurso, com as seguintes
Conclusões
I. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida a 11.09.2020 e notificada a 14.09.2020, que julgou a ação não provada e, consequentemente, improcedente, absolvendo a Ré dos pedidos formulados pelo Autor.
II. O Recorrente não pode aceitar a sentença proferida, dado que entende que a mesma, além de não aplicar corretamente a lei à matéria de fato assente, a decisão nela proferida, representaria uma imoralidade e injustiça absolutamente inaceitável para o recorrente.
III. A decisão proferida revela, sem prejuízo do indispensável respeito pelas decisões judiciais e Exmos. Magistrados que as proferem, falta de sentido de justiça, a qual, não aplicou corretamente o direito aos factos, negando a justiça devida ao recorrente, o qual se sente defraudado nas suas legítimas expetativas ao recorrer à justiça.
IV. O Recorrente tem em vista, não apenas a interpretação e a aplicação da lei aos factos já dados como provados mas, também, a reapreciação da prova produzida, documental e testemunhal, com vista à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos e para e os efeitos do estatuído no artigo 662.º do C.P.C.
V. Apesar de toda a prova documental e testemunhal produzida, o Tribunal de Primeira Instância o Tribunal a quo decidiu julgar a ação não provada e improcedente.
VI. Não se consegue compreender a decisão proferida, quando:
a. A prova testemunhal produzida esclareceu todos os termos do negócio celebrado entre as partes,
b. A manutenção da decisão em causa além de grosseiramente violadora da jurisprudência e do direito vigente, gera uma injustiça social, isto porque:
c. O Recorrente celebrou um contrato promessa de compra e venda em português referente ao imóvel onde funcionava um alojamento local;
ii. O Recorrente apenas teve acesso aos documentos do imóvel, em português, após a celebração do contrato promessa de compra e venda;
iii. O Recorrente quando visitou o imóvel viu seis suites funcionando cada uma delas como hospedagem de turistas.
iv. O imóvel foi posteriormente habilitado a ser legalizado para habitação mas apenas como T1…
i. E não como T6, que foi o que o Autor, aqui Recorrente, viu e mediante o qual decidiu adquirir o imóvel.
VII. O Recorrente foi induzido em erro.
VIII. O recorrente considera que foi indevidamente dado como provado:
17 – No primeiro andar existem seis quartos de dormir cada um com casa de banho.
24 – Na data de subscrição do documento referido no ponto 8 - factos provados – o autor tinha conhecimento do facto descrito no ponto 15 dos factos provados.
28 – Quando subscreveu o documento referido no ponto 8 – factos provados –, a ré entendia que o imóvel, no estado em que se encontra, apenas podia ser registado e explorado como alojamento local após a alteração da sua autorização de utilização.
IX. e que foi indevidamente dado como não provado que:
46 – Apenas em 26 de setembro de 2018, teve o autor conhecimento de que o alojamento local que funcionava no imóvel não se encontrava registado nem participado no município, não possuindo placa identificativo de alojamento local.
X. São estes os factos que se pretendem ver alterados, nos termos do artº 640º do CPC, face à prova documental produzida (documentos do airbnb, relatório bancário do E… e o vídeo junto aos autos a fls…), bem como através da prova testemunhal, mormente os arquitetos.
XI. Decorre dos factos dados como provados que, no imóvel em causa, funcionava um alojamento local quando o autor o decidiu comprar. Foi por esse motivo que o autor prometeu comprar o imóvel pois, de outra forma, nunca o teria adquirido.
XII. Os arquitetos explicaram que existem 05 arrumos e um quarto no imóvel, pelo que o tribunal não podia ter dado como provado apenas o vertido no artigo 17 dos factos provados.
XIII. Se o autor viu um alojamento local em funcionamento, desconhecendo em absoluto as burocracias e documentos formais do imóvel, o tribunal não podia ter dado como facto provado o vertido no artigo 24 dos factos provados.
XIV. E, estando o imóvel a funcionar plenamente como alojamento local, o tribunal não podia ter dado como provado o vertido no artigo 28 dos factos provados.
XV. Considerando o teor do relatório do E… e os mails trocados pelo autor após este relatório (juntos aos autos a fls…), o tribunal deveria ter dado como provado o artigo 46 dos factos não provados.
XVI. De acordo com a prova testemunhal produzida, in casu, depoimento de F…, inquirido no dia 22.06.2020, depoimento gravado através do sistema habilus media studio com duração de 00:00:00 a 00:23:37 a passagens de 00:02:08 a 00:15:00 e 00:19:00 a 00:23:00; G…, inquirido no dia 22.06.2020, depoimento gravado através do sistema habilus media studio com duração de 00:00:00 a 00:26:41 a passagens de 00:05:01 a 00:17:20, 00:17:44 a 00:19:00, 00:20:34 a 00:20:58 e 00:21:40 a 00:22:00 e H…, arquiteto, companheiro da Ré, com quem vive em união de facto, e autor do projeto inquirido no dia 13.07.2020, depoimento gravado através do sistema habilus media studio com duração de 00:00:00 a 00:48:03 a passagens de 00:01:21 a 00:14:40, é inequívoco que no primeiro andar existem fisicamente seis quartos de dormir mas, dadas as características físicas e legais exigíveis, tais nunca poderão ser legalizados como tal.
XVII. O artigo 17 dos factos provados deveria ter sido dado como provado nos seguintes termos: No primeiro andar existem seis quartos de dormir cada um com casa de banho, pese embora só possam estejam habilitados a ser legalizados como um quarto e cinco arrumos.
XVIII. Deve ser alterada a matéria de factos dos factos 17, 24 e 28 dos factos dados como provados e artigo 46 dos factos dados como não provados, pois que, da prova testemunhal produzida é inequívoco que apenas em 26 de setembro de 2018, teve o autor conhecimento de que o alojamento local que funcionava no imóvel não se encontrava registado nem participado no município, não possuindo placa identificativo de alojamento local.
XIX. O Tribunal a quo revelou desatenção e ligeireza inadmissíveis na apreciação da prova e na decisão proferida.
XX. Face aos factos dados como provados no nº 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 26 e 27 descritos na sentença, ou seja, da essencialidade para o Autor aquando a promessa de compra do imóvel, destinado a alojamento local, com seis unidades de alojamento, que, saliente-se, já se encontravam a ser exploradas como alojamento local, o tribunal teria de concluir pela procedência da acção.
XXI. O autor, estrangeiro, desconhecendo em absoluto o nosso país e a nossa língua, visitou um imóvel, no qual já estava instalado e explorado um alojamento local, com seis unidades de alojamento e, como tal, apenas face ao que viu, decidiu comprar o imóvel e, depois de celebrar o contrato promessa de compra, teve conhecimento que o imóvel nunca poderia ser legalizado, como seis unidades de alojamento, pelo que encontra-se verificado erro sobre os motivos determinantes da vontade.
XXII. Todos os Arquitetos ouvidos em audiência de julgamento explicaram que o imóvel não pode ser legalizado como um T6, quanto muito poderá ser legalizado como um T1 com 5 arrumos (com 212 m2!).
XXIII. O próprio tribunal a quo reconhece esse facto mas, mesmo assim, conclui que não seria essencial para o autor e não existe erro sobre os motivos, o que não se compreende.
XXIV. O autor decidiu comprar um alojamento local tal como o viu, ou seja, com seis unidades de alojamento e devidamente licenciado para tal. Ao não ser o imóvel habilitado a tal legalização (porque o Município do Porto não o legaliza dessa forma, quanto muito apenas como um T1), o mesmo não possui as características essenciais para o autor e, como tal, o contrato deve ser anulado.
XXV. Face ao antes exposto, não andou bem a douta sentença recorrida ao declarar totalmente improcedente a ação, devendo a mesma ser declarada nula atentas as apontadas nulidades (artigo 615.º, n.º1, “b)”, “c)” e “d)”, C.P.C.), (considerando os vícios existentes de contradição entre os fundamentos da sentença e a decisão, obscuridade geradora de ininteligibilidade, omissão de pronúncia e falta de fundamentação), ou, caso assim se não entenda, e tendo em consideração a antes apontada violação do princípio da livre apreciação da prova e dos artigos 413.º e 607.º n.º 3 e 659.º do C.P.C., ser a mesma revogada por outra que decida no sentido defendido pelo ora Recorrente, isto é, que julgue verificado o erro sobre os motivos e, consequentemente ser a acção julgada totalmente procedente, por provada, com todas as legais consequências.
XXVI. Estão reunidos os pressupostos da anulabilidade do negócio jurídico, requerida pelo autor.
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A Ré apresentou contra-alegações, concluindo desta forma:
Tal como a acção foi configurada, pelo Autor, este pretende que seja decretada a invalidade do contrato promessa de compra e venda, celebrado com a Ré, por alegadamente não poder ser alterado o destino do imóvel objecto do contrato.
Ou seja, a causa de pedir da presente acção prende-se e cinge-se ao facto de, do ponto de vista do Autor, o imóvel destinar-se a fins industriais, e como tal não ser susceptível de utilização como alojamento local por não ser possível a correspondente alteração junto da Câmara Municipal do Porto, entidade legalmente competente para o efeito.
Este é o cerne da questão e como tal foi, e bem, apreciado.
O tribunal ad quo entendeu que o Autor não fez a prova, como lhe competia, da impossibilidade da obtenção da autorização para a suposta almejada alteração do destino do imóvel.
Ainda que não fosse, resulta dos autos, e como tal é plasmado na douta sentença, que a licença necessária para o efeito é não só viável, como estava em curso “…o processo de licenciamento das obras já existentes (…) sem engulhos aparentes.”
E dizemos estava (quando na douta sentença se dizia está) porque após a data da prolacção desta, foi emitido o competente alvará de autorização de utilização nº NUD/491238/2020/CMP, assinado em 23 de Novembro de 2020, tal como resulta do documento que ora se junta sob o número I, nos termos do artigo 425º do CPC.
Bem andou o tribunal ad quo ao decidir, como decidiu, não existir fundamento legal para a pretendida invalidade do negócio e em consequência considerar totalmente improcedente a presente acção.
Cabendo referir que a sua argumentação expendida em sede de fundamentação, já de si válida e juridicamente inatacável, resulta agora inequivocamente reforçada com o teor do documento ora junto.
Sucede que, em absoluto desespero de causa, vem o Autor, em sede deste recurso, (como aliás já o tinha feito em sede de julgamento quanto à tipologia do imóvel - assunto sem qualquer interesse diga-se de passagem e que assim foi desconsiderado na douta sentença) fazer tábua rasa da sua causa de pedir e tentar fazer crer aos Srs. Desembargadores que o que está em causa é já não a licenciabilidade da alteração, mas antes o conhecimento, ou falta dele, da necessidade de promover tal licenciamento.
Para tanto, pretende ver alterado os factos dados como provados em sede de fundamentação sob os números 24 e 28 e o não provado sob o número 46 que incidem precisamente sobre esse tema, com argumentos que à míngua de melhor qualificação se deverão ter como pueris e fantasiosos.
Em 10º da PI, confessa o Autor que o agente imobiliário “Disse também que seria necessário fazer um registo na Câmara Municipal para mudança da designação do espaço como armazém, mas seria algo muito simples, sem qualquer problema.”
Confissão confirmada em depoimento de parte.
E em 49º da Réplica reforça a confissão afirmando que “Na verdade, ao Autor foi transmitido que teria de dar entrada de um processo simples na Câmara Municipal.
Prosseguindo em 50º do mesmo articulado “Sendo, aliás, o email enviado pelo Autor e junto como documento nº1 pela Ré uma indicação e sugestão de elementos dada pela 2ª Ré.”
Sendo que nesse documento, (email enviado pelo Autor aos agentes imobiliários) junto como Doc I na Contestação pela Ré, expressa “I also undestand that i willhave to apply for a change of use from warehouse to housing at the City Hall of Porto.”
Também no quarto parágrafo do Doc 14 junto com a PI (email enviado pelo Autor à Ré) o Autor de forma inequívoca refere que “I had to convence the banks that the warehouse was viable to be turned into a residence as we believed in you when you told us that it would be a simple process.”
Vale isto por dizer que os pontos 24 e 28 dos factos dados como provados e o 46 dos factos dados como provados, foram muito bem apreciados e como tal vertidos, na douta sentença do tribunal ad quo.
Não padecendo por isso de qualquer vício que a inquine susceptível de reapreciação.
Alerta-se o tribunal, no entanto, para duas questões técnico-processuais que no nosso entender impedem esse douto tribunal de ponderar sequer a reapreciação da matéria que o Autor pretende ver alterada e dada como provada nos pontos 24 e 28 dos factos dados como provados e o 46 dos factos dados como provados.
Se por um lado o Autor não cumpriu como lhe competia o preceituado na alínea c) do número 1 do artigo 640º do CPC, por outro lado a alteração pretendida que parece resultar das suas alegações de recurso, se fosse considerada seria incompatível com aquilo foi dado como provado, e com o que o Autor se conformou nos pontos 25 e 29 dos factos dados como provados, na parte que respeita ao conhecimento do Autor da necessidade de alteração da autorização da utilização.
No que respeita ao ponto 17 dos factos dados como provados reafirma-se que não tem qualquer relevância na boa decisão da causa e que para além de tudo mais, não foi alegada em sede de PI ou qualquer outro articulado, não tendo por isso levada, tal matéria, aos temas da prova.
Sempre se diga, no entanto, que quanto a este facto a Ré louva-se in totum no expendido, no que a esse assunto respeita, pelo tribunal ad quo na douta sentença em crise.
Motivos pelos quais deverá a douta decisão ser confirmada e em consequência ser a Ré absolvida de todos os pedidos contra ela formulados.
DA AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO
O objecto da presente ampliação do âmbito do recurso assenta numa errada apreciação da prova carreada aos autos e produzida em audiência de discussão e julgamento, implicando decisões erradas quanto á matéria de facto dada como provada e plasmadas nos pontos 2, 4, 5, 25 e 29 dos factos provados.
Não obstante a concordância da Ré com a decisão final que apreciou o mérito da causa, e em consequência a absolveu dos pedidos, é seu entendimento que o tribunal deu como provados factos que em face da prova carreada e produzida em julgamento mereciam diferente julgamento.
Em concreto referimo-nos aos pontos 2, 4, 5, 25 e 29 dos factos provados.
Quanto ao ponto 2 julgou o tribunal que “Foi dito pelo autor ao agente imobiliário da referida agencia com quem contactou que pretendia comprar um imóvel para o explorar como alojamento local.
Quanto ao ponto 4 julgou o tribunal que “O autor fez saber ao referido agente imobiliário que mediou as negociações que era essencial para si a possibilidade de exploração do imóvel como alojamento local.”
Quanto ao ponto 5 julgou o tribunal que “O agente imobiliário que mediou as negociações garantiu ao autor que o imóvel reunia as condições físicas para poder vir a ser explorado como alojamento local, com seis unidades de alojamento, no estado em que se encontrava, sendo, no entanto, necessário promover um procedimento administrativo simples na câmara municipal.”
Ora, sendo certo que o agente imobiliário que o recebeu, por motivo de doença não compareceu em tribunal, resulta particularmente cristalino do depoimento da testemunha I… - também agente imobiliária e a colega que o substituiu no processo - o contrário do dado como provado nos pontos 2, 4 e 5.
Em face do que se acaba de expor a matéria de facto objecto dos pontos 2, 4 e 5 deverá ter a seguinte redacção:
2 - Não foi dito pelo autor ao agente imobiliário da referida agencia com quem contactou que pretendia comprar um imóvel para o explorar como alojamento local.
4 - O autor não fez saber ao referido agente imobiliário que mediou as negociações que era essencial para si a possibilidade de exploração do imóvel como alojamento local.
5 - O agente imobiliário que mediou as negociações não garantiu ao autor que o imóvel reunia as condições físicas para poder vir a ser explorado como alojamento local, com seis unidades de alojamento
Ou Quanto ao ponto 25 julgou o tribunal que “O autor apenas subscreveu o documento referido no ponto 8 - factos provados - por estar convencido que o imóvel objecto do contrato promessa podia ser explorado como alojamento local, com seis unidades de alojamento, após proceder à alteração da sua autorização de utilização para habitação.”
Quanto ao ponto 29 julgou o tribunal que “Quando subscreveu o documento referido no ponto 8 - factos provados - , a ré não desconhecia que o autor estava convencido de que o imóvel objecto do contrato promessa podia ser explorado como alojamento local, após se proceder à alteração da sua autorização de utilização, sendo tal possibilidade condição necessária para o autor aceitar o preço fixado e outorgar o contrato prometido.”
Ora, a Ré ficou convencida de que foi produzida prova documental e testemunhal em sentido diverso à matéria dada como provada nos pontos 25 e 29 dos factos provados, tal como resulta da confissão de parte do Autor e dos depoimentos das testemunhas I… e J….
Também o documento 5 junto aos autos com a contestação em que o Autor começa por dizer “ Yes, i understand your points, you are absoluta correct. I take responsibility for failing to comunicaste clearly up until this point and I hope to amend that. I will adress the seller directly then: (…) My wish is to open the warehouse up as gallery and event space for local Portuguese artists and musicians, as well as office space for local Porto startups.”
Da prova carreada aos autos e produzida em audiência de julgamento e acima transcrita resulta que a Ré desconhecia com rigor qual o destino que o Autor pretendia dar ao imóvel.
Sendo inclusivamente confessado pelo Autor que sonegou informação à Ré no que a esse assunto respeita, em virtude de saber, segundo aquele, que se a Ré conhecesse que o Autor pretendia adquirir o imóvel para alojamento local, aquela não lho venderia.
Em face do que se acaba de expor a matéria de facto objecto dos pontos 25 e 29 deverá ter a seguinte redacção:
25 - O autor subscreveu o documento referido no ponto 8 - factos provados -estando ciente de que estava a prometer comprar um armazém e que poderia, caso assim entendesse, alterar o seu destino através do competente licenciamento camarário.
29 - Quando subscreveu o documento referido no ponto 8 - factos provados-, a ré desconhecia com rigor o destino que o autor pretendia dar ao armazém.
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II - Delimitação do Objecto do Recurso
As questões decidendas, delimitadas pelas conclusões do recurso, consistem na pretendida alteração da decisão sobre a matéria indicada e, consequentemente, na reapreciação sobre os fundamentos invocados para obter a anulação do contrato-promessa de compra e venda em causa.
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Questões prévias (junção de documento e nulidades da sentença)
A 1.ª Ré juntou aos autos, nesta fase de recurso, um documento que constitui o alvará de utilização, emitido no processo de legalização das obras que efectuou no edifício, sem ter justificado a necessidade dessa apresentação.
Ora, os documentos destinados a comprovar os factos controvertidos essenciais devem ser apresentados com o articulado do qual conste a respectiva alegação, ou, até 20 dias antes da data marcada para a realização da audiência final, mas com pagamento de multa (art. 423.º, n.º 1 e 2 do CPCivil.)
Após este limite temporal só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior - n.º 3 do citado art. 423.º.
Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento (art. 425.º do CPC).
Em sede de recurso, as partes podem juntar documentos nas referidas situações excepcionais previstas no artigo 425.º do CPCivil, ou seja, nos casos de superveniência subjectiva ou objectiva, ou então, no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância-cfr. art. 651.º do C.P.Civil.
Como se referiu, a 1.ª Ré não justificou a apresentação do mencionado documento, pelo que não deve ser admitido.
De qualquer modo, dizendo respeito à conclusão do processo de obtenção de alvará de licença de utilização para habitação de um T1, não reveste interesse.
Assim sendo, não será ponderado.
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O Recorrente sustenta que a sentença é nula por haver contradição entre os fundamentos da sentença e a decisão, obscuridade geradora de ininteligibilidade, omissão de pronúncia e falta de fundamentação) mas não justifica minimamente as nulidades apontadas.
É importante realçar que estamos perante vícios de natureza meramente formal, que não se confundem com a incorrecta análise ou valoração dos meios de prova que conduziram o juiz a decidir, a matéria de facto, num determinado sentido.
Afigura-se-nos que a discordância do Autor prende-se essencialmente com a decisão da matéria de facto e de direito, o que é distinto dos fundamentos invocados genericamente como nulidades da sentença, pelo que, nesta parte, improcede o recurso.
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Da Modificabilidade da Decisão sobre a matéria de facto
A Ré suscitou uma questão técnico-processual impeditiva da apreciação desta parte do recurso incidente sobre a decisão da matéria de facto por considerar que o Autor não deu cumprimento ao disposto no artigo 640.º, n.º 1, al. c) do C.P.Civil, ou seja, omitiu a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Relativamente aos factos insertos no ponto 17, o Autor sugeriu o aditamento de factos, e, sobre os outros pontos dados como provados (24 e 28) e não provados (46) defendeu, justificadamente, a decisão oposta.
Assim sendo, não se verifica o apontado incumprimento do mencionado preceito legal.
Nos termos do artº. 662º. do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A possibilidade que o legislador conferiu ao Tribunal da Relação de alterar a matéria de facto não é absoluta pois tal só é admissível quando os meios de prova revisitados não deixem outra alternativa, ou seja, em situações que, manifestamente, apontam em sentido contrário ao decidido pelo tribunal a quo.
Se a decisão do julgador está devidamente fundamentada, segundo as regras da experiência e da lógica, não pode ser modificada, sob pena de inobservância do princípio da livre convicção.[1]
Assim, sem prejuízo de uma valoração autónoma dos meios de prova utilizados pelo tribunal[2] e ainda de outros que se mostrarem pertinentes, essa operação não pode nunca olvidar os princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas.
O Autor pretende que seja alterada a factualidade dos pontos 17, 24 e 28, dada como provada, e a que mereceu resposta negativa, constante do ponto 46.
A reapreciação dos meios de prova incidirá, assim, sobre a seguinte factualidade:
17 – No primeiro andar, existem seis quartos de dormir, cada um com casa de banho privativa (suites).
24 – Na data da subscrição do documento referido no ponto 8 – factos provados –, o autor tinha conhecimento do facto descrito no ponto 15 – factos provados (Na data da subscrição do documento referido no ponto 8 – factos provados –, não havia sido atribuída uma autorização de utilização para habitação nem uma autorização de utilização para serviços ao imóvel nele identificado).
28 – Quando subscreveu o documento referido no ponto 8 – factos provados –, a ré entendia que o imóvel, no estado em que se encontra, apenas podia ser registado e explorado como alojamento local após a alteração da sua autorização de utilização.
Como tivemos oportunidade de esclarecer, o Autor sugeriu uma nova redacção do ponto 17, por forma a nele incluir a possibilidade de aquele espaço ser legalizado apenas como um quarto e cinco arrumos.
A Ré contrapôs que não tem qualquer relevância na boa decisão da causa e que, para além de tudo mais, não foi alegada em sede de petição ou qualquer outro articulado, não tendo por isso levada, tal matéria, aos temas da prova.
No que respeita à relevância de tal matéria, face à causa de pedir que fundamenta o pedido, impõe-se a conclusão oposta.
Com efeito, o Autor alegou pretender fazer um investimento no Porto e, para esse efeito, dirigiu-se à 2.ª Ré (imobiliária) com o objectivo de encontrar um imóvel para alojamento local, tendo sido sugerido o imóvel em causa, onde já funcionava um alojamento local com seis quartos, tendo sido informado que apenas era necessário fazer um registo, algo muito simples na Câmara Municipal, para mudar a designação do espaço, afecto a armazém. Após a assinatura do contrato-promessa de compra e venda teve conhecimento, através de um arquitecto que contratou, que as desconformidades do imóvel com a lei não permitiam a licença de mudança de uso a não ser que demolisse e construísse de novo, remetendo para o documento 12 junto aos autos que contém a análise técnica do arquitecto.
Sobre a admissibilidade desta matéria no complexo fáctico, com vista a ser enquadrada nas soluções jurídicas pertinentes, importa ter presente que, com a reforma do processo civil, o legislador teve principalmente como objectivo a concretização do princípio da prevalência do mérito sobre a forma, o que implica uma orientação de toda a actividade processual para a obtenção de decisões que garantam a justa composição do litígio, atenuando o anterior rígido sistema de preclusões processuais.[3]
À luz deste espírito de desejada adequação da sentença à realidade extraprocessual[4] eliminaram-se preclusões quanto à alegação de factos, o que decorre do preceituado no artigo 5.º, n.º 2, al. b) do C.P.Civil.
Com efeito, o legislador introduziu um desvio ao princípio do dispositivo ao estabelecer que, para além dos factos articulados pelas partes e dos factos instrumentais, são ainda considerados os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a oportunidade de se pronunciar.
A lei qualifica como complementares estes factos essenciais[5] porque integram a causa de pedir complexa, sem os quais esta se mostra insuficiente, e concretizadores na medida em que pormenorizam, de forma relevante, o quadro factual.
Na perspectiva de Helena Cabrita[6], é necessário que exista pelo menos um mínimo para que algo possa ser complementado ou concretizado: nada havendo (ou seja, verificando-se uma total e absoluta falta de alegação), nada poderá ser complementado ou concretizado.
Diferentemente, continua esta autora, se a alegação é deficiente, por imprecisa ou conclusiva, poderá vir a ser concretizada ou clarificada, se tal resultar da instrução da causa.
No caso concreto, resumindo-se o objecto do litígio à questão de saber se o Autor, ao comprometer-se futuramente a comprar o imóvel, incorreu em erro referente ao objecto do negócio uma vez que visitou um T6, onde funcionavam seis unidades de alojamento local, afecto legalmente a armazém, e posteriormente veio a constatar que, ao contrário do que lhe tinham assegurado, afinal não era permitido legalizar o imóvel como o encontrou com seis quartos mas apenas com um quarto, afigura-se-nos evidente que a matéria referente a essa impossibilidade, amplamente discutida em audiência através dos depoimentos prestados pelas testemunhas F… e G…, arquitectos, nos documentos juntos aos autos e plasmada no processo camarário para licenciamento das obras aí executadas, consubstancia factualidade complementar, absolutamente essencial à decisão da causa, descrita na causa de pedir (arts. 30.º a 37.º).
No relatório técnico[7] da testemunha F… (arquitecto), para além de várias desconformidades com o REGEU e com o Dec.-Lei n.º 163/2006 de 8 de Agosto que foram assinaladas, consignou-se, sobre os compartimentos situados no piso 1, que não possuem condições para serem classificados como quartos.
No entanto, essa matéria, relevante para a decisão, será inserida no local próprio, ou seja, na parte que descreve o processo camarário de legalização das obras feitas pela Ré.
Pretende o Autor a alteração da decisão que deu como provada a matéria constante do ponto 24: Na data da subscrição do documento referido no ponto 8 – factos provados –, o autor tinha conhecimento do facto descrito no ponto 15 – factos provados (Na data da subscrição do documento referido no ponto 8 – factos provados –, não havia sido atribuída uma autorização de utilização para habitação nem uma autorização de utilização para serviços ao imóvel nele identificado).
Nesta parte referente à licença para habitação/serviços, não assiste razão ao Autor.
Não há dúvida que o Autor, como o próprio confessa na petição e nos e-mails juntos aos autos, sabia que não havia sido atribuída uma autorização de utilização para habitação. Como o próprio explicou, na altura em que se mostrou interessado na compra do imóvel, foi-lhe dito que o imóvel só possuía licença para funcionar como armazém. No entanto, não atribuiu importância tal facto porque lhe foi assegurado que a alteração para o fim pretendido (de habitação) era um procedimento simples.
Como bem refere a Ré, ficou provado que o Autor apenas subscreveu o contrato-promessa de compra e venda por estar convencido de que o imóvel objeto do mesmo podia ser explorado como alojamento local, com seis unidades de alojamento, após proceder à alteração da sua autorização de utilização para habitação. (25)
Porém, ficou provado que o Autor só teve conhecimento que o imóvel não tinha registo como alojamento local quando recebeu o relatório de avaliação do banco, depois de ter assinado o contrato-promessa, razão pela qual deve ser dada como provada a matéria do ponto 46.
No que respeita aos factos vertidos no ponto 28, é inquestionável, face à extensa e segura prova produzida, que a Ré, anteriormente e na data da assinatura do contrato-promessa de compra e venda, já explorava o imóvel, no estado em que se encontra, como alojamento local, apesar de não estar registado.
Questão diferente é a Ré saber que apenas podia ser registado e explorado após a sua alteração da sua autorização de utilização, o que deve ser provado, até porque resulta do processo camarário essa finalidade.
Ou seja, o facto de estar a ser explorado, de forma ilícita, não significa que a Ré não soubesse que era necessário o registo na Câmara Municipal para esse efeito.
Portanto, quanto a este ponto, mantém-se a resposta.
Concluindo, mantém-se a redacção do ponto 17 (mas com o aditamento pretendido no local próprio), dos pontos 24 e 28 e o ponto 46 transita para os factos provados.
A Ré, por seu turno, também não concorda com a decisão que deu como demonstrados os factos dos pontos 2, 4, 5, 25 e 29 uma vez que, segundo a sua apreciação, do depoimento da testemunha I…, agente imobiliária, resulta o contrário dos factos vertidos nos pontos 2, 4 e 5.
Entende, por isso, que os pontos 2, 4 e 5 devem ter uma redação do respectivo teor na negativa:
2 - Não foi dito pelo autor ao agente imobiliário da referida agência com quem contactou que pretendia comprar um imóvel para o explorar como alojamento local.
4 - O autor não fez saber ao referido agente imobiliário que mediou as negociações que era essencial para si a possibilidade de exploração do imóvel como alojamento local.
5 - O agente imobiliário que mediou as negociações não garantiu ao autor que o imóvel reunia as condições físicas para poder vir a ser explorado como alojamento local, com seis unidades de alojamento.
No que concerne às conversações que o Recorrente teve com o agente que o recebeu, K…, e tal como aquele chamou a atenção na resposta, foi a própria co-Ré imobiliária que, nos artigos 15.º, 16.º e 17.º da contestação, reconheceu expressamente essa factualidade.
Por outro lado, ficou demonstrado (e não impugnado no recurso) que, em abril de 2018, o autor, cidadão norte-americano que não fala português, dirigiu-se a uma agência imobiliária D1… (D…, Lda.), com o objetivo de encontrar um imóvel para comprar e explorar como alojamento local. (ponto 1)
Nesse mesmo mês de Abril, no dia 27, por sugestão do vendedor K…, o Autor, por e-mail, transmitiu-lhe, nos exactos termos que lhe foram propostos por aquele, que tinha conhecimento do problema de humidade e que compreendia que tinha de providenciar pela alteração do uso do imóvel, de armazém para habitação, e para tal, contava com a total colaboração da vendedora na disponibilização da necessária informação e documentação para este efeito. (sublinhado nosso)
Esclareceu o Autor, no seu depoimento, que o companheiro da Ré, sendo arquitecto, facilmente conseguiria obter a licença de utilização para habitação.
As declarações das testemunhas I… e J…, agentes imobiliários, envolvidos neste processo negocial, mas numa fase posterior, não podiam negar o que sucedeu anteriormente com o colega K… pois não assistiram a essas conversações.
O vídeo junto aos autos, através do qual se visualiza o interior e exterior do imóvel, em conjugação com os vários comentários na plataforma airbnb, revelam, de forma segura, uma realidade, visitada pelo Autor, que espelha uma moradia com seis quartos, no piso superior, especialmente vocacionada para alojamento local.
Por conseguinte, analisada a prova na sua globalidade (declarações do Autor, depoimento das testemunhas L…, F…, G…, M…, vídeo através do qual se pode visualizar o interior e exterior do imóvel, e comunicações do Autor) conclui-se que a decisão está em conformidade com a produção desses meios de prova.
Sobre os pontos 25 e 29 a Ré está convencida de que foi produzida prova documental e testemunhal em sentido diverso, atendendo à confissão de parte do Autor e aos depoimentos das testemunhas I… e J….
A matéria em causa é a seguinte:
25 – O autor apenas subscreveu o documento referido no ponto 8 – factos provados – por estar convencido de que o imóvel objeto do contrato promessa podia ser explorado como alojamento local, com seis unidades de alojamento, após proceder à alteração da sua autorização de utilização para habitação.
29 – Quando subscreveu o documento referido no ponto 8 – factos provados–, a ré não desconhecia que o autor estava convencido de que o imóvel objeto do contrato-promessa podia ser explorado como alojamento local, após se proceder à alteração da sua autorização de utilização, sendo tal possibilidade condição necessária para o autor aceitar o preço fixado e outorgar o contrato prometido.
Sobre a matéria constante do ponto 25, o Autor teve ocasião de explicar que, sendo o espaço do rés-do-chão bastante amplo (open place) podia conseguir um rendimento adicional usando-o para outros fins.
Portanto, a interpretação do teor do e-mail do Autor, datado de 12 de Junho de 2018, é no sentido de que aquela finalidade de alojamento local, apesar de ser a principal, não era a única pois ponderou a possibilidade de, adicionalmente, abrir, no rés-do-chão, uma galeria, um espaço para eventos artísticos e local de trabalho (startups).
A predominância da exploração do espaço como alojamento local mostrou-se deveras atractiva para o Autor uma vez que lhe foi transmitido que estavam a fazer 5 mil euros por mês na estação alta e na estação baixa, podia ser arrendado a estudantes.
O ponto 29 também se encontra correctamente julgado se considerarmos o estado do imóvel quando o Autor o visitou, a utilização que estava a ser feita pela Ré, o preço acordado de €420.000,00 e a comunicação de 27 de Abril de 2018, acima referida, através da qual revela estar ciente da necessidade de alterar a licença para habitação e contar, para esse efeito, com a colaboração da vendedora, aqui Ré.
Importa complementar os factos respeitantes ao processo de legalização das obras designadamente a data em que deu entrada o pedido de legalização e emissão de alvará e o que resulta do esclarecimento prestado pelo Município no sentido de que se trata de uma legalização de um T1 com cinco arrumos.
Pelo exposto, procede parcialmente o recurso do Autor e improcede o da Ré, nesta parte.
*
III - FUNDAMENTAÇÃO
FACTOS PROVADOS
1. Relação pré-contratual
1 – Em abril de 2018, o autor, cidadão norte-americano que não fala português, dirigiu-se a uma agência imobiliária D1… (D…, Lda.), com o objetivo de encontrar um imóvel para comprar e explorar como alojamento local.
2 – Foi dito pelo autor ao agente imobiliário da referida agência com quem contactou que pretendia comprar um imóvel para o explorar como alojamento local.
3 – O agente imobiliário apresentou e sugeriu ao autor a compra do prédio urbano sito na rua…, n.os … a …, Porto.
4 – O autor fez saber ao referido agente imobiliário que mediou as negociações que era essencial para si a possibilidade de exploração do imóvel como alojamento local.
5 – O agente imobiliário que mediou as negociações garantiu ao autor que o imóvel reunia as condições físicas para poder vir a ser explorado como alojamento local, com seis unidades de alojamento, no estado em que se encontrava, sendo, no entanto, necessário promover um procedimento administrativo simples na câmara municipal.
6 – Durante o ano de 2018, designadamente entre a data da primeira visita do autor ao imóvel e a data da outorga do documento referido no ponto 8 – factos provados –, a ré e o seu marido, H…, exploraram o imóvel como alojamento para turistas, cedendo os seus quartos a clientes, contra o pagamento de um preço, anunciando esta hospedagem na Internet, designadamente no portal Airbnb.
7 – O autor tomou conhecimento do facto referido no ponto 6 – factos provados – antes de decidir comprar o imóvel.
2. O contrato firmado
8 – Em 25 de junho de 2018, autor e ré subscreveram o documento intitulado CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA, junto a fls. 15, onde consta, além do mais que aqui se dá por reproduzido:
Entre:
PRIMEIRA OUTORGANTE: C…, (…) designada por PROMITENTE-VENDEDORA;
E
SEGUNDO OUTORGANTE: B…, (…) designado por PROMITENTE-COMPRADOR;
É celebrado o presente contrato-promessa de compra e venda que se regerá nos termos das seguintes cláusulas:
CLÁUSULA PRIMEIRA
(Objecto)
A PRIMEIRA CONTRAENTE é legítima proprietária e possuidora de um prédio urbano composto por casa de pavimento e quintal, destinado a armazém e atividade industrial, sito à Rua… números … a …, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número 6668 (…) e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 1173 (…).
CLÁUSULA SEGUNDA
(Preço)
Através do presente contrato, a PRIMEIRA OUTORGANTE promete vender ao SEGUNDO, e este por sua vez promete comprar o imóvel identificado na cláusula anterior, pelo preço de €425.000,00 (…)
(…)
CLÁUSULA QUARTA
(Escritura Pública)
a) O SEGUNDO OUTORGANTE obriga-se a realizar o referido contrato definitivo de compra e venda até 31 de Agosto de 2018.
b) A designação de dia, hora e local para a outorga do referido contrato prometido compete ao SEGUNDO OUTORGANTE, que a comunicará à PRIMEIRA por carta registada com aviso de receção e com antecedência mínima de 10 (Dez) dias
(…)
Porto, 25 de Junho de 2018
PRIMEIRA OUTORGANTE
(…)
SEGUNDO OUTORGANTE
(…)
9 – Com a assinatura do documento referido no ponto 8 – factos provados –, o autor entregou a quantia de €100.000,00 à ré, a título de sinal e princípio de pagamento.
10 – Em 6 de setembro de 2018, autor e ré subscreveram o documento intitulado ADITAMENTO AO CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA OUTORGADO EM 25 DE JUNHO DE 2018 ENTRE OS OUTORGANTES INFRA DESCRIMINADOS, junto a fls. 24, onde consta, além do mais que aqui se dá por reproduzido:
C… (…) na qualidade de promitente vendedora e primeira outorgante.
E
B… (…) na qualidade de promitente comprador e segundo outorgante.
CONSIDERANDOS:
a) Entre os Outorgantes supra identificados, foi prometido comprar e vender por contrato promessa de compra e venda ora outorgado no dia 25/06/2018 um prédio urbano (…).
b) Pelo presente aditamento, as partes acordam em alterar o contrato promessa da seguinte forma:
I – Prorrogar o prazo para a realização da competente escritura pública de compra e venda até ao dia 30 de Setembro de 2018;
II – O segundo contraente, na presente data entrega a quantia de €90.000,00 (…), a título de reforço do sinal ora entregue e por conta do preço acordado;
III – Mais acordam que, caso a escritura pública de compra e venda não se realizar no prazo acima referido no ponto I, a primeira outorgante não se opõe a uma prorrogação do prazo por um período que nunca poderá exceder os 30 dias, devendo para o efeito o segundo outorgante comunicar à primeira que pretende a extensão do referido prazo;
O presente aditamento faz parte integrante do contrato prometido mantendo-se na íntegra as restantes cláusulas do mesmo.
Feito em duplicado aos 06 dias de Setembro de 2018 (…)
11 – Com a assinatura do documento referido no ponto 10 – factos provados –, o autor entregou a quantia de € 90.000,00 à ré, a título de reforço de sinal.
3. Caracterização do imóvel
12 – A caderneta predial urbana do prédio objeto do documento referido no ponto 8 – factos provados – tem o teor do documento junto a fls. 12 v., onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:
DESCRIÇÃO DO PRÉDIO
Tipo de Prédio: Prédio em Prop. Total sem Andares nem Div. Susc. de Utiliz. Independente
Descrição: Casa de r/c e fachada de alvenaria, tendo 1 divisão e quintal.
Afetação: Armazéns e atividade industrial Nº de pisos: 1 Tipologia/Divisões: 1
ÁREAS (em m2)
Área total do terreno: 212,0000 m2 Área de implantação do edifício: 182,0000 m2 Área bruta de construção: 182,0000 m2 Área bruta dependente: 0,0000 m2 Área bruta privativa: 182,0000 m2
DADOS DE AVALIAÇÃO
Ano de inscrição na matriz: 1937 Valor patrimonial atual (CIMI): €37.030,00 Determinado no ano: 2018
Tipo de coeficiente de localização: Indústria (…)
13 – A descrição na Conservatória do Registo Predial do imóvel objeto do documento referido no ponto 8 – factos provados – tem o teor do documento junto a fls. 13 v., onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:
ÁREA TOTAL: 212 M2
ÁREA COBERTA: 182 M2
ÁREA DESCOBERTA: 30 M2
(…)
COMPOSIÇÃO E CONFRONTAÇÕES:
Casa de pavimento e quintal. (…)
14 – O imóvel objeto do documento referido no ponto 8 – factos provados – tem um valor de mercado, com a afetação de “armazéns e atividade industrial”, não superior a €134.000,00.
15 – Na data da subscrição do documento referido no ponto 8 – factos provados –, não havia sido atribuída uma autorização de utilização para habitação nem uma autorização de utilização para serviços ao imóvel nele identificado.
16 – O imóvel objeto do documento referido no ponto 8 – factos provados – compreende dois pisos – rés-do-chão e primeiro andar –, tendo o terreno a área total de 212m2, sendo 182m2 de implantação do edifício.
17 – No primeiro andar, existem seis quartos de dormir, cada um com casa de banho privativa (suites).
18 – Os quartos partilham três patamares, dois a dois, sendo cada um destes patamares servido por uma escada em caracol (somando estas, assim, três) de acesso a partir do rés-do-chão.
19 – Cinco dos quartos de dormir não possuem nenhuma janela ou porta nas paredes dando para o exterior do edifício, possuindo todos janelas (zenitais) no teto, acompanhando o pendor da cobertura.
20 – Um dos quartos de dormir possui uma janela retangular numa parede exterior, com lados de 90/100 cm (largura) e 50/60 cm (altura).
21 – O imóvel, com uma área total retangular, não possui janelas nas suas paredes exteriores laterais (opostas) nem na sua fachada fronteira à rua, a qual dispões de três vãos de portas em madeira.
22 – Nenhuma das casas de banho do imóvel possui banheira, apenas possuindo chuveiro.
23 – No rés-do-chão não existe nenhuma casa de banho com bidé e banheira ou base de chuveiro.
4. Estados subjetivos
24 – Na data da subscrição do documento referido no ponto 8 – factos provados –, o autor tinha conhecimento do facto descrito no ponto 15 – factos provados.
25 - O autor apenas subscreveu o documento referido no ponto 8 – factos provados – por estar convencido de que o imóvel objeto do contrato promessa podia ser explorado como alojamento local, com seis unidades de alojamento, após proceder à alteração da sua autorização de utilização para habitação.
26 – Ao subscrever o documento referido no ponto 8 – factos provados –, o autor entendia que, para explorar o imóvel seu objeto como alojamento local, devia proceder à alteração da licença de utilização.
27 – Ao subscrever o documento referido no ponto 8 – factos provados –,o autor estava convencido de que o processo de alteração da licença de utilização para habitação seria simples, por reunir o imóvel todas as condições para a concessão desta autorização.
28 – Quando subscreveu o documento referido no ponto 8 – factos provados –, a ré entendia que o imóvel, no estado em que se encontra, apenas podia ser registado e explorado como alojamento local após a alteração da sua autorização de utilização.
29 – Quando subscreveu o documento referido no ponto 8 – factos provados –, a ré não desconhecia que o autor estava convencido de que o imóvel objeto do contrato-promessa podia ser explorado como alojamento local, após se proceder à alteração da sua autorização de utilização, sendo tal possibilidade condição necessária para o autor aceitar o preço fixado e outorgar o contrato prometido.
5. Desenvolvimento negocial após a outorga do contrato
30 – O autor não obteve cópia da caderneta predial urbana e da certidão da descrição predial do imóvel antes de subscrever o documento referido no ponto 8 – factos provados.
31 – Tendo em vista o financiamento da aquisição do imóvel, o autor solicitou ao E…, S.A., a concessão de um empréstimo bancário.
32 – No fim do mês de setembro de 2018, o autor tomou conhecimento do relatório de avaliação elaborado, em 26 de setembro de 2018, no âmbito do processo de concessão de mútuo bancário, junto a fls. 27, onde consta, para além do mais que aqui se dá por transcrito:
Valores da Garantia Atual:
V. Construído: 134.000€ (…)
O projeto final apresenta uma imagem cuidada e arquitetonicamente aprazível (…). No entanto a mesma não está legalizada, já que a afetação do imóvel é de armazém e atividades industriais, e, de acordo com a atualização do Modelo 1 do IMI e informação verbal do atual proprietário, não existe intenção atual de a alterar. Verifica-se também que o alojamento local não está legalizado, dado não possuir placa identificativa.
33 – Em 18 de outubro de 2018, o autor foi informado de que, no entender de um arquiteto a quem pediu opinião, as características do imóvel não permitiam o seu licenciamento para utilização como habitação, sendo necessário proceder à demolição das obras interiores existentes realizadas pela ré.
34 – Em 6 de novembro de 2018, a ré remeteu ao autor o email cuja cópia se encontra junta ao processo eletrónico com a referência n.º 26629030 (36364860), onde consta, além do mais que qui se dá por transcrito:
Na sequência do teor da sua comunicação de 22 de outubro p.p. e decorridos e vencidos que estão os prazos legalmente acordados para celebração da escritura definitiva de compra e venda sem que a mesma se tenha realizado por motivos exclusivamente a V. Exa. imputáveis, serve a presente para notifica-lo da resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado em 25.06.2108 e com aditamento assinado em 03.09.2018 por incumprimento definitivo de V. Exa. na qualidade de promitente comprador.
Isto posto, nos termos da legislação aplicável e do contrato celebrado, venho transmitir que me considero totalmente desobrigada das obrigações assumidas nesse contrato e que irei fazer minhas, sem mais, as quantias entregues por V. Exa. até à presente data a título de sinal e por conta do preço acordado.
35 – Em 6 de novembro de 2018, imediatamente após o envio do email referido no ponto 34 – factos provados –, a ré remeteu ao autor o email cuja cópia se encontra junta a fls. 81 (topo), onde consta, além do mais que qui se dá por transcrito: Hope all is well with you. I apologize but my first contact was just a formality regarding the conclusion of the process that we have in hands. Hope you can understand this need to have all clear in legal terms for both of us. This information will also be sent to your home address. Now you have my direct email contact to communicate.
Espero que esteja tudo bem consigo. Peço desculpa, mas meu primeiro contacto foi apenas uma formalidade respeitante à conclusão do processo que temos em mãos. Espero que possa perceber a necessidade, para ambos, da sua clarificação em termos legais. Esta informação será também remetida para a sua morada. Agora tem meu contato de email direto para comunicar.
36 – Em 6 de novembro de 2018, o autor remeteu à ré o email cuja cópia se encontra junta a fls. 81 (base), onde consta, além do mais que qui se dá por transcrito: I am well aware that you are in your legal rights to do as you wish, now that the contract has expired, but I also believe that your email is a gesture of extending an olive branch so that we can set things right. (…)
Estou bem ciente de que está no seu direito de agir como entender, agora que o contrato expirou, mas também acredito que o seu email é uma oferta de um ramo de oliveira, para que possamos resolver as coisas. (…)
Can we please meet so that we can align our thoughts (…). Since I have already handed over such a significant portion of my and my mother's life savings, I humbly ask you for your good will, courtesy, and help on working together to agree on an excellent solution.
Podemos nos encontrar para que possamos alinhar ideias [?] (…) Como já entreguei uma parte tão significativa das minhas economias e da minha mãe, peço humildemente sua boa vontade, cortesia e ajuda para trabalharmos em conjunto na obtenção de um entendimento sobre uma excelente solução.
37 – Em 11 de novembro de 2018, a ré remeteu ao autor o email cuja cópia se encontra junta a fls. 39, onde consta, além do mais que qui se dá por transcrito: It is true that all this process has been quite particular. We never expected for you to drop the deal. (…) Despite believing that probably you were badly advice by the people that should have protected your position I have to see this as a business because that is the situation we have in hands.
É verdade que todo o processo foi bastante peculiar. Nunca esperámos que desistisse do negócio. (…) Apesar de acreditar que provavelmente foi mal aconselhado pelas pessoas que deveriam ter protegido a sua posição, tenho que ver isto como um negócio, porque é esta a situação que temos em mãos.
(…) So what I can say now is that I'm willing to refund you because unfortunately or not I wouldn't feel good with myself (despite having the right to it) to keep all the money that you offered during the deal (…). Nevertheless, we are always talking about monetary and time losses.
(…) O que posso dizer neste momento é que estou disposta a reembolsá-lo, porque, infelizmente ou não, não me sentiria bem comigo mesma (apesar de ter direito a isso) em ficar com todo o dinheiro que desembolsou durante o negócio (…). No entanto, estamos sempre a falar de perdas monetárias e de tempo.
Regarding your second proposal for refund, I must be honest with you and tell you that it is far from our idea. At this point, the money we have on our side is 163.862,50€ (l must exclude from this refund the amount already delivered to the agency). At this moment and to close this situation I' m willing to give you back the total amount transferred on the last signature (90.000,00€). The amount that I would keep is less than the 20% of signal that we were asking for to all the proposals and the only amount you would lose if you dropped the deal.
Em relação à sua segunda proposta de reembolso, tenho de ser honesta consigo e dizer-lhe que está longe do que pensamos. Neste momento, o dinheiro que temos do nosso lado é de 163.862,50 € (devo excluir deste reembolso o valor já entregue à agência). Neste momento, e para encerrar esta situação, estou disposta a devolver-lhe o valor total transferido na última assinatura (90.000,00€). O valor que eu manteria é inferior aos 20% do sinal que estávamos a pedir para todas as propostas e o único valor que você perderia se desistisse do negócio.
38 – Em 15 de novembro de 2018, o autor remeteu à ré o email cuja cópia se encontra junta a fls. 38 v., onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito: After long consideration with my mother, your proposal is too difficult for us to accept as is. You may not be aware of everything that we went through these past few months in trying to complete the contract or even why we are now asking to cancel the agreement on friendly terms. (…).
Após ponderar longamente com minha mãe, é-nos muito difícil aceitar a sua proposta, tal como está. Pode não estar ciente de tudo o que passámos nos últimos meses na tentativa de concluir o contrato ou por que agora solicitamos o cancelamento amigável do acordo. (…).
We were in for a great shock when almost every bank said they could not finance a property still designated as warehouse. We did not know that something as seemingly minor as this would be such a problem. (…) This is why I asked about beginning the process for relicensing the warehouse into a residence a few months ago.
Tivemos um grande choque quando quase todos os bancos disseram que não poderiam financiar um imóvel ainda designado como armazém. Não sabíamos que algo aparentemente tão pequeno seria um problema tão grande. (…) É por esta razão que, há alguns meses, perguntei sobre o processo de licenciamento do armazém como habitação.
(….) I went to the city hall and even consulted with two other architects about the property and was even more shocked to be told by all that it would be impossible to license the property under any of the designations we needed and that the only possibility would be to reconstruct the property. (…)
(….) Fui à Câmara Municipal e consultei dois outros arquitetos sobre o imóvel e fiquei ainda mais chocado ao ouvir de todos que seria impossível licenciar o imóvel sob qualquer uma das denominações que precisávamos, e que a única possibilidade seria reconstruir o edifício. (…)
I was trying to get in contact with you about this, but after getting so much pushback from the real estate agency, we decided it might just be easier to cancel the whole thing even after all of this effort and so many stressful months. (…) So please, reconsider my original offer.
Tentei entrar em contato consigo, mas depois de enfrentarmos tantos obstáculos por parte da imobiliária, decidimos que seria mais fácil cancelar tudo, mesmo depois de todo o referido esforço e de tantos meses estressantes. (…) Por favor, reconsidere minha oferta original.
39 – Em 15 de janeiro de 2019, o autor, por meio de mandatária, remeteu à ré a carta cuja cópia se encontra junta a fls. 51 v., onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito: “Acontece que, ao contrário do que foi garantido por V.Exa, o prédio em causa é insuscetível de ser destinado a alojamento local, sendo que só após a celebração do aludido contrato e pagamento do sinal, o nosso constituinte teve conhecimento de tal facto.
Posto isto, como sabe, o contrato foi celebrado com o objetivo único de compra do imóvel para investimento, ou seja, para o destinar a alojamento local. Contudo, sendo o prédio é insuscetível de ser destinado a alojamento local, tal coloca em causa, de modo definitivo, o contrato celebrado, tendo o nosso constituinte perdido todo o interesse no mesmo.
Nestes termos, vimos pelo presente, solicitar que, no prazo máximo de 05 (cinco) dias úteis a contar da receção da presente carta, V. Exa restitua o sinal em dobro, nos termos do art. 442.º, n.º 2 do Código Civil”
40 – Em 8 de abril de 2019, foi o autor informado de que, no entender de um arquiteto a quem pediu parecer, as características do imóvel não permitiam o seu licenciamento para utilização como habitação com a tipologia T6 nem o seu registo como alojamento local com seis unidades de alojamento.
6. Ulterior licenciamento das obras
41 –Em 28 de Maio de 2019, a ré, representada por H…, apresentou à Câmara Municipal do Porto “um pedido de legalização de obras de construção para o prédio sito à Rua…, n.º … a …, na freguesia de …, que (…) está sujeito ao controlo prévio de licença (…), dado tratar-se de uma legalização”, pretendendo “alterar a compartimentação e redimensionamento interior” e “alterar a edificação existente em mais um piso (2 pisos)”, sendo que “o uso proposto é de habitação unifamiliar”, ao qual foi dado o número de processo P7202927/19/CMP, conforme documento junto a fls. 118, que aqui se dá por transcrito.
42 – Em 24 de outubro de 2019, este pedido (P7202927/19/CMP), na “apreciação arquitetónica e urbanística -informação técnica”, mereceu parecer favorável da arquiteta da Direção Municipal do Urbanismo e despacho concordante em 2 de novembro de 2019, conforme documento junto de fls. 99 a 104, que aqui se dá por transcrito.
43 – No parecer favorável referido no ponto 42 – factos provados –, é declarado:
6. Conformidade com o RGEU
(…)
Interior das edificações
6.2. O termo de responsabilidade do técnico autor do projeto de arquitetura constitui garantia bastante do cumprimento das normas legais e regulamentares aplicáveis ao interior das edificações (…).
(…)
8. Conformidade com as normas técnicas de acessibilidade ao abrigo do Decreto-lei 163/2006, de 08 de agosto.
(…)
8.2. Uma vez que o Plano de Acessibilidades está acompanhado por termo de responsabilidade, subscrito por técnico legalmente habilitado, (…) o mesmo fica dispensado de apreciação prévia (…).
44 – Em 23 de junho de 2020, pela Direção Municipal do Urbanismo da Câmara Municipal do Porto foi emitido o documento intitulado ALVARÁ DE LICENCIAMENTO DE OBRAS DE ALTERAÇÃO NUD/240499/2020/CMP/PROCESSO N.º P/202927/19/CMP, junto processo eletrónico com a referência n.º 26629030 (36359272), onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:
As obras, licenciadas por despacho do Senhor Vereador do Pelouro do Urbanismo, Espaço Público e Património, de 2020/06/08, respeitam o disposto no PDM, e apresentam as seguintes características:
(…)
Destinos do edifício:
Os pisos rés-do-chão e 1º andar destinam-se a habitação, com área correspondente de 292 m2, sendo constituídos por 1 fogo.
(…)
Prazo para a conclusão das obras: 0 dias
44-A) - O processo de legalização tem por objecto as referidas obras de reabilitação de um imóvel com um quarto e cinco arrumos, com base em peças escritas, da autoria do mencionado arquitecto, datadas 09 de Outubro de 2018, cujo teor se dão por reproduzidas.
44-B) - Atendendo às características internas do imóvel, não é possível legalizar, para utilização como habitação, com seis quartos.
45 – O técnico autor do projeto de arquitetura apresentado no processo P7202927/19/CMP, H…, vive em união de facto com a ré.
46 - Apenas em 26 de setembro de 2018, teve o autor conhecimento de que o alojamento local que funcionava no imóvel não se encontrava registado nem participado ao município, não possuindo placa identificativa de alojamento local.
FACTOS NÃO PROVADOS
Todos os restantes factos descritos nos articulados, bem como os aventados na instrução da causa, distintos dos considerados provados–discriminados entre os “factos provados” ou considerados na “motivação” (aqui quanto aos instrumentais) –, resultaram não provados.
47 – O autor apenas subscreveu o documento referido no ponto 8 – factos provados – por estar convencido de que a área do imóvel inscrita na matriz era igual à área constante da descrição do prédio na Conservatória do Registo Predial.
*
IV - DIREITO
A questão essencial discutida na presente acção traduz-se em saber se o Autor tem direito a anular o contrato-promessa de compra e venda de um imóvel por ter formado a sua vontade com base em erro sobre o objecto.
Nos termos do artigo 251.º do C.Civil o erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira ao objecto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247.º.
A declaração negocial é anulável, segundo o preceituado no citado art.º 247.º, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre o qual incidiu o erro.
O erro-vício, na definição de Carlos Mota Pinto[8] traduz-se numa representação inexacta ou na ignorância de uma qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efectuar o negócio. Se estivesse esclarecido acerca dessa circunstância-se tivesse exacto conhecimento da realidade-,o declarante não teria realizado qualquer negócio ou não teria realizado o negócio nos termos em que o celebrou. (erro nos motivos determinantes da vontade).
Explicitando a situação do erro sobre o objecto, Manuel de Andrade[9] escreveu que são de designar como qualidades dum objecto a respectiva constituição material e aquelas condições factuais e jurídicas que, pela sua natureza e duração, influem no valor ou no préstimo desse objecto.
No mesmo sentido e com relevância para a decisão, Heinrich Ewald Hörster[10] também entende que as qualidades de um objecto são todos os factores determinantes do valor ou da utilização pretendida mas não o próprio preço ou o valor em si nem a propriedade do objecto. Uma qualidade é essencial quando é decisiva para o negócio conforme a finalidade económica ou jurídica deste (na perspectiva do declarante e não do tráfico jurídico - 247.º).
No que respeita às condições gerais de relevância do erro-vício como motivo de anulabilidade, Carlos Alberto Mota Pinto assinala as seguintes[11]:
I - Essenciabilidade: É corrente na doutrina a afirmação de que só é relevante o erro essencial, isto é, aquele que levou o errante a concluir o negócio em si mesmo e não apenas nos termos em que foi concluído. O erro foi causa da celebração do negócio e não apenas dos seus termos.
II - Propriedade-incide sobre uma circunstância que não seja a verificação de qualquer elemento legal da validade do negócio.
Acresce um requisito especial no erro sobre o objecto na medida em que a lei determina que se aplique o regime do erro-obstáculo, ou seja, a exigência do conhecimento ou cognoscibilidade por parte do declaratário sobre o elemento que incidiu o erro (cfr. art. 247.º do CC).
Outro aspecto que nos parece importante salientar é que a essencialidade deve ser apreciada não em abstracto mas sim na perspectiva subjectiva do declarante, nas circunstâncias concretas em que esteve envolvido quando formou a sua vontade.[12]
Na hipótese de o erro do declarante ter sido causado através de um processo enganoso (activo ou omissivo) do declarante ou de terceiro verifica-se um comportamento doloso que justifica igualmente a anulabilidade do negócio jurídico.
O dolo é relevante como motivo de anulação se for um dolus malus (art. 253.º, n.º 2 do CC), essencial, e existir no deceptor a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro, embora não de prejudicar[13]. Basta a consciência de criar ou manter uma situação de erro mesmo que esse não seja o propósito de quem a cria ou mantém.[14]
O art.º 253.º, n.º 2, parte final do C.Civil consagrou ainda o designado dolo omissivo, isto é, quando a dissimulação do erro é censurada por existir um dever de elucidar o declarante que resulta da lei, de estipulação negocial ou das concepções dominantes no comércio jurídico.
As concepções dominantes no comércio jurídico são interpretadas com referência às regras da boa fé (227.º) que devem presidir à conduta das partes na formação dos contratos[15].
O dolo negativo (ou omissivo) é aquilo que a nossa lei designa por má fé e que a doutrina chama reticência (…). Os tratadistas costumam advertir, porém, que só há verdadeira reticência onde exista para o deceptor o dever de informar. Esse dever, quando não resulte da lei ou de estipulação negocial, será aferido pelas concepções dominantes na prática, podendo nisso influir a natureza e as circunstâncias do negócio. (…) Nas vendas o vendedor, em regra, não deve calar-se perante o erro do comprador acerca das qualidades que ordinariamente conhece melhor do que o comprador.[16]
Assim, sobre a distinção do erro e do dolo, Henrich Ewald Hörster[17] refere que enquanto o erro sobre os motivos é o resultado de uma vontade mal esclarecida, a deformação da vontade em caso de dolo provém de uma actuação exterior que impede a livre formação da vontade do declarante.
Tendo em consideração o descrito quadro legal aplicável ao caso sub judice e as explicações doutrinárias pertinentes, cumpre saber se o Autor, ao prometer comprar o imóvel em causa, incorreu em erro sobre as respectivas características, as quais, na sua perspectiva, foram determinantes na conclusão do negócio.
Em Abril de 2018, o Autor, cidadão norte-americano, que não fala português, dirigiu-se a uma agência imobiliária com o objetivo de encontrar um imóvel para comprar e explorar como alojamento local e fez saber ao agente imobiliário que era essencial essa finalidade do negócio.
O agente imobiliário apresentou e sugeriu-lhe a compra do prédio urbano pertencente à Ré, e garantiu-lhe que o imóvel reunia as condições físicas para poder vir a ser explorado como alojamento local, com seis unidades de alojamento, no estado em que se encontrava, sendo necessário, no entanto, promover um procedimento administrativo simples na Câmara Municipal.
Durante o ano de 2018, designadamente entre a data da primeira visita do Autor ao imóvel e a data da outorga do contrato-promessa de compra e venda, a Ré e o seu marido, H…, exploraram o imóvel como alojamento para turistas, cedendo os seus quartos a clientes, contra o pagamento de um preço, anunciando esta hospedagem na Internet, designadamente no portal Airbnb.
O imóvel, após a realização das obras, compreende dois pisos– rés-do-chão e primeiro andar. No primeiro andar, existem seis quartos de dormir, cada um com casa de banho privativa (suites) que partilham três patamares, dois a dois, sendo cada um destes patamares servido por uma escada em caracol (somando estas, assim, três) de acesso a partir do rés-do-chão.
Portanto, o Autor, cidadão estrangeiro, pretendendo investir nesta cidade, concretamente mediante a exploração de um alojamento local, visitou o imóvel pertencente à Ré, para futura aquisição, que lhe agradou, o qual já se encontrava a ser plenamente utilizado e rentabilizado dessa forma pela proprietária, com seis quartos/unidades de alojamento, cada um com casa de banho privativa, no piso superior, ou seja, uma tipologia designada por T6.
O Autor apenas subscreveu o contrato-promessa de compra e venda por estar convencido que o imóvel podia ser explorado como alojamento local, com seis unidades de alojamento, após proceder à alteração da sua autorização de utilização para habitação.
E estava ainda convencido que o processo de alteração da licença de utilização para habitação seria simples, por reunir o imóvel todas as condições para a concessão desta autorização.
Por seu turno, a Ré, quando assinou o contrato-promessa de compra e venda entendia que o imóvel, no estado em que se encontra, apenas podia ser registado e explorado como alojamento local após a alteração da sua autorização de utilização.
E também não desconhecia que o Autor estava convencido de que o imóvel, objecto do contrato-promessa, podia ser explorado como alojamento local, após se proceder à alteração da sua autorização de utilização, sendo tal possibilidade condição necessária para aceitar o preço fixado (€420.000) e outorgar o contrato prometido.
Tendo em vista o financiamento da aquisição do imóvel, o Autor solicitou ao banco a concessão de um empréstimo.
No fim do mês de setembro de 2018, tomou conhecimento do relatório do banco, que avaliou a construção em €134.000,00 por não estar legalizada nem o alojamento local possuir placa identificativa.
No mês seguinte, foi informado por um arquitecto que as características do imóvel não permitiam o seu licenciamento para utilização como habitação, sendo necessário proceder à demolição das obras interiores existentes realizadas pela Ré.
Em 15 de Novembro de 2018, transmitiu à Ré, além do mais, que foi à Câmara Municipal, consultou dois outros arquitetos sobre o imóvel e ficou ainda mais chocado ao ouvir de todos que seria impossível licenciar o imóvel sob qualquer uma das denominações que precisávamos, e que a única possibilidade seria reconstruir o edifício.
Em 8 de abril de 2019, foi informado que, no entender de um arquiteto a quem pediu parecer, as características do imóvel não permitiam o seu licenciamento para utilização como habitação com a tipologia T6 nem o seu registo como alojamento local com seis unidades de alojamento.
Resumindo, o imóvel, quando o Autor o visitou, estava a ser explorado como alojamento local sem ter, para esse efeito, a devida licença e, segundo pareceres técnicos, não é sequer possível obter a sua legalização nas condições em que se apresenta, ou seja, para utilização como habitação com uma tipologia T6, a não ser que seja reconstruído.
O processo administrativo alegadamente simples de mudança de finalidade do imóvel para habitação de um T6 não era admissível no estado em que se encontrava.
Segundo o art.º 66.º, n.º 5 do REGEU[18] o tipo de fogo é definido pelo número de quartos de dormir, e para a sua identificação utiliza-se o símbolo TX, em que X representa o número de quartos de dormir.
Nos termos do art.º 71.º, n.º 1 do citado diploma legal os compartimentos das habitações serão sempre iluminados e ventilados por um ou mais vãos praticados nas paredes, em comunicação directa com o exterior (…)
Deverá ainda ficar assegurada, de acordo com o art.º 72.º do REGEU, a ventilação transversal do conjunto de cada habitação em regra por meio de janelas dispostas em duas fachadas opostas.
Em 28 de Maio de 2019, a Ré, representada por H…, seu companheiro e arquitecto, tendo em conta a realização das obras no imóvel, apresentou à Câmara Municipal do Porto “um pedido de legalização de obras de construção” realizadas num imóvel, com um quarto e cinco arrumos.
Nas peças escritas, datadas de 09 de Outubro de 2018 (apenas 9 dias após o termo do prazo para a outorga da escritura de compra e venda) que constam desse processo, assinadas pelo referido Arquitecto H…, consignou-se que o piso superior, definido por mezzanines, localiza-se uma zona de arrumos. Refere ainda a existência de aberturas zenitais na cobertura sob a forma de claraboias.
Com efeito, sobre as características do edifício ficou demonstrado que cinco dos “quartos de dormir”/suites não possuem nenhuma janela ou porta nas paredes dando para o exterior do edifício, possuindo todos janelas (zenitais) no tecto, acompanhando o pendor da cobertura.
Apenas um dos quartos de dormir possui uma janela retangular numa parede exterior, com lados de 90/100 cm (largura) e 50/60 cm (altura).
O imóvel, com uma área total retangular, não possui janelas nas suas paredes exteriores laterais (opostas) nem na sua fachada fronteira à rua, a qual dispões de três vãos de portas em madeira.
Justamente pelo facto de cinco quartos não terem janelas nas paredes, as obras de remodelação foram licenciadas atendendo ao seguinte destino do edifício: os pisos rés-do-chão e 1º andar destinam-se a habitação, com área correspondente de 292 m2, sendo constituídos por 1 fogo, ou seja, um T1.
Competia à vendedora, em conformidade com os ditames da boa fé, e perante o estado em que se encontra o imóvel após a realização da obras e utilização que era feita do mesmo, ter informado o Autor que não era possível legalizar o imóvel com uma licença para utilização como habitação com seis quartos e que não possuía licença que permitisse exercer a actividade de prestação de serviços de alojamento local.
Por outras palavras, ocorreu dissimulação da verdadeira realidade por ser manifesto que a vendedora tinha o dever de elucidar, de forma transparente, o promitente comprador sobre as características e potencialidades do imóvel, factores que influenciaram directamente o preço ajustado e a vontade de comprar.
A natureza do negócio, o processo negocial e o que foi apresentado ao Autor para comprar, impunha um esclarecimento sobre a impossibilidade de o imóvel ser licenciado como habitação com seis quartos mas apenas com um quarto.
Na verdade, o imóvel com a afetação de “armazéns e atividade industrial”, tem um valor de mercado não superior a € 134.000,00, ou seja, um valor significativamente inferior ao valor estabelecido pelas partes de €420.000,00 com base na realidade que o Autor conheceu: um imóvel com seis suites, explorado com a prestação de serviços de alojamento temporário para turistas.
Esta realidade, insusceptível de ser legalizada, impediu a formação correcta da vontade de comprar do declarante e frustrou os seus desígnios de aquisição de um T6 para o rentabilizar como investimento.
Suscita-se ainda a questão de saber se, pese embora não ser possível a legalização do imóvel para habitação com seis quartos, o Autor podia, com a legalização de um T1 (um quarto e cinco arrumos) registar o edifício para aí explorar alojamento local em seis unidades/quartos.
Nos termos do artigo 2.º, n.º 1 do Dec.-Lei n.º 128/2014, de 29.08 (que instituiu o regime jurídico da exploração dos estabelecimentos de alojamento local) consideram-se estabelecimentos de alojamento local aqueles que prestam serviço de alojamento temporário nomeadamente a turistas, mediante remuneração.
O registo é efectuado mediante comunicação prévia dirigida ao Presidente da Câmara Municipal territorialmente competente (cfr. art.º 5.º).
Da comunicação prévia, segundo o art.º 6.º, n.º 1, devem constar as seguintes informações:
a) Autorização de utilização ou título válido do imóvel (a));
(…)
e) Capacidade (quartos, camas, utentes) do estabelecimento (e));
E deve ser instruída nomeadamente com um termo de responsabilidade, subscrito pelo titular do estabelecimento, assegurando a idoneidade do edifício/fracção autónoma para a prestação de serviços de alojamento e que o mesmo respeita as normas legais e regulamentares aplicáveis. (n.º 2, al. b)).
Estabeleceu-se ainda no artigo 12.º os requisitos a que devem obedecer os estabelecimentos de alojamento local, determinando no n.º 2, al. a) que as unidades de alojamento dos estabelecimentos de alojamento devem ter uma janela ou sacada com comunicação directa para o exterior que assegure as adequadas condições de ventilação e arejamento.
Ora, o termo janela é considerado tecnicamente um vão aberto em paredes e uma sacada define-se por um varadim ou janela sem parapeito, rasgada até ao nível do solo com grade.[19]
Por conseguinte, a exigência no que respeita à qualificação de um quarto de uma habitação em nada difere do estabelecido no art.º 71.º, n.º 1 do REGEU.
Nos dois regimes jurídicos em confronto conclui-se que a qualificação de um compartimento como quarto de uma habitação depende da existência de uma janela/sacada, nas paredes, com comunicação directa para o exterior que assegure as adequadas condições de ventilação e arejamento.
Ora, no edifício em causa, apenas um dos seis compartimentos do piso superior satisfaz esta exigência uma vez que os demais apenas possuem todos janelas (zenitais) no tecto.
A iluminação zenital consiste numa iluminação de um espaço interior através de aberturas ou claraboias localizadas na cobertura de um edifício.[20]
Acresce que, nos termos do acima mencionado art.º 6.º, n.º 2, al.b) do Dec.-Lei n.º 128/2014, de 29.08, a comunicação prévia dirigida ao Presidente da Câmara Municipal para efeitos de registo do estabelecimento de alojamento local deve ser instruído, além do mais, com um termo de responsabilidade, subscrito pelo titular do estabelecimento, assegurando a idoneidade do edifício/fracção autónoma para a prestação de serviços de alojamento e que o mesmo respeita as normas legais e regulamentares aplicáveis.
Nem podia ser de outro modo.
Estando em causa a acomodação de pessoas, as normas citadas destinam-se a assegurar adequado arejamento, iluminação e exposição solar do espaço.
Nesta conformidade, os diplomas legais aplicáveis devem ser articulados por forma a serem respeitados esses interesses e interpretados tendo em conta, além de outros elementos, a unidade do sistema jurídico (art.º 9.º, n.º 1 do C.Civil).
Considerando o estado em que se encontrava o imóvel com seis quartos e a forma como estava a ser utilizado na actividade de prestação de serviços de alojamento temporário a turistas, a omissão de advertência do declarante sobre a inexistência de registo da moradia como alojamento local e da impossibilidade de ser obtida licença de utilização para uma tipologia T6 merece relevância para obter a anulabilidade do negócio.[21]
O dolo omissivo, esclarece Henrich Ewald Hörster, à semelhança da reserva mental é um comportamento particularmente desleal (p. ex., quem quiser vender uma casa é obrigado a esclarecer o interessado na compra acerca dos comportamentos manifestamente abusivos e chicaneiros dos seus vizinhos, mesmo que não haja defeitos na própria casa).[22]
Neste caso, como se explicitou no Acórdão desta Relação, de 10.01.2002[23],verifica-se o requisito específico da relevância do dolo que consiste na dupla causalidade: o dolo é causa do erro e este,por seu turno, é causa do negócio.
O artigo 254.º, n.º 1 do C.Civil faculta ao declarante cuja vontade tenha sido determinada por dolo a anulação da declaração, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado (cfr. art.º 289.º, n.º 1 do C.Civil).
Consequentemente, a Recorrida está obrigada a restituir a quantia monetária recebida, a título de sinal, acrescida dos juros (qualificados de frutos civis-cfr. art.º 212.º do CC) desde a citação até integral e efectivo pagamento.
Por todos os motivos aduzidos, conclui-se pela procedência do recurso do Autor, impondo-se a anulação do contrato-promessa de compra e venda com as consequências previstas na lei.
*
V - DECISÃO
Pelo exposto, acordam as Juízas que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso, e em consequência, declaram a anulação do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre as partes e condenam a Ré a devolver ao Autor a quantia de €190.000,00 acrescida dos juros vencidos e vincendos, calculados à taxa legal, desde a citação até integral e efectivo pagamento, mantendo o demais decidido sobre a 2.ª Ré.
Custas a cargo da 1.ª Ré.
Notifique.

Porto, 23 de fevereiro de 2021
Anabela Tenreiro
Lina Baptista
Alexandra Pelayo
_____________
[1] cfr. neste sentido v. Ac. Rel. Porto, de 24/03/2014, in www.dgsi.pt.
[2] Cfr. Geraldes, António Santos Abrantes, Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., pág. 256.
[3] Cfr. Exposição de motivos da reforma.
[4] Cfr. Exposição de motivos da reforma.
[5] Sobre a distinção entre factos essenciais/instrumentais, complementares e concretizadores v. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I, pág. 64, Faria, Paulo Ramos de e Loureiro, Ana Luisa, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2014, 2.ª edição, vol. I, pág. 35-45 e Freitas, Lebre de, e Alexandre, Isabel, Código de Processo Civil Anotado, vol I, 3.º edição, pág. 14-17, Cabrita, Helena, A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, pág. 86 e segs.
[6] Ob. cit., pág. 97.
[7] Documentos n.ºs 12 e 13.
[8] Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, Coimbra Editora, pág. 504.
[9] Teoria Geral, vol. II, pág. 251.
[10] A Parte Geral do Código Civil Português, 1992, pág. 574 e segs.
[11] Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, Coimbra Editora, pág. 507 e segs; no mesmo sentido, entre outros, v. Manuel de Andrade, ob. cit., págs. 237 a 240.
[12] Neste sentido, entre outros Paulo Mota Pinto, Direito Civil, Estudos, Gestlegal, pág. 122..
[13] Este esclarecimento é aduzido por Manuel de Andrade, ob. cit., pág.262.
[14] Carlos Mota Pinto, ob.cit., pág. 526.
[15] Paulo Mota Pinto, Direito Civil, Estudos, pág. 74.
[16] Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 258.
[17] Ob. cit., pág. 582.
[18] Regulamento Geral das Edificações Urbana (Dec.-Lei n.º 38382/51 de 07.08)
[19] Cfr. engenhariacivil.com/dicionario
[20] www.engenhariacivil.com/dicionario
[21] V. ainda neste sentido Paulo Mota Pinto, ob. cit., pág. 174, nota 185.
[22] Ob. cit. pág. 583.
[23] Disponível em www.dgsi.pt