Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6683/20.8T8PRT-F.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: REGULAÇÃO DO EXERCÍCIO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
MEIOS DE PROVA
ADITAMENTO AO ROL
TESTEMUNHAS
Nº do Documento: RP202212146683/20.8T8PRT-F.P1
Data do Acordão: 12/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No processo tutelar cível de regulação do exercício das responsabilidades parentais, se o requerente indicou a prova no requerimento com que deu início a esse processo, não fica obrigado a apresentá-la no momento previsto no artigo 39º, nº 4 da Lei nº 141/2015, de 8.09 (que aprovou o Regime Geral do Processo Tutelar Cível), devendo a prova inicialmente oferecida ser admitida.
II - Por essa razão, mesmo que não apresente prova pessoal no momento definido nesse normativo, o progenitor não está impedido de requerer o aditamento de testemunhas, contanto que o faça dentro do condicionalismo temporal estabelecido no nº 2 do artigo 598º do Código de Processo Civil, aplicável aos processos tutelares cíveis por mor do preceituado no artigo 33º do referido Regime Geral.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 6683/20.8T8PRT-F.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Porto – Juízo de Família e Menores, Juiz 3
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2ª Adjunta Desª. Maria de Fátima Andrade
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- RELATÓRIO

AA intentou o presente processo tutelar cível contra BB, ambos progenitores de CC, nascido a .../.../2017, visando a regulação do exercício das responsabilidades parentais referentes ao menor.
No requerimento inicial apresentou os seus meios probatórios, arrolando duas testemunhas.
Realizou-se conferência de pais, no âmbito da qual não se alcançou acordo entre os progenitores do menor.
Por despacho datado de 16 de setembro de 2021 foram os progenitores notificados para, em 15 dias, apresentarem alegações ou arrolarem até 10 testemunhas e juntarem documentos.
Na sequência da notificação de que foi alvo, a progenitora apresentou, em 6 de outubro de 2021, alegações e bem assim o seu requerimento probatório, arrolando quatro testemunhas.
Por despacho de 5 de julho do corrente ano foi designado o dia 12 de setembro para a realização do julgamento.
Em 7 de julho a progenitora apresentou aditamento ao rol de testemunhas, sendo que, por seu turno, o progenitor, em 12 de agosto, requereu igualmente aditamento de testemunhas ao rol que havia inicial apresentado.
Em 6 de setembro foi proferido despacho transferindo a realização da audiência de julgamento para o dia 17 de outubro, admitindo o aditamento ao rol requerido pela progenitora, sendo que em relação ao requerimento aduzido pelo progenitor se decidiu nos seguintes moldes: «O progenitor requereu o aditamento ao rol de testemunhas apresentado no requerimento inicial.
Conforme resulta do disposto no artigo 35º/2 do RGPTC, na conferência de pais que tem lugar na fase inicial do processo, pode o juiz determinar a presença de avós, outros familiares ou pessoas de especial referência afetiva para a criança.
Nesse enquadramento, admite-se que possam ser indicadas tais pessoas no requerimento inicial.
No que respeita às testemunhas a arrolar a fim de serem ouvidas em sede de audiência de julgamento, resulta do disposto no artigo 39º/4 do RGPTC que devem ser indicadas no prazo de 15 dias a contar da respetiva notificação.
Ora, no caso concreto, o requerente não apresentou alegações nem arrolou testemunhas na sequência de tal notificação.
E, assim sendo, não pode aditar um rol que simplesmente não apresentou.
Face ao exposto, indefiro o aditamento ao rol de testemunhas».
Não se conformando com o assim decidido, veio o requerente/progenitor interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir em separado e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
1. É o presente recurso interposto do douto despacho proferido em 6 de Setembro de 2022, no segmento onde foi decidido que, embora o recorrente tenha arrolado testemunhas no requerimento inicial, esse rol não pode ser considerado, pois as testemunhas, para serem ouvidas em sede de audiência de julgamento, têm de ser indicadas no prazo de 15 dias previsto no artigo 39.º, n.º 4, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível e, por conseguinte, como o progenitor não apresentou alegações nem arrolou testemunhas após ter sido notificado para os termos dessa norma, não pode aditar um rol que simplesmente não apresentou, assim indeferindo, com esse fundamento, o requerido aditamento e, concomitantemente, também a audição na audiência de julgamento das testemunhas arroladas na petição inicial.
2. Decisão com a qual o recorrente discorda, por se entender que a mesma não encontra fundamento na norma invocada e contraria os princípios que devem nortear as providências tutelares cíveis, nomeadamente os da defesa do superior interesse da criança e celeridade e economia processual, assim como o princípio do aproveitamento dos actos processuais, que aqui deve de igual modo ser aplicado.
3. O artigo 39.º, n.º 4, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, embora preveja que, não tendo os pais chegado a acordo, são notificados para, em 15 dias, apresentarem alegações ou arrolarem testemunhas e juntarem documentos, não tem o significado de implicar que as testemunhas arroladas ou os documentos juntos previamente a esse momento processual, em específico no requerimento inicial, sejam desconsiderados e não devam ser relevados nem admitidos, nomeadamente no que às testemunhas diz respeito, para efeito da sua audição na audiência de discussão e julgamento.
4. Pelo contrário, se o requerente, aqui recorrente, arrolou testemunhas no requerimento inicial, fê-lo atempadamente e não fica obrigado a arrolá-las de novo no momento previsto no artigo 39.º, n.º 4, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, devendo por isso ser-lhe admitidas, para que sejam ouvidas na audiência de discussão e julgamento, quer as testemunhas que inicialmente arrolou, quer aquelas cujo aditamento requereu também atempadamente, dentro do prazo previsto no artigo 598.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
5. Ao decidir como decidiu, fez o Tribunal a quo incorrecta interpretação do artigo 39.º, n.º 4, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, violando também o previsto no artigo 598.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e devendo assim ser revogado, admitindo-se as testemunhas arroladas pelo recorrente no requerimento inicial e o aditamento ao rol de testemunhas por ele requerido.
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O Ministério Público apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil ex vi do art. 32º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível[1] (doravante, RGPTC).
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo apelante, a única questão solvenda traduz-se em saber se, no processo tutelar cível de regulação do exercício das responsabilidades parentais, as partes apenas podem apresentar os seus meios de prova com as alegações a que alude o nº 4 do art. 39º do RGPTC.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO

A materialidade a atender para efeito da apreciação do objeto do presente recurso é a que dimana do antecedente relatório.
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IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

No despacho sob censura considerou-se que, embora o progenitor/apelante tenha arrolado testemunhas no requerimento inicial, esse rol não pode ser atendido, pois as testemunhas, para serem ouvidas em sede de audiência de julgamento, têm de ser indicadas no prazo de 15 dias previsto no artigo 39.º, n.º 4, do RGPTC e, por conseguinte, como aquele não apresentou alegações nem arrolou testemunhas após ter sido notificado para os termos dessa norma, não pode aditar um rol que simplesmente não apresentou, assim indeferindo, com esse fundamento, o requerido aditamento e, concomitantemente, também a audição na audiência de julgamento das testemunhas arroladas naquele inicial requerimento.
O apelante rebela-se contra esse segmento decisório argumentando que ao ter arrolado testemunhas no requerimento inicial fê-lo atempadamente, não ficando obrigado a arrolá-las de novo no momento previsto no citado artigo 39.º, n.º 4, devendo, por isso, serem admitidas a prestar o seu depoimento na audiência final, quer as testemunhas que inicialmente arrolou, quer aquelas cujo aditamento requereu também atempadamente, dentro do prazo previsto no artigo 598.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC).
Que dizer?
Como é consabido, o presente processo tutelar cível tem a natureza de jurisdição voluntária (cfr. arts. 3º, al. c) e 12º do RGPTC), contrapondo-se, nessa medida, aos processos de natureza contenciosa.
Ao contrário da jurisdição contenciosa, em que impera o princípio do dispositivo (art. 5º do CPC), na regulação do exercício das responsabilidades parentais, o juiz investiga autonomamente os factos, no que não está circunscrito ao que as partes alegaram em qualquer peça do processo. Não há aqui um conflito de interesses a compor, mas um só interesse a regular (o superior interesse da criança), muito embora possa haver um conflito de representações ou opiniões acerca do mesmo interesse.
Como tal, importando apenas considerar o superior interesse da criança, acautelá-lo, defendendo-a e protegendo-a através da otimização da regulação das responsabilidades parentais, o tribunal tem como dever último atender ao que, objetivamente, deve ter-se como relevante para a prossecução daquele desiderato e ao que mais julgar necessário.
O julgador não tem, pois, que se orientar por critérios de legalidade estrita e de rigor processual, devendo adotar, no caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna (art. 987º do CPC), podendo investigar livremente os factos, coligir provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, sendo apenas admitidas as provas que o juiz considerar necessárias. Esta é, aliás, a essência da jurisdição voluntária, tal como resulta do art. 986º do CPC, de onde emana a prevalência do princípio do inquisitório (artº. 411º do CPC), com o reforço dos poderes do juiz, sobre o princípio do dispositivo.
No entanto, mesmo no domínio das providências tutelares cíveis, não deixam de operar os princípios de preclusão e da autorresponsabilidade das partes, em especial no que tange à indicação dos meios probatórios que estas reputem como idóneos à demonstração das afirmações de facto vertidas nas peças processuais que hajam apresentado no processo.
Dentre as regras que balizam o exercício do direito à prova por banda dos progenitores conta-se, no que ao caso releva, a que se mostra plasmada no nº 4 do já citado art. 39º do RGPTC, nos termos da qual “se os pais não chegarem a acordo [sobre o exercício das responsabilidades parentais], o juiz notifica as partes para, em 15 dias, apresentarem alegações ou arrolarem até 10 testemunhas e juntarem documentos”.
Questão que, então, se coloca é a de saber se os progenitores estão limitados a fazer a indicação dos seus meios probatórios apenas no momento processual definido no transcrito inciso.
É certo que a lei (cfr. art. 34º do RGPTC) não exige que no requerimento com que o progenitor dê início ao processo indique, desde logo, a prova, o que se compreende na medida em que, verdadeiramente, essa indicação somente se justifica quando os progenitores, na conferência a que se alude no art. 38º desse mesmo diploma, não cheguem a acordo sobre a regulação do exercício das responsabilidades parentais referentes ao seu filho.
Mas pode daqui concluir-se, como na decisão recorrida, que só no momento a que refere o art. 39.º, n.º 4, é que é permitido às partes apresentarem prova? E que só a prova apresentada nesse momento pode ser considerada e admitida?
Trata-se de questões que obtiveram resposta negativa em diversos arestos que se pronunciaram sobre tal temática[2], em moldes que igualmente sufragamos.
Com efeito, como a este propósito se escreveu no acórdão da Relação de Évora de 21.12.2017, “se o tribunal pode investigar livremente os factos e coligir provas, por que razão não o há-de fazer com as provas oferecidas pelas partes? Há aqui alguma proibição de atender às provas que elas indicam mesmo que o tenham feito num momento processual não adequado?
Cremos que esta proibição não existe e que, chamando também à colação o princípio do aproveitamento dos atos processuais, o juiz deve mesmo atender a todos os meios de prova que as partes indiquem.
Queremos com isto dizer que o momento processual do art.º 39.º, n.º 4, não estabelece uma fenda inultrapassável entre um antes e o depois. O que existe no processo anteriormente àquela fase pode ser aproveitado e não tem que ser qualificado como inexistente.
Se a parte apresentou a sua prova em momento anterior ao devido (não cuidamos aqui da apresentação tardia) (e note-se, até, que também o requerente apresentou prova com o seu requerimento inicial), deve tal requerimento ser inutilizado com o argumento apenas de que não foi apresentada no momento certo? E repare-se que é perfeitamente legal que o juiz ouça mais pessoas do que as indicadas e que venham a ser sugeridas pelas partes; o art.º 986.º, n.º 2 do CPC, permite-o. O que o juiz tem a fazer é aproveitar os elementos fornecidos no processo.”
Trata-se de uma leitura que, quanto a nós, é até imposta pela já assinalada natureza de jurisdição voluntária do presente processo – em que o que essencialmente releva é a tomada de uma posição jurisdicional que acautele e defenda o superior interesse da criança -, não sendo, por isso, aceitável que, em matéria de provas, se faça no RGPTC uma leitura minimalista e mais formalista do que aquela que resulta do regime processual da ação declarativa comum – aqui aplicável por mor do disposto no seu art. 33º.
E porque assim é, nada obstaculizaria que o decisor de 1ª instância admitisse o rol de testemunhas que o progenitor/apelante indicou no requerimento inicial, bem como a alteração e aditamento a esse rol que impetrou mais de vinte dias antes da data agendada para a realização da audiência de julgamento, e, portanto, atempadamente (art. 598º, nº 2 do CPC ex vi do art. 33º do RGPTC).
O recurso merece, pois, provimento.
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V - DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a decisão recorrida, admitindo-se a prova oferecida pelo requerente no requerimento inicial, bem como a alteração e aditamento ao rol de testemunhas que posteriormente apresentou.
Custas pela parte vencida a final, na proporção em que o for.

Porto, 14/12/2022
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Fátima Andrade
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[1] Aprovado pela Lei nº 141/2015, de 8.09.
[2] Cfr., por todos, acórdãos da Relação de Évora de 12.04.2018 (processo nº 1935/10.8TMLSB-C.E1) e de 21.12.2017 (processo nº 1361/16.5T8STR-A.E1), acórdão desta Relação de 10.07.2019 (processo nº 20114/17.7T8PRT-C.P1) e acórdão da Relação de Guimarães de 16.09.2021 (processo nº 3190/17.0T8VCT-C.G1), acessíveis em www.dgsi.pt.