Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1097/13.9PAVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ERNESTO NASCIMENTO
Descritores: LEGÍTIMA DEFESA
MEIO ADEQUADO
RETORSÃO
DISPENSA DE PENA
Nº do Documento: RP201410291097/13.9PAVNG.P1
Data do Acordão: 10/29/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Para que ocorra legitima defesa para além da existência de uma agressão ilícita e actual a interesses juridicamente protegidos, exige-se que a defesa se circunscreva aos meios necessários para fazer cessar a agressão paralisando a actuação do agressor.
II – O meio utilizado compreende não só o instrumento, objecto ou arma mas também o próprio tipo de defesa, de modo a averiguar da sua adequação.
III - Os meios adequados a repelir a agressão se foram mais danosos do que outros vistos como suficientes e eficazes são desnecessários e excluem a justificação do facto;
IV - Existe retorsão se a uma ofensa se responde com outra ofensa semelhante e existe entre ambas uma continuidade temporal e sequencial existindo unindo-as um nexo causal, sendo a segunda resposta imediata e directa da primeira;
V - Em caso de retorsão e sendo de excluir a obrigação de indemnizar a cargo do arguido por culpa do lesado, é de considerar inexigível o requisito da reparação para a dispensa da pena, nos termos do artº 74º CP.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo comum singular 1097/13.9PAVNG do 4.º Juízo Criminal de Vila Nova de Gaia

Relator - Ernesto Nascimento
Adjunto – Artur Oliveira

Acordam, em conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
I. 1. Efectuado o julgamento foi proferida sentença a condenar o arguido B…, como autor imediato e sob a forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelos artigos 14.°/1, 26.° e 143.°/1 C Penal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 8,00.

I. 2. Inconformado com o assim decidido, interpôs os arguido, o presente recurso – pugnando pela revogação de tal condenação e pela sua absolvição, quer no segmento criminal, quer no cível - apresentando aquilo que denomina de conclusões, mas que como tal não podem ser consideradas, pelo menos, na noção legal de resumo das razões do pedido e, que por isso aqui se não transcrevem, apenas se enunciando as questões aí suscitadas e que são, a de saber se,
existem pontos da matéria de facto erradamente julgados;
se verifica qualquer dos vícios previstos no artigo 410.º/2 alíneas b) e c) C P Penal.

I. 3. Respondeu a Magistrada do MP pugnando pela improcedência do recurso, pois que,
ao contrário do que alega o arguido, a versão apresentada pelo demandante encontrou total apoio no depoimento prestado pela testemunha C… que deu conta do que percepcionou, pelo menos, desde o momento em que, alertado pelos gritos acorreu à janela do quarto da sua mãe, encontrando-se noutra divisão da casa, não tendo portanto, visualizado logo o primeiro momento descrito por aquele outro, o que, por si só, não significa que os depoimentos tenham sido incongruentes e contraditórios entre si;
ao contrário da versão aventada pelo arguido/recorrente, a do demandante encontrou, ainda, apoio no boletim clínico junto aos autos e, bem assim, no relatório médico e fotografias juntas;
encontrando-se a versão do demandante apoiada por prova testemunha, documental e pericial e não se encontrando a versão apresentada pelo arguido/recorrente corroborada por qualquer prova, seja ela testemunhal e/ou documental, naturalmente que não podia deixar o Mº Juiz a quo valorar aquela em detrimento desta e, assim, dar como provados os factos constantes da factualidade dada como assente e não provados os factos aí mencionados.
Para rematar que, nenhum relevo assume a circunstância de a matéria de facto ser omissa quanto à apresentação de uma queixa crime pelo arguido contra o aqui demandante pelos mesmos factos constantes da acusação, bem como a informação junta pelos serviços do MP, quanto ao estado do inquérito - onde se refere que se pretende propor ao aqui demandante, ali arguido, a suspensão provisória do processo - pois que tal facto não é sequer objecto destes autos.

II. Subidos os autos a este Tribunal o Exmo. Sr. Procurador da República, emitiu parecer no sentido, igualmente, do não provimento do recurso.

Seguiram-se os vistos legais.

Foram os autos submetidos à conferência.

Cumpre agora apreciar e decidir.

III. Fundamentação

III. 1. Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões da motivação apresentada pelo recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas - a não ser que sejam de conhecimento oficioso - e, que nos recursos se apreciam questões e não razões, bem como, não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, as questões suscitadas, são, a de saber se,

existem pontos da matéria de facto erradamente julgados;

se verifica qualquer dos vícios previstos no artigo 410.º/2 alíneas b) e c) C P Penal.

III. 2. Vejamos, então, para começar, a matéria de facto definida pelo Tribunal recorrido.

Factos provados

No dia 27 de Junho de 2013, pelas 20.30 horas, no exterior do prédio sito na Rua …, …, …, área desta comarca, B…, aqui arguido, e D…, aqui demandante, trocaram algumas palavras, por causa de problemas de vizinhança, após o que, o arguido agarrou o demandante pela t-shirt que este vestia, rasgando-a e, de seguida, desferiu vários socos na cara e no pescoço do demandante, sendo que na mão com que os desferiu tinha uma chave metida entre os dedos.
Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, o demandante sofreu dores e lesões, nomeadamente, na hemiface esquerda, sete escoriações com crosta, a maior das quais com 1,5 cm por 0,20 cm de maiores dimensões, e, no pescoço, na face lateral esquerda do terço médio do pescoço apresenta três escoriações superficiais paralelas, lineares, dirigidas infro-medialmente ocupando área com 2 cm por 4 cm de maiores dimensões, lesões que lhe demandaram 5 (cinco) dias de doença, todos sem afectação da capacidade para o trabalho.
O arguido agiu da forma descrita sabendo e querendo molestar fisicamente o demandante e, assim, atingir a sua integridade física e saúde.
Agiu livre e conscientemente sabendo que a conduta descrita era proibida e punida pela lei penal.
Em consequência da conduta do arguido, o demandante foi no dia 27-06-2013, pelas 22h.17m, assistido no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, tendo tido alta pelas 22h.45m, no que despendeu € 20,60.
Em consequência da conduta do arguido, perdeu uma das lentes de contacto que usava, tendo que adquirir umas novas, no que despendeu € 40,95.
O demandante, que é estudante, sentiu-se magoado, humilhado e desgostoso.
O arguido é militar de profissão, auferindo rendimento líquido mensal não concretamente apurado mas não inferior a € 1.000 (mil euros).
É casado, sendo que a sua mulher está desempregada.
Vivem em casa arrendada, no que despendem mensalmente quantia não concretamente apurada mas não superior a € 350,00.
Não lhe são conhecidos antecedentes criminais.
Factos não provados

o demandante trouxesse vestida uma camisola; que o arguido se tenha dirigido ao demandante dizendo-lhe para não se dirigir a ele nos termos em que o tinha feito durante a tarde;
de seguida, o demandante tenha dito ao arguido "o que queres palhaço?";
o demandante tenha então desferido um soco na face ao arguido;
porque o demandante desse mostras de continuar a agressão, o arguido tenha agido da forma demonstrada para evitar ser novamente agredido.

Porque tal questão releva igualmente para a discussão do recurso, vejamos, também, o que em sede de fundamentação se deixou exarado no que concerne à convicção assim formada pelo Tribunal.

Ficou evidente das declarações prestadas quer pelo arguido quer pelo demandante que os mesmos são vizinhos existindo entre os dois respectivos agregados problemas de vizinhança, sendo que, no referido dia, durante a tarde, teriam ocorrido algumas trocas de palavras entre o arguido e, pelo menos, elementos do agregado familiar do demandante, sendo que, na versão do arguido, o demandante lhe teria dirigido a palavra em termos injuriosos.
O arguido admitiu que, mais tarde no mesmo dia, se teria cruzado no exterior do dito prédio com o demandante, que consigo trazia um cão, altura em que se teria dirigido ao mesmo solicitando-lhe para o mesmo não se dirigir a ele nos termos em que o tinha feito durante a tarde, tendo, de seguida, o demandante novamente se dirigido ao arguido nos mesmos termos em que o tinha feito durante a tarde, tendo desferido então um murro na face ao arguido com a mão direita, altura em que o arguido levanta a sua mão esquerda que foi imediatamente agarrada pelo demandante, altura em que arguido, com mão livre, isto é, a direita, desferiu duas ou três pancadas na cara do demandante, até demandante o largar.
Mais referiu que, efectivamente, tinha na mão direita a chave do prédio, e não do carro, dado que tinha vindo ao exterior apenas trazer o lixo e esperar por um amigo com quem tinha combinado encontrar-se.
O dito amigo, E…, inquirido em sede de audiência de julgamento, efectivamente confirmou, na íntegra a versão do arguido, dando conta do que alegadamente visualizara ao aproximar-se do local. Contudo, igualmente referiu que o arguido teria ficado com uma arranhadela num braço e com um hematoma na face, lesões que igualmente foram visualizadas pela mulher do arguido quando este regressou a casa. Embora esta tenha sido peremptória em referir que o arguido não teria ido, naquele dia, ao hospital, tendo apenas colocado gelo nas lesões, o certo é que acabou por referir que passado alguns dias ter-se-ia deslocado a uma unidade hospitalar, que identificou, e embora referisse que o motivara tal deslocação teria sido o estado de ansiedade em que se encontrava, no dia de tal deslocação era ainda visível na face o dito hematoma.
No entanto, obtida a documentação clínica de tal deslocação à dita unidade hospitalar, não há qualquer referência a qualquer lesão, o que não deixa de ser estranho. Na verdade, pese embora a deslocação tenha sido motivada pela alteração do estado de espírito do arguido, tendo o episódio em causa nestes autos sido também causador de tal alteração, o que seria normal era que o arguido o referisse então ao médico que o assistiu, mostrando-lhe a lesão que, segundo a mulher do arguido, então ainda ostentava.
Ora, o demandante, sem negar que durante a tarde teria ocorrido uma desavença entre o arguido a mãe do demandante, referiu que mais tarde enquanto passeava o cão, a ele se teria dirigido o arguido agarrando o demandante pela t-shirt que este vestia, rasgando-a tendo de seguida o arguido lhe desferido vários socos na cara e no pescoço do demandante, altura em que teria sido novamente agarrado pelo arguido pela t-shirt, tendo-se limitado o demandante a dirigir os braços na direcção do arguido procurando afastá-lo.
A versão do demandante encontrou total apoio no depoimento de C…, morador no local, que deu conta de se ter apercebido de gritos quando se encontrava no seu quarto, altura em que teria acorrido à janela do quatro da sua mãe, tendo visto o arguido dar murros na face do demandante e, após, agarrar-lhe a t-shirt, altura em que teria gritado após o que, o arguido, teria largado o demandante.
É certo que, segundo esta testemunha, a ordem dos comportamentos assumidos pelo arguido é aparentemente diferente da descrita pelo demandante. No entanto, não se poderá ignorar o facto de a testemunha, desde que ouviu os gritos, que certamente coincidiram com o início da agressão, ter percorrido o interior da residência onde se encontrava até alcançar a janela do quarto da sua mãe, não tendo pois presenciado o primeiro momento descrito pelo demandante segundo o qual o arguido lhe teria agarrado na t-shirt, tendo chegado precisamente no momento em que aquele estava a desferir murros no demandante. Na verdade, segundo este, o arguido, em dois momentos distintos lhe teria agarrado na t-shirt, um deles antes de lhe desferir os murros e um outro depois de tal facto.
É certo que esta testemunha não assistiu ao início da contenda. Contudo, o mesmo referiu que antes de ter ouvido os gritos ouvia vozes, pelo que, certamente, existiu uma troca de palavras entre o arguido e o demandante antes da agressão propriamente dita.
A versão apresentada pelo demandante, e secundada pelo depoimento do referido C…, encontrou até apoio no teor do boletim clínico e do relatório médico junto aos autos, bem como nas fotografias juntas, que permitiram apurar as lesões diagnosticadas ao demandante, perfeitamente compatíveis a ter sido causadas por traumatismo contundente.
Por outro lado, o demandante de conta de, durante a agressão, ter perdido uma lente de contacto que usava, o que foi confirmado pelo depoimento da sua mãe que deu conta de aquele, ao chegar a casa, vir sem uma das lentes, bem como de a t-shirt que usava estar rasgada, o que confirmou a versão daquele.
Ora, a versão do demandante encontra apoio não só nos depoimentos prestados como nos elementos documentais e periciais recolhidos, não havendo entre estes meios de prova qualquer contradição.
Por outro lado, a versão do arguido e das testemunhas que a secundaram é contraditória, não sendo corroborada por elementos documentais.
Desta forma, mereceu total credibilidade a versão apresentada pelo demandante.
Não obstante o facto de o arguido ter agredido o demandante tendo na mão o dito objecto, não se apurou, nem isso resultou das declarações do demandante, que o mesmo se tenha munido previamente com tal objecto para o efeito, calhando estar pois o mesmo na sua mão.
Quanto ao despendido pelo demandante quer na aquisição de umas lentes novas quer pela assistência que lhe foi prestada no serviço de urgência a que se dirigiu, relevaram não só o referido boletim clínico, como também os documentos de fls. 82 a 84.
Relativamente às consequências que a situação teve no estado de espírito do próprio demandante, relevaram os depoimentos de F… e G…, amigas da família do demandante, que deram conta do seu estado anímico e do que percepcionaram.
Relativamente às condições pessoais do demandante e do arguido, relevaram as suas declarações.
No que diz respeito aos antecedentes criminais do arguido, relevou o CRC junto aos autos.
Os demais factos dados como provados ficaram a dever-se a insuficiência de prova sobre a matéria em causa.

III. 3. Apreciemos, então, as questões suscitadas pela ordem da sua precedência lógica.

III. 3. 1. As razões do arguido.

Discorda o arguido do facto de se ter julgado como provado que, “agarrou o demandante pela t-shirt que este vestia, rasgando-a e, de seguida, desferiu vários socos na cara e no pescoço do demandante, bem como que o arguido agiu da forma descrita sabendo e querendo molestar fisicamente o demandante e, assim, atingir a sua integridade física e saúde”.
Para a final concluir por que em função da matéria de facto que deveria ter sido dada como provada, necessariamente decorre que agiu a coberto de uma causa de justificação - legítima defesa - pelo que a sua conduta não podia ter sido considerada ilícita, pugnando, assim, pela sua absolvição da prática do crime de ofensa à integridade física simples, bem como, do pedido de indemnização civil.
Na leitura que faz da prova produzida, considera que, foi feita uma deficiente apreciação da prova, pelo facto de se ter dado prevalência à versão apresentada pelo demandante, quando da análise da prova produzida decorre, inversamente, ter sido o arguido primeiramente agredido pelo demandante, vendo-se obrigado a defender-se, de modo a afastar a agressão de que estava a ser vítima.
Inversamente, deveriam ter sido dados como provados os factos consistentes em,
“o arguido se ter dirigido ao demandante dizendo-lhe para não se dirigir a ele nos termos em que o tinha feito durante a tarde;
em, de seguida, o demandante ter dito ao arguido "o que queres palhaço?";
em o demandante ter desferido um soco na face do arguido;
e porque o demandante deu mostras de continuar a agressão, o arguido ter agido da forma demonstrada para evitar ser novamente agredido;
em ter o arguido apresentado queixa-crime, por essa agressão sofrida pelo demandante, a qual deu origem ao inquérito 1016/13.2PIVNG, a correr os seus termos na 3.ª secção dos Serviços do Ministério Público de Vila Nova de Gaia”.

Pretende, então, o arguido que, existe contradição e erro notório na avaliação da prova, quando a sentença recorrida, na sua motivação de facto refere que "a versão do demandante encontra apoio não só nos depoimentos prestados como nos elementos documentais e periciais recolhidos, não havendo entre estes meios de prova qualquer contradição", acrescentando que ''por outro lado, a versão do arguido e das testemunhas que a secundaram é contraditória, não sendo corroborada por elementos documentais";
a prova foi avaliada de forma deficiente, deveria ter levado a outras conclusões no respeitante à matéria de facto, pois que, se constatam contradições relevantes nas declarações do demandante e no depoimento da testemunha C…, não existindo quaisquer contradições nos depoimentos do arguido e das testemunhas E… e H…, sendo ainda este último corroborado pela documentação clínica junta aos autos.
Donde,
ao atribuir-se "total credibilidade à versão apresentada pelo demandante", atentas as contradições e lacunas da prova, designadamente testemunhal, em que se apoiou – defende o arguido – estar assim, evidenciada a existência do vício do erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º/2 alínea c) C P Penal;
ao atribuir-se à documentação médica, um sentido totalmente oposto ao que, realmente revela - que é o suporte total do depoimento da testemunha H… – se evidencia a existência do vicio da contradição insanável da fundamentação, previsto no artigo 410.º/2 alínea b) C P Penal.
Para assim concluir que se deveria ter julgado como provado que o arguido se dirigiu ao demandante dizendo-lhe para não se dirigir a ele nos termos em que o tinha feito durante a tarde; que, de seguida, o demandante disse ao arguido "o que queres palhaço?"; que o demandante desferiu um soco na face do arguido; e porque o demandante deu mostras de continuar a agressão, o arguido agiu da forma demonstrada para evitar ser novamente agredido; que o arguido apresentou queixa-crime, por essa agressão sofrida pelo demandante, a qual deu origem ao inquérito 1016/13.2PIVNG, a correr os seus termos na 3.ª secção dos Serviços do MP de Vila Nova de Gaia, sendo intenção deste propor ao aí arguido a suspensão provisória do processo.
E, desta matéria de facto, deve-se ter como preenchidos os pressupostos da legítima defesa, não podendo a sua conduta ser considerada ilícita, donde a sua absolvição da prática do crime, deve também conduzir à sua absolvição quanto ao pedido cível, pois que necessariamente decorre que o arguido agiu a coberto de uma causa de justificação - legítima defesa - pelo que a sua conduta não podia ter sido considerada ilícita, uma vez que, a sua conduta se apresentou como necessária para repelir a agressão do demandante, tendo adotado a conduta considerada, no momento e segundo as circunstâncias concretas, suficiente, adequada e eficaz para suster a agressão.

III. 3. 2. As questões suscitadas.

III. 3. 2. 1. Os vícios do artigo 410º/2 C P Penal

O recorrente começa por afirmar que existe matéria de facto julgada como provada que em consequência da prova testemunhal, documental e pericial, produzida, merece resposta de sentido diverso, concluindo, no entanto, que se verificam os vícios do erro notório na apreciação da prova e da contradição da fundamentação – o que não pode deixar de impor a sua absolvição.
O recorrente estrutura a sua pretensão – de revogação da decisão recorrida e a sua consequente absolvição - no facto de, na sua óptica, a prova pessoal, documental e pericial não ter sido devidamente apreciada, passando, depois a invocar excertos dela, acabando, no entanto, por concluir que fundamenta a procedência do recurso, na questão da verificação dos vícios do erro notório na apreciação da prova e da contradição da fundamentação.
Assim, se na cogitação do recorrente, está - seguramente pelos termos e forma como, em substância, se exprimiu – a pretensão de impugnar a matéria de facto, isto porque no corpo da motivação, dá integral cumprimento aos requisitos do artigo 412º/3 e 4 C P Penal, especificando os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, bem como as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e analisando, desde logo, excertos, quer, de vários depoimentos das testemunhas, quer, das declarações por si e pelo demandante cível, prestadas (o que está vedado para a apreciação dos vícios do artigo 410º/2 C P Penal, como é sabido), que situa no suporte digital e que transcreve, na parte que lhe interessará – o certo é que nas conclusões vem a enquadrar o fundamento do recurso nos apontados vícios da sentença.
Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão, da 1ª instância, relativa à matéria de facto pode ser modificada - artigo 431º alínea b) C P Penal - quando a prova tiver sido impugnada de acordo com o disposto no artigo 412º/3 do mesmo diploma.
Estamos, então, perante 2 vias que podem conduzir à modificação/alteração do julgamento da matéria de facto.
Labora, no entanto, o recorrente em manifesto e incompreensível equívoco – enquadrando em termos processuais na existência de vícios da decisão, aquilo que em substância trata como erros de julgamento.
Com efeito, pretende ser absolvido, pela consideração da sua versão/interpretação dos factos, fazendo apelo a determinados elementos de prova, daqui defendendo estarmos perante o vício do erro notório na apreciação da prova e da contradição da fundamentação.
Se no caso do artigo 412º C P Penal - impugnação da matéria de facto – estamos perante erros de julgamento, no caso dos vícios do artigo 410º/2 C P Penal estamos perante vícios da decisão.
Qualquer das situações referidas no artigo 410º/2 C P Penal, traduzem-se, sobretudo em deficiências na construção e estruturação da decisão e ou dos seus fundamentos, maxime na sua perspectiva interna, não sendo por isso o domínio adequado para discutir os diversos sentidos a conferir à prova.
Qualquer um dos vícios previstos no n.º 2 do referido artigo 410º C P Penal, é inerente ao silogismo da decisão e apenas dela pode ser apurado, nos termos do artigo 410º/2 C P Penal - não sendo possível o recurso a outros elementos que não o texto da decisão, para sua afirmação - ainda que conjugado com as regras da experiência, sendo a consequência lógica e imediata, da sua existência, salvo o caso de ser possível conhecer da causa, o reenvio do processo, artigo 426º C P Penal.
Na sequência lógica destes pressupostos, a sua emergência, como resulta expressamente referido no artigo 410º/2 C P Penal, terá que ser detectada do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum.
Em sede de apreciação dos vícios do artigo 410º C P Penal, não está em causa a possibilidade de se discutir a bondade do que se considerou provado ou não provado, a maior ou menor abundância de prova para sustentar um facto.
Qualquer dos vícios do artigo 410º/2 C P Penal, pressupõe uma outra evidência e a argumentação do recorrente gira, então, em volta de uma melhor avaliação, ponderação e, quiçá, interpretação de vários segmentos da prova, desde logo, pessoal produzida, donde o recorrente estrutura a existência daqueles apontados vícios, não numa análise da decisão na sua componente interna, de racionalidade, de lógica e de coerência das diversas asserções dadas como provadas, mas antes, numa perspectiva de expressar o seu inconformismo com o resultado do julgamento da matéria de facto, que lhe foi desfavorável.
Os vícios do artigo 410º/2 C P Penal não podem ser confundidos com uma suposta insuficiência dos meios de prova para a decisão tomada em sede de matéria de facto, nem pode emergir da mera divergência entre a convicção pessoal da recorrente sobre a prova produzida em julgamento e a convicção que o tribunal firmou sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inserto no artigo 127º C P Penal - aqui poderá haver erro de julgamento, sindicável, nos termos definidos no artigo 412º C P Penal.
A valoração da prova em sentido diverso - fora o caso de erro notório - ao pugnado pelo recorrente, merece tratamento em sede erro de julgamento, nos termos do artigo 412º C P Penal, através do controlo do erro na apreciação das provas (sobre a sua admissibilidade e valoração dos meios de prova) e a consequência imediata da sua procedência, é a modificação da matéria de facto, artigo 431º C P Penal.
Cremos ser evidente que a forma como o recorrente pretende obter a modificação do julgado, está longe de ser modelar, pois que trata questões atinentes à impugnação da matéria de facto, não em sede de erro de julgamento, seja no âmbito do artigo 412º C P Penal, mas antes em sede de vício da decisão, seja no âmbito do artigo 410º C P Penal, que se reporta, de resto, a vícios, do conhecimento oficioso.
Cremos que erradamente.
Andou, por isso mal, ao dar a veste processual que deu, a esta sua, pretensão de absolvição, desde logo, com base na sua própria, valoração e apreciação sobre a prova produzida, de forma diversa, oposta, daquela que foi feita pela entidade competente, o tribunal.
Todas as invocações feitas no sentido da existência dos vícios do erro notório e da contradição, feitas pelo recorrente laboram em manifesto erro e confusão de conceitos, dado que a sua existência vem estruturada tão só, como corolário da discordância que patenteia com a forma como foi feita a valoração da prova na decisão recorrida.
Assim, perante este manifesto erro de enfoque feito pela recorrente, ao qualificar como vícios do artigo 410º/2 C P Penal, que a existirem constituiriam vícios da decisão, pretensão esta, estruturada no facto de o tribunal a quo não ter valorado, na sua perspectiva, correctamente a prova produzida, de natureza pessoal, documental e pericial o que, a ocorrer, constituiria erro de julgamento, importa, de qualquer modo, verificar se se verifica algum dos vícios do artigo 410.º/2 C P Penal, quer, os invocados, quer o não invocado, pois que, como é sabido, todos eles são de conhecimento oficioso.
E os invocados quer, pelas razões apontadas quer, por outras que resultem, naturalmente, da mera leitura da decisão, ainda que temperada pelas regras da experiência comum, como a própria norma exige.

Aproximação ao caso concreto.

Como consta da decisão recorrida, “o arguido apresentou contestação, alegando, em resumo, que agiu apenas para afastar a agressão que lhe estava a ser desferida pelo demandante, tendo arrolado testemunhas”.
No entanto, veio-se a decidir que, “resulta da matéria provada que o arguido assumiu uma conduta que é, atendendo ao exposto, causa adequada a provocar lesões nas zonas atingidas no demandante, pelo que o arguido, ao agir da forma descrita, materializou o risco de produzir uma lesão na integridade física do demandante.
Assim, mostra-se preenchido o tipo objectivo do crime de ofensa à integridade física simples, uma vez que foi pelo arguido praticada conduta adequada a causar as referidas lesões no corpo do demandante, sendo pois tal resultado objectivamente imputável ao comportamento adoptado pelo arguido.
Por outro lado, segundo resulta da matéria de facto considerada provada, o arguido agiu com conhecimento e vontade de molestar fisicamente o demandante, decidindo-se pela prática dos factos adequados a provocar o referido resultado, agindo com dolo directo (cfr. artigo 14.°/1 C Penal), já que podia e devia ter agido de outro modo. Assim, o seu comportamento é ético-juridicamente censurável.
Deste modo, é imputável à conduta do arguido a prática, em autoria imediata e sob a forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.°/1 C Penal”.

Ocorrerá insuficiência da matéria de facto provada, alínea a), quando da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo de condenação ou de absolvição.
A insuficiência da matéria de facto há-de ser de tal ordem que patenteie a impossibilidade de um correcto juízo subsuntivo entre a materialidade fáctica apurada e a norma penal abstracta chamada à respectiva qualificação, mas apreciada na sua globalidade e não em meros pormenores, divorciados do contexto em que se descreve a sucessão de factos imputados ao agente.
Por contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, alínea b), entende-se a omissão de 2 proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras ou falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo, diferem na quantidade ou na qualidade.
Para os fins desta norma, constitui contradição só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.
Só existe, pois, contradição insanável da fundamentação, quando, de acordo com o raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados.
Já por erro notório na apreciação da prova, alínea c), deve-se entender aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade, que é patente.
Verifica-se erro notório quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que normalmente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, tudo por forma susceptível de ser alcançada pelo cidadão comum minimamente prevenido ou, ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto, positivo ou negativo, contido no texto da decisão recorrida.
Mesmo, não estando, como não estamos, perante um caso de prova vinculada ou tarifada – cujo não atendimento, como é sabido, fora da situação do n.º 2 do artigo 163º C P Penal, constitui um dos exemplos padrão da verificação de tal vício, o certo é que, mesmo perante um elemento de prova sujeito à livre apreciação do Tribunal – como no caso acontece com a apontada prova pessoal (descurando a prova documental e pericial, pelas razões a que adiante voltaremos) - o tribunal errou de forma ostensiva no julgamento da matéria de facto.
Não tanto como pretende o arguido por ter julgado como provado o facto, “o arguido agarrou o demandante pela t-shirt que este vestia, rasgando-a e, de seguida, desferiu vários socos na cara e no pescoço do demandante, bem como que o arguido agiu da forma descrita sabendo e querendo molestar fisicamente o demandante e, assim, atingir a sua integridade física e saúde”.

Mas essencial e decisivamente, por ter julgado como não provado que, o demandante tenha então desferido um soco na face ao arguido;

Senão vejamos.

Desde logo, o início da contenda.
Na motivação e na análise crítica da prova expendeu-se este raciocínio:
- o arguido disse que,
se teria cruzado no exterior do prédio onde habita com o demandante, seu vizinho, que consigo trazia um cão, altura em que se teria dirigido ao mesmo solicitando-lhe para o não se lhe dirigir a ele nos termos em que o tinha feito durante a tarde - ocasião em que teria ocorrido uma troca de palavras com o demandante, devido ao ruído provocado pelo cão deste - tendo de seguida, o demandante "atingiu o demandante na cabeça para se tentar libertar deste, tendo estes acontecimentos decorrido de modo muito rápido;
- a testemunha E… que,
"efectivamente confirmou, na íntegra a versão do arguido, dando conta do que alegadamente visualizara ao aproximar-se do local”, para logo de seguida, no entanto, se sublinhar que, "contudo, igualmente referiu que o arguido teria ficado com uma arranhadela num braço com um hematoma na face”,
- a testemunha H…, esposa do arguido, que,
o arguido regressou a casa, após o episódio com o demandante, apresentando um hematoma na face e um braço arranhado, tendo o arguido decidido não procurar assistência médica, apesar, quer, da sua, quer da insistência da Polícia que, entretanto, havia sido chamada;
tendo apenas colocado gelo nas lesões,
no entanto, apenas alguns dias depois do sucedido o arguido se deslocou ao hospital, não devido ao hematoma, mas porque "tinha o sistema nervoso todo alterado", encontrando-se nessa altura o hematoma já a desaparecer.

Foi, de resto, na sequência deste depoimento que o Tribunal solicitou ao Hospital … o envio do episódio clínico referente ao arguido e respeitante ao dia 3.7.2013, a fim de, nomeadamente, se apurar, se então lhe tinham sido detectadas quaisquer lesões físicas;
- a informação clínica veio confirmar que o arguido se queixava de insónias.
Manifestou, no entanto, o Tribunal estranheza pelo facto de esta documentação clínica não fazer qualquer referência a qualquer lesão – isto muito embora, a deslocação tenha sido motivada pela alteração do estado do espírito do arguido, uma vez que o episódio em causa nos autos teria sido também causador de tal alteração, o que seria normal era que o arguido o referisse, então, ao médico que o assistiu, mostrando-lhe a lesão que, segundo a mulher do arguido, então ainda ostentava".

Ora, como é sabido, desde logo, o tipo legal de ofensa à integridade física não pressupõe para a sua verificação, para o preenchimento da sua previsão, para a verificação dos elementos objectivos, em suma, para a sua consumação, como decidiu o STJ através do AFJ de 18.12.1991, in DR, séria I-A de 8FEV1992, lesão, dor ou incapacidade para o trabalho, por via da agressão – no caso, uma bofetada.
Ainda que para a vítima não resulta qualquer uma destas consequências, “integra o crime, então, do artigo 142.º C Penal82, a agressão voluntária e consciente, cometida à bofetada sobre uma pessoa”.
Se assim é, no momento da consumação ou nos instantes imediatamente posteriores, não será pelo facto de ao fim de 6 dias, a vítima apresentando ou não ainda sinais de ter sido agredido, quando “o hematoma estava a desaparecer”, se deslocar ao Hospital - e da agressão se não queixar – e, deste episódio clínico, o documento que o suporta, com base na sua queixa, não mencionar a existência de qualquer sinal objectivo de agressão – nem queixa subjectiva - que se pode dizer, em absoluto, desde logo, que o paciente não foi agredido.
Não se pode, sequer, ter que os depoimentos das testemunhas E… e H…, que afirmaram a verificação objectiva de sinais, compatíveis, de agressão - hematoma na face e braço arranhado - tenham ficado fragilizados na sequência da omissão de referência de tais sinais, no documento clinico, quando o arguido foi ao hospital ao fim de 6 dias, queixar-se de insónias ou do sistema nervoso alterado.
Isto quando, esta última testemunha, mulher do arguido, ela própria referiu que, o hematoma já estava a desaparecer – como seria suposto e normal acontecer, de resto.
A este propósito refira-se que se o objeto da ida ao hospital não foi a agressão, não foram as consequências ou as sequelas da agressão - tão pouco, o conseguir-se obter prova documental, da ocorrência da agressão - o normal será, por isso mesmo, que do relatório, não conste a verificação de qualquer hematoma – a desaparecer, como disse a mulher do arguido.
Nada de anormal, de bizarro, que seja motivo de espanto ou causa de estranheza ou que tenha a virtualidade de fazer concluir que, então, no silêncio do documento clinico, não houve agressão. Muito menos, quando existe prova pessoal, que o afirma, como veremos.
Se o arguido procurou apoio médico por causa das insónias e por andar com o sistema nervoso alterado, há que considerar como comportamento absolutamente normal, que o clínico não faça referência, nem a queixa subjectiva, nem ao ter constatado, objectivamente, a existência do referido hematoma, que não seroa ostensivo e por isso mesmo nem assumiria gravidade diga de nota, à observação clínica a olho nu.
O que não quer dizer que não existisse, de resto.
Se isto é assim por um lado, por outro temos que,
a testemunha C… não assistiu ao início da contenda – facto, de resto, destacado na decisão recorrida e, no seu depoimento disse que,
se encontrava no seu quarto quando ouviu barulho, tendo-se depois encaminhado para o quarto da sua mãe, de cuja janela viu o arguido e o demandante;
ouviu uns berros - que não conseguiu explicar - mas que lhe pareciam ser "sobre uma mãe";
foi ao quarto da mãe e viu o arguido a desferir dois ou três socos no demandante e a puxar-lhe a camisola, por esta ordem - não sabendo se a rasgou - tendo sido tudo muito rápido;
naquele momento se encontravam outras pessoas nas janelas do prédio;
foi a mãe do demandante quem o procurou para ser testemunha, mas não conseguiu explicar a razão pela qual a mãe do demandante não procurou outras testemunhas, pois que, como afirmou, havia "outras pessoas nas janelas do prédio", que aliás disse não conhecer;
não conseguiu ver se a face do demandante apresentava sangue, pois "à distância a que se encontrava não conseguia ver muita coisa".
Do que disse a testemunha não se pode concluir que o seu depoimento tem a virtualidade de dar apoio à versão do demandante – desde logo de não ter agredido o arguido.
Isto independentemente do facto de ter relatado os factos por ordem cronológica diversa da que o fez o próprio demandante, vg. quanto ao iter puxão da camisola – agressão ou vice-versa (sendo que o puxão pode ter acontecido, desde logo, por mais que uma vez, antes e depois do momento da agressão) – o que não será de relevar, dado o carácter rápido, instantâneo, mesmo e, a própria natureza e dinâmica dos factos e a chegada intempestiva da testemunha à janela, por ter sido alertado por vozes. Não se pode traduzir esta discrepância, esta dissonância, esta não concordância, em sintoma de contradição, muito menos com relevo, pertinência ou insanável.
Da mesma forma em relação ao facto de estarem ou não mais pessoas à janela, de terem assistido aos factos e sobre eles não terem sido chamadas a depôr.
O demandante diz que,
teria ocorrido uma troca de palavras no final dessa tarde entre si próprio, a sua mãe e o arguido, motivadas pelo ruído provocado pelo seu cão, sendo que pelas 20.30 horas, quando veio passear o cão, o arguido após se ter aproximado de si, começou por lhe agarrar a t-shirt, rasgando-a, após o que lhe desferiu 3 socos na face esquerda, tendo-se o demandante apenas tentado proteger e limitando-se a dizer ao arguido que "os problemas não se resolvem assim".
Disse anda, não se ter apercebido de mais ninguém para além da testemunha C….
É certo que no relato que fez, o demandante não referiu qualquer discussão prévia à agressão que sofreu, quando a testemunha C… disse que, ouviu "barulho", que perdurou enquanto se dirigia ao quarto da sua mãe de onde visualizou a agressão.
Tão pouco, se referiu o demandante ao facto de ter ele próprio agredido o arguido. Facto que, no entanto, terá dado origem à apresentação de queixa-crime pelo arguido contra o aqui demandante e á instauração de um processo de natureza criminal, a correr termos nos serviços do MP de Vila Nova de Gaia, com o n.º 1016/13.2PIVNG – onde, em 23.3.2014, constava que se havia manifestado a intenção de se propor ao arguido, aqui demandante, a suspensão provisória do processo – facto que, não foi objeto de qualquer valoração na decisão recorrida.

Não se pode afirmar, salvo erro notório na apreciação da prova, como se faz, desde logo, na decisão recorrida, que,
- a versão do demandante encontrou total apoio no depoimento de C…, para além do facto de ter sido agredido e visto a t-shirt rasgada;
- tão pouco se pode afirmar que os gritos, que a testemunha disse ter ouvido - certamente coincidiram com o início da agressão.
Com efeito, a testemunha chegou precisamente no momento em que o arguido estava a desferir murros no demandante, donde não pode, ter testemunhado, ter assistido, visto – além de ouvido - o que se passou antes – assumidamente não assistiu ao início da contenda e o facto de ouvir vozes e gritos, logo indicia uma troca de palavras azedas e em tom alterado por parte dos contendores, antes de ter constatado a agressão do arguido ao demandante.
- a versão do arguido e das testemunhas que a secundaram é contraditória, não sendo corroborada por elementos documentais.
Atente-se desde logo, que ficou evidente das declarações prestadas quer pelo arguido quer pelo demandante que os mesmos são vizinhos existindo entre os dois respectivos agregados problemas de vizinhança, sendo que, no referido dia, durante a tarde, teriam ambos trocado palavras, sendo que, na versão do arguido, o demandante o teria injuriado.
O arguido admitiu que, mais tarde no mesmo dia, se teria cruzado no exterior do dito prédio com o demandante, que consigo trazia um cão, altura em que se teria dirigido ao mesmo solicitando-lhe para o mesmo não se dirigir a ele nos termos em que o tinha feito durante a tarde, tendo, no entanto, de seguida, o demandante novamente dirigindo-se a si, nos mesmos termos em que o tinha feito durante a tarde.
Daqui surge, na versão do arguido a agressão, através de um murro na sua face, perpetrada pelo demandante com a mão direita, altura em que o arguido levantou a sua mão esquerda que foi imediatamente agarrada pelo demandante, altura em que arguido, com mão livre, isto é, a direita, desferiu duas ou três pancadas na cara do demandante, até este o largar.
Esta versão revela-se absolutamente verosímil e, ademais, as marcas da agressão vieram a ser constadas pelas testemunhas E… e pela mulher do arguido.

Em resumo.
Desta prova e do contexto salientado na decisão recorrida – o desentendimento que vinha da parte da tarde do mesmo dia e a chamada de atenção por parte do arguido para que o demandante o não voltasse mais a tratar como o tratara - não deixa margem para dúvida que se terá forçosamente que afirmar que o demandante também agrediu o arguido e, que terá sido, mesmo, o primeiro a fazê-lo, porventura agastado com a chamada de atenção de que acabava de ser alvo.
Donde, se foi o demandante o primeiro a partir para a violência física, não pode deixar de se ter como verificado – salvo grosseiro e indesculpável, erro notório na apreciação da prova – também, ele afinal, praticou uma agressão física – na pessoa do arguido.
O arguido ter-lhe-á dado o motivo para o fazer e as consequências no corpo ficaram visíveis.
Donde, o apurado processo de julgamento de facto levado a cabo pelo tribunal não tem substrato lógico, não está conforme com as regras da experiência e atenta, patentemente, com a prova produzida, que nem o princípio da livre apreciação justifica.

Donde, e, em suma, cremos, efectivamente, merecer, neste segmento, acolhimento a crítica formulada pelo recorrente contra a lógica interna da decisão.
Assim, ao contrário do decidido na 1ª instância – considera-se existirem elementos de prova seguros e concludentes que permitem afirmar a verificação daquele ponto da matéria de facto tido como não provado – o demandante desferiu um soco na face do arguido”.

Se isto é assim, quanto aos contornos globais e ao contexto da agressão perpetrada pelo arguido, atentemos nas consequências que pretende daqui retirar – que se terá visto obrigado a defender-se, de modo a afastar a agressão de que estava a ser vítima.
Daqui conclui o arguido - não se pode afirmar que com a sua conduta o arguido tenha querido molestar fisicamente o demandante e, pelo contrário, resulta claro, que se limitou a defender-se da prévia agressão perpetrada pelo demandante.
Quanto aos outros pontos da matéria de facto de cujo julgamento o arguido discorda, de se não ter como provado que,
o demandante trouxesse vestida uma camisola; que o arguido se tenha dirigido ao demandante dizendo-lhe para não se dirigir a ele nos termos em que o tinha feito durante a tarde;
de seguida, o demandante tenha dito ao arguido "o que queres palhaço?";
porque o demandante desse mostras de continuar a agressão, o arguido tenha agido da forma demonstrada para evitar ser novamente agredido,
aliado, de resto ao facto de vir julgado como provado que, “(…) o arguido agiu da forma descrita sabendo e querendo molestar fisicamente o demandante e, assim, atingir a sua integridade física e saúde”.
No entanto, a afirmação do julgamento deste segmento, se por um lado, não merece a mesma censura acabada de fazer ao ponto atinente com a agressão de que o arguido foi vítima, em termos de lógica interna da decisão, também, não merece censura a nível de impugnação da matéria de facto, seja a nível de erro de julgamento – como se passará, adiante a tentar demonstrar.

Isto sem que antes se aborde uma outra questão – também ela, enunciada – ainda que, não haja sido processualmente enquadrada ou dela extraída as devidas consequências - pelo arguido e atinente ao facto de ter apresentado queixa contra o demandante e estar o processo crime pendente em fase de inquérito e, então, em vias de decisão.
Assim, cremos que,
o facto de a sentença ter omitido qualquer referência e valoração, à questão de o próprio arguido ter apresentado queixa-crime, por essa suposta agressão, perpetrada contra si, pelo aqui demandante, a qual deu origem ao inquérito 1016/13.2PIVNG, bem como à informação, entretanto, junta aos autos pelos serviços do MP de Vila Nova de Gaia, em 23.3.2014, relativamente ao estado do inquérito, onde se dera conta da intenção de se propor ao arguido - aqui demandante - a suspensão provisória do processo,
é susceptível de integrar a noção do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto.
Com efeito.
Este vício determina a formação de forma incorrecta de um juízo, porque a conclusão não é suportada pelas premissas: a matéria de facto não é a suficiente para fundamentar a solução de direito, correcta, legal e justa.
A insuficiência releva-se em termos quantitativos porque o tribunal não esgotou todos os seus poderes de indagação em matéria de facto.
Na descoberta da verdade material, o tribunal podia e devia ter ido mais além. Não o tendo feito, a decisão formou-se incorrectamente por deficiência da premissa menor. O suprimento da insuficiência faz-se com a prova de factos essenciais, que fazem alterar a decisão recorrida, já na qualificação jurídica os factos, já na espécie e medida concreta da pena ou em ambas as situações, conjuntamente. Se os novos factos não determinarem alguma dessas alterações, não são essenciais - o vício não será importante, podendo ser sanado no tribunal de recurso.
“O termo “decisão” refere-se à decisão justa que devia ter sido proferida, não à decisão recorrida”, cfr. neste sentido o Ac. STJ de 13.5.98, relator Joaquim Dias, in CJ, S, II, 199, que vimos seguindo de perto.

Assim e, em conclusão,
da leitura da decisão e, designadamente dos segmentos dos factos provados e da motivação, caldeada com as regras da experiência comum, pois que a outros elementos não pode o Tribunal socorrer-se,
se não se vislumbra que se patenteie, o apontado,
vício da contradição insanável na fundamentação ou entre esta e a decisão, já que não se descortina a existência de factos ou de afirmações que estejam entre si numa relação de contradição,
já porém, se pode afirmar que se verifica, pelas razões aduzidas, quer,
o vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito, pois que o Tribunal deveria - com utilidade e pertinência, mormente para as operações de escolha e determinação da medida da pena – ter averiguado o estado actual, desde logo, ao, tempo, do inquérito em que os aqui arguido e demandante invertem as posições processuais, por facto ocorridos na mesma ocasião, dos aqui em apreciação, quer,
o vício do erro notório na apreciação da prova, perante o ponto de facto fixado na decisão recorrida, como não provado, que em face da análise crítica da prova, resulta, como manifestamente arbitrário, contraditório e violador das regras da experiência comum.

III. 3. 2. 2. Erros de julgamento.

A questão suscitada pelo recorrente tem subjacente o controlo sobre a admissibilidade e valoração dos meios de prova de que depende em última análise, a fixação dos factos materiais da causa.
No entanto, precedentemente a avançarmos na consideração mais aprofundada desta temática, justifica-se fazer um breve parêntesis aos poderes conferidos às Relações em termos de modificação da matéria de facto apurada em 1.ª instância. É que não se tratam, como à primeira vista poderia resultar de uma leitura mais imediata dos correspondentes preceitos processuais, de poderes que traduzam um conhecimento ilimitado dessa mesma factualidade.
Para isso concorre, essencialmente, a concepção adoptada no nosso ordenamento adjectivo que concebe os recursos como “remédio jurídico” para os vícios de julgamento, ou se se quiser, o seu entendimento como juízos de censura crítica e não como “novos julgamentos”, bem como ainda, as decorrências do princípio da livre apreciação da prova, artigo 127º C P Penal e bem assim o natural privilegiamento que compreensivelmente se há-de conferir à decisão que foi proferida numa relação de maior imediação e proximidade com a sua própria produção.

Havendo versões diferentes e mesmo antagónicas sobre os factos, inexistindo a possibilidade de a final se chegar a uma solução intermédia, pois que ambas as teses em confronto, mutuamente se excluem, apenas uma delas se poderá ter como “verdadeira”, entendendo-se por esta expressão, uma versão processualmente estabelecível por meios probatórios válidos.

Por via de regra, o tribunal de recurso não vai à procura de uma convicção autónoma fundada na sua própria interpretação da prova, mas antes verificar se a factualidade definida na decisão em apreciação se mostra adequadamente ancorada na análise crítica efectuada das provas.
Da mesma maneira, a alteração solicitada em recurso de um qualquer facto só é de proceder, quando de forma clara e convincente o juízo alternativo apresentado sobre a sua definição como provado ou não provado, evidencie o seu melhor fundamento em relação ao apresentado pela instância.

A circunstância de o tribunal, perante duas versões distintas, dar crédito a uma em detrimento da outra, tem a ver com o exercício do princípio da livre apreciação da prova, artigo 127º C P Penal, segundo o qual o julgador deve proceder à avaliação e ponderação dos meios de prova sem vinculação a um quadro pré-definido de valoração das provas, sujeito apenas às regras da experiência comum e ao dever de dar explicação concisa das razões da relevância atribuída à cada prova e do percurso racional que levou à decisão tomada.

Se assim é, se o Tribunal da Relação não procede a um segundo julgamento de facto, pois que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância, não pressupõe a reanálise pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzida, mas tão-só o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido mencionados no recurso e das provas, indicadas pelo recorrente, que imponham (e não apenas, sugiram ou permitam) decisão diversa, estamos perante uma reapreciação restrita aos concretos pontos de facto que o mesmo entende incorrectamente julgados e às razões dessa discordância.
Os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância. E já não naqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível).

De resto, a consagração de um efectivo duplo grau de jurisdição em matéria de facto, pode vir a transformar o julgamento na 2ª instância, num jogo de palavras vazio do pulsar da vida, da percepção dos sentidos e sentimentos.
Na verdade, não podemos esquecer que, ao apreciar a matéria de facto, o Tribunal da 2ª instância está condicionado pelo facto de não ter com os participantes do processo, aquela relação de proximidade comunicante que lhe permite obter uma percepção própria do material que há-de ter como base da sua decisão.

Apreciemos então, o que afinal se reconduz, a uma diversa valoração do sentido da prova pessoal produzida.
A este propósito convém, então, referir que, nos termos do artigo 127º C P Penal, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
A maior parte das vezes, os recursos, quanto a esta concreta questão, de impugnação da credibilidade dos elementos de prova, demonstram um evidente equívoco - o da pretensão de equivalência entre a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e o exercício, juridicamente ilegítimo, por irrelevante, do que corresponde ao princípio da livre apreciação da prova, exercício, este que, para ser legítimo, logo juridicamente relevante, por imposição do artigo 127º C P Penal, somente ao tribunal, entidade competente, notoriamente, incumbe.
Não pode é, a convicção do recorrente sobrepor-se à do julgador.
“Embora os meios de prova produzidos não estejam sujeitos a qualquer regime de prova legal, mas antes à livre apreciação do tribunal, artigo 127º C P Penal, a verdade é que livre apreciação não significa pura convicção subjectiva, mas sim “convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros. E uma tal convicção existirá quando e só quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável; não se tratará, pois, de uma mera opção voluntarista pela certeza de um facto e contra a dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável ao menos “a posteriori” tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse”. [1]

Apesar do facto de o arguido ter dado integral e cabal cumprimento ao estatuído, a este propósito, no artigo 412.º/3 e 4 C P Penal, o certo é que, da prova por si enunciada como justificando a alteração/modificação do sentido do julgado, ié. dos excertos concretos da prova, pessoal que invoca – a de outro género não pode aqui valer, por não ter assumida e manifestamente tal virtualidade - não resulta que o arguido haja actuado, tão só, com a intenção de se defender da agressão do demandante e que não o tivesse querido, também, ele, afinal, ofender, o demandante, no corpo e na saúde.
Isto é não invoca o arguido sequer, porventura por não ter sido por ninguém, dito, nem por si, de forma segura e convincente – tal que nem aqui invoca o que a tal propósito possa, ele próprio, ter dito em audiência - qualquer elemento de prova de que resulte, sequer a verbalização, de ter actuado, tão só para se defender e sem intenção de ofender o demandante.
Donde, se, como é certo,
a convicção do julgador só pode ser modificada pelo tribunal de recurso quando seja obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova ou, então, quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum;
desde que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, se deve acolher a opção do julgador da 1ª instância,
então, não merece acolhimento, de todo, neste segmento, a crítica que é dirigida ao decidido.
Questão, esta, que entronca, directa e decisivamente, na de Direito, que se abordará, mais adiante, tendo, agora, como definitivamente fixada a matéria de facto, definida na 1.ª instância, com as alterações supra produzidas.

III. 3. 2. 3. A legítima defesa.

Enquanto causa de exclusão da ilicitude, nos termos do n.º 2 do artigo 31º C Penal, dispõe o artigo 32º, que “constitui legitima defesa o facto praticado, como meio necessário, para repelir a actuação actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro”.
Na concretização do princípio constitucional consagrado no artigo 21º da CRP, que estabelece que “todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública” dispõe, por seu lado, o artigo 32º C Penal, que “constitui legitima defesa o facto praticado, como meio necessário, para repelir a actuação actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos [2] do agente ou de terceiro”.
Assim, a verificação de uma situação de legítima defesa leva a que o facto típico não seja punível, porque a sua ilicitude é excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade, artigos 31º/1 e 2 alínea a) e 32º C Penal.
A legítima defesa apresenta-se como uma causa de exclusão da antijuridicidade do facto, tendo por base uma prevalência que à ordem jurídica cumpre dar ao justo sobre o injusto, à defesa do direito contra a sua agressão, ao princípio de que o direito não deve nunca recuar ou ceder perante a ilicitude.
Constitui legítima defesa, nos termos do artigo 32º C Penal, o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão ilícita ou antijurídica, enquanto ameaça de lesão de interesses ou valores, não pré-ordenada – ou seja, com o fito de, sob o manto da tutela do direito, obter a exclusão da ilicitude de facto integrante de crime – actual, no sentido de, tendo-se iniciado a execução, não se ter verificado ainda a consumação, e necessária, ou seja, quando o agente, nas circunstâncias do caso, se limite a usar o meio de defesa adequado – menos gravoso, por a todo o direito corresponderem “limites imanentes”, a sustar o resultado iminente, cfr. Prof. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, 45 e 59.
São vários os requisitos, desde logo, no plano objectivo, que condicionam a justificação do facto por legítima defesa:
a existência de uma agressão ilícita e actual a interesses juridicamente protegidos [3]
a defesa deve circunscrever-se aos meios necessários para fazer cessar a agressão paralisando a actuação do agressor.[4]
Por sua vez, no plano subjectivo, vem-se suscitando a questão de saber se, para além do conhecimento da situação de legítima defesa, é ainda de exigir no defendente um animus defendendi, ou seja, uma actuação com vontade de defender o bem jurídico ameaçado pela agressão. [5] [6]
Destinando-se a legítima defesa apenas a impedir ou repelir a agressão, compreende-se e exige-se que o defendente só utilize o meio considerado, no momento e segundo as circunstâncias concretas, suficiente para suster a agressão.
Como refere Maia Gonçalves, in C Penal anotado, 167, “não pode porém, ser imposto ao agredido defendente o uso de meios desonrosos, v.g. a fuga, quando sejam meio adequado para evitar a agressão, tanto mais que isso precludiria também a função de prevenção geral da legítima defesa”.
Assim entende, também, a doutrina autorizada, cfr. Direito Penal do Prof. Figueiredo Dias, Tomo I, 396-397.
Por meio utilizado deve entender-se não só o instrumento, objecto ou arma, mas também o próprio tipo de defesa. Por isso, para se averiguar da adequação do meio de defesa, deve ter-se em consideração as circunstâncias concretas de cada caso (designadamente o bem ou interesse agredido, o tipo e intensidade da agressão, a perigosidade do agressor e o seu modo de actuar, a capacidade física do agressor, a capacidade física do agredido e os meios de defesa disponíveis). Trata-se de um juízo objectivo, segundo o exame das circunstâncias concretas de cada caso, feito por um homem médio colocado na situação do agredido.
“A necessidade de defesa há-de apurar-se segundo a totalidade das circunstâncias em que ocorre a agressão e, em particular, com base na intensidade daquela, da perigosidade do agressor e da sua forma de agir. Deve ajuizar-se objectivamente e ex ante, na perspectiva de um terceiro prudente colocado na situação do arguido” – cfr. Ac. do STJ de 18.12.1996, Processo 115/96 - 3.ª.
Como se refere, ainda, no Ac. do STJ de 19.7.2006, Processo 1932/06 - 3.ª “o juízo sobre a adequação da defesa e dos meios de defesa, é um juízo objectivo e ex ante, no sentido de que o juiz se terá de colocar na posição que assumiria uma pessoa prudente perante as circunstâncias concretas ocorrentes”.
Meios adequados para impedir a agressão, mas mais danosos (para o agressor) do que aqueles que, sem deixarem de ser adequados (suficientes e eficazes), causariam menores lesões ou prejuízos ao agressor serão considerados desnecessários e, assim, excluirão a justificação do facto praticado pelo agredido.

No caso concreto, temos, como manifesto que os pressupostos da legítima defesa, não se podem ter como verificados, desde logo, em face da materialidade apurada.
Donde, inequívoca e acertadamente consta que o arguido depois de ter sido agredido pelo demandante, por sua vez, retorquiu respondeu, da mesma forma.
Assim, desde logo, perante a objectividade apurada - depois de o demandante lhe ter desferido um soco na face, o arguido, agarrou-o pela t-shirt, rasgando-a e, de seguida, desferiu vários socos na cara e no pescoço daquele – não se pode ter como verificada uma situação de legítima defesa.
Estamos sim, perante uma menos heroica e paciente situação que traduz um tirar desforço, um responder, da mesma moeda.
Sem que esta resposta indicie – como os factos provados disso dão, de reso, devida conta – qualquer intenção, não de agressão, tão só, de paralisar a agressão sendo que o soco já estava dado e não resulta que ouros lhe seguissem, ou, tão pouco, que o arguido, naquele conflito, não pudesse recorrer à força pública.

Improcede, assim, este segmento do recurso, concluindo-se por que a conduta apurada do arguido não é susceptível de traduzir uma situação de legítima defesa.

III. 3. 2. 4. Consequências da verificação dos vícios, quer, da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, quer, do erro notório na apreciação da prova.

Se é certo que, a consequência natural da verificação dos vícios do artigo 410º/2 C P Penal será o reenvio do processo para novo julgamento, tal só acontecerá se não for possível decidir da causa.
Assim, no caso concreto, temos que,
na procedência, ainda que parcial, do invocado vício do erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 431º alínea b) C P Penal, há então que modificar a decisão recorrida, de forma a que:
passe a constar dos factos provados – assim se eliminando do elenco dos factos não provados – o apontado facto, com a seguinte redacção: “o demandante desferiu um soco na face do arguido” – o que passa a ser o facto n.º 0 e que antecede, logica e cronologicamente o que ali consta em primeiro lugar.

Já em relação ao vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, também, aqui pode ser decidido, com o aditamento ao novel ponto 0, o seguinte segmento “(…) o que levou a que o próprio arguido tenha apresentado queixa-crime, a qual deu origem ao inquérito 1016/13.2PIVNG, a correr termos nos serviços do MP de Vila Nova de Gaia”,

Assim.
Dispõe o n.º 3 o artigo 143º C Penal que, “o tribunal pode dispensar de pena quando,
a) tiver havido lesões recíprocas e se não tiver provado qual dos contendores agrediu primeiro ou,
b) o agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor”.

No entanto não basta a verificação de uma qualquer destas situações para ser decretada a dispensa de pena, exige-se ainda e, cumulativamente, a verificação dos requisitos estabelecidos no n.º 1 do artigo 74º C Penal, a saber:
que a ilicitude do facto e a culpa do agente sejam diminutas;
que o dano haja sido reparado;
à dispensa de pena se não oponham razões de prevenção.

A dispensa de pena é um instituto destinado a resolver bagatelas penais, em que se verificam todos os pressupostos da punibilidade mas em que se não justificaria a aplicação de qualquer sanção penal, já que tanto não era exigido pelos fins das penas.
Estamos perante um poder-dever, um poder vinculado que o tribunal deverá aplicar sempre que se verifiquem os pressupostos formais e estiverem já realizados os fins das penas.
O instituto da dispensa da pena dever ser assim dirigido à realização da justiça, ou seja, à protecção dos bens jurídicos que foram violados e à reintegração do agente na sociedade – afinal as finalidades das penas, cfr. artigo 40º/1 C Penal.

Na decisão recorrida não se aplicou – nem podia, em face dos factos provados - a dispensa da pena.
Dispensa de pena, que no entanto, estaria, expressa e assumidamente, já na mente do titular do inquérito, originado no que se pode ter como contra-queixa do arguido à aqui apresentada pelo demandante.
Se não há dúvida que a actuação do aqui arguido surge como resposta imediata à actuação da mesma natureza do aqui demandante, verificando-se assim que o arguido agiu em retorsão ao comportamento prévio e ilícito do ofendido, também ele subsumível à prática de mesmo ilícito criminal.
Retorsão, que como se sabe, traduz um quadro em que na sequência de uma ofensa se responde com uma outra afronta semelhante. O que implica que deve existir uma clara correspondência entre ambas e uma relação de continuidade entre uma e outra. Se a correspondência da ofensa não significa que tenha de existir uma identidade nos actos típicos ofensivos, mas apenas que exista reciprocidade ofensiva, já a a continuidade há-de deixar transparecer a existência de uma proximidade temporal e consequencial, traduzindo um nexo de causalidade, em que a segunda ofensa ripostada surge na sequência imediata e directa da primeira que foram dirigidas pelo respectivo opositor.
Ora foi isso precisamente o que se passou: o arguido ripostou ofensivamente a uma ofensa prévia por parte do ofendido.
Está assim verificado o requisito específico para a dispensa da pena.
Vejamos, porém, se também ocorrem os requisitos gerais, enunciados nas três alíneas do artigo 74º/1 C Penal.

Cremos não oferecer grande dúvida que, quer a ilicitude do facto, quer a culpa do agente são diminutas.
Atente-se que,
o arguido rasgou a t-shirt do ofendido;
desferiu vários socos na cara e no pescoço deste;
em consequência directa e necessária da conduta do arguido, o demandante sofreu dores e lesões, nomeadamente, na hemiface esquerda, sete escoriações com crosta, a maior das quais com 1,5 cm por 0,20 cm de maiores dimensões, e, no pescoço, na face lateral esquerda do terço médio do pescoço apresenta três escoriações superficiais paralelas, lineares, dirigidas infro-medialmente ocupando área com 2 cm por 4 cm de maiores dimensões, lesões que lhe demandaram 5 (cinco) dias de doença, todos sem afectação da capacidade para o trabalho;
em consequência da conduta do arguido, o demandante foi assistido no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, no que despendeu € 20,60;
em consequência da conduta do arguido, perdeu uma das lentes de contacto que usava, tendo que adquirir umas novas, no que despendeu € 40,95.

Também cremos não oferecer grande resistência a consideração de que quer a prevenção geral, quer a especial, no caso não impedem a dispensa de pena.
O arguido não tem antecedentes criminais e está social, profissional e familiarmente integrado.
Não será pelo simples razão de estarmos perante o crime que porventura em maior número de vezes ocupa os tribunais nacionais que se pode fazer valer o entendimento de que a comunidade exige para a manutenção da confiança na validade da norma jurídica violada, a aplicação de uma pena, quando a situação, se traduz – recorde-se - num acto de pura retorsão

Quanto à questão da reparação do dano.
Esta questão remete-nos para a da existência da obrigação de indemnizar definida no C Civil, por remissão do artigo 129º C Penal.
A obrigação de indemnização, como é sabido tem uma função essencialmente reparadora e subsidiariamente sancionatória ou preventiva em virtude de uma conduta ilícita causadora de danos.
Se assim é, não se justifica plenamente essa função reparadora e muito menos preventiva quando tenha havido igualmente culpa do lesado. Aqui a tutela do direito fica afastada ou então atenuada, porquanto se estaria a proteger situações igualmente ilícitas, quando o Direito tem sempre uma inexorável dimensão de validade e de correcção. E tanto mais isso sucede quando a responsabilidade do lesado for semelhante e estiver na origem do desencadear da acção do lesante.
Para o efeito, dispõe o artigo 570º/1 C Civil, que “quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”.
Assim, se o instituto da dispensa da pena estiver dependente do requisito geral de reparação e por força do princípio constitucional da intervenção mínima do direito penal, bem como das finalidades legais das penas, deve o tribunal aferir se na sequência de uma conduta criminalmente ilícita que surgiu como uma retorsão de uma mesma conduta criminalmente ilícita, se constituiu a obrigação legal de indemnizar ou se esta deverá ser excluída por culpa do lesado.
No caso concreto, não temos qualquer dúvida em concluir que foi a conduta do ofendido que despoletou o acto agressivo do arguido.
Nesta conformidade, perante a natureza, a sede e a diminuta gravidade das lesões sofridas pelo demandante, em acto de resposta do arguido, justifica-se plenamente que os reais danos por aquele sofridos não mereçam qualquer tipo de tutela cível, devendo, por isso, ser excluída a obrigação de o arguido o indemnizar.

Se assim é no caso concreto, se na sequência de uma situação de retorsão, se entende ser de arredar, em termos puramente civis, qualquer obrigação de o lesante em indemnizar o lesado, também, “et pour cause”, não existirá, por parte do mesmo, nenhuma obrigação de efectuar a reparação do dano, no âmbito do instituto da dispensa de pena. [7]

Donde a conclusão que perante toda esta materialidade que se não pode deixar de ter como provada, se verificam os requisitos de que depende a dispensa de pena ao arguido.

IV. DISPOSITIVO

Nestes termos e com os fundamentos expostos, acorda-se, pois, em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido B…, em função do que,

1. na sequência da verificação dos vício do erro notório na apreciação da prova e da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, se altera a matéria de facto, procedendo-se ao aditamento ao elenco dos factos provados, aí passando a constar – assim se eliminando do elenco dos factos não provados – com o n.º 0 - a anteceder o primeiro dos factos julgados como provados - com a seguinte redacção: “o demandante desferiu um soco na face do arguido, o que levou a que o próprio arguido tenha apresentado queixa-crime, a qual deu origem ao inquérito 1016/13.2PIVNG, a correr termos nos serviços do MP de Vila Nova de Gaia”;

2. se dispensa o arguido de pena.

Sem tributação.

Consigna-se, nos termos do artigo 94º/2 C P Penal, que o antecedente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo Relator, o 1º signatário.

Porto, 2014.outubro.29
Ernesto Nascimento
Artur Oliveira
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[1] Cfr. Prof. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 125.
[2] Independentemente das dúvidas que possam existir sobre a questão de saber que bens ou interesses estritamente individuais é que se devem considerar incluídos no direito de legítima defesa, todos concordam que ali se incluem a vida, a integridade física, a saúde, a liberdade, o domicílio e o património (neste sentido, cf. Taipa de Carvalho, A legítima defesa, 1995, pág. 318).
[3] A agressão é actual quando é imediatamente iminente, quando está a acontecer ou quando ainda prossegue, ou seja, em momentos em que a defesa ainda pode ter êxito. Terminada a agressão, falta o requisito da actualidade e fica afastada a admissibilidade da legítima defesa.
[4] A necessidade ou racionalidade do meio exigem a impossibilidade de recurso à força pública, a adequação e idoneidade da conduta, atentas as circunstâncias do caso, para suster a agressão e a opção, face às várias condutas possíveis, adequadas e idóneas, pela menos danosa para o agressor.
[5] Ainda recentemente se decidiu no Ac STJ de 30-11-2011 no processo 278/10.1JABRG.S1 – 5ª secção, que “segundo a doutrina hoje dominante para que a acção esteja justificada o defendente tem de actuar com conhecimento da situação de legítima defesa, mas não é necessário que se verifique uma vontade de defesa no sentido do sujeito estar motivado pelo seu interesse na defesa. Nem seria aceitável fazer depender a justificação por legítima defesa de uma atitude puramente interna do defendente insusceptível de prova directa e objectiva”.
[6] Por isso, desde logo, se um dos elementos constitutivos da legítima defesa é a circunstância de o agente ter praticado o facto para repelir a agressão actual e ilícita de que está a ser sujeito passivo - seja, que tenha agido com o intuito de defesa - não se verifica aquela causa de exclusão da ilicitude quando o tribunal dá como provado que o arguido agiu com o intuito de tirar a vida ou de ofender corporalmente o ofendido.
[7] Cfr. neste sentido, a propósito de um crime de injúria o Ac. deste Tribunal de 18JAN2012