Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | ISABEL FERREIRA | ||
| Descritores: | REQUISITOS DE IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO RESPONSABILIDADE CIVIL POR INCÊNDIO PRESUNÇÃO DE CULPA | ||
| Nº do Documento: | RP20240418962/20.1T8PVZ.P1 | ||
| Data do Acordão: | 04/18/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I – A transcrição, pela recorrente, do depoimento testemunhal em que baseia a impugnação da matéria de facto, assinalando a negrito algumas partes, percebendo-se que essas partes correspondem aos excertos que fundamentam a sua pretensão de alteração da matéria de facto, cumpre com o ónus de indicação previsto na alínea a) do nº 2 do art. 640º do Código de Processo Civil. II – Ocorrendo um incêndio com origem no interior de imóvel, desconhecendo-se apenas o facto concreto que esteve na origem de tal deflagração, é insuficiente para ilidir a presunção de culpa prevista no nº 1 do art. 493º do Código Civil a demonstração de que, à data do acidente, as instalações continham sistema de detecção de incêndios (alarme), extintores de incêndios em funcionamento e câmaras de vigilância (que, aliás, não permitiam visualizar toda a área do estabelecimento). | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo nº 962/20.1T8PVZ.P1 (Comarca do Porto – Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 6) Relatora: Isabel Rebelo Ferreira 1º Adjunto: Paulo Duarte Teixeira 2º Adjunto: Paulo Dias da Silva * Acordam no Tribunal da Relação do Porto:I – AA e mulher, BB, intentaram, no Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, acção declarativa, com processo comum, contra “A..., Unipessoal, Lda.”, “Banco 1..., C.R.L.” e “B... – Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A.”, pedindo a condenação solidária das RR. a pagar-lhes a quantia de € 54.090,13, a título de danos patrimoniais, e o montante de € 40.000,00, a título de danos não patrimoniais na proporção de metade a cada um dos AA., acrescida de juros de mora desde a citação, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento. Alegaram para tal que, no dia 5 de Junho de 2017, deflagrou um incêndio no espaço onde funciona o estabelecimento comercial da 1ª R., situado na cave do edifício constituído em propriedade horizontal onde também se localiza a fracção autónoma de que os AA. são proprietários e que se destina à habitação do seu agregado familiar, do qual resultaram diversos danos, pelos quais são responsáveis, não apenas a sociedade exploradora do estabelecimento, que ocupa três fracções autónomas do edifício, actualmente unidas entre si, sendo uma delas de sua propriedade (a fracção C), mas também a 2ª R., enquanto proprietária das outras duas fracções autónomas (A e B), por ela dadas em locação financeira à 1ª R., e a 3ª R., mercê do contrato de seguro de responsabilidade civil que celebrou com a 1ª R.. A 1ª R. contestou, impugnando os factos alegados pelos AA. como fundamento da acção. A 2ª R. contestou, invocando a sua ilegitimidade substantiva passiva e impugnando os factos alegados pelos AA. como fundamento da acção. Também a 3ª R. contestou, invocando a sua ilegitimidade para ser demandada na presente acção, por estar em causa seguro facultativo e inexistir o direito dos AA. de a accionarem directamente, impugnando os factos alegados pelos AA. como fundamento da acção e alegando que o incêndio foi propositadamente ateado por um terceiro em relação à 1ª R., a qual cumpriu todos os requisitos legais e de segurança, o que a exime de qualquer responsabilidade na ocorrência do incêndio. Os AA. responderam, defendendo não se verificarem as excepções invocadas pelas RR.. Foi dispensada a realização de audiência prévia, foi elaborado despacho saneador, onde se julgou procedente a excepção de ilegitimidade da 3ª R. e se absolveu a mesma da instância (decisão confirmada por Acórdão deste Tribunal da Relação de 25/01/2022), e onde se considerou que os autos permitiam o imediato conhecimento do mérito da causa quanto à 2ª R., decidindo-se julgar a acção improcedente nesta parte e absolver esta R. do pedido, fixou-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova. Na sequência da absolvição da instância da 3ª R., a 1ª R. requereu a intervenção acessória provocada daquela, invocando direito de regresso sobre a mesma, por força do contrato de seguro celebrado, o que foi admitido, sem oposição, por despacho de 07/07/2021. A agora interveniente acessória veio apresentar contestação, alegando que o incêndio foi propositadamente ateado por um terceiro em relação à 1ª R., a qual cumpriu todos os requisitos legais e de segurança, bem como cumpriu com o dever de vigilância, não podendo fazer mais do que fez para evitar o deflagrar e o alastramento do incêndio, o que a exime de qualquer responsabilidade na ocorrência deste. Em consequência deste articulado foram aditados novos tema da prova. A A. BB apresentou, entretanto, requerimento de desistência do pedido. Porque o A. AA não aderiu a tal requerimento, e por se julgar verificada uma situação de litisconsórcio necessário em relação ao pedido de indemnização por danos patrimoniais, apenas foi considerada a desistência no que concerne aos danos não patrimoniais peticionados pela Autora, sendo a mesma homologada nesta parte, com a consequente extinção do direito que aquela pretendia fazer valer quanto a tais danos. Procedeu-se seguidamente a julgamento. Após, foi proferida sentença, na qual se decidiu julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenar a 1ª R. “a pagar a ambos os Autores, a título de indemnização por danos patrimoniais”, a quantia de € 40.864,68, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento, à taxa de legal anual de 4%, e “a pagar ao aqui Autor, a título de compensação por danos não patrimoniais”, a quantia de € 17.500,00, acrescida de juros de mora desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento, à taxa legal anual de 4%, absolvendo-se a mesma do restante pedido. De tal sentença veio a 1ª R. interpor recurso, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem: «1ª O recurso visa impugnar a matéria de facto e de direito identificada e com interesse para o mesmo; 2ª A decisão em crise peca por manifesta incorreção e erro na apreciação da prova produzida em julgamento, face aos documentos constantes do processo e ao depoimento da testemunha indicada na transcrição junta; 3ª Na verdade, com interesse para o recurso, o Tribunal deu como não provados factos que deveria ter dado como provados, conforme resulta das supra alegações e para onde se remete e aqui se dá por reproduzido por mera economia processual. 4ª. Em face disso, mas também face à prova que consta do processo - relatório da Polícia Judiciária de fls.… e depoimento da testemunha CC (inspetor da polícia judiciária), 5ª. Sendo ainda certo que, os factos que foram dados como não provados e deveriam ser dados por provados, contradizem os factos dados como provados, pelo que outra conclusão não se pode retirar que não seja a de os factos ora elencados – com interesse para este recurso – deviam ter sido dados como provados. 6ª. Contradição especificamente verificada atentos os factos provados e não provados. 7ª. Impugnando-se nesta parte aqueles factos dados por não provados. 8ª. E por isso se pode dizer que, o incêndio dos autos teve origem: f) num ato criminoso; g) propositadamente deflagrado; h) o fogo foi ateado propositadamente; i) que todos os extintores estavam em bom estado de conservação e funcionamento; j) que em todo o espaço da loja não existiam materiais ou substâncias que pudessem reagir entre si resultando em reacção química de autocombustão. 9ª. Daí se impugnar e nesta parte os factos dados (os provados e os não provados) melhor descritos nas supra alegações. 10ª. Com base no depoimento do citado inspetor da Polícia Judiciária, a origem e a deflagração do incêndio não coube ou teve participação ou atuação de pessoa que trabalha na loja e ou sequer pudesse ter sido o seu próprio gerente, 11ª. Sendo estranho à experiência comum e ao conhecimento mediano que os bombeiros e viaturas (em grande quantidade) não tivessem sido capazes de apagar e de modo eficaz o incêndio, mesmo com a ideia de que o mesmo assumiu grandes proporções. 12ª. Provado está que na “loja” existiam vários extintores portáteis e sinalética. 13ª. A Recorrente nenhuma responsabilidade teve na deflagração do incêndio, no seu desenvolvimento e consequências, tendo tomado tudo o que lhe era exigível para prevenir e combater um incêndio, tudo como se colhe do depoimento descrito pela testemunha CC. 14ª. A Recorrente face aos factos provados e aos não provados, mas que devem ser dados por provados, como supra se entende, nenhuma responsabilidade tem ou teve. 15ª. Pois atuou de modo a prevenir e combater um incêndio para o qual em nada contribuiu ou sequer permitiu ou facilitou. E, por isso, 16ª. A Recorrente não agiu com culpa ou negligência, porquanto, na produção do evento nem sequer nele participou, antes saiu lesada. 17ª. A Recorrente não praticou qualquer ato para aquela produção, pelo que não se pode falar em ilicitude e consequentemente não existe nexo causal, já que a guarda do “estabelecimento” foi e estava a ser exercida conforme as normas exigíveis para o tipo de estabelecimento e risco… 18ª. Como bem refere a decisão em crise, a lei (artigo 487.º, n.º 1 do C.C.) dispõe que: compete ao lesado provar a culpa do autor da lesão, o que no caso dos autos não existe ou se fez, sendo admissível por outro lado, a (exceção) da presunção de culpa, prevista no artigo 493.º do C.C. - e aqui, a prova para o afastamento da culpa – presumida - cabe àquele sobre quem recai a presunção, que in caso, provado está nos autos, todos os “sinais” factos que praticou, nomeadamente de e para: a) vigilância; b) prevenção; c) manutenção e conservação do imóvel, constituído por três frações autónomas que consubstancia um só estabelecimento comercial, 19ª. Prova que se encontra plasmada e de forma clara e objetiva nos documentos juntos ao processo - relatório da Polícia Judiciária, - como na testemunhal, concretamente no depoimento prestado pela testemunha CC. 20ª. Assim, a Recorrente enquanto proprietária e possuidora dos imóveis dos autos, deixou provados todos os factos e actos praticados conducentes aos comportamentos de e para a vigia, prevenção e manutenção-conservação do espaço do seu comércio (frações) afastando nessa medida aquela exceção de presunção de culpa, 21ª. Estando demonstrado nos autos que a “coisa” à sua guarda e passível de causar danos, efetivamente, estava sujeita a actos de controlo... e vigilância em ordem a proteger a produção de danos – como também para evitar danos, tanto mais que provado está que o incêndio dos autos não resultou de culpa sua – cf. relatório da Polícia Judiciária e depoimento da testemunha, CC. 22ª. Quando assim se não entender, todos os proprietários e possuidores de (coisas) imóveis, respondem sempre e em qualquer circunstância apenas porque são titulares de um direito de propriedade ou de posse – o que não se concebe. 23ª. Estão assim violados os artigos 483.º, 487.º, 493.º do C.C. Termos em que deve o presente recurso ser recebido e a final ser julgado provado e procedente, e em consequência ser revogada a decisão em crise e substituída por outra que absolva a Recorrente, como é aliás de toda a Justiça!». Por requerimento de 05/05/2023, a interveniente acessória veio dar a sua adesão ao recurso interposto pela 1ª R.. O A. AA apresentou contra-alegações, defendendo a inadmissibilidade do recurso quanto à impugnação da matéria de facto, por não terem sido indicadas com exactidão as passagens da gravação em que a recorrente funda a sua discordância com o decidido, pois apesar de elencar várias passagens temporais, “não invoca os excertos em que baseia a sua discordância”, e, no mais, que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida. * Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.*** II - Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são as seguintes as questões a tratar:a) apreciar da admissibilidade do recurso; b) apurar da alteração da matéria de facto conforme propugnado pela recorrente; c) averiguar, com base na pretendida alteração da matéria de facto ou independentemente dela, se a recorrente deve ser absolvida do pedido. ** Vejamos a primeira questão.O recurso pode ter como objecto a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e a reapreciação da prova gravada (cfr. art. 638º, nº 7, e 640º do C.P.C.). Neste caso, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição (nº 1 do art. 640º): a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. No que respeita à alínea b) do nº 1, e de acordo com o previsto na alínea a) do nº 2 da mesma norma, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes. Como se vê, desta norma consta que o recorrente deve indicar as passagens da gravação em que se funda o recurso, mas não se diz onde deve ser feita essa indicação, se na alegação (ou motivação), se nas conclusões. Todavia, sendo a alegação o local onde se enunciam os fundamentos da pretensão do recorrente e as conclusões o local onde se faz a síntese das questões, afigura-se-nos com clareza que a indicação das passagens da gravação dos depoimentos consideradas relevantes pelo recorrente hão-de constar da alegação e não das conclusões. Com efeito, tal indicação constitui o enunciar dos fundamentos da pretensão de alteração da matéria de facto e não a sua síntese. No caso, o recorrido defende que não foram indicadas com exactidão as passagens da gravação em que a recorrente funda a sua discordância com o decidido, pois apesar de elencar várias passagens temporais, “não invoca os excertos em que baseia a sua discordância”. Vista a motivação do recurso, verifica-se que, no que concerne à prova testemunhal, gravada, a recorrente baseia a pretendida alteração da matéria de facto no depoimento da testemunha CC, procedendo à transcrição do seu depoimento na alegação, assinalando a negrito algumas partes desse depoimento. Ora, vista a referida transcrição, percebe-se que as partes assinaladas a negrito correspondem precisamente aos excertos em que a recorrente baseia a sua pretensão de alteração da matéria de facto, embora esta não o diga expressamente. Sendo assim, afigura-se que está cumprido o referido ónus por parte da recorrente. Anote-se que há que ter em conta o princípio da proporcionalidade, não exacerbando os requisitos formais a tal ponto que tal se traduza numa denegação/recusa da reapreciação da matéria de facto, ao arrepio do que foi a intenção do legislador e do que consta claramente da letra da lei (neste sentido, cfr. Ac. do S.T.J. de uniformização de jurisprudência nº 12/2023, de 14/11, D.R. n.º 220/2023, Série I, págs. 44 a 65, e António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, 7ª edição actualizada, págs. 202 a 207). Ademais, verifica-se que a recorrente deu cumprimento às demais exigências referidas, especificando os concretos factos que põe em causa e indicando as razões da sua discordância, bem como a alteração que pretende quanto a tal factualidade. É, portanto, admissível o recurso, não havendo motivo para a sua rejeição, designadamente pelo motivo invocado pelo recorrido. * Passemos à segunda questão.Assente que a recorrente cumpriu com as exigências respeitantes à impugnação da matéria de facto, apreciemos então da alteração pretendida. São os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida (transcrição): «1. Encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos (freguesia ...), o seguinte imóvel: fracção autónoma designada pela letra Y, correspondente a uma habitação no piso 4 (segundo andar) e aparcamento duplo com arrumo no piso menos um (primeira cave, do edifício em propriedade horizontal sito na Rua ... e Rua ..., ...; 2. A aquisição deste imóvel esteve inscrita na mesma Conservatória a favor dos aqui Autores desde 1 de Outubro de 2004 (pela ap. ... de 2004/10/01); 3. Os Autores alienaram este imóvel a DD e EE, através da escritura pública de 28 de Outubro de 2021; 4. A Ré, «A..., Unipessoal, Lda», dedica-se, pelo menos, ao comercio a retalho de decoração, vestuário, bijutaria e toda uma serie de produtos não alimentares, encontrando-se o seu estabelecimento comercial, designado «C...», a funcionar nas frações autónomas designadas de letras “A”, “B” e “C” do mesmo prédio regime de propriedade horizontal já supra identificado e conhecido como edifício ...; 5. Esta Ré é proprietária da fracção autónoma do mesmo edifício designada pela letra “C”, correspondente ao piso zero (segundo cave); 6. E, mercê de contrato de locação financeira que celebrou com a Ré «Banco 2..., Crl» é locatária financeira das fracções A) e B) do mesmo edifício; 7. O referido estabelecimento ocupava praticamente toda a cave do prédio e cerca de uma área de 2200 metros quadrados uma vez que, as frações encontravam-se fisicamente unidas; 8. No dia 5 de junho de 2017, pelas 20h30, no identificado estabelecimento comercial «C...», deflagrou um incendio de grandes dimensões que atingiu toda a área da loja aberta ao público se alastrou às restantes frações do edifício, entre as quais a aludida em 1); 9. Sendo que, só no dia seguinte é que o incêndio se deu como dominado e extinto dias depois; 10. A partir da aquisição da fracção referida em 1), os Autores ali passaram a habitar com a sua família; 11. Em consequência do incêndio, os Autores, assim como demais moradoras do edifício, tiveram que abandonar naquele dia a sua habitação, à pressa trazendo consigo apenas a roupa de corpo e pequenos objetos; 12. Somente após vistoria técnica e dias depois fora dado o acesso aos condóminos para, rapidamente, irem às suas frações tentar retirar mais alguns objetos e, no seu os bombeiros naquele dia ainda resgataram os animais de estimação; 13. A proteção civil, após avaliação estrutural do edifício entendeu existirem danos graves provocados pelas altas temperaturas que colocavam em causa a estabilidade do edifício e consequentemente o regresso dos habitantes ao prédio; 14. A partir daquele dia, os Autores, assim, como os demais moradores, ficaram desalojados; 15. Assim permaneceram até ao dia 13 Maio de 2020; 16. Por força do referido incêndio e, como consequência directa do mesmo, a fração propriedade dos Autores ficou inabitável face ao perigo de derrocada, ficando estes desalojados, tendo sido obrigados a procurar outra habitação; 17. Os Autores tinham a seu cargo dois filhos menores a cargo (13 anos e 15); 18. Os Autores, juntamente com os seus filhos, por não terem capacidade económica para arrendarem outra habitação, viram-se obrigados a ir de emergência para casa da mãe da Autora passando a viver; 19. Assim, os seus filhos a dormir numa pequena sala de estar no chão um e, outro no sofá e os Autores. num pequeno quartinho que não possibilitava colocar outra cama para os filhos; 20. Continuaram a pagar as prestações do empréstimo bancário que haviam contraído para aquisição daquela habitação; 21. Durante o lapso de tempo em que estiveram privados de usar aquela habitação despenderam, para pagamento do correspondente IMI, o montante de € 1.475,45; 22. Durante o período que estiveram alojados em casa da mãe da Autora, tiverem que contribuir para as despesas da casa com um valor mensal de € 250,00; 23. Continuaram a pagar as despesas com o condomínio da fracção que ficaram impedidos de usar por via do incendio e bem assim, a pagar as quotas extras deliberadas em assembleia de condóminos para acorrer às despesas com a reconstrução das partes comuns do edifício, ocasionadas por aquele evento, bem como para segurança privada do mesmo, as quais ascenderam, pelo menos, ao valor de €36.000,00; 24. Ainda tiveram que adquirir roupa para si e para os seus filhos, novos eletrodomésticos e bem assim, outros bens essências que não poderem retirar do seu imóvel mas que eram essenciais para a sua sobrevivência e do seu agregado; 25. O imóvel dos Autores, por via da agua utilizada no incendio, fumo e por não ter sido utilizado durante três anos sofreu danos; 26. Em consequência dos danos provocados pelo incêndio realizaram as seguintes obras no interior da uma habitação: à pavimentação; pintura de paredes e tectos, aquisição de novas lâmpadas e candeeiros; tomadas e fichas; aquisição e mesas e cadeira; de novos eletrodoméstico pois que avariam; duche novo; enrolador de estores novos; chuveiro; caldeira; novos revestimentos; interruptor e espelhos novos; 27. Com tais obras, reparações e aquisições despenderam, pelo menos, o valor de € 3.364,68, para conseguir coloca-la habitável; 28. Os seus filhos eram atletas de alto rendimento ginastas acrobáticos da seleção nacional; 29. Tinham rotinas muito intensas, vidas muito regradas e cuja a disciplina imponha que tivesse um local para descansar bom, que morassem perto do local dos treinos de forma a conseguir conciliar treinos e estudos; 30. Os Autores ficaram tristes, angustiados e revoltados com toda a situação que os afectou; 31. O incêndio deflagrou nas fracções; ocupadas pela loja em causa, tendo a mesma no seu interior muito material de fácil combustão o que permitiu que o mesmo se alastrasse de forma muito rápida, 33. Pelas 20h30m foi acionado o alarme de fogo existente na loja (sistema Automático de Deteção de Incêndios), o qual passou a emitir um sinal sonoro; 34. Assim que se aperceberam do acionamento desse alarme, os funcionários da loja muniram-se de extintores existentes no local, bem como de recipientes com água, e tentaram combater o fogo; 35. Mal deflagrou o acidente, começou a produzir-se e alastrou-se por todo a área da loja, grande quantidade de fumo intenso e denso; 36. Além disso, após o acionamento do alarme sonoro de incêndio, o sistema de iluminação do estabelecimento deixou de funcionar; 37. Os funcionários da loja não foram capazes de prosseguir o combate ao fogo, nem puderam dominá-lo, tendo-se refugiado no exterior da loja; 38. O alerta quanto à deflagração do incêndio foi dado pelos funcionários da 1ª Ré, telefonicamente, às 20h35m; 39. Os Bombeiros ... saíram do Quartel pelas 20h39m e chegaram ao local pelas 20h45m, tendo, de imediato, iniciado o combate às chamas; 40. O local onde deflagrou o incêndio correspondia a uma zona confinada por paredes ou muros de betão, situada num espaço afastado do acesso à loja e de vãos de abertura ao exterior; 41. No local onde deflagrou o incêndio existiam umas prateleiras com materiais de limpeza e plásticos; 42. A partir desse ponto onde deflagrou o incêndio, verificou-se uma progressão do fogo em “V”, desde as prateleiras mais baixas e junto ao chão, atacando as restantes prateleiras, bem como pilares ali existentes; 43. A instalação elétrica existente nas frações “A”, “B” e “C” do prédio não apresentava qualquer colapso ou anomalia, estando as cablagens intactas e sem qualquer fusão; 44. O incêndio em causa não deflagrou, nem ocorreu, por causa de qualquer acidente ou incidente elétrico; 45. Na zona onde deflagrou o incêndio não existia qualquer tomada ou aparelho elétrico, com a exceção das lâmpadas de iluminação, as quais não apresentavam, depois de extinto o fogo, qualquer sinal de colapso ou anomalia; 46. Na zona onde deflagrou o incêndio existia, apenas, um quadro elétrico, o qual se situava na parede oposta àquela onde teve início o fogo; 47. Extinto o fogo e examinado esse quadro elétrico, o mesmo não apresentava qualquer sinal de curto-circuito ou anomalia; 48. Momentos antes da deflagração do fogo, encontravam-se na loja, para além dos funcionários da segurada da Chamada, um jovem e um casal; 49. O jovem referido no item anterior adquiriu umas luvas de plástico; 5[0]. Esse estabelecimento dispunha de vários extintores portáteis e de um alarme de detecção de incêndios que se encontrava em funcionamento; 51. Para combater o incêndio deflagrado na fração “A” do prédio, foi necessária a intervenção de 32 veículos e 94 elementos de 13 corporações de bombeiros de vários concelhos (Gondomar, Vila Nova de Gaia, Matosinhos, Maia, Paços de Ferreira, Porto, Paredes e Trofa); 52. Os Bombeiros só conseguiram dominar o fogo pelas 9h17m do dia 06/06/2017, depois de o terem combatido, de forma ininterrupta, ao longo de 13 horas; 53. E o fogo só foi dado como extinto, após rescaldo e vigilância, pelas 21h10m do dia 09/06/2017, ou seja, quatro dias depois da sua deflagração;». Tendo sido dados como não provados os seguintes factos: «a) A 1ª Ré tinha as saídas de emergência tapadas com artigos, o que levou a que a atuação dos bombeiros fosse difícil e muito dificultada impedindo o seu combate de forma mais ativa; b) O que levou a que o incendio assumisse proporções desastrosas e devastadoras, e não tinha sistema de incêndios/contenção ou extintores que estivessem viáveis para serem utilizados; c) Para além de que tinha os artigos de maior combustão na parte do estabelecimento mais afastada das montras e saídas ou seja, na parte das garagens e sem acesso à rua o que obviamente levou a que o incendio tivesse proliferado de forma rápida e sem qualquer controlo.; d) Durante o período de tempo em que estiveram alojados em casa da mãe da Autora os autores dependeram em prestações do empréstimo para aquisição da sua habitação e com a contribuição para as despesas domésticas aludida em 22), o montante global de € 8750,00; e) Para aquisição dos bens referidos no ponto 24) supra despenderam o valor de €4.500,00; f) O facto de terem ficado sem casa e ter que viver numa casa onde tinham que dormir na sala sem uma cama apropriada fora muito complicada tendo feito com que os dois filhos baixassem o seu rendimento; g) Esta situação levou a que os filhos dos Autores ficassem com pesadelos permanentes pois sonhavam constantemente com as explosões vinda da loja, com a medo que sentiram por não poder ir buscar os animais de estimação; h) Em consequência do acidente, os Autores passaram noites e noites em branco com insónias pois que não sabiam mais o que fazer para fazer face às despesas e tentando que os filhos vivessem normalmente; i) Os Autores passaram a dormir em sobressalto, stress e ansiedade pois que não sabia o que lhes dizer quando lhe perguntavam quando iam para casa; j) Por via do incêndio uma das gatas teve que ser abatida pois ficou em stress não mais recuperando, o que causou muita angustia e tristeza em toda a família; k) Os Autores tiveram que gastar as poucas economias que tinham para adquirir bens que necessitavam para reocupar a casa, o que levou a que ficassem numa de rotura financeira; l) O incêndio ocorrido no dia 05/06/2017 foi propositadamente deflagrado; m) No dia 05/06/2017, pouco antes das 20h30m, pessoa ou pessoas cuja identidade se desconhece e não foi apurada, ingressou(aram) nos prédios onde a «A... Unipessoal, Lda» tinha instalado o seu estabelecimento e, uma vez no interior dessa loja, deslocaram-se até ao fundo da loja, local situado fora do campo visual dos funcionários do estabelecimento; n) Nesse local, essa pessoa ou pessoas cuja identidade se desconhece, de forma voluntária e propositada e na execução de um plano previamente delineado, deflagraram um incêndio; o) Para tanto, usando uma fonte de fogo ou calor desconhecida e matérias que não foi possível apurar, lançaram fogo sobre objetos que se encontravam nesse local., dando origem ao incêndio; p) Os bombeiros iniciaram o combate às chamas 15 minutos após a deflagração do incêndio; q) Cerca de 3 meses antes do incêndio, um tal de FF foi surpreendido na loja enquanto tentava furtar dois casacos; r) Para tanto, o FF removeu o alarme instalado nesses casacos e envergou-os por baixo do vestuário que, então, usava; s) Apesar de o FF ter tentado ausentar-se da loja com esses casacos ocultados, acabou por ser detetado por funcionários do estabelecimento, os quais o intercetaram antes de conseguir sair; t) Confrontado pelos funcionários da Loja, o FF envolveu-se em agressões com aqueles mas acabou por devolver os casacos; u) Posteriormente, à participação policial efectuada em consequência do ocorrido, a mãe do FF tentou um acordo com a sociedade «A... Unipessoal, Lda», que passaria pelo pagamento dos casacos, em troca da desistência da queixa; v) A sociedade «A... Unipessoal, Lda» não aceitou a desistência da queixa, pelo que esta acabou por seguir os seus trâmites normais; w) As luvas de plástico adquiridas pelo cliente supra referido estavam colocadas junto ao ponto de início do incêndio; x) As frações autónomas ocupadas por aquele estabelecimento comercial e suas partes integrantes ou componentes (designadamente, a instalação elétrica), bem como o seu equipamento (designadamente outros aparelhos elétricos e extensões de tomadas) estavam em bom estado de conservação, limpeza e funcionamento; y) As frações e suas partes integrantes ou componentes (designadamente, a instalação elétrica), bem como o seu equipamento (designadamente outros aparelhos elétricos e extensões de tomadas), não apresentavam, nem manifestavam, qualquer anomalia de construção, instalação ou funcionamento; z) Esse equipamento não se apresentava deteriorado, nem se encontravam pressionados, as tomadas e interruptores de eletricidade estavam devidamente colocados nas paredes; aa) Esses equipamentos não se encontravam tapados ou cobertos nem se encontravam em contacto com água ou humidade; bb) Na zona da loja onde deflagrou o incêndio não existia qualquer material inflamável ou auto-inflamável; cc) Nenhum incidente ou anomalia se verificou, em data anterior ou no próprio dia do incêndio, com a instalação elétrica ou equipamento, incluindo qualquer aparelho ou extensão de tomada existente nessas fracções; dd) Nenhuma das características da fração onde o incêndio deflagrou e para as quais se alastrou contribuíram, de modo direto ou indireto, para a ocorrência do mesmo; ee) O estabelecimento comercial pertencente à Ré «A... Unipessoal, Lda» encontrava-se devidamente licenciado pelas autoridades competentes; ff) As três frações onde esse estabelecimento se encontrava instalado dispunha de todos os equipamentos e dispositivos de segurança impostos pelas autoridades competentes e destinados ao combate e prevenção de incêndios; gg) Todos os extintores existentes no local estavam em bom estado de conservação e funcionamento; hh) A totalidade da área da loja era abrangida por um sistema interno de videovigilância, que permitia detetar alguma movimentação suspeita; ii) A zona onde deflagrou o incêndio estava abrangida pelo sistema de videovigilância do estabelecimento; jj) Nas proximidades do estabelecimento existiam diversas bocas de incêndio, ou seja, um dispositivo destinado a fornecer água para o combate a incêndios; kk) Não existiam nas frações que integravam o estabelecimento da 1ª Ré quaisquer materiais inflamáveis ou, pelo menos, autoinflamáveis; ll) No estabelecimento em causa apenas existiam objetos que aí eram comercializados, nenhum deles autoinflamável; mm) Não existiam em todo o espaço da loja materiais ou substâncias que pudessem reagir, entre si resultando em reação química de autocombustão; nn) Na zona do estabelecimento onde deflagrou o incêndio apenas existiam os atingidos referidos em 41) e nenhum outro susceptível de se autoinflamar;». Pretende a recorrente que os factos não provados das alíneas l), m), n), o), x), y), z), aa), bb), cc), dd), ff), gg), hh), ii), kk), ll), mm) e nn) devem ser considerados provados, aduzindo que a sua consideração como não provados contradiz os factos dados como provados e defendendo que essa prova resulta do depoimento da testemunha CC, inspector da Polícia Judiciária – tendo acrescentado na conclusão 4ª a referência também ao relatório da Polícia Judiciária (presumindo-se, à falta de outra indicação, que se trata do relatório final elaborado no âmbito do inquérito crime em que foram investigados os factos dos autos e cuja cópia foi junta pela ora interveniente acessória). Antes de mais, e embora a recorrente não especifique quais os supostos factos provados que contradizem a não prova dos factos que indica, desde já se adianta que não vislumbramos qualquer facto provado que determinasse igualmente a prova de algum dos factos em causa no recurso. Anote-se que o facto provado do ponto 43 não contém em si a materialidade referida nos factos das alíneas x), y), z) e aa), que constitui um mais relativamente ao que foi dado como provado, podendo existir prova desta factualidade e não da factualidade incluída naquelas alíneas. Anote-se ainda que a circunstância de se ter apurado que o estabelecimento dispunha de vários extintores portáteis e de um alarme de detecção de incêndios que se encontrava em funcionamento (ponto 50) não implica necessariamente a prova de que dispunha de todos os equipamentos e dispositivos de segurança impostos pelas autoridades competentes e destinados ao combate e prevenção de incêndios (alínea ff) – sublinhado nosso), pois que não se sabe quais são “todos os equipamentos” que são exigidos pelas autoridades e só este facto poderia permitir a conclusão que encerra o facto da referida alínea. Apreciemos agora os factos impugnados em concreto: 1) Alteração dos factos das alíneas l), m), n) e o) dos factos não provados para provados: Está aqui em causa factualidade respeitante à deflagração propositada e voluntária do incêndio por terceira pessoa que, pouco antes da 20h30, foi à loja e lançou fogo sobre objectos situados no fundo da loja. Como resulta da prova produzida (que analisamos na totalidade, vendo todos os documentos juntos aos autos e ouvindo toda a prova produzida na audiência de julgamento, não só a prova indicada pela recorrente), não existe qualquer elemento que permita concluir, com um mínimo de segurança, que o incêndio foi provocado por intervenção humana (fosse dolosamente, ou por negligência), nada tendo sido visto pelos funcionários da loja, nada se vislumbrando de suspeito no comportamento dos últimos clientes que estiveram na loja na parte que foi captada pelas câmaras de vigilância (cujas gravações não contemplam o local onde se iniciou o incêndio), e cujos fotogramas constam da cópia do inquérito crime junta pela interveniente acessória (com a contestação inicialmente apresentada na qualidade de ré, e repetida na contestação apresentada depois já na qualidade de interveniente), e nada tendo sido encontrado no local, após o incêndio, que servisse para atear o fogo. Apenas a testemunha CC, inspector da Polícia Judiciária que participou na investigação levada a cabo no inquérito crime, aludiu à possibilidade de o incêndio ter sido propositadamente provocado, sendo que essa alusão resulta apenas de uma sua convicção pessoal e não de qualquer indício concreto e objectivo. Com efeito, o que se apurou objectivamente foi apenas que “o incêndio em causa não deflagrou, nem ocorreu, por causa de qualquer acidente ou incidente elétrico”, nada se tendo encontrado na instalação eléctrica, nomeadamente na zona onde deflagrou o incêndio, de que pudesse resultar ter ocorrido algum curto-circuito ou outra anomalia (cfr. pontos 44 a 47). Ora, não se devendo o incêndio à parte eléctrica, tal não significa que só possa dever-se a intervenção humana e dolosa, podendo haver outras explicações para o sucedido. Como se diz na sentença recorrida, “cremos que indícios apontados pela referida testemunhas para concluírem que o incêndio foi intencionalmente provocado por alguém (que se baseiam essencialmente na conclusão de que o incêndio não foi despoletado por qualquer curto circuito ou esteve de alguma forma relacionado com a parte elétrica e no facto, que não podem atestar, de inexistir no local qualquer artigo ou material susceptível de entrar em autocombustão) são insuficientes, para, de forma sustentada, se considerar demonstrada aquela hipótese. Acresce que não obstante a presença de três clientes no interior da loja pouco antes da ocorrência sub iudice, um dos quais, segundo as testemunhas funcionários da loja, se terá deslocado ao interior da loja para adquirir umas luvas de borracha, não se extrai da prova produzida qualquer elemento que permita relacionar qualquer uma das pessoas presentes no local (incluindo os funcionários e a filha do legal representante da proprietária do estabelecimento) [ Por outro lado, sendo verdade, conforme se extrai das peças dos autos de inquérito, ter sido seguida uma “linha de investigação” que procurou estabelecer uma relação de causalidade entre a deflagração do incêndio e um episódio relacionado com uma tentativa de furto ocorrida, tempos antes, naquele estabelecimento (situação que, estranhamente, foi negada pelo le[g]al representante da Ré «A..., Unipessoal, Ldª» no respectivo depoimento de parte), a verdade é que, como reconheceu a testemunha, inspector da Polícia Judiciária, não foi possível estabelecer qualquer relação entre as duas situações”. Efectivamente nada se sabe sobre o que concretamente espoletou o fogo, em que material exacto começou e de que forma, sabendo-se apenas o local onde se iniciou, pelo estado de maior destruição em que se encontrava, como decorre dos depoimentos da testemunha já referida e da testemunha GG, especialista de polícia científica, que colaborou na averiguação do incêndio, tendo ido ao local efectuar reportagem fotográfica e ajudar na procura do ponto de início do incêndio, bem como dos relatórios de inspecção e das fotografias juntos no inquérito crime. Como se disse na sentença, nada se apurou que permitisse relacionar as pessoas presentes naquele momento com o incêndio, fossem os clientes, fossem os funcionários, sendo que nada se pode concluir do facto de o jovem (que se vê nas imagens da videovigilância tratar-se apenas de um adolescente) ter adquirido umas luvas de plástico (que a testemunha HH, filha do legal representante da Ré e funcionária da loja, explicou encontrarem-se “na parte das ferramentas”, ao fundo, no primeiro corredor, sendo certo que o local de início da deflagração do fogo foi na zona dos materiais de limpeza). E também nada se apurou sobre se a deflagração do fogo sucedeu de forma rápida ou de forma lenta, sendo do conhecimento geral que há situações que ficam em combustão lenta até atingirem objectos que intensifiquem a sua propagação, acaso não sejam detectados a tempo. O que no caso nem seria impossível, posto que o local de início do incêndio se situa no interior da loja, ao fundo, aparentemente fora do ângulo de visão dos funcionários que se encontrem na entrada da loja. Ademais, no inquérito foram encontrados indícios de que outra actividade pudesse ter lugar no local, tendo sido encontrados (e apreendidos – auto de apreensão de fls. 71 do inquérito) no escritório “várias cartas de jogo que compõem dois baralhos, que se encontravam em cima de uma mesa de jogo de pano verde” e “um saco em pano beije contendo no seu interior várias peças de um jogo tipo “...”” (a mesa com o pano verde é visível nas fotografias do local) e tendo sido efectuadas pela Polícia Judiciária diligências entre residentes nas imediações, “tendo-se apurado que frequentemente ali se deslocavam pessoas, à noite, e entravam no espaço por um acesso existente no piso superior”, havendo várias “viaturas que ali estacionavam e de onde saiam pessoas para o referido local”, sendo “voz corrente nas imediações de que ali existia uma sala de jogo”, informações “fornecidas por populares que não quiseram de modo algum ser identificados” (conforme consta da cota de fls. 205 do inquérito crime). Não sendo despiciendo pensar que esta deslocação de pessoas à noite ao local pudesse ter interferido com o incêndio (o exemplo mais óbvio poderia ser uma ponta de cigarro inadvertidamente abandonada…). Como quer que seja, ainda que se pudesse aventar a hipótese de ter sido uma actividade humana a originar o fogo, não existe qualquer evidência de que essa actividade tivesse sido dolosa, podendo ter sido negligente, até inadvertidamente, sem a pessoa se dar conta. Note-se que quanto a esta questão da negligência, a testemunha inspector da Polícia Judiciária apenas diz (minuto 20) “a partir do momento que não é acidental, não é negligente, não é natural, é doloso”. Ora em nenhuma parte do seu depoimento a testemunha explica porque é que o incêndio não é ou não pode ser negligente. Simplesmente concluiu que, por não se dever a acidente eléctrico e por ter assumido que ali não havia produtos autocombustíveis, pois que, em seu entender, naquele local havia “basicamente material de apoio à limpeza, ou seja, baldes, vassouras, luvas” (minuto 13, segundo 44 e minuto 14, segundo 29), o incêndio só podia “ter sido de origem dolosa” (minuto 14, segundo 35). Ademais, refira-se ainda que não é certo que se possa concluir que não havia materiais autocombustíveis na loja, como, aliás, se considerou também na sentença recorrida (ao afirmar que as testemunhas investigadoras não podiam atestar o facto de inexistir no local qualquer artigo ou material susceptível de entrar em autocombustão), na medida em que não foram pelas testemunhas referidos em concreto todos os materiais existentes na loja, que a testemunha II, funcionário da loja, referiu no seu depoimento que, no local onde se iniciou o fogo, para além das vassouras, baldes, e outros produtos plásticos domésticos, também havia detergentes, e que a Ré juntou em 15/10/2021 o “inventário dos bens à data anterior do acidente”, documento que constitui uma listagem de 50 páginas e na qual constam muitos produtos inflamáveis e bem assim aerossóis, sprays, perfumes, after-shaves, ambientadores, tintas e colas, cuja composição não se conhece, podendo conter elementos que fossem de combustão espontânea, ou pelo menos de ignição espontânea em contacto com o ar (podendo dar-se o caso de alguma embalagem sofrer uma rotura) – só a título de exemplo, citam-se espuma de poliuretano, têxteis de algodão, velas, tintas para cabelo, latas de tinta em spray, pistola de cola quente, isqueiro de fogão, carvão vegetal, baterias de telemóvel (2+9) … Em suma, a prova produzida não foi suficiente para se concluir que o fogo foi deflagrado voluntária e propositadamente por uma pessoa, não havendo ainda qualquer prova da concreta conduta descrita nas alíneas m), n) e o) dos factos não provados, tendo esta matéria sido correctamente julgada na primeira instância. Não merece, pois, provimento nesta parte a impugnação da matéria de facto. 2) Alteração dos factos das alíneas x), y), z), aa), cc), ff), gg), hh) e ii) dos factos não provados para provados: Vista a prova produzida, nenhuma prova foi feita da realidade destes factos, sendo que a testemunha indicada pela recorrente nada esclarece sobre os mesmos, aliás, no que se refere à videovigilância (als. hh) e ii) dos factos não provados) até resulta o contrário da prova produzida (incluindo o auto de visionamento de registo de imagens junto no inquérito crime), não havendo imagens de todas as zonas da loja, nomeadamente não há imagens do local onde se iniciou o fogo (“numa zona não abrangida pelo alcance das câmaras de vigilância ali instaladas”, como consta na sentença recorrida), valendo ainda aqui, quanto à alínea ff) o que já se disse supra. Portanto, não merece censura a decisão recorrida quando alude à insuficiência da prova a respeito dos “demais factos considerados como não provados”. Não merece, igualmente, provimento nesta parte a impugnação da matéria de facto. 3) Alteração dos factos das alíneas bb), kk), ll), mm) e nn) dos factos não provados para provados: Está aqui basicamente em causa saber se entre os objectos existentes na loja e, nomeadamente na zona onde deflagrou o incêndio, não existiam quaisquer objectos inflamáveis ou autocombustíveis (que será o mesmo que se pretende dizer com “autoinflamáveis”). Como já se disse anteriormente, a testemunha II, funcionário da loja, referiu no seu depoimento que no local onde se iniciou o fogo também havia detergentes e a Ré juntou em 15/10/2021 o “inventário dos bens à data anterior do acidente”, documento que constitui uma listagem de 50 páginas e na qual constam muitos produtos inflamáveis e bem assim aerossóis, sprays, perfumes, after-shaves, ambientadores, tintas e colas, cuja composição não se conhece, podendo conter elementos que fossem de combustão espontânea, ou pelo menos de ignição espontânea em contacto com o ar (podendo dar-se o caso de alguma embalagem sofrer uma rotura). Ou seja, da prova produzida até resulta que efectivamente existiam no local produtos inflamáveis (portanto, provou-se o contrário do que a recorrente pretende incluir nos factos provados – a não existência de produtos inflamáveis) e não resulta com certeza que não existissem produtos autocombustíveis, o que significa que não estão provados os factos em causa. Foram, pois, correctamente considerados como não provados os factos em apreço, não merecendo provimento ainda nesta parte a impugnação da matéria de facto. 4) Alteração da matéria da alínea dd) dos factos não provados para os factos provados: Nesta alínea consta: “Nenhuma das características da fração onde o incêndio deflagrou e para as quais se alastrou contribuíram, de modo direto ou indireto, para a ocorrência do mesmo”. Afigura-se-nos que estamos aqui perante matéria conclusiva, a retirar de factos concretos apurados, e não de matéria de facto, não havendo, pois, que apreciar da sua inclusão nos factos provados. E de todo o modo, ainda que assim se não considere, sempre se verifica que tal circunstância não está demonstrada, na medida em que não se logrou provar qual foi a causa da ocorrência do incêndio, nos termos que já se analisaram anteriormente, pelo que não se pode afirmar que não houve concorrência das características da fracção naquela ocorrência. Assim, é de concluir que também nesta parte não merece provimento a impugnação da matéria de facto. * Resta apreciar a terceira questão.Tendo em conta o resultado do tratamento da questão anterior, a factualidade a ter em conta para apreciação da pretensão da recorrente é a que consta dos factos dados como provados na sentença recorrida e já transcritos. Na sentença recorrida considerou-se estar em causa a situação prevista no art. 493º, nº 1, do Código Civil, que prevê uma presunção de culpa quando estejam em causa, entre outros, danos causados por coisa, móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar. No recurso, a recorrente não põe em causa esta questão, apenas defende que ficou demonstrado que não houve culpa da sua parte, estando ilidida a presunção de culpa que se considerou assistir-lhe na sentença recorrida. Não tendo havido alteração da matéria de facto, conforme propugnado pela recorrente, afigura-se-nos que os factos que constam definitivamente como provados na sentença recorrida não permitem concluir pela não existência de culpa, ainda que apenas negligente, da recorrente, designadamente ao nível da violação do dever de vigilância que lhe incumbia. Como se diz na sentença recorrida: «A responsabilidade decorrente deste normativo reporta-se aos danos que a coisa causar, os quais se devem distinguir dos danos causados com a coisa quando esta funcionou simplesmente como instrumento parcial da acção danosa empreendida pelo sujeito. Com efeito, as coisas, móveis e imóveis, mesmo que não sejam por natureza perigosas, são susceptíveis de causar danos a terceiros, motivo pelo qual, para evitar a sua ocorrência, devem ser vigiadas. (…) Cabe referir, a propósito, que o proprietário e o possuidor só podem ser responsabilizados, enquanto tais, com base neste artigo 493º do Código Civil, se e quando tiveram a detenção da coisa com o dever de a vigiar. Como ensina o Prof. Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, Vol I, 7ª edição, pág. 588), a presunção recai sobre a pessoa que detém a coisa porque a responsabilidade assenta sobre a ideia de que não foram tomadas as medidas de precaução necessárias para evitar o dano. E contrariamente com o que sucede no artigo 492º do Código Civil, não se pretende onerar aqueles que retiram vantagens da propriedade, mas aqueles que têm a possibilidade e a obrigação de evitar a ocorrência de danos, pois, têm não só o poder de facto sobre a coisa, como também o dever de a vigiar. E deve entender-se por vigilância – no caso de imóveis – todo o acto que o proprietário (ou o obrigado à vigilância) necessário a cuidar do seu estado de conservação e bom estado, de modo a que os mesmos não ponham em risco a integridade de pessoas ou património alheio. Por isso, se deflagra no interior de uma das fracções autónomas de um edifício constituído em propriedade horizontal, cabe ao respectivo proprietário (ou à pessoa que o detém com o dever de o vigiar) responder pelos danos decorrentes da propagação desse incêndio e dos meios utilizados para o combater, provocados em outras fracções autónomas do mesmo edifício. E o certo é que, no caso em apreço, não resultam dúvidas da ocorrência desse incêndio, bem como da origem do mesmo nas fracções de que a mencionada Ré era locatária financeira, fracções essas fisicamente ligadas entre si, nas quais a dita Ré explorava o seu estabelecimento comercial, desconhecendo-se apenas o facto concreto que esteve na origem de tal deflagração. Quer [ É que a culpa desta presume-se, nos termos previstos no citado artº 493º nº1 do Código Civil. Tal preceito prescreve uma solução assente na presunção de culpa do proprietário ou possuidor da coisa ou da pessoa a quem incumbe o dever de a vigiar, presunção que apenas se considera ilidida quando o agente a quem é imputada a responsabilidade demonstrar que não houve qualquer culpa da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que agisse com toda a diligência. Na justificação desta solução legal, Vaz Serra (Trabalhos Preparatórios do Cód. Civil, BMJ 85º, pág. 365) concluía que “quem tem a coisa à sua guarda deve tomar as medidas necessárias a evitar o dano. As coisas abandonadas a si mesmas podem constituir um perigo para terceiros e o guarda delas deve, por isso, adoptar aquelas medidas; por outro lado, está (o obrigado à vigilância) em melhor situação do que o prejudicado para fazer a prova relativa à culpa, visto que tinha a coisa à sua disposição e deve saber, como ninguém, se realmente foi cauteloso na guarda”. Era, pois, à Ré «A..., Uni[ De facto, parece-nos manifestamente insuficiente para elidir a mencionada presunção de culpa a demonstração de que, à data do acidente, as instalações (…) continham sistema de detecção de incêndios (alarme), extintores de incêndios em funcionamento e câmaras de vigilância (que aliás não permitiam visualizar toda a área do estabelecimento). Como consta do sumário do Acórdão do STJ de 10.12.2013, proferido no proc. 68/10.1TBFAG.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt: “A norma do art. 493.º, n.º 1, do Código Civil estabelece uma presunção de culpa que, em bom rigor, é, simultaneamente, uma presunção de ilicitude, de tal modo que, face à ocorrência de danos, se presume ter existido, por parte da pessoa que detém a coisa, incumprimento do dever de vigiar”. Assim, mesmo não se sabendo, no caso em análise, qual a causa concreta do referido incêndio, por aplicação da norma do artº. 493º, nº. 1, do CC podemos concluir, de acordo com o princípio geral do artº. 483º e nos termos do artº. 486º do Código Civil, que a Ré «A..., Unipessoal, Ldª» está obrigada a indemnizar os Autores.». Portanto, considerando que se mantém a factualidade assente na primeira instância e ponderando o bem fundamentado da sentença recorrida, com cuja argumentação concordamos, remete-se para os termos da decisão da primeira instância, nos termos do disposto no art. 663º, nº 6, do C.P.C.. Uma última nota para aludir aos acórdãos desta mesma Relação do Porto citados por recorrente e recorrido, publicados em www.dgsi.pt, pois que ambos respeitam à mesma ocorrência em causa nos autos (danos resultantes do incêndio na loja da recorrente): - No Ac. da R.P. de 27/02/2023, proferido no âmbito do processo nº 641/20.0T8PVZ.P1, perante matéria de facto provada semelhante à que ficou provada nos presentes autos, igualmente se considerou que a situação se enquadrava no art. 493º, nº 1, do Código Civil e chegou-se à mesma decisão que na sentença recorrida; - Por sua vez, no Ac. da R.P. de 23/10/2023, proferido no âmbito do processo nº 2473/20.6T8MTS.P1, citado pela recorrente, a matéria de facto que aí ficou provada foi diferente da que ficou provada naquele acórdão e nos presentes autos, permitindo a conclusão de que “se apurou a observância dos deveres de cuidado que se lhe impunham” e “se determinou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua” – sendo diferente a matéria de facto provada, não é transponível para os presentes autos a solução aí encontrada. Perante o exposto, conclui-se que não merece, assim, acolhimento a pretensão da recorrente (acompanhada pela interveniente acessória) no sentido da improcedência da acção. * Em face do resultado do tratamento das questões analisadas, é de concluir pela não obtenção de provimento do recurso interposto pela R. e pela consequente confirmação da decisão recorrida.*** III - Por tudo o exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.** Custas da apelação pela recorrente (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).* Notifique.** Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):……………………………… ……………………………… ……………………………… * Porto, 18/4/2024datado e assinado electronicamente * Isabel Ferreira Paulo Duarte Teixeira Paulo Dias da Silva |