Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5800/13.9TBMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: FACTOS INSTRUMENTAIS
COMPLEMENTARES OU CONCRETIZADORES
Nº do Documento: RP201504305800/13.9TBMTS.P1
Data do Acordão: 04/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Para poder levar em consideração factos que resultem da instrução da causa e sejam instrumentais, complementares ou concretizadores dos que as partes alegaram, o tribunal tem de dar previamente às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a atendibilidade desses factos.
II - Dar às partes a possibilidade de se pronunciarem pressupõe, cumulativamente, que: i) o tribunal anuncie, antes do encerramento da audiência, que está a equacionar usar esse mecanismo de ampliação da matéria de facto; ii) a parte que beneficiará desses factos manifeste a concordância ou a vontade de que esses factos sejam considerados pelo tribunal; iii) se permita à parte contrária requerer novos meios de prova para, consoante o caso, prova ou contraprova desses factos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
Processo n.º 5800/13.9TBMTS.P1 [Comarca Porto/Instância Central/Póvoa Varzim/Cível]

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.
B…, com o NIF ………, e mulher C…, com o NIF ………, com residência em Rue …, …, França, instauraram no Tribunal Judicial de Matosinhos acção judicial contra D…, divorciado, com o BI ……., residente na Rua …, nº …, …, Matosinhos, pedindo a condenação do réu a reconhecer que os autores são donos e legítimos possuidores do prédio identificado na petição inicial, que a detenção do prédio pelo réu é ilegal, condenar-se o réu a desocupar, esvaziar e restituir aos autores o imóvel, livre de pessoas e bens, e a pagar aos autores uma indemnização pela ocupação do prédio desde princípios de Janeiro de 2000 até à citação, no montante de €16.000,00, ou aquele que se vier a liquidar, e a indemnização de €400,00 por cada mês de ocupação desde a citação até à efectiva restituição do imóvel, ou aquela que se vier a liquidar, tudo acrescido de juros de mora desde a citação até à restituição e pagamento.
Para o efeito, alegaram que por escritura pública de 27.10.1977 compraram o prédio urbano com duas casas, uma de 2 pavimentos e uma térrea, sitas no …, …, Matosinhos, inscrita na matriz sob os artigos 2007 e 1740, descrito na Conservatória do registo Predial sob o n.º 3809/20100520 e aí inscrito a favor dos autores, os quais, aliás, desse essa data andam na posse pública, pacifica e titulada do imóvel pelo que sempre o teriam adquirido por usucapião.
Acrescentam que contra a vontade dos autores, o réu ocupa, desde Janeiro de 2000, o primeiro andar desse prédio, aí habitando, apesar de não ter qualquer título válido que o permita. Se fosse arrendado o andar geraria uma renda mensal de € 400,00. Apesar de diversas vezes os autores terem pedido ao réu para deixar o imóvel, este recusa-se a deixá-lo.
A acção foi contestada, pugnando-se pela improcedência total do pedido, mediante a alegação de que o andar que o réu ocupa e onde vive com o seu filho foi primitivamente arrendado pelos autores ao pai do réu, por morte dele o arrendamento transmitiu-se para a viúva e mãe do réu, e finalmente, por morte desta, transmitiu-se para o réu, conforme foi reconhecido pelos próprios autores em duas cartas que enviaram ao réu. O réu tem sempre pago pontualmente a renda do imóvel, a qual, conforme acontecia ainda no tempo dos falecidos pais do réu, era recebida por um procurador dos autores, sendo que este a certa altura informou que deixava de receber a renda, dando indicações para a mesma ser depositada na E…, conforme o réu passou a fazer. Em reconvenção, o réu pede que os autores sejam condenados como litigantes de má fé a pagar-lhe a indemnização por danos não patrimoniais no montante de €500,00.
Na réplica os autores arguiram a falsidade da primeira carta referida pelo réu e que a segunda não representa a sua vontade, não lhes foi previamente dado a conhecer e foi elaborada por quem não tinha poderes para a redigir nos termos em que o fez.
Foi dispensada a audiência prévia, indeferido o pedido reconvencional e fixado o objecto do litígio e foram enunciados os temas da prova, após o que se procedeu à audiência de julgamento.
Por fim, foi proferida sentença julgando a acção totalmente improcedente e absolvendo o réu dos pedidos e condenando os autores como litigantes de má-fé, na multa de 4UC e no pagamento ao réu de €500 a título de indemnização pelos danos.
Do assim decidido, os autores interpuseram recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. Não podem ser considerados provados, e devem ser dados como não provados, os factos dos números 9, 10, 12 e 13 da sentença porque não correspondem ao que se passou na audiência de julgamento.
2. Nomeadamente devem dar-se por não provados os factos dos números em 9, 10, 12 e 13 da sentença pelo depoimento conjugado das testemunhas F…, G…, H… e I…, J…, K…, conforme depoimentos prestados e transcritos atrás na íntegra, e todos conjugados, e num todo e cada um deles, registados no H@bilus Media Studio. E tendo em conta em especial as citações, “passagens da gravação” feitas a propósito, especialmente transcritas para o efeito, que aqui se dão integradas e reproduzidas para todos os efeitos legais.
3. E ainda tendo em conta os documentos analisados criticamente a folhas 49, 50,51 52, 53, 54.
4. Também não podem ser considerados provados, e devem ser dados como não escritos, os factos dos números 9, 10, 12 e 13 da sentença porque não foram alegados pelo réu, são matéria de excepção, constituem o núcleo do potencial direito do réu, são factos essenciais, o Tribunal não se pode substituir ao réu.
5. Ficou provado/deve dar-se como provado que o réu tem/tinha pelo menos mais dois irmãos conforme seu depoimento e depoimento da testemunha H… e I…, J…, K…, conforme depoimentos prestados e transcritos atrás na íntegra, e todos conjugados, e num todo e cada um deles, registados no “H@bilus Media Studio. E tendo em conta em especial as citações, “passagens da gravação” feitas a propósito, especialmente transcritas para o efeito, que aqui se dão integradas e reproduzidas para todos os efeitos legais.
6. Também nada foi alegado/provado qual seria o mais velho dos irmãos.
7. Isso era necessário para saber quem potencialmente teria direitos.
8. O réu nunca alegou que convivesse há mais de um ano com o pai ou mãe. O que bem se compreende por ser casado duas vezes e morar com as mulheres noutra casa como disseram as testemunhas por ele arroladas. E é da experiência.
9. O tribunal substitui-se ao autor dando como provados factos essenciais, não alegados.
10. E fê-lo ilegalmente, contra lei expressa no CPC, e também em violação do contraditório e igualdade de armas, previsto no artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, fazendo incorrer o Estado e seus agentes em responsabilidade civil extracontratual.
11. O tribunal na fundamentação cometeu erros grosseiros de apreciação e com isso deu como provada matéria que não corresponde à realidade.
12. O próprio tribunal reconhece que o réu não viveu ali ininterruptamente, contradizendo-se, pelo que os números 9, 10, 12 e 13 da sentença devem ser dados por não escritos. Assim, há contradição entre a fundamentação e a matéria provada, sendo nula a sentença.
13. Como atrás consta, os factos 12 (residência) e 13 (carta) não estão fundamentados ou a fundamentação é contraditória ou mal explicada, ou os factos estão em contradição com a decisão pelo que a sentença é nula nos termos do artigo 615, nº 1, alíneas b) e c) do CPC.
14. É sobre o réu que deduz a excepção ao direito de propriedade dos autores que recai o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do seu direito.
15. E como corolário do princípio dispositivo, recai sobre o réu-excepcionante o ónus de alegar os factos de cuja prova seja possível concluir pela existência do direito que invoca (art. 264.º, nº 1 do CPC). Tendo tal princípio básico como reverso da medalha o princípio da auto-responsabilidade das partes, que suportam o ónus da respectiva e essencial.
16. Realce-se que não houve audiência prévia.
17. Ao dar como provados a matéria ou esses factos em 9, 10, 12 e 13 violou o tribunal o disposto no princípio do dispositivo, o direito ao contraditório e igualdade de armas e o princípio e direito à igualdade e a um juiz imparcial previstos no artigo 3 do CPC.
18. Os autores não se puderam defender de forma eficaz, foram objecto de uma sentença surpresa.
19. Ao dar como provados a matéria ou esses factos em 9, 10, 12 e 13 violou o tribunal ainda o artigo 6º, nº 1 e 14º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
20. Quando devam ser esclarecidos pontos de facto num processo deve haver sempre audiência contraditória.
21. O tribunal deu como provados factos em que flagrantemente e evidentemente não respeitou as regras legais, as regras do jogo, não deu aos autores as possibilidades de se defenderem, agindo de forma arbitrária, contrariamente à justiça e ao bom senso, tendo cometido erros grosseiros, violando o direito a um processo equitativo previsto no artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
22. A sentença e qualquer lei como interpretada pelo tribunal violam o artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
23. E violou o artigo 1º do Protocolo nº 1 anexo à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
24. Deve ser dada como provado que: “Os autores pedirem por diversas vezes ao réu para deixar o imóvel, tendo-se este recusado a deixá-lo.”
25. Pelo depoimento das testemunhas F…, G… e H…, cujo depoimento já foi transcrito e consta do H@bilus Media Studio. E tendo em conta em especial as citações, “passagens da gravação” feitas a propósito, especialmente transcritas para o efeito, que aqui se dão integradas e reproduzidas para todos os efeitos legais.
26. Sobre os dizeres “L…” apostos na carta junta a fls. 177 e sobre a própria carta referida no nº 13 da sentença, o tribunal deu-o como provado, mas sem quaisquer provas, ou fundamentos, sendo o réu que devia fazer a prova, pelo que a sentença é nula.
27. O que o tribunal deu como provado, arbitrariamente, sem controlo pois não explica como chegou a esse raciocínio, é absolutamente intolerável, grave, grosseiro, violador do artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
28. A incapacidade do réu é irrelevante pois é um facto essencial que não foi alegado na contestação, os autores não puderam exercer o contraditório e não se provou que o era quando os pais faleceram, mas que é incapacidade de hoje, 2013.
29. O réu não tem direito à transmissão do arrendamento.
30. Mas se o contrato não caducou, já se extinguiu pelo decurso do tempo.
31. Ficou provado que o contrato tem mais de 30 anos, conforme número 5 dos factos provados.
32. Se vingasse a tese do réu e do tribunal, também por aí tinha o réu de entregar a casa.
33. Competia ao réu provar que tinha título de ocupação, nada tendo alegado.
34. Não podem os réus ser condenados como litigantes de má-fé.
35. A sentença violou o disposto nos artigos 3º do CPC, o artigo 264º, n 4 do CPC, o artigo 334 do CC e os artigos 6º, nº 1, 8 e 14 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e artigo 1º do Protocolo nº 1 a ela anexo.
36. Que deveriam ser interpretados e aplicados no sentido das conclusões anteriores e no sentido da condenação do réu como consta do pedido (…).
37. Deve revogar-se a sentença e substituir-se por outra que condene o réu no pedido e absolva os autores da condenação como litigantes de má-fé.
O recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.
Devidamente interpretadas e colocadas na correcta sequência lógica, as alegações de recurso colocam este Tribunal perante o dever de resolver as seguintes questões:
i) Se a sentença recorrida é nula.
ii) Se o tribunal levou em consideração factos não alegados; se e em que circunstâncias o poderia fazer.
iii) Se foram observados os requisitos de atendibilidade desses factos.
iv) Se estão reunidos os pressupostos legais da transmissão do contrato de arrendamento para o réu.

III.
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. Os autores, que são entre si casados no regime de comunhão de adquiridos, são os donos de um prédio urbano com duas casas, uma de 2 pavimentos e uma térrea, sitas no …, freguesia …, concelho de Matosinhos, inscritos na matriz sob os artigos 2007 e 1740 e inscritos na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o nº 5176 – fls. 24 – Livro B-17, actualmente com a descrição actualizada sob o nº 3809/20100520.
2. O referido prédio, inscrito na matriz predial urbana sob o nº 2007 da freguesia …, concelho de Matosinhos, actualmente com entrada pelo nº … da Rua …, foi comprado pelos autores B… e mulher C… a M… e mulher N… por escritura pública em dia 27.10.1977 na Secretaria Notarial do Concelho de Matosinhos e a respectiva aquisição encontra-se registada a seu favor na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos desde 26.07.1979, conforme inscrição Ap. nº 8 de 26.07.1977 da referida descrição nº 5176 e 3809/20100520.
3. Tal imóvel é composto por casa de rés-do-chão com 6 divisões servindo uma de loja de mercearia, tem entrada pela loja e ao lado por uma porta de madeira, tem dependência para arrecadação e poço de meação, tem 7 vão na totalidade; por ampliação dispõe de um 2° pavimento/1ºandar, com 6 divisões, WC e 8 vãos.
4. Os autores por si e seus antepossuidores, estão na posse deste imóvel de boa-fé, publicamente, pacificamente, colhendo os seus frutos e rendimentos sem qualquer interrupção, continuamente à vista e com conhecimento de todo o mundo, ignorando lesar os direitos de terceiros ou na convicção de ninguém prejudicar, tudo como se fossem donos e proprietários do prédio, ou seja, como se fosse coisa sua há, pelo menos, mais de 30 anos.
5. Em data não apurada, mas sempre anterior a 27.10.1977, os antigos proprietários do referido prédio inscrito na matriz predial urbana sob o nº 2007, deram de arrendamento o 1º andar deste prédio a O…, na altura casado com P…, que o aceitou, passando a pagar a respectiva renda mensal e o respectivo agregado familiar a ter a sua residência na dita habitação.
6. O réu, D…, é filho dos referidos O… e P….
7. Desde que adquiriram o dito prédio em 27.10.1977, os autores sempre reconhecerem o O… como arrendatário do mesmo, o qual lhes pagava uma renda mensal e lhe entregavam os respectivos recibos de renda, assim como, após a morte do O… ocorrida em 1979, passaram a reconhecer nessa qualidade o cônjuge sobrevivo, P…, que com ele vivia em comunhão na mesma residência, e continuou a pagar-lhes a renda e à qual entregavam os respectivos recibos.
8. Desde a morte do seu pai que era o réu quem, em nome da mãe, pagava a renda aos autores que tinha como senhorios, entregando o seu valor mensal, que era de 500$00 em 1985, a H…, pessoa que os autores haviam constituído como seu procurador para o efeito, que por sua vez lhe entregava o respectivo recibo que continuava a emitir em nome do falecido O….
9. A partir de data não apurada mas sempre posterior a Junho de 1985, o Réu, em nome da sua mãe, P…, por não concordar com um aumento da renda proposto pelos autores, que se recusaram a passar recibos da renda então em vigor no montante de 600$00, passou a depositar tal valor da renda mensalmente numa conta da E… à ordem do autor, do que deu conhecimento ao H… que por sua vez o transmitiu aos autores.
10. À data do falecimento da sua mãe, em 22.6.2000, o Réu vivia na companhia desta na referida habitação, ou seja, no 1º andar do nº … da Rua …, desde data não apurada, mas seguramente desde há mais de 10 anos de forma consecutiva e ininterrupta, com a qual convivia naquela que constituía a sua única residência, aí comendo, dormindo e nela habitando de forma permanente.
11. Em 6.7.2000 o réu remeteu a H… a carta que constitui o documento junto a fls. 48, cujo teor se dá por reproduzido, acompanhada da certidão de óbito cuja cópia se encontra junta a fls. 49, o qual a recebeu e a entregou aos autores, dando conta do falecimento da sua mãe e arrendatária da referida habitação em 22.6.2000, e comunicando a sua pretensão de lhe suceder na posição contratual de arrendatário da mesma habitação ao abrigo do disposto pelo artigo 85º do RAU, e ainda de que continuaria a depositar as rendas na E….
12. Desde a data do falecimento da sua mãe e até à presente data, o réu continuou a residir na referida habitação, nela habitando contínua, ininterrupta e permanentemente na companhia de um seu descendente, e pagou a respectiva renda mediante depósito mensal a favor do autor na conta de consignação de rendas nº ………...... da E…, no valor mensal de 685$00 até Setembro de 2000 e no valor mensal de 1.848$00/€9,22 desde então e até ao presente, conforme documento junto a fls. 62 a 70 cujo teor se dá por reproduzido.
13. Em 6 de Setembro de 2000 pessoa de identidade não apurada, mas agindo a mando, ou pelo menos com conhecimento, do autor, remeteu ao réu a carta junta a fls. 177, cujo teor se dá por reproduzido, comunicando-lhe, além do mais, que a renda mensal passaria, “de acordo com a lei”, a ser de 1.848$00/€9,22, razão pela qual o réu passou a depositar mensalmente este montante na dita conta a favor do autor na E….
14. Os levantamentos na referida conta nº ………...... documentados nos extractos bancários de fls. 64 a 70, foram efectuados pelo autor ou por alguém a seu mando.
15. O actual valor locativo do imóvel causa, ou seja, do 2º andar do prédio com entrada pelo nº … da Rua …, situa-se num valor entre os 350 e os 400,00€ mensais.
16. O réu padece de uma incapacidade permanente global de 72%, vive na companhia de um filho maior de idade, tendo o agregado familiar um rendimento anual líquido de €14.782,00.

IV.
A] Questão prévia: regime jurídico-processual aplicável à acção.
No dia 01.09.2013 entrou em vigor o novo Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho (artigo 8.º).
A presente acção foi instaurada em 04.09.2013, em plena vigência, portanto, do referido diploma. Por conseguinte, a presente acção segue o regime jurídico-processual consagrado no novo Código de Processo Civil.

B] da nulidade da sentença:
Os recorrentes sustentam que a decisão recorrida é nula “nos termos do artigo 615, nº 1, alíneas b) e c) do Código de Processo Civil” por “contradição entre a fundamentação e a matéria provada” (conclusão 12ª), por “falta de fundamentação” dos factos 12 e 13 (conclusões 13ª e 26ª) ou porque, em relação a esses pontos de facto, “a fundamentação é contraditória ou mal explicada, ou os factos estão em contradição com a decisão” (conclusão 13ª).
Nos termos do artigo 615.º do Código de Processo Civil, a sentença é nula, designadamente, quando “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão” [alínea b)], e quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível” [alínea c)].
Pretendem os recorrentes que o juiz a quo entrou em contradição ao admitir que o réu não viveu ininterruptamente no prédio reivindicado e mesmo assim julgar provados os factos 9, 10, 12 e 13.
Os factos relativos à ocupação do prédio pelo réu apenas estão vertidos nos itens 10 e 12, pelo que a existir contradição a mesma apenas se reflectirá nestes pontos.
No ponto 10 julgou-se provado que “à data do falecimento da sua mãe, em 22.6.2000, o réu vivia na companhia desta na referida habitação, …, desde data não apurada, mas seguramente desde há mais de 10 anos de forma consecutiva e ininterrupta, … naquela que constituía a sua única residência, aí comendo, dormindo e nela habitando de forma permanente”. No ponto 11 julgou-se provado que “desde a data do falecimento da sua mãe e até à presente data, o réu continuou a residir na referida habitação, nela habitando contínua, ininterrupta e permanentemente …”.
Ao fundamentar a decisão de julgar provados estes factos o Mmo. Juiz a quo escreveu que “Quanto ao facto de o R. sempre ter habitado na residência em causa na companhia dos seus pais e desde o falecimento da mãe na companhia de um filho, a prova foi abundante e inequívoca, consideradas não só as declarações da referida testemunha H… nesse sentido, mas igualmente das testemunhas, I…, J…, Q…, S…, todos residentes em local próximo da habitação em causa, e K…, filho do Réu, tendo os quatro primeiros referidos que o R. sempre viveu naquela habitação na companhia dos pais, pelo menos desde a década de 1970 em que os AA. a compraram, e que tirando um breve período quando casou e foi viver para outra casa, voltou a residir nessa habitação a partir do momento em que se divorciou, o que ocorreu em 1979 conforme certidão junta a fls. 54, tendo desde então aí sempre vivido de forma permanente e ininterrupta. No mesmo sentido foram as declarações do seu filho actualmente com 22 anos de idade e que afirmou que desde que se recorda sempre viveu naquela casa na companhia do pai e da avô paterna, e desde o falecimento desta passou a aí residir apenas com o pai.”
É fácil de ver que não existe aqui nenhuma contradição. Ao admitir que durante o período de tempo em que esteve casado o réu não viveu no prédio dos autores, o Mmo. Juiz a quo não entra em contradição com o que julgou provado porquanto nesses factos a vivência em permanência e de forma ininterrupta no aludido prédio está situada “nos dez anos anteriores ao falecimento da mãe, ocorrido em 22.6.2000” e “desde essa data até ao presente”, ou seja, a partir sensivelmente de Junho de 1990 e, portanto, muito depois do casamento do réu e mesmo do seu divórcio que segundo a certidão junta a fls. 54 foi decretado em 1979.
No tocante à nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto estamos em crer que o recorrente carece igualmente de razão porquanto, conforme assinalámos já no Acórdão de 05.03.2015 que proferimos no processo n.º 1644/11.0TMPRT-A.P1, publicado in www.dgsi.pt, e cuja fundamentação iremos seguir de perto, o vício da falta de fundamentação da sentença que gera a nulidade da sentença não pode ser confundido com o vício da falta de fundamentação da decisão da matéria de facto cujas consequências e regime estão previstos no artigo 662.º, n.º 2, alínea d), do novo Código de Processo Civil.
Como sabemos, no anterior Código de Processo Civil eram distintos e estavam separados no tempo o despacho com a decisão sobre a matéria de facto e a sentença. Naquele despacho o Juiz decidia a matéria de facto, declarando quais os factos que o tribunal julgava provados e quais os que julgava não provados e, em sede de motivação, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção (artigo 653.º, n.º 2, do Código de Processo Civil). Na sentença a elaborar posteriormente o Juiz não tinha de repetir esse passo, bastava-lhe indicar os factos que foram julgados provados e que irão servir de fundamentação de facto da decisão a proferir.
Também eram distintos os vícios daquele despacho e os vícios da sentença. Relativamente à decisão da matéria de facto, a lei previa que essa decisão podia padecer de quatro vícios: a deficiência da resposta, a obscuridade da resposta, a contradição entre as respostas e a falta de motivação da decisão. Uma vez lida a decisão e feito o exame da mesma pelos mandatários, estes podiam reclamar contra a deficiência, obscuridade ou contradição da decisão ou contra a falta da sua motivação, cabendo ao tribunal decidir as reclamações apresentadas (artigo 653.º, n.º 4, do antigo Código de Processo Civil).
Podia, porém, suceder que esses vícios não fossem objecto de reclamação e/ou não fossem sanados pelo tribunal e fosse proferida sentença com a decisão da matéria de facto a padecer de tais vícios. Nessa situação, cabia à parte suscitá-los no recurso da sentença, mediante impugnação da decisão da matéria de facto.
Feita essa impugnação, havia que distinguir os vícios. Se este fosse o da falta ou insuficiência da motivação da decisão, a Relação podia, a requerimento da parte, determinar que o tribunal de 1.ª instância a fundamentasse devidamente (artigo 712.º, n.º 5, do Código de Processo Civil) e, feita essa melhoria da fundamentação, passava-se ao conhecimento do restante objecto do recurso.
Se, pelo contrário, o vício consistisse em deficiência, obscuridade ou contradição da decisão, a Relação confrontava-se com duas possibilidades: se estivessem no processo todos os elementos probatórios que serviram de base à decisão, a Relação devia proceder à correcção da decisão introduzindo na matéria de facto as modificações correspondentes e prosseguindo para a apreciação do restante objecto do recurso; se a Relação não dispusesse da totalidade desses elementos, anulava a decisão proferida na 1.ª instância e, por inerência, a sentença, regressando os autos à 1.ª instância para repetição do julgamento na parte afectada (artigo 712.º, n.º 4, do Código de Processo Civil).
Em qualquer das circunstâncias a sentença não era nula, podia era existir um vício, prévio à sentença e prejudicial em relação a ela, que era específico da própria decisão da matéria de facto e cujos efeitos ou eram sanáveis, pela Relação ou por mero aperfeiçoamento incidental da 1.ª instância, ou não eram sanáveis, caso em que determinavam o regresso dos autos à fase do julgamento com a inutilização do processado posterior. A falta de fundamentação da decisão da matéria de facto não tinha pois o regime dos artigos 659.º, n.º 2, e 668.º, n.º 1, alínea d), do antigo Código de Processo Civil, mas o estabelecido no artigo 712.º, n.º 5, do mesmo diploma, que regia precisamente sobre o problema de a decisão estar ou não devidamente fundamentada.
Sucede que uma das alterações introduzidas na estrutura do processo declarativo comum pela reforma do Código de Processo Civil proveniente da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, consistiu na eliminação do “momento processual exclusivamente reservado para uma pronúncia do juiz sobre a matéria de facto”, passando a ser “na própria sentença, em sede de fundamentação de facto, que o juiz deverá declarar quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, por referência à prova produzida, por um lado, e por referência aos demais elementos dos autos, por outro” – cf. Exposição de Motivos da proposta de lei n.º 113/XII –.
Em consonância com esse desiderato, o artigo 653.º do antigo Código, que regia sobre o julgamento da matéria de facto antes da elaboração da sentença, deixou de ter correspondência no novo Código, e o artigo 607.º do novo Código, que sucedeu ao artigo 659.º do antigo e rege sobre a elaboração da sentença, passou a conter, nos seus números 4 e 5, normas próprias sobre a decisão da matéria de facto e sua motivação.
Por outro lado, o artigo 615.º do novo Código, correspondente ao artigo 668.º do antigo, manteve as causas de nulidade da sentença tal qual as mesmas eram definidas no antigo Código, com excepção apenas do aditamento das situações de ambiguidades ou obscuridade que tornem a decisão ininteligível que antes eram fundamento do pedido de aclaração da sentença e que com a eliminação do incidente da aclaração passaram a ser fundamento de nulidade da sentença.
Finalmente o artigo 662.º do novo Código, relativo ao modo como a Relação pode conhecer dos erros ou vícios da decisão da matéria de facto, prevê que a Relação pode anular a decisão da 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados. O mesmo regime, portanto, que vinha dos nos. 4 e 5 do artigo 712.º do antigo Código.
Perante esta evolução legislativa, a motivação que lhe subjaz e a manutenção da previsão dos vícios da decisão da matéria de facto e da sentença propriamente dita e do regime de conhecimento dos mesmos pela Relação, cremos bem que se mantém o regime que vigorava no anterior Código de Processo Civil:
i) Existe falta de fundamentação de facto da sentença, gerando a nulidade desta, nos casos em que a sentença não exibe os factos em se baseia a solução jurídica levada à decisão;
ii) Se da sentença constam os factos a que a decisão fez aplicação do direito, não falta aquela fundamentação nem a sentença é nula;
iii) Se a fixação da matéria de facto, que incorpora a sentença mas constitui um momento prévio à fundamentação de facto da sentença padecer de deficiência, obscuridade, contradição ou falta de motivação da decisão, segue-se o regime do artigo 662.º, n.º 2, alíneas c) e d), do novo Código de Processo Civil, cabendo à parte interessada, no recurso da sentença, o ónus de impugnar a decisão da matéria de facto e sustentar a presença desses vícios;
iv) Confrontada com essa arguição (ou mesmo oficiosamente), a Relação só pode anular a decisão se não tiver à sua disposição todos os meios de prova que lhe permitiriam sanar, por si mesma, a deficiência, obscuridade, contradição;
v) Nos demais casos (o vício é um desses, mas a Relação tem à sua todos os meios de prova; o vício é a falta de fundamentação) a Relação não pode anular a decisão da 1.ª instância, cabendo-lhe sanar ela mesma o vício, excepto se se tratar de falta da “devida” fundamentação caso em que poderá ordenar à 1.ª instância que acrescente a fundamentação em falta, prosseguindo depois com o conhecimento do objecto do recurso.
Nessa medida, a arguição pelos recorrentes da nulidade da sentença recorrida improcede necessariamente.
Acresce que lendo a motivação da decisão da matéria de facto qualquer leitor interessado consegue perceber quais foram os meios de prova considerados pelo Mmo. Juiz a quo, as razões pelas quais lhes reconheceu valor probatório, a razão de ciência e a credibilidade atribuída às testemunhas, e, finalmente, as regras de experiência aplicadas para formar a convicção. Por conseguinte, independentemente do mérito da fundamentação, de se concordar ou não com ela, questão que é totalmente diversa da questão da fundamentação insuficiente, julgamos não haver necessidade de determinar que a 1.ª instância fundamente devidamente a resposta a algum dos factos que julgou provados.
Improcedem por conseguinte todas as questões suscitadas no recurso relativas à nulidade da sentença.

C] da atendibilidade de factos não alegados:
Os recorrentes defendem que o tribunal a quo não podia ter levado em consideração determinados factos que veio a considerar porque os mesmos “não foram alegados pelo réu”, são “matéria de excepção”, são “factos essenciais” (conclusões 4ª, 8ª e 9ª), sendo que essa consideração é “ilegal” por violar normas do Código de Processo Civil, importa “violação dos princípios do contraditório e igualdade de armas”, do “dispositivo”, o “direito a um juiz imparcial” e a um “processo equitativo”, fazendo com que a sentença seja uma “decisão surpresa”, proferida sem “audiência contraditória” (conclusões 10ª, 17ª a 21ª e 28ª).
Vejamos:
Conforme resulta do relatório deste Acórdão, os autores instauraram uma acção que se pode caracterizar como acção de reivindicação: alegaram o direito de propriedade sobre um determinado prédio urbano, invocando para o efeito formas de aquisição derivada (compra e venda) e originária (usucapião), bem como a presunção de titularidade do direito que resulta do registo; e alegaram que o réu ocupa ilegalmente esse prédio, devendo ser condenado a restitui-lo aos seus legítimos proprietários, indemnizando-os dos danos decorrentes dessa ocupação.
Por força do artigo 1311.º do Código Civil segundo o qual o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence e, se o direito de propriedade for reconhecido, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei, cabe ao demandado numa acção com este objectivo a demonstração de que possuí um titulo legítimo de detenção da coisa alheia já que só nessa circunstância se poderá opor à restituição do bem ao seu proprietário.
No caso, o réu desenvolveu a sua defesa alegando que é arrendatário do prédio. Para o efeito, alegou que o seu pai celebrou um contrato de arrendamento do imóvel e que essa posição contratual se transmitiu, por morte daquele, para a sua mãe, e, por morte desta, para ele réu. É assim que no artigo 13.º da contestação o réu alega que “por força do art. 85º, nº 3 do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo DL. nº 321- B/90, de 15 de Outubro, transmitiu-se para o Réu, por morte de sua mãe, o arrendamento que para ela havia sido transmitido, por morte de seu marido”.
A contestação do réu é, no entanto, particularmente escassa na alegação dos factos jurídicos de suporte dessa afirmação conclusiva e de direito. Na verdade, não basta ao réu afirmar que o arrendamento se transmitiu para si, o que é indispensável é que alegue os factos jurídicos que importam essa transmissão, que preenchem os pressupostos legais da norma que opera essa transmissão. O réu não teve presente esta necessidade e ocupou a quase totalidade da sua contestação a explorar as afirmações, igualmente conclusivas, contidas em cartas cuja autoria imputa aos autores e das quais retira que eles o reconheceram como arrendatário do imóvel.
Ora essas cartas podem ser meios de prova de factos instrumentais destinados a demonstrar a existência do contrato de arrendamento e a qualidade de arrendatário do réu (ter sido reconhecido como tal), mas não são nem substituem a alegação dos factos essenciais à procedência da defesa do réu, isto é, dos factos jurídicos que preenchem a norma legal que consagra a transmissão do arrendamento por morte do arrendatário, no caso os factos jurídicos que preenchem a previsão do artigo 85.º do RAU em vigor na data em que ocorreu o óbito da mãe do réu e em função do qual este defende ter adquirido a posição de arrendatário.
Esta situação só não é irreversível e não condena definitivamente à improcedência a pretensão do réu porque mais à frente, no artigo 48.º da contestação, e embora já sob a epígrafe de “reconvenção”, o réu alega que “mora na casa há mais de 60 anos”[1].
Uma vez que nos termos do artigo 85.º do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, na redacção do Decreto-Lei n.º 64-A/2000, de 22 de Abril, em vigor na referida data, a transmissão do arrendamento por morte do primitivo arrendatário ou do respectivo cônjuge sobrevivo, depende da existência de descendente que “convivesse” “há mais de um ano” com o falecido arrendatário, aquela alegação parece insuficiente, carecendo de ser densificada com alegação factual relativa às condições de vida no locado.
Esta situação, a nosso ver, conduz a que se deva considerar que o réu alegou a excepção (facto impeditivo) com que pretende opor-se à pretensão do autor, mas que o fez de modo insuficiente ou impreciso. Tal conduzia à necessidade de o juiz proferir, findos os articulados, despacho pré-saneador convidando o réu “ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada”, conforme prescreve o artigo 590.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.
Este despacho não foi, contudo, proferido. Essa omissão tem a consequência que se justificou e decidiu no Acórdão Tribunal do da Relação do Porto de 26.02.2015, relatado por Pedro Martins no processo n.º 5807/13.6TBMTS.P1, em que interviemos como Adjunto, publicado in www.dgsi.pt. Conforme ali se escreveu, anotada a insuficiência da alegação da parte, “o tribunal, mesmo sendo um tribunal de recurso, não pode proferir um acórdão de improcedência da reconvenção [no caso, da excepção deduzida na contestação] por falta de prova dos factos constitutivos do direito invocado pela ré (art. 342/1 do CC), sem antes convidar a ré a aperfeiçoar a reconvenção [no caso a contestação], completando a causa de pedir (…) Aliás, se este tribunal julgasse já a reconvenção improcedente, cometeria uma nulidade processual, consistente no facto de ter decidido de mérito uma causa antes de ter proferido um despacho que estava vinculado a proferir (arts. 195, 197, 199, 200/3 e 201, todos do CPC - é o que decorre da posição de Lebre de Freitas, expressa n’A acção declarativa, 3ª edição, págs. 156/157, nota 4A, e 164, nota 24. conjugado com o que diz no CPC anotado, 2º vol, Coimbra Editora, 2008, págs. 698/699, 1º§ da anotação 3 ao então art. 666 do CPC na redacção anterior à reforma de 2013, mesmo que este autor não se pronuncie sobre esta precisa questão). Já Miguel Teixeira de Sousa, pronunciando-se expressamente sobre esta questão, entende que neste caso (acórdão da relação que absolvesse do pedido com base em insuficiência da matéria de facto, sem que tivesse sido proferido despacho de aperfeiçoamento) haveria antes excesso de pronúncia, com a consequente nulidade do acórdão (arts. 615/1d do CPC - no blog do IPPC, nas entradas de 29/01/2014, sob A proibição da oneração da parte pela Relação com o risco da improcedência: um novo princípio processual?; de 09/04/2014, sob Poder discricionário e nulidade processual; de 11/06/2014, sob Controlo pela Relação da omissão do dever de cooperação da 1.ª instância; de 19/01/2015, sob A consequência da omissão do convite ao aperfeiçoamento: um apontamento; e de 23/01/2015, sob Omissão do convite ao aperfeiçoamento: um apontamento (2); no mesmo sentido, vai a entrada de Urbano Dias, no mesmo blog, com data de 16/06/2014, sob Breves nótulas sobre o controlo pela Relação da omissão do dever de cooperação da 1.ª instância.) Esta solução tem o mesmo efeito prático da solução adoptada, qual seja, o do tribunal da relação não dever proferir um acórdão que saberia consubstanciar uma nulidade processual ou que seria nulo.”
Resulta, no entanto, do artigo 5.º do Código de Processo Civil que para além dos factos articulados pelas partes (os factos essenciais que constituem a causa de pedir) o juiz deve ainda levar em consideração os factos instrumentais que resultem da instrução da causa e os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar.
Esta norma acaba por representar, na prática, outra possibilidade de suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto sobre a qual irá recair a decisão de mérito, porquanto, ainda que o convite ao aperfeiçoamento (apesar de tudo, devido) não tenha sido formulado (ou não tenha sido correspondido pela parte convidada) e, portanto, a alegação se tenha mantido insuficiente, se os factos emergirem da prova produzida durante a instrução da causa, forem complementares ou concretizadores dos factos alegados e as partes tenham tido a oportunidade de se pronunciarem sobre eles, tais factos podem ser atendidos pelo tribunal na decisão, tudo se passando pois como se eles tivessem sido validamente alegados.
Por conseguinte, se apesar da omissão do convite ao aperfeiçoamento que no caso se justificava e era mesmo necessário para o tribunal conhecer da pretensão da parte, advierem da instrução da causa factos com as características acabadas de apontar, aquela omissão deixa de influir no exame ou decisão da causa e transforma-se em mera irregularidade, não provocando a anulação dos actos processuais. Questão é que os factos emergentes da instrução da causa possam ser atendidos pelo tribunal e sejam bastantes para decidir a pretensão da parte (julgando-a procedente se os factos forem julgados provados ou improcedente se forem julgados não provados). É isso que importa agora ver e que constitui a essência das questões suscitadas pelos recorrentes.
Como já se viu, o artigo 5.º do novo Código de Processo Civil, que corresponde com alterações aos artigos 264.º e 664.º do anterior Código, define em sede de matéria de facto o que constitui o ónus de alegação das partes e como se delimitam os poderes de cognição do tribunal. Nos termos do n.º 1, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas. Resulta do n.º 2 da norma que o tribunal deve considerar na sentença factos não alegados pelas partes, melhor dizendo, que o facto de não terem sido alegados pelas partes não impede o juiz de considerar factos que se mostrem relevantes.
Não cabe ao juiz supor ou conceber factos que poderão ter relevo, é necessário que estejamos perante factos que resultem da instrução da causa, isto é, factos que tenham aflorado no processo através dos meios de prova produzidos e, portanto, possuam já alguma consistência prática, não sejam meras conjecturas ou possibilidades abstractas.
Por outro lado, o juiz só pode considerar factos instrumentais e, quanto aos factos essenciais, aqueles que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado. E isto é assim porque mesmo no novo Código de Processo Civil o objecto do processo continua a ser delimitado pela causa de pedir eleita pela parte (artigos 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, alínea d), 581.º e 615.º, n.º 1, alínea d), segunda parte) e subsistem limites à alteração dessa causa de pedir (artigos 260.º, 264.º, 265.º).
Assim, o poder de cognição do tribunal em relação à matéria de facto não se encontra confinado ao alegado pelas partes nos respectivos articulados. O tribunal pode pronunciar-se sobre factos e basear neles a sua decisão, ainda que venham a ser alegados apenas depois dos articulados em resposta ao convite ao aperfeiçoamento e/ou que não cheguem a ser alegados mas resultem da instrução da causa (artigo 5.º do Código de Processo Civil).
Estas duas alternativas possuem requisitos específicos e aqui interessam agora os requisitos que respeitam à atendibilidade dos factos resultantes da instrução da causa e que são os seguintes: estarmos perante factos complementares ou concretizadores dos factos alegados, a noticia (no processo) da sua ocorrência emergir da prova produzida durante a instrução da causa e, por fim, que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciarem sobre eles antes de o tribunal os decidir.
Os dois primeiros requisitos mostram-se preenchidos. Os factos julgados provados nos itens 9, 10, 12 e 13[2], são factos que complementam e concretizam a alegação do réu de que “mora na casa há mais de 60 anos”, permitindo-nos saber, como era necessário, em que condições ali vive, desde quando, como é que isso ocorria no tempo em que a mãe era viva e há quanto tempo subsistia já quando esta morreu, o que é necessário para o preenchimento dos pressupostos legais do direito à transmissão do arrendamento previsto, à data, no artigo 85.º do RAU.
Diferentemente já nos parece que não foi reunido o último dos requisitos da atendibilidade desses factos. O que se deve entender por “possibilidade de as partes se pronunciarem sobre os novos factos”? Sendo certo que os factos terão de resultar da instrução da causa e que esta é uma fase processual que decorre necessariamente com exercício do contraditório (artigo 415.º) e que a audiência de julgamento se realiza mesmo com as partes representadas por mandatários[3], parece claro que aquela exigência não pode considerar-se satisfeita com a mera circunstância de as partes terem estado presentes no acto em que os novos factos foram revelados e, portanto, nessa altura terem podido manifestar-se em relação a estes e requerer o que lhes aprouvesse.
A nosso ver, aquela exigência tem de significar algo mais, sob pena de violação do princípio do contraditório e do processo equitativo.
Por comparação com o regime do anterior Código de Processo Civil a grande diferença para o novo reside em que a consideração dos factos essenciais que sejam complemento ou concretização dos alegados não depende mais de requerimento da parte interessada, como exigia o artigo 264.º, n.º 3, daquele diploma. Presentemente, o juiz pode considerá-los mesmo oficiosamente, sem requerimento de nenhuma das partes, bastando que a parte tenha tido a possibilidade de se pronunciar sobre tais factos.
No entanto, as partes só podem ser confrontadas com esse poder oficioso do juiz quando as circunstâncias processuais concretas permitirem afirmar que as partes tinham a obrigação de contar com essa possibilidade, o que pressupõe sempre, no mínimo, o anúncio pelo tribunal, antes do encerramento da audiência, de que está a equacionar usar esse mecanismo de ampliação da matéria de facto.
Trata-se no fundo de salvaguardar a confiança que é necessário ter quanto ao conteúdo dos actos do processo e de não impor aos mandatários graus de diligência e atenção absolutos, exigindo-lhes que a todo o momento prevejam todas as hipóteses e levem o esforço probatório aos limites apenas para evitar que se o tribunal vier a considerar relevantes outros factos os mesmos resultem provados ou não provados. Só perante esse alerta se poderão imputar às partes as consequências do esforço probatório que entenderam produzir e a responsabilidade por não terem levado esse esforço ao ponto que seria eventualmente necessário.
Acresce que não se pode excluir que perante um novo facto que interesse à parte contrária mas que, não tendo sido alegado, a parte supunha que não seria considerado pelo tribunal, a parte, sabedora agora da intenção do tribunal de o levar em consideração, possa requerer que o tribunal leve ainda em consideração outro facto que igualmente se lhe afigura poder relevar, agora já não em proveito da parte contrária mas ao arrepio dos seus interesses (veja-se, no caso concreto, a questão da existência de outros filhos da arrendatária falecida que pudessem estar em condições de preferir na transmissão do arrendamento).
Por outro lado, mantendo-se a obrigação e a liberdade de a parte escolher a causa de pedir que define para a acção e sendo certo que essa escolha terá depois reflexos ao nível do caso julgado que se formará sobre a decisão, parece exigível igualmente que a parte interessada nesses factos, uma vez confrontada com a possibilidade de o tribunal vir a atender a levá-los em conta (ou mesmo independentemente disso porque apesar de não ser necessário requerimento para o efeito nada obsta a que a parte requeira ao tribunal que considere os novos factos), manifeste a concordância ou a vontade de que esses factos sejam considerados pelo tribunal e que se isso não suceder o tribunal não possa mesmo levá-los em consideração[4].
Finalmente, entendemos ainda que a possibilidade de a parte se pronunciar sobre os novos factos há-de implicar necessariamente que lhe seja dada oportunidade de requerer novos meios de prova em relação a esses factos, seja para fornecer ao tribunal prova bastante para os julgar provados, seja para lhe opor contraprova e levar o tribunal a julgá-los não provados, uma vez que levar os novos factos em consideração é antes de mais julgá-los e o julgamento pode ser positivo ou negativo. Se, por exemplo, o novo facto for favorável à pretensão do réu e resultar da última testemunha arrolada pelo réu a ser ouvida, último meio de prova produzido, poderá ser recusado ao autor a faculdade de produzir novos meios de prova destinados a fazer contraprova do novo facto? Parece claramente que a resposta tem de ser negativa, sob pena de violação do direito à prova, da igualdade de armas e da equidade do processo.
Não tendo, no caso, sido observado nenhuma destas exigências (não consta da acta que o tenham sido e ouvida a gravação da audiência, a que procedemos na totalidade, não detectámos que o tenham sido), a decisão do tribunal de considerar esses factos na sentença, julgando-os e apoiando neles a aplicação do direito, consubstancia a nosso ver uma nulidade por excesso de pronúncia porquanto o tribunal conheceu de questões de que não podia, nessas circunstâncias, tomar conhecimento, vicio que se transmitiria a este Acórdão se acaso também esta Relação se pronunciasse sobre esses factos com vista á decisão do caso.
Nessa medida, importa anular a decisão recorrida e ordenar o regresso dos autos à fase da instrução a fim de o tribunal anunciar às partes a intenção de se pronunciar sobre os novos factos resultantes da prova produzida e se cumprirem os demais requisitos de atendibilidade dos factos que deram origem aos factos constantes dos nos. 9, 10, 12 e 13.
Fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.

V.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, anulam a decisão recorrida na parte que concerne aos factos dos itens 9, 10, 12 e 13, ordenando que os autos regressem à fase da audiência de julgamento a fim de se observarem os requisitos de atendibilidade daqueles factos, acima especificados e se praticarem os demais actos subsequentes.
Custas do recurso pela parte vencida a final.
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Porto, 30 de Abril de 2015.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto200)
José Amaral
Teles de Menezes
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[1] Com a contestação, o réu juntou ainda um documento constituído pela carta que enviou aos autores a comunicar o óbito da mãe para efeitos de transmissão do arrendamento e na qual afirma, referindo-se ao arrendado, “sempre ali vivi com a minha mãe”. Para quem veja na junção de documentos uma forma de alegar factos ou, ao menos, um modo válido de concretizar ou complementar a alegação contida nos articulados, lugar natural da alegação, este documento pode servir de fundamento para excluir o entendimento de que o réu não alegou (sequer os jurídicos constitutivos de) qualquer excepção que possa impedir a pretensão dos autores.
[2] Os recorrentes referem-se ainda ao facto do item 16 como não tendo sido alegado, mas este facto, como aliás, resulta da sentença recorrida e os recorrentes também aceitam, não possui qualquer relevância jurídica para o caso, motivo pelo qual pode ser desprezado sem mais.
[3] Quando não é assim e a audiência se realiza apesar da falta do mandatário por esta não constituir motivo de adiamento tudo se passa como se ele estivesse presente.
[4] Neste sentido, Lebre de Freitas, in A acção declarativa comum, 3.ª edição, afirma que “os factos que completem ou concretizem a causa de pedir ou as excepções deficientemente alegadas podem também ser introduzidos no processo quando resultem da instrução da causa; mas, neste caso, basta à parte a quem são favoráveis declarar que quer deles aproveitar-se, assim observando o ónus da alegação. A necessidade desta declaração, decorrente do princípio do dispositivo (…), estava expressa no anterior art. 264-3 (…) e está implícita na formulação do actual art. 5-2-b (…): a pronúncia das partes, ou de uma delas (normalmente a que é onerada com a alegação do facto: “a parte interessada”), terá de ser positiva (no sentido da introdução do facto no processo), pois de outro modo seria violado o princípio do dispositivo, em desarmonia com a norma paralela do art. 590-4. A alteração de redacção tem apenas o significado objectivo de frisar que a alegação pode provir de qualquer das partes, atendendo a que o facto em causa não altera nem amplia a causa de pedir (como o do art. 265-1) ou uma excepção, apenas completando ou concretizando uma causa de pedir ou uma excepção já identificada.” Citando-o concordantemente e citando ainda a posição divergente de Maria José Capelo, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 143, pág. 294, vejam-se os Acórdãos desta Relação de 29.05.2014, Pedro Martins, processo n.º 388436/10.0YIPRT.P1, e de 15.09.2014, Domingos Fernandes, processo n.º 3596/12.0TJVNF.P1, ambos in www.dgsi.pt.