Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
755/19.9PCMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ PIEDADE
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PENA ACESSÓRIA
PROIBIÇÃO DE CONTACTOS
MEIOS ELECTRÓNICOS
REQUISITOS
IMPRESCINDIBILIDADE
ARGUIDO
CONSENTIMENTO
Nº do Documento: RP20240117755/19.9PCMTS.P1
Data do Acordão: 01/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE O RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – No caso de crimes de violência doméstica, a legislação sobre a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância (vigilância electrónica) revela várias oscilações na sua evolução, e incoerências, mesmos antagonismos nas regras vigentes.
II – Quando haja consentimento do arguido, prestado pessoalmente perante o Juiz, na presença de defensor, e formalizado em auto, o juízo sobre a imprescinbilidade (absoluta necessidade) da vigilância electrónica não é exigido.

[Sumário da responsabilidade do Relator]
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 755/19.9PCMTS.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Matosinhos - JL Criminal - Juiz 3

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

No Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Matosinhos - JL Criminal - Juiz 3, processo supra referido, foi julgado AA, tendo sido proferida Sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, decide-se:
1. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.ºs 1, al. b), e 2, al. a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
2. Suspender a execução da pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão pelo período de 3 (três) anos, sujeita a regime de prova, fiscalizado pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, incluindo, além do mais, o dever de se sujeitar a acompanhamento psicoterapêutico especializado, com o objetivo de adquirir as competências pessoais, sociais e relacionais, bem como explorar, de forma reconstrutiva, as suas crenças e ideações sobre si e os outros.
3. Condenar o arguido na pena acessória de proibição de contactar, por qualquer meio, com a vítima, e de frequentar a sua residência ou local de trabalho, dos quais deve manter distância num raio mínimo de 100 metros, pelo período de 3 (três) anos, devendo esta pena ser fiscalizada através de meios técnicos de controlo à distância.
4. Julgar o pedido cível parcialmente procedente por provado e, consequentemente, condenar o arguido a pagar à assistente a quantia de €2.000,00 (dois mil euros), a título de compensação pelos danos morais sofridos, absolvendo-o do demais peticionado.
5. Condenar o arguido a pagar as custas do processo, fixando a taxa de justiça em 2 (duas) unidades de conta.
6. Condenar a demandante e o demandado no pagamento das custas relativas ao pedido cível, na proporção do decaimento, que é de 9/10 e 1/10, respetivamente." (após rectificação)
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Desta Sentença recorreu o Arguido/Condenado AA, formulando as seguintes conclusões:
“1. Vem o Arguido condenado na pena acessória de proibição de contactar, por qualquer meio, com a vítima, e de frequentar a sua residência ou local de trabalho, dos quais deve manter distância num raio mínimo de 100 metros, pelo período de 3 (três) anos, devendo esta pena ser fiscalizada através de meios técnicos de controlo à distância;
2. O Arguido confessou integralmente os factos de que vinha acusado e demonstrou profundo arrependimento pelos factos que praticou, tendo até formalizado um pedido de desculpa profundamente emocional à vítima;
3. Ficou provado que a prática dos factos – das injúrias – que determinaram a condenação ficou balizada no período que decorre entre Setembro e Dezembro do ano de 2019, não havendo relatos da prática de qualquer injúria ou qualquer outro facto penalmente relevante por parte do Arguido a partir de Janeiro de 2020;
4. Desde então, os contactos entre o Arguido e a vítima são circunstanciais e prendem-se, sobretudo, com trocas de mensagens relativas ao filho menor de ambos, BB;
5. Tanto assim é, que na sentença se reconhece que “Analisando os factos em julgamento, atento os factos apurados integradores dos crimes de violência doméstica, a circunstância de o arguido ser primário, de estar integrado profissional, social e familiarmente, e ter cessado os seus comportamentos agressivos, …” (sublinhado nosso).
6. Não se verifica, há mais de três anos, qualquer comportamento violento ou injurioso por parte do Arguido para com a vítima;
7. Não se verifica, há mais de três anos, sequer qualquer tentativa de contacto pessoal, ou até qualquer contacto telefónico ou por mensagens que não sobre o filho menor de ambos;
8. Não existe a necessidade de sequer impor uma proibição de contacto com a vítima já que não há nem houve qualquer contacto com a vítima nos últimos três anos;
9. Mas esta imposição o Arguido cumprirá de boa vontade: também ele não pretende estabelecer qualquer contacto com a vítima, ainda mais após conhecimento da decisão do Douto Tribunal, o que faz com que o Arguido respeite tanto a vontade da vítima, como a do Tribunal, mantendo-se afastado daquela.
10. A implementação de meios de vigilância eletrónica depende da verificação de um juízo de imprescindibilidade dessa medida para a proteção da vítima, imprescindibilidade essa que no caso concreto não se verifica: não existiu qualquer contacto, qualquer procura, qualquer facto que aponte para uma tentativa de aproximação do Arguido à vítima;
11. Muito pelo contrário: a própria vítima reconheceu que não há contacto por parte do Arguido;
12. A implementação de meios de vigilância electrónica constitui uma intromissão na esfera privada daqueles que por ela são afetados;
13. E no caso concreto, sujeitar o arguido à pena acessória de vigilância eletrónica para proibir contacto com a vítima é desajustado e injusto, já que tal medida não se mostra imprescindível nem tão pouco necessária: não há contacto com a vítima;
14. Até com base nos juízos de prognose favorável à suspensão da pena de prisão, constantes na fundamentação do tribunal, resulta que a sujeição do mesmo à pena acessória de proibição de contactos com a vítima mediante controlo por meio de vigilância eletrónica é uma decisão injusta, por errada e atentatória da justiça.
15. Assim, e no que toca à imposição de fiscalização por meios de vigilância electrónica do cumprimento da pena acessória de proibição de contactos, a sentença proferida viola as normas respeitantes à boa interpretação da prova e à correta aplicação do direito, bem como se afiguram prejudicados, de forma flagrante, princípio constitucionais orientadores do sistema jurídico português, nomeadamente os princípios constitucionais da adequação e da necessidade consagrados no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa e espelhados no artigo 71.º do Código Penal.
16. A pena acessória concretamente aplicada ao arguido viola assim (e ainda) os ditames da razoabilidade e proporcionalidade na escolha da medida concreta da pena e, por esse motivo, deverá a sentença recorrida ser revogada na parte em que determina a imposição ao arguido da vigilância eletrónica de controlo à distância para fiscalização do cumprimento da pena acessória.
17. Acresce que a pena acessória de proibição de contactar com a vítima pelo período de 3 (três) anos fiscalizada através de meios técnicos de controlo à distância é até na duração fixada excessiva, devendo por esse motivo ser revogada”.
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Em 1ª Instância, o MºPº defendeu a improcedência do recurso.
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Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, igualmente, pela improcedência do recurso.
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Com interesse para a decisão a proferir, é o seguinte o teor da Sentença recorrida:
Factos Provados
“1. A assistente CC e o arguido AA conheceram-se no ano de 2005 tendo, volvidos desde aí alguns meses, passado a residir em condições análogas às dos cônjuges, na morada sita na Praceta ...
, lote ..., habitação ..., ... ....
2. Desta relação nasceu BB, em .../.../2008, que residia com estes e com os dois irmãos uterinos, DD, nascido em .../.../1996 e EE, nascida em .../.../2000.
3. Durante a relação, houve vários momentos de rutura da relação, tendo terminado definitivamente em março de 2019, data em que o ex-casal cessou a vida em comum.
4. Em 06/05/2015, num período de interrupção da vida em comum do ex-casal, fixado que o menor residiria com a mãe, ficando com o pai em fins-de-semana alternados e às quartas-feiras, indo este buscá-lo à escola às 6.ªfeiras (alternadas) à tarde, e em todas as 4.ªs feiras à escola, onde o deixaria nas 2.ªs feiras (alternadas) e nas 5.ªs feiras.
5. No entanto, após o final do relacionamento, durante o 1.º período do ano letivo de 2019/2020, o arguido AA, com uma frequência quase diária, surgiu na Escola ..., em ...- escola do menor BB -, a fim de o levar consigo, impedindo que CC o levasse para residência de ambos.
6. Nessas situações, o arguido apelidou CC de “puta”, “vaca”, “prostituta”, “drogada”, “badalhoca”, dizendo ainda que esta era má mãe.
7. Em data não concretamente determinada do já referido período, num posto de abastecimento de combustível nas imediações de casa da assistente, o arguido aproximou-se da mesma, apelidando-a de “puta”, “vaca”, “prostituta”, “drogada”, “badalhoca”, dizendo ainda que esta era má mãe.
8. Em data não concretamente determinada do já referido período, junto à escola do filho menor, o arguido AA exibiu através do seu telemóvel, fotografias e/ou vídeos da assistente, a outros pais, enquanto dizia “olhem onde é que esta puta estava”, referindo-se a si.
9. No dia 25 de novembro de 2019, por volta das 18h15m, quando a assistente FF se deslocou à escola do menor, sita na Escola ..., em ... para ir buscar o filho de ambos, deparou-se com AA, que lhe disse: “não sei porque é que vieste, ele não quer ir contigo…”, e quando confrontado pela vítima que iria chamar a polícia este apelidou-a dos epítetos acima referidos, na presença do menor, dizendo-lhe que se fosse embora.
10.Quando a polícia chegou, o arguido acabou por abandonar o local com o filho.
11.Entre 20/08/2019 e 19/11/2019, o arguido AA enviou várias mensagens sms para o telemóvel de CC, designadamente com o seguinte teor: “Tomaras tu seres tão séria como a minha mãe, ladra badalhoca, papa miúdos”, “vadia”, “xupa piças”, “és pior do que as putas”, “como é que eu pude querer um filho teu vagabunda, todo o mal que estás a fazer ao meu BB vais pagar nesta vida, e só ainda não acabei com vocês porque o meu filho não pediu para nascer, e eu sinto-me culpado de ele ter
nascido, não o quero deixar só no mundo”, “porca”, “tu és uma merda que anda por aí”, “badalhoca”, “não vales uma caralho”, “és mesmo uma maluquinha, que tristeza nos dás, o BB sabe que o amor que eu tinha por ti, e que acabou porque a mãe é o que é…”, “drogada”, “vais-te arrepender tanto tanto…”, “é no tribunal que vais sentar o cu, porque o meu filho é comigo que vai ficar, ele nem te quer ver..”, “..o meu filho sabe onde estás, vai ao tribunal dizer que és uma senhora, és uma senhora vaca…”, “Miserável, chora puta, já não choras agora”, “és uma mãe desnaturada”, “aos meus olhos e do teu filho não tens mesmo valor nenhum mesmo..”, “vadia bruxa..”, “vai-te nascer um cancro nessa cona”, “prostituta”, “hás-de ter o teu castigo monte de merda”, “és mesmo uma tarada, vai-te foder, morre..”, “ ele nunca te vai perdoar”, “ninguém, mas ninguém mesmo mo vai tirar, eu vivo por ele e vou morrer por ele também se for preciso, mas te garanto que não vou sozinho…”, “Nem imaginas.. É ele que me prende à vida”, “não vales um chavo”.
12.O arguido AA sabia que, ao dirigir à ofendida quer pessoalmente, quer por mensagens, e a terceiros (designadamente ao filho de ambos) palavras atentatórias da sua honra e consideração, acima referidas, ofendia o seu bom nome e reputação, perturbando negativamente a imagem que terceiros e esta tem de si própria.
13.Mesmo assim, atuou, com o propósito conseguido, de ofender o bom nome, a honra e consideração daquela, provocando-lhe maus-tratos psicológicos.
14.Como sabia que ao prometer-lhe que iria fazer mal, que esta ser iria arrepender e que lhe iria tirar o filho, dizendo constantemente que esta era má mãe e que o filho não queria estar com esta, lhe causava medo e receio de que, efetivamente, este pudesse atentar contra a sua integridade física e vida, bem como a pudesse separar do filho, impedindo os contactos entre ambos, bem como que criasse no mesmo uma imagem de si negativa adequada a levar à sua rejeição pelo filho.
15.Como sabia que causava dor e sofrimento emocional à CC e ao BB, ao se dirigir à escola do filho, quando não seria suposto, bem sabendo que iria encontrar-se com a vítima, provocando um contacto indesejado, confronto e discussões, à frente do filho menor de ambos, que se via disputado por ambos os pais, acabando por ir com o pai/denunciado, ao contrário do estabelecido em sede de regulação das responsabilidade parentais, por a vítima CC ceder, a fim de não expor o filho a tais pressões psicológicas.
16.O arguido AA sabia que, ao agir reiteradamente como fez e das
formas supra descritas, estava a fazer com que CC sentisse, constantemente, medo, inquietação, dor, vexame e tristeza, provocando-lhe maus-tratos psicológicos, o que quis e conseguiu provocar em CC.
17.Como, com o intuito de causar dor e sofrimento em CC, praticou tais condutas na presença do seu filho, mesmo que para tal tivesse de, com a sua conduta, provocar incontornável e necessariamente dor e sofrimento ao mesmo, o que aceitou como consequência necessária da sua conduta.
18.O arguido AA agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as condutas acimas descritas são proibidas e punidas por lei penal.
19.Ao longo da relação, a assistente CC chegou a apresentar várias denúncias, que deram origem aos processos 342/08.7PCMTS, 698/08.1PCMTS, 1810/08.7PCMTS, 711/10.2PCMTS, 152/11.4PCMTS, 788/13.9PCMTS e 193/15.2PCMTS.
Ficou assente quanto ao pedido cível que:
20.Na sequência dos comportamentos do arguido acima descritos, a assistente sentiu-se triste, ansiosa, amedrontada, humilhada e revoltada.
21.Sentindo-se desprotegida e impotente para travar tais comportamentos.
Ficou também assente que:
22.Nas situações acima descritas, o menor verbalizava querer ir embora da escola com o pai.
23.Nas situações acima descritas, o arguido encontrava-se triste por já não manter uma convivência diária com o seu filho.
24.O arguido mantém uma relação diária e de grande proximidade com o filho BB, agora com 15 anos de idade, o qual reside com a mãe, ora assistente.
25.O arguido continua a deslocar-se quase diariamente para junto da residência da ofendida, com o objetivo de transportar aquele seu filho.
Mais se apurou quanto ao arguido que:
26.À data dos factos acima referidos, como presentemente, mantinha a residência na morada acima indicada na sua identificação, com a mãe (73 anos de idade, reformada) e um sobrinho (30 anos de idade, empregado num stand de automóveis).
27.Trata-se de um apartamento do arguido, de tipologia 3, com adequadas condições de habitabilidade e situado em zona predominantemente residencial e sem especial incidência de problemáticas sociais e/ou criminais.
28.Habilitado apenas com o 1º ciclo do ensino básico, abandonou a escola, onde apresentou desmotivação, absentismo e insucesso, cerca dos 16 anos de idade altura em que iniciou atividade laboral na área da restauração e de tipografia.
29.Aos 18 anos de idade iniciou o consumo de estupefacientes, comportamento que evoluiu para um quadro de dependência, com implicações no seu percurso vivencial, permanecendo desempregado durante vários anos, sem atividade estruturada e um estilo de vida direcionado para os hábitos aditivos.
30.Submeteu-se a várias tentativas de tratamento na Equipa de tratamento ... do Centro de Respostas Integradas (CRI), assumindo os pais uma fonte de suporte significativa.
31.Afirma-se abstinente do consumo de drogas há cerca de 20 anos e sem consumo abusivo de bebidas alcoólicas.
32.Na esfera afetiva, aponta a relação com a vítima como a única significativa
33.Em fevereiro de 2020, no Juízo Central de Família e Menores de Matosinhos (J1), foi determinada a aplicação ao menor, provisória e cautelarmente, a medida de promoção e proteção de apoio junto de outro familiar – avó paterna, residente com o arguido.
34.Em 22/02/2021, por despacho judicial, foi determinada a alteração da medida para o menor passar a residir junto do agregado materno.
35.No relatório social efetuado pela EMAT, em 3/04/2023, foi proposta a manutenção da medida de promoção em curso, de apoio junto dos pais, a executar junto da vítima.
36.Nos contactos com os serviços da EMAT, AA adota uma postura adequada.
37.Para a quantia de €100,00 mensais de pensão de alimentos, assim como a mensalidade da atividade desportiva do descendente no montante mensal de €30,00 e a mensalidade do ginásio do descendente no montante de €20,00.
38.Tem uma dívida junto da Segurança Social no valor total de €4.000,00, tendo celebrado acordo de pagamento em prestações de €91,30.
39.Dedica-se à atividade profissional e que todos os tempos livres são dedicados ao descendente, ao convívio, rotinas e atividades do mesmo.
40.Trabalha durante o horário das aulas do descendente, assegura o seu transporte diário para a escola e para os treinos daquele no clube de futebol, que decorrem às terças, quartas e sextas-feiras, no horário das 19h00 às 20h15 e os jogos por norma são ao domingo.
41.Diz-se arrependido do envio das mensagens acima transcritas.
42.Ao nível familiar é expresso suporte ao arguido, não sendo patente neste contexto, impacto negativo decorrente da atual situação jurídico-penal.
43.Em caso de condenação manifestou disponibilidade para aderir a eventual medida de execução na comunidade, rejeitando a possibilidade da frequência do PAVD – Programa para Agressores de Violência Doméstica, porque não se considera violento.
44.Encontra-se a decorrer medida de promoção e proteção aplicada a favor do descendente, atualmente, junto da vítima, o que constitui um fator relevante para eventuais novas situações de tensão/conflituosidade, atendendo que ambos discordam das atitudes/comportamentos um do outro face ao descendente.
45.Embora a vítima não equacione possibilidade de reconciliação afetiva, o arguido manifesta ambivalência.
46.Não tem antecedentes criminais.
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Medida da Pena
“Ao crime de violência doméstica previsto no art.º 152.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, o legislador fez corresponder a aplicação, a título principal, de uma pena que é, exclusivamente, de prisão, e que tem o limite mínimo de 2 (dois) anos e máximo de 5 (cinco) anos.
(…)
No caso concreto, valoramos negativamente
- As elevadas necessidades de prevenção geral, que têm vindo a estar até na génese das sucessivas alterações ao tipo de crime em questão. Isto, para além de outros objetivos e interesses de cariz social, cultural e tendo em vista, em certa medida a proteção da vítima;
- o elevado grau da culpa do arguido, manifestado no dolo direto e intenso empregue nas suas condutas;
- a ambivalência da consciência crítica manifestada relativamente ao seu comportamento, ora assumindo e demonstrando arrependimento, ora atribuindo a responsabilidade à assistente;
- a gravidades dos efeitos psicológicos de tais comportamentos na assistente;
- a insistência do arguido na permanência do mesmo junto da residência da assistente, alegadamente para recolher o filho, embora com evidentes efeitos psicológicos para a mesma;
Em abono do arguido, valoramos:
- a ausência de antecedentes criminais;
- a integração profissional, familiar e social;
- a circunstância de o arguido estar separado da assistente, parecendo agora estabilizada a regulação das responsabilidades parentais relativa ao filho do ex-casal BB, que tem já 15 anos, estando próximo da maioridade, que, se não antes, implicará um fim necessário para esta discórdia;
Considerando os factos acima descritos, reputa-se por justo e adequado aplicar ao arguido a pena concreta de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
(…)
Analisando os factos em julgamento, atento os factos apurados integradores dos crimes de violência doméstica, a circunstância de o arguido ser primário, de estar integrado profissional, social e familiarmente, e ter cessado os seus comportamentos agressivos, considera-se não ser exigível a efetividade de tal pena para satisfazer as sobreditas necessidades de prevenção geral e especial, sendo, como tal, suficiente a simples ameaça do seu cumprimento.
Assim, ao abrigo do disposto no art.º 50.º Código Penal, reputa-se por razoável suspender a execução da pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão por igual período de 3 (três) anos, conforme previsto no art.º 50.º, n.º 5, do Código Penal.
De acordo com o disposto no art.º 53.º, do Código Penal:
1 - O tribunal pode determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade.
2 - O regime de prova assenta num plano de reinserção social, executado
com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social.
Ora, tendo em consideração o contexto de desequilíbrio emocional do arguido, que terá estado na base destes seus comportamentos criminosos, consideramos ser adequado à perseguição do objetivo ressocializador do mesmo sujeitar a suspensão a regime de prova, no âmbito do qual se impõe, pelo menos, o dever de se sujeitar a acompanhamento psicoterapêutico especializado, com o objetivo de adquirir as competências pessoais, sociais e relacionais, bem como explorar, de forma reconstrutiva, as suas crenças e ideações sobre si e os outros, que também poderão ser benéficas ao nível da parentalidade, conforme sugerido pela DGRSP.
O Ministério Público requereu também a submissão do arguido a penas acessórias de proibição de contacto com a vítima (com o cumprimento fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância), pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica;
Estas penas encontram-se previstas no art.º 152, n.ºs 4 e 5, do Código Penal.
Tendo em consideração a natureza do crime, assim como a circunstância do arguido, apesar das medidas de coação impostas, ter mantido a proximidade da residência da assistente, com o objetivo de transportar o seu filho, que tem já 15 anos, consideramos adequado aplicar a pena acessória de proibição de contactar, por qualquer meio, com a vítima, e de frequentar a sua residência ou local de trabalho, dos quais deve manter distância num raio mínimo de 100 metros, pelo período de 3 (três) anos, devendo esta pena ser fiscalizada através de meios técnicos de controlo à distância, para o que o arguido deu o seu expresso consentimento”.
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Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
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Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que o arguido/ condenado AA circunscreve o seu recurso à imposição da fiscalização por meios técnicos de controlo à distância (vigilância electrónica), da pena acessória de proibição de contactos com a vítima.
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O AA foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, com execução suspensa por igual período, sujeita a regime de prova.
Foi condenado na pena acessória de “proibição de contactar, por qualquer meio, com a vítima, e de frequentar a sua residência ou local de trabalho, dos quais deve manter distância num raio mínimo de 100 metros, pelo período de 3 anos, devendo esta pena ser fiscalizada através de meios técnicos de controlo à distância”.
Foi condenado a pagar 2.000€, a título de indemnização civil.
Da matéria de facto provada resulta, em síntese, que a CC e o AA viveram, desde 2005, “em condições análogas às dos cônjuges”, com “vários momentos de ruptura da relação”, mas tendo “terminado definitivamente”, apenas em Março de 2019.
Resulta, também, que as condutas foram todas geradas por questões relacionadas com o exercício de responsabilidades parentais do filho BB ─ com regime fixado em 06/05/2015, ficando o menor a residir com a mãe, com o pai em fins-de-semana alternados e às quartas-feiras, indo buscá-lo à escola ─ datando os 1.ºs episódios relatados “do 1.º período do ano lectivo de 2019/2020”, sendo constituídos por injúrias e ameaças, num contexto de tentativa de manutenção de uma convivência diária com o filho.
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No recurso, aceitando-se os factos, a qualificação jurídica, a medida da pena principal, a pena substitutiva, e a medida da pena acessória, apenas se põe em causa a imposição da fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, vulgo vigilância electrónica, da pena acessória de proibição de contactos com a vítima.
Para o efeito alega-se que o recorrente “confessou integralmente os factos”, e, “demonstrou profundo arrependimento” tendo “formalizado um pedido de desculpa profundamente emocional à vítima”, não havendo relato de qualquer injúria, “a partir de Janeiro de 2020”.
Acrescenta-se que na própria Sentença é referido que o recorrente “cessou os seus comportamentos agressivos”.
Afirma-se que o recorrente cumprirá “de boa vontade” a pena acessória, e “também ele não pretende estabelecer qualquer contacto com a vítima”.
Alega-se em seguida que “a implementação de meios de vigilância eletrónica depende da verificação de um juízo de imprescindibilidade dessa medida para a proteção da vítima, imprescindibilidade essa que no caso concreto não se verifica”, e que “constitui uma intromissão na esfera privada daqueles que por ela são afectados”.
Conclui-se que sujeitar o recorrente “à pena acessória de vigilância eletrónica para proibir contacto com a vítima é desajustado e injusto, já que tal medida não se mostra imprescindível nem tão pouco necessária: não há contacto com a vítima”.
Dizem-se violados os “princípios constitucionais da adequação e da necessidade consagrados no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa e espelhados no artigo 71.º do Código Penal”.
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Vejamos:
Tendo os actos integrantes do tipo do crime sob punição ocorrido em 2019, sendo constituídos por injúrias verbais e escritas, num contexto de tentativa de manutenção de uma convivência diária com o filho, é admissível questionar-se se a vigilância electrónica para fiscalização da pena acessória de proibição de contacto com a vítima é imprescindível.
Sendo que a sujeição a essa fiscalização acarreta, indubitavelmente, uma intromissão na vida privada do fiscalizado, e uma afectação da sua liberdade de movimentos, que representa uma restrição aos seus direitos e liberdades, constitucionalmente protegidas.
E, nessa medida, em relação à mesma também vigoram os princípios da necessidade e da proporcionalidade, extraíveis do art.º 27.º, n.sº 1 e 2 da C.R.P.
Contudo, se analisarmos a lei geral (art.152.º, do C.P.), e a lei instrumental (Lei 112/2009, 16/09), a esse respeito vigentes, verificamos o seguinte:
No n.º 4 do art.152.º, do C.P., estabelece-se uma regra facultativa, ou directiva, quanto à aplicação da pena acessória de proibição de contacto com a vítima, expressa pelo vocábulo “pode” (“podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima (…)”).
No n.º5 do art.152.º, do C.P., estabelece-se uma regra imperativa, expressa pelo vocábulo “deve” (“a pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento de residência (…) desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância”).
Portanto, perante a actual redacção da lei geral, tem de se concluir que no caso de crimes de violência doméstica, a aplicação da pena acessória de proibição de contactos com a vítima é facultativa, mas, uma vez aplicada, é imperativa a fiscalização do seu cumprimento por meios técnicos de controlo à distância.
Nem sempre foi assim, sublinhe-se: esta versão do n.º 5 do art.152.º do C.P., foi introduzida por via da Lei 19/2013 de 21/02.
A versão anterior, da Lei 59/2007 de 04/09, estabelecia uma regra facultativa: “a pena acessória de proibição de contactos com a vítima (…) e o seu cumprimento pode ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância”, em coerência com a regra, também facultativa, da aplicação da pena acessória em causa.
Se formos agora à lei instrumental, a Lei 112/2009, 16/09 (Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à protecção e à assistência das suas vítimas, na versão da Lei n.º 129/2015, de 03/09), no art.35.º, n.º 1, da Lei 112/2009, de 16/09, quanto à fiscalização do cumprimento da pena acessória por meios técnicos de controlo à distância, começa-se por fazer uso do vocábulo “deve”, indicando uma imperatividade, que logo a seguir é “temperada” (ou contrariada) pelo acrescentar da condição “sempre que tal se mostre imprescindível para a protecção da vítima” (ou seja, se mostre absolutamente necessário).
Paralelamente, do artigo seguinte, o 36.º, n.ºs 1 e 2, resulta como regra geral que a vigilância electrónica, depende do consentimento do arguido (e das pessoas que com ele vivem ou possam ser afectadas).
Esse consentimento tem de ser prestado pessoalmente perante o Juiz, na presença do defensor, e reduzido a auto (n.º 3).
Quando não haja consentimento do arguido, institui-se uma regra excepcional: a vigilância electrónica pode ser determinada pelo Juiz, se considerar, de forma fundamentada, que essa vigilância é imprescindível para a protecção da vítima.
(Art.36.º, n.º 7 - Não se aplica o disposto nos números anteriores sempre que o juiz, de forma fundamentada, determine que a utilização de meios técnicos de controlo à distância é imprescindível para a protecção dos direitos da vítima).
Tal como a lei está redigida, parece assim lícito ─ de acordo com as regras da hermenêutica (aplica-se a regra geral, desde que a excepção se não verifique) ─ formular-se o raciocínio contrário: havendo prévio consentimento, prestado pessoalmente perante o Juiz, na presença de defensor, e reduzido a auto, esse juízo sobre a imprescindibilidade (absoluta necessidade) da vigilância electrónica, não parece ser exigido.
Ou seja, apenas quando não haja consentimento do arguido, tem de ser formulado esse juízo de imprescindibilidade.
Ora, como se diria em Latim, “hic ubi punctum hits” (aqui é que bate o ponto).
O aqui recorrente prestou esse consentimento (presume-se que de forma expontânea e sem reservas), pessoalmente, perante o Juiz, e na presença do defensor, tal como consta da Acta de Leitura de Sentença (26-05-2023): “Após, passou o arguido a prestar declarações, tendo no decurso das mesmas declarado aceitar a pena acessória de proibição de contactos com a vítima com recurso a fiscalização remota através de meios electrónicos”.
E terá sido com base nesse consentimento que na Sentença recorrida, depois de se fundamentar a aplicação da pena acessória (“tendo em consideração a natureza do crime, assim como a circunstância do arguido, apesar das medidas de coação impostas, ter mantido a proximidade da residência da assistente, com o objetivo de transportar o seu filho, que tem já 15 anos, consideramos adequado aplicar a pena acessória de proibição de contactar, por qualquer meio, com a vítima, e de frequentar a sua residência ou local de trabalho, dos quais deve manter distância num raio mínimo de 100 metros, pelo período de 3 (três) anos”), se determina, sem qualquer fundamentação, a vigilância electrónica do cumprimento dessa pena acessória: “(…) devendo esta pena ser fiscalizada através de meios técnicos de controlo à distância, para o que o arguido deu o seu expresso consentimento”.
Acontece que no recurso a existência desse consentimento é totalmente omitida, partindo-se pois de premissas que não correspondem, nesse aspecto, à realidade.
É certo que esse consentimento ─ di-lo o n.º 6 desse mesmo art.36.º─ é revogável a todo o tempo.
Terá, no entanto, de ser efectuado de forma escrita e expressa, por coerência com a solenidade exigida à sua prestação, na 1.ª Instância (não bastando uma “revogação tácita”, como parece decorrer da existência de recurso a esse respeito).
Assim sendo, tem de se concluir que perante o consentimento do recorrente não era exigível, não se impunha um juízo sobre a imprescindibilidade da vigilância electrónica, não estando em causa essa condição.
Nestes termos, sabendo-se que este Tribunal reexamina a decisão recorrida com base nos mesmos precisos elementos de que a 1.ª Instância se serviu para a proferir ─ constitui uma regra base dos recursos─, o decidido a esse respeito não pode ser alterado.
É evidente que se esse consentimento for revogado (e a lei instrumental, como vimos, diz que o pode ser a todo o tempo), deixarão de existir os pressupostos da decisão, pelo que a medida poderá ser revista, sem violação do caso julgado, não estando o Tribunal de 1.ª Instância impedido de a alterar.
Em conclusão, e com estes fundamentos, o recurso tem de improceder.
Sem prejuízo do decidido, tem de se observar que a legislação a cuja análise se teve de proceder revela várias oscilações na sua evolução, e incoerências, mesmo antagonismos nas regras vigentes, dando mais uma vez razão à crítica formulada por Blanco de Morais, Manual de Legística: Critérios Científicos e Técnicos para Legislar Melhor, p. 178: “(…) pontifica há muito uma cultura de concepção legal em que o decisor legislativo prescinde do cálculo antecipatório dos efeitos que a norma irá eventualmente produzir e desinteressa-se pela produtividade e consequencialidade dessa mesma Lei, logo após a sua entrada em vigor.
Legisla-se debaixo da pressão das necessidades conjunturais, sem que se testem opções alternativas, se meçam os impactos positivos e negativos gerados pela aplicação da norma ou se calculem as dificuldades derivadas sua execução”.
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Nos termos relatados, decide-se julgar improcedente o recurso do arguido/condenado AA, mantendo-se o decidido na Sentença recorrida quanto à questão suscitada.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a Taxa de Justiça em 3 UC’s.
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Porto, 17/01/2024
José Piedade
William Themudo Gilman
Paula Pires