Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
14936/16.3T9PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MOTA RIBEIRO
Descritores: HONRA
CONSIDERAÇÃO
GRAVIDADE
ATAQUE
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
CONFLITO DE DIREITOS
TESTEMUNHA
NÃO PUNIBILIDADE
Nº do Documento: RP2019041114936/16.3T9PRT.P1
Data do Acordão: 04/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 796, FLS.182-192)
Área Temática: .
Sumário: I - O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos reconhece a honra pessoal e a consideração como parte integrante do direito ao respeito pela vida privada na medida em que a entende como parte integrante da identidade pessoal e da integridade psicológica da pessoa humana.
II - No entanto, vem defendendo que, para haver uma violação de tal direito, o concreto ataque à honra ou consideração (“reputação”) terá de atingir um certo nível de gravidade, de molde a prejudicar o gozo daquele direito pois que só um determinado nível de gravidade permitirá que uma eventual condenação, com base na violação desse direito, não possa ser considerada uma interferência ilegítima no direito de liberdade de expressão.
III - A condenação só pode ser aceitável na medida em que se mostre necessária, numa sociedade democrática, à proteção da reputação ou de direitos de outrem, devendo por isso, uma intervenção desse jaez, revelar-se concretamente necessária, proporcional e baseada numa interpretação razoável das normas do Código Penal.
IV - O vocábulo “necessário”, constante da norma do art.º 10º, § 2º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem deverá ser interpretado com o sentido de “uma necessidade social imperiosa”.
V - Afirma o mesmo Tribunal que “a liberdade constitui um dos fundamentos essenciais duma sociedade democrática, uma das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento pessoal de cada um”.
VI - Sem prejuízo do disposto no § 2º do art.º 10º, uma tal conceção de liberdade vale não apenas para as “informações” ou “ideias” acolhidas favoravelmente ou com indiferença, mas também para aquelas que ofendem, chocam ou produzem inquietação.
VII - Pese embora, como resulta do art.º 10º, a liberdade de expressão esteja sujeita a exceções, estas, todavia, têm de ser interpretadas de modo estrito, assim como a necessidade de quaisquer restrições tem de ser estabelecida de modo convincente.
VIII - Tanto o direito à liberdade de expressão como o direito à honra têm consagração constitucional (art.ºs 37º e 26º da CRP), sendo que nenhum se pode afirmar absolutamente sobre o outro.
IX - Verificado que seja um conflito entre tais direitos, deverá procurar-se uma solução que não passará pelo estabelecimento de uma ordem hierárquica entre eles, mas antes pela realização ótima de cada um, harmonizando-os segundo um princípio de concordância prática.
X - Para que na actuação individual concreta se possa considerar a existência de um desequilíbrio voluntariamente criado, designadamente um excesso no uso da liberdade de expressão, em violação do direito à honra ou consideração, vistas as coisas à luz do direito penal, haverá sempre que ponderar a existência ou não de uma gravidade tal que justifique a aplicação de uma sanção penal.
XI - As afirmações que as arguidas produziram, dirigidas ao assistente, no âmbito de interrogatórios que lhes foram dirigidos como testemunhas, sobre factos que o assistente havia narrado para o processo, e sobre os quais, nessa qualidade, tinham de falar, fazendo-o de um modo que, no mínimo, poderá ser considerado contundente, utilizando expressões que, não sendo as mais adequadas em termos de correção, de educação e até de consideração pela pessoa visada, não são penalmente punidas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 14936/16.3T9PRT.P1 – 4.ª Secção
Relator: Francisco Mota Ribeiro
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
1. RELATÓRIO
1.1 Por despacho proferido a 02/07/2018, nos autos de instrução com o Proc.º nº 14936/16.3T9PRT, que correu termos no Juízo de Instrução Criminal do Porto, Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, nos termos do art.º 308º, nº 1, do CPP, foi decidido não pronunciar as arguidas B… e C… pelos crimes de difamação agravada, p. e p. pelos art.ºs 180º e 183º, nº 1, al. a) e b), do Código Penal, que o assistente D… lhes quer ver imputados e, consequentemente, foi ordenado o oportuno arquivamento dos autos.
1.2. Não se conformando com tal decisão, dela interpôs recurso o assistente, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões:
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1.3. O Ministério Público respondeu, concluindo pela negação de provimento ao recurso.
1.4. O Sr. Procurador-Geral-Adjunto emitiu douto parecer, dando nota da ausência de descriminação na decisão recorrida dos factos considerados indiciados e não indiciados, concluindo que caso se considere que tal irregularidade não afeta a validade do ato, nos termos do art.º 123º, nº 2, do CPP, deverá então ser negado provimento ao recurso, por o conteúdo das declarações prestadas pelas arguidas no inquérito não ser suscetível de ofender a honra e consideração do assistente, não tendo por isso relevância criminal.
1.5. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
1.6. Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pelo assistente e os poderes de cognição deste Tribunal, importa agora apreciar e decidir a seguinte questão: se dos autos resultam ou não indícios suficientes que impliquem, fáctico-juridicamente, e mais precisamente ao nível da ilicitude típica, a imputação às arguidas dos crimes por que vinham acusadas, e em termos de se considerar que as mesmas deveriam ter sido, em relação a eles, pronunciadas, de harmonia com o disposto nos art.º 308º, nº 1, do Código de Processo Penal.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Factos a considerar
2.1.1. No despacho de não pronúncia posto em crise pelo Assistente, com estrita relevância para o caso dos autos, considerou-se o seguinte:
“(…)
No caso dos autos, as afirmações produzidas pelas arguidas enquanto testemunhas no NUIPC nº 11227/15.0T9PRT, não ultrapassam a mera exposição de factos que a arguida C... diz ter vivenciado por ocasião da apresentação do livro intitulado “E...” no café denominado "F...", sito no Porto, em abril de 2014, da autoria de G... que usa o pseudónimo H... e é amigo do companheiro da arguida B...; na apresentação de tal livro, a dita arguida, conheceu pessoalmente o aqui assistente; por sua vez, a arguida B..., mãe da C..., expõe a sua versão dos factos sobre o que a filha vivenciou naquela data.
Em tais depoimentos, as arguidas repudiam os factos narrados pelo assistente a fls. 53 a 73 desse NUIPC nº 11227/15.0T9PRT, apresentando a cada uma a respectiva versão, dessas imputações que lhes são feitas.
Assim, a arguida C... ao afirmar que, em 2014, quando conversava com o assistente "se apercebeu de alguns traços paranóicos...fazer associações despropositadas sempre a orientar as situações contra si de forma séria. Dá um exemplo: se dizia: não gosto de limão por ser azedo, ele seriamente perguntava-lhe se o achava azedo” manifesta o seu repúdio pelos factos descritos pelo assistente sobre as acções da visada, que nega totalmente e exprime a sua opinião pessoal sobre o comportamento do assistente, a sua visão dessa conduta, que não pode ser tida como aceite do ponto de vista técnico-científico, pois não se indicia nos autos que a arguida seja Psicóloga ou Psiquiatra Forense e a conversa que com teve com o ofendido naquela ocasião, não ocorreu em contexto nem foi dirigida a qualquer avaliação/perícia de Psicologia ou Psiquiatria Forenses sobre os traços da personalidade do mesmo.
Sobre a arguida em questão, que é estudante, desconhecendo-se de que estabelecimento de ensino e curso, não se indicia que possua conhecimentos científicos de Psicologia ou Psiquiatria Forenses para tecer quaisquer considerações/classificações próprias destas áreas de conhecimento sobre a personalidade do aqui assistente e, além disso, afirmar que tudo o que é relatado (pelo assistente a fls. 53 a 73 desse NUIPC n° 11227/15.0T9PRT ) é produto de delírio do mesmo apenas significa que a arguida nega tais factos, que na versão dela, não correspondem à realidade; por outro lado, afirmar que o assistente "fez investidas românticas " e que " ...acabou por querer beijá-la, o que a declarante recusou são apenas factos que a arguida relata, que podem não corresponder à realidade, mas que não são ofensivos da honra e consideração do assistente ou que lesem a sua boa imagem.
No que respeita à arguida B..., que afirma ser Psicóloga, mas desconhece-se se desempenha a profissão de psicóloga clínica, referindo no que respeita à profissão ser Técnica Superior, desconhecendo-se em que entidade desempenha essa função e se está relacionada com a sua formação académica em Psicologia, o ter afirmado sobre o assistente (ao tomar conhecimento do que ele verteu a fls. 53 a 73 do NUIPC n° 11227/15.0T9PRT ), que “não batia bem da cabeça", significa apenas que também esta arguida nega peremptoriamente tais factos, que tal factualidade é " absolutamente inverosímil" é absolutamente carecido de sentido, sendo mera fantasia são outras expressões a que a arguida recorre/utiliza para negar esses factos; o afirmar que "diz, como psicóloga, que perpassa dos mesmos que o declarante faz associações de factos e de situações de natureza delirante quer significar que a arguida continua a negar os factos, a expressar que não correspondem à realidade e por isso só podiam ter sido inventados pelo ofendido; quanto a querer enfatizar que esses factos não são verídicos, recorre à sua formação académica em psicologia, para frisar essa negação, mas não significa de todo, que do conteúdo de fls. 53 a 73, se possa extrair que o ofendido faz associações de natureza delirante, porquanto uma tal avaliação científica teria que ser retirada de um exame realizado por profissional da área, em contexto próprio e através de método científico, dirigido a avaliar os traços de personalidade do ofendido e as afirmações por ele produzidas no decurso de tal avaliação clínica, numa perícia de eventual diagnóstico de psicopatologia que o mesmo, padecesse ou não.
Certo é, que nesses depoimentos, as arguidas não afirmam que o assistente é um mau elemento social, uma pessoa má; não colocam em causa as suas qualidades morais, não lhe apontam defeitos de carácter, não afirmam que ele é indigno, nem sobre ele tecem comentários que reclamem a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento.
Miguez Garcia e Castela Rio[1] citando o Ac. da R.C. de 23/5/2012[2], dão o seguinte exemplo, carecido de dignidade penal: a expressão «sacana» não tem um conteúdo ofensivo da honra e consideração; trata-se de uma expressão desrespeitosa e nada educada e cortês
Também para o Ac. da R.P. de 20/4/2016[3], aqui aplicável, mutatis mutandis, no qual se decidiu que "Não comete o crime de injúria do art. 181° n° 1 do Cód. Penal, o agente que apelida outrem de «bêbado» e «deficiente» exarou-se sobre a expressão «deficiente» que "...Sendo o assistente paraplégico, dúvidas não restam que padece de uma deficiência e grave. No entanto, as deficiências físicas nada têm a ver com a honra e reputação, pelo se trata de uma expressão desagradável, susceptível de melindrar, mas é uma expressão que não atinge o bom nome e consideração do visado, uma vez que a reputação de um indivíduo não é atingida por ser deficiente físico.
O direito penal tutela os valores fundamentais da vida em sociedade, obedecendo a um princípio de intervenção mínima, bem como de proporcionalidade, imanentes ao Estado de Direito. Assim, nem tudo o que se apresenta como desagradável, pouco ético, será relevante para esse núcleo de interesses penalmente protegidos. No caso em apreço, a lei tutela a dignidade e o bom-nome do visado, não a sua susceptibilidade ou o seu melindre, aliás, compreensíveis. Nesta conformidade, a arguida ao apelidar o assistente de "bêbedo" e "deficiente", não cometeu o crime de injúria que lhe foi imputado, pelo que se impõe a sua absolvição.
Elucidativo a propósito do tipo de crime aqui imputado às arguidas B... e C..., é o decidido pelo Ac. da R.P. de 11/11/2015[4] onde se exarou que "A protecção penal conferida à honra só encontra justificação nos casos em que objectivamente as expressões que são proferidas não têm outro sentido que não seja o de ofender, que inequívoca e em primeira linha visam gratuitamente ferir, achincalhar, rebaixar a honra e o bom nome de alguém ".
Em suma, as afirmações das arguidas conquanto tenham desagradado ao assistente, não as fazem incorrer em responsabilidade criminal.
"O direito penal não é para aplicar a sensibilidades muito sensíveis (...) mas para reprimir crimes caso contrário, "nunca poderíamos abrir a boca que já estávamos sentados no banco dos arguidos "(n)-
Como tem sido entendido pela Jurisprudência [5],w (...) é próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. (...) E o direito (...) só pode intervir quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função
2.2. Fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos
São as conclusões que definem e delimitam o objeto do recurso. Isto sem prejuízo do conhecimento daquelas que devam ser suscitadas oficiosamente, como acontece, por exemplo, com os vícios a que alude o art.º 410º, nº 2, ou as nulidades do art.º 379º, nº 1, do CPP.[6]
Será com base, portanto, nas conclusões oferecidas pelo recorrente que iremos abordar o mérito do recurso.
Nos termos do art.º 308º, nº 1, do CPP, só a recolha, até ao encerramento da instrução, de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, permite a prolação de um despacho de pronúncia. Caso contrário o juiz deverá proferir despacho de não pronúncia.
É do despacho de não pronúncia proferido nos autos que o assistente vem agora recorrer, importando por isso apurar se dos autos resultam ou não indícios suficientes que impliquem, fáctico-juridicamente, a imputação às arguidas dos crimes por que vinham acusadas, de difamação agravada, p. e p. pelos art.ºs 180º e 183º, nº 1, al. a) e b), do Código Penal.
Os factos em causa, isto é, indiciados nos presentes autos, como tendo sido praticados pelas arguidas, nos termos da decisão recorrida, são os seguintes:
1. A afirmação feita pela arguida C…, de que, em 2014, quando conversava com o assistente, se apercebeu de alguns traços paranóicos... fazer associações despropositadas sempre a orientar as situações contra si de forma séria. Dando a arguida como exemplo: se dizia: não gosto de limão por ser azedo, ele seriamente perguntava-lhe se o achava azedo”
2. A afirmação de que tudo o que é relatado (pelo assistente a fls. 53 a 73 desse NUIPC n° 11227/15.0T9PRT) é produto de delírio do mesmo;
3. A afirmação produzida pela mesma arguida de que o assistente "fez investidas românticas " e que " ...acabou por querer beijá-la, o que a declarante recusou”;
4. A afirmação produzida pela arguida B..., de que era Psicóloga, que tinha a profissão de psicóloga clínica, e no que respeita à profissão que era Técnica Superior;
5. Tendo a mesma arguida afirmado sobre o assistente (ao tomar conhecimento do que ele verteu a fls. 53 a 73 do NUIPC n° 11227/15.0T9PRT), que “não batia bem da cabeça", que tal factualidade é "absolutamente inverosímil”, “absolutamente carecido de sentido, sendo mera fantasia”;
6. Dizendo ainda, para negar os factos descritos pelo assistente, que, ”como psicóloga, que perpassa dos mesmos que o declarante faz associações de factos e de situações de natureza delirante”;
7. Tais afirmações foram produzidas pelas arguidas enquanto testemunhas no NUIPC nº 11227/15.0T9PRT;
8. Tais afirmações são exposição de factos que a arguida C... diz ter vivenciado por ocasião da apresentação do livro intitulado “E..." no café denominado "F...", sito no Porto, em abril de 2014, da autoria de G... que usa o pseudónimo H... e é amigo do companheiro da arguida B...;
9. Na apresentação de tal livro, a dita arguida, conheceu pessoalmente o aqui assistente;
10. Por sua vez, a arguida B..., mãe da C..., expõe a sua versão dos factos sobre o que a filha vivenciou naquela data;
11. Em tais depoimentos, as arguidas repudiam os factos narrados pelo assistente a fls. 53 a 73 desse NUIPC nº 11227/15.0T9PRT, apresentando cada uma a respectiva versão, dessas imputações que lhes são feitas.
Foi com base nestes factos que o Tribunal a quo considerou não haver fundamento para a pronúncia das arguidas pelos crimes de que vinham acusadas, factos esses que não foram postos em causa no recurso interposto pelo recorrente, extraindo-se, aliás, da própria motivação do recurso que tais factos são a essência do fundamento, quer da decisão recorrida, quer da pretensão deduzida no mesmo recurso. Na primeira porque é com base neles que se conclui não assumirem gravidade suficiente para serem considerados constitutivos dos crimes de difamação imputados às arguidas pelo recorrente; e no segundo porque, com base naquela mesma factualidade, entende o recorrente que ocorre o preencimento dos crimes de difamação àquelas imputados. Podendo concluir-se, portanto, haver consenso entre os sujeitos processuais, tanto das arguidas, como da parte do assistente, relativamente aos factos que são objeto do litígio, consenso que se estende ao próprio Ministério Público, porquanto na resposta dada ao recurso pugnou pela manutenção da decisão recorrida, da qual meridianamente resultam como assentes aqueles mesmos factos. Por isso mesmo, e pese embora tal decisão não prime pela correta separação formal entre os factos indiciados e os fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos com base neles produzidos, consideramos que tal irregularidade, que não foi sequer tempestivamente arguida, nos termos do art.º 123º, nº 1, do CPP, assume uma natureza meramente formal, sem significativa relevância para a validade da decisão proferida ou para o mérito da decisão a proferir no âmbito do presente recurso, que impusesse a determinação oficiosa da sua reparação ao abrigo do nº 2 do mesmo artigo, já que o que importa apurar e decidir é se as declarações indiciariamente proferidas pelas arguidas, nos termos acima descritos, são ou não constitutivas dos crimes de difamação agravada, nos termos agora pretendidos pelo recorrente. Ou seja, a questão decidenda, delimitadora do objeto do recurso, não é saber que factos foram ou não indiciados nos autos, mas sim se os que foram considerados indiciados pela decisão recorrida, aliás, resultantes inabalavelmente, em termos probatórios, dos documentos autênticos que os suportam, nos termos do art.º 169º do CPP, são ou não cosntitutivos dos crimes de difamação que o recorrente pretende fazer valer. Sendo isso que iremos de seguida procurar saber.
Ora, diz o art.º 180º, nº 1, do CP que “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.”
Se considerarmos que “a honra pertence por igual a todas as pessoas (atributo inato) e é indiferente ao concreto valor social de cada um”, sendo a mesma vista como um “bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior”[7], veremos também que o seu conteúdo é social e historicamente variável, com uma relativa e simétrica relevância no apuramento dos factos ou juízos de valor que, objetivamente determinados, possam ser reconduzíveis a comportamentos “eticamente desvaliosos” do titular do direito à honra ou consideração, na estrita medida em que possam atingir, pela sua gravidade, uma dimensão de ilicitude jurídico-penal. Sendo certo que uma tal gravidade não pode deixar de ser medida “num horizonte de contextualização”, no sentido de que a verificação do preenchimento do tipo objetivo do crime de difamação não pode prescindir de uma cuidada e concreta análise das circunstâncias em que é adotado o comportamento ilícito, a sua adequação para objetivamente lesar o bem jurídico da honra ou consideração da pessoa visada, e cuja própria “extensão e consistência” estão também dependentes do comportamento desta[8].
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, ao abrigo do art.º 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, reconhecendo a honra pessoal e a consideração como parte integrante do direito ao respeito pela vida privada, na medida em que a entende como parte integrante da identidade pessoal e da integridade psicológia da pessoa humana, vem também defendendo que, para haver uma violação de tal direito, o concreto ataque à honra ou consideração (“reputação”) terá de atingir um certo nível de gravidade, de molde a prejudicar o gozo daquele direito[9]. Porquanto só um determinado nível de gravidade permitirá que uma eventual condenação, com base na violação desse direito, não possa ser considerada uma interferência ilegítima no direito de liberdade de expressão, consagrado no art.º 10º, § 1º, da mesma Convenção, pressupondo-se assim que uma tal condenação só possa ser aceitável, nos termos do art.º 10º, § 2, da CEDH, na medida em que se mostre necessária, numa sociedade democrática, à proteção da reputação ou de direitos de outrem. Devendo por isso, uma intervenção desse jaez, revelar-se concretamente necessária, proporcional e baseada numa interpretação razoável das normas do Código Penal[10]. Sendo o vocábulo “necessário”, constante da norma do art.º 10º, § 2º, da Convenção interpretado com o sentido de “uma necessidade social imperiosa”. Afirmando o mesmo Tribunal que “a liberdade constitui um dos fundamentos essenciais duma sociedade democrática, uma das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento pessoal de cada um. E sem prejuízo do disposto no § 2º do art.º 10º, uma tal conceção de liberdade vale não apenas para as ‘informações’ ou ‘ideias’ acolhidas favoravelmente ou com indiferença, mas também para aquelas que ofendem, chocam ou produzem inquietação. Sendo estas exigências de pluralismo, tolerância e mentalidade aberta, fundamentais, sem as quais não poderá haver uma sociedade democrática. E pese embora, como resulta do art.º 10º, uma tal liberdade esteja sujeita a exceções, estas, todavia, têm de ser interpretadas de modo estrito, assim como a necessidade de quaisquer restrições tem de ser estabelecida de modo convincente.”[11]
A historicidade do direito e a contingente valoração da honra ao longo dos tempos, devem implicar, sobretudo ao nível jurídico-penal, uma interpretação cuidadosa e prudente do sentido da sua atual juridicidade, e sobretudo da antijuridicidade dos comportamentos que a possam lesar ou comprometer, na justa medida em que “a honra emerge com um sentido, conteúdo e densidade varáveis em função das representações coletivas dominantes e historicamente contingentes”[12]. Sendo certo ser este um campo de especial afirmação, também na problemática aplicação do direito ao caso concreto, do princípio da fragmentariedade do direito penal ou direito penal como ultima ratio. Ou seja, de que a sua previsão típica não deve aspirar a cobrir todos os casos de ilicitude, que possam ser ético-juridicamente censuráveis ou axiologicamente desvaliosos, porquanto, nas palavras do Professor Jorge de Figueiredo Dias, “num Estado de Direito material, de cariz social e democrático, o direito penal só pode intervir onde se verifiquem lesões insuportáveis das condições comunitárias essenciais de livre desenvolvimento da personalidade de cada homem.”
Tanto o direito à liberdade de expressão como o direito à honra têm consagração constitucional (art.ºs 37º e 26º da CRP), sendo que nenhum se pode afirmar absolutamente sobre o outro. E verificado que seja um conflito entre tais direitos, deverá procurar-se uma solução que não passará pelo estabelecimento de uma ordem hierárquica entre eles, mas antes pela realização ótima de cada um, harmonizando-os segundo um princípio de concordância prática, para o que se deverá atender aos dados do caso concreto, usando-os segundo critérios de proporcionalidade, razoabilidade e adequação. Mas mesmo que na atuação individual concreta se possa considerar a existência de um desequilíbrio voluntariamente criado, designadamente um excesso no uso da liberdade de expressão, em violação do direito à honra ou consideração, vistas as coisas à luz do direito penal haverá sempre que ponderar a existência ou não de uma gravidade tal, em tal violação, que justifique a aplicação de uma sanção penal, isto é, de uma pena de prisão ou de multa.
Pelo exposto, e vertendo agora a nossa atenção sobre os dados do caso concreto, somos levados a concluir que as afirmações que as arguidas produziram, dirigidas ao assistente, é certo, mas nas circunstâncias em que o foram (o supra referido “horizonte de contexto” que não poderá deixar de ser tido em conta), isto é, no âmbito de interrogatórios que lhes foram dirigidos como testemunhas, sobre factos que o assistente havia narrado para o processo, e sobre os quais, nessa qualidade, tinham de falar, e fazendo-o, é certo, de um modo que, no mínimo, poderá ser considerado contundente, mas com uma clara intenção de negar a realidade daqueles mesmos factos, utilizando expressões que, não sendo as mais adequadas em termos de correção, de educação e até de consideração pela pessoa visada, a verdade é que mais não traduzem senão juízos com os quais visavam pôr em causa a versão por aquele dada daqueles factos, sendo que algumas dessas expressões são também muitas vezes comummente usadas, e até aceites, sem que lhes seja concedida qualquer relevância criminal, isto é, como meios para esgrimir ou pôr lapidarmente em causa, de um modo sobretudo retórico, a argumentação de um outro contendor, sem um qualquer intuito de ofender, como quando se diz a alguém: “estás a delirar”, “estás a ser paranóico”, “o que estás a dizer é pura loucura”, “és louco”, “não bates bem da bola”, etc., para assim tentar acabar com a hipótese de discussão ou de continuação de discussão sobre um determinado assunto, sendo a ela análogas as expressões também utilizadas pelas arguidas, como é "absolutamente inverosímil”, “absolutamente carecido de sentido, sendo mera fantasia”, ou “não bate bem da cabeça”, inserindo-se todas elas, claramente, numa retórica de negação da realidade dos factos que o assistente havia alegado nos autos. E sendo embora mais controversa a afirmação feita pela arguida C…, de que, em 2014, quando conversava com o assistente, se apercebeu de “alguns traços paranóicos” e de este fazer associações despropositadas, sempre a orientar as situações contra si de forma séria, dando como exemplo o facto de lhe dizer “não gosto de limão por ser azedo”, e ele seriamente perguntar-lhe “se o achava azedo”, tudo isto, pese embora possa considerar-se em certa medida ofensivo, a verdade é que o contexto em que são produzidas tais afirmações, e ademais a existência de uma relação pessoal, ainda que esporádica entre as pessoas em causa, não podem de todo dar-lhes a dimensão de gravidade que reclame a aplicação de uma sanção penal. Sendo que na ambiência em que as testemunhas são ouvidas, isto é, num inquérito criminal, a sua liberdade de expressão também assume uma especial importância, que deve como tal ser tutelada, porquanto dela estará dependente a possibilidade efetiva da descoberta da verdade sobre os factos, bem como o afastamento, tanto quanto possível, de constrangimentos que possam limitar ou condicionar, em geral, a prestação de depoimentos ou declarações, assim como obstaculizar a descoberta da verdade material, tão essencial, e sem a qual não é possível a realização da justiça. Sendo neste contexto que a gravidade da ilicitude pode e deve, na sua significação, merecer uma especial compreensão e valoração, porquanto o que aí é dito o é no âmbito do cumprimento de um dever legal de prestar declarações. Sendo útil e até necessário que quem as presta, em tais circunstâncias, o possa fazer com o máximo, e não com o mínimo, de liberdade legalmente possível. Por isso também entendermos, ao contrário do que parece querer sustentar o recorrente, que seria mais grave a afirmação num estabelecimento de café, perante terceiros, de forma arbitrária, sem motivação contextual plausível que justificasse uma tal afirmação e desse modo diminuísse a sua gravidade, relativamente ao recorrente, que este “tinha traços paranóicos” ou que tinha “comportamentos delirantes”. Não sendo este ou análogo a este, como vimos supra, o caso dos autos. Concordando nós também com a decisão recorrida, quando aí se afirma, relativamente à arguida C…, a dado passo:
“Assim, a arguida C… ao afirmar que, em 2014, quando conversava com o assistente " se apercebeu de alguns traços paranóicos... fazer associações despropositadas sempre a orientar as situações contra si de forma séria. Dá um exemplo: se dizia: não gosto de limão por ser azedo, ele seriamente perguntava-lhe se o achava azedo manifesta o seu repúdio pelos factos descritos pelo assistente sobre as ações da visada, que nega totalmente e exprime a sua opinião pessoal sobre o comportamento do assistente, a sua visão dessa conduta, que não pode ser tida como aceite do ponto de vista técnico-científico, pois não se indicia nos autos que a arguida seja Psicóloga ou Psiquiatra Forense e a conversa que com teve com o ofendido naquela ocasião, não ocorreu em contexto nem foi dirigida a qualquer avaliação/perícia de Psicologia ou Psiquiatria Forenses sobre os traços da personalidade do mesmo.”
Ou seja, na primeira instância, quer o Ministério Público, quer o Senhor Juiz que proferiu a decisão de não pronúncia, quer o Sr. Procurador-Geral-Adjunto, junto deste Tribunal, não tiveram dúvidas em considerar sem relevância penal, desde logo ao nível da respetiva tipicidade objetiva, os factos concretamente indiciados nos autos. E pelas razões expostas, também nós não vemos como seja possível sustentar agora uma tal gravidade, em termos de se poder dizer que dos autos resultam indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação às arguidas de uma pena de prisão, porquanto ao nível da tipicidade objetiva falece um dos fundamentos essenciais para a verificação do crime ou dos crimes de difamação imputados pelo assistente às arguidas. O que tem como consequência a prolação de um despacho de não pronúncia, nos termos do art.º 308º, nº 1, do CPP.
Razão por que irá ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Uma vez que o assistente decaiu totalmente no recurso interposto, é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua atividade deu lugar (artigos 515.º, nº 1, al. b), e 514.º, nº 3, do Código de Processo Penal).
Nos termos do disposto nos art.º 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais e a Tabela III a ele anexa, a taxa de justiça varia entre 3 a 6 UC, devendo ser fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela III. Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 4 ½ UC.
3. DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação do Porto em:
a) Negar provimento ao recurso interposto pelo assistente D…, mantendo-se a decisão recorrida.
b) Custas a cargo do assistente, fixando-se a taxa de justiça em 4 ½ UC.

Porto, 11 de abril de 2019
Francisco Mota Ribeiro
Elsa Paixão
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[1] fr. ob. cit. pág. 805.
[2] No proc. n° 241/10.2GAANS.C1.
[3] Cfr. proc. n° 1171/13.1GAMAI.P1, in www.dgsi.pt
[4] Cfr. proc. n° 995/14.7TAMTS, in www.dgsi.pt
[5] Cfr. Ac. da R.P. de 19/1/2005 no proc. n° 0416203 in www.dgsi.ptITRP00037612.
[6] Cf. por todos, Ac. do STJ, de 11/04/2007, Pº 07P656, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj.
[7] José de Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 606 e 607.
[8] Cf. José de Faria Costa, Idem, p. 612 e Manuel da Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, Coimbra, 1996, p. 83.
[9] Caso A v. Norway (Application no. 28070/06)
[10] Caso Juppala v. Finland (Aplication no.18620/03)
[11] Caso Bédat v. Switzerland (Application no. 56925/08)
[12] Manuel da Costa andrade, Idem, p. 83.