Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1156/22.7T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALEXANDRA PELAYO
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
SUBEMPREITADA
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
ELIMINAÇÃO DOS DEFEITOS
DOCUMENTO EM LÍNGUA ESTRANGEIRA
TRADUÇÃO DE DOCUMENTOS
Nº do Documento: RP202404091156/22.7T8PVZ.P1
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O disposto nos artºs 133º e 134º do C.P.C. não impõe a tradução dos documentos em língua estrangeira existentes no processo, se tal tradução for acessível a todos os intervenientes no processo.”
II - É de qualificar como contrato de subempreitada o contrato mediante o qual a autora solicitou à ré a prestação de serviços de estampagem de várias peças têxteis, que lhe foram previamente encomendadas por uma outra empresa.
III - Os contratos de empreitada e de subempreitada estão funcionalizados um em relação ao outro, pois foram celebrados para a prossecução de uma finalidade comum.
IV - Tendo havido contaminação no processo de estampagem, das peças com produto químico em valores não permitidos por lei, ocorre incumprimento do contrato de subempreitada, não se mostrando possível a observância do disposto no art. 1221º do C.Civil, não podendo a autora exigir da ré a eliminação dos defeitos, por não ser viável a descontaminação das peças, assim como não poderá aquela exigir nova obra, se o prazo de entrega no contrato de empreitada (principal) já tiver sido esgotado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1156/22.7T8PVZ.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim - Juiz 6

Juíza Desembargadora Relatora:

Alexandra Pelayo

Juízes Desembargadores Adjuntos:

Rui Moreira

Anabela Miranda.

SUMÁRIO:

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Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

A..., SA., com sede na Rua ..., ..., Apartado ..., ... Maia, instaurou acção declarativa de condenação com processo comum contra B..., LDA, com sede na Rua ..., Frações A, B e J, ..., ..., Barcelos, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a indemnização por danos causados pelo incumprimento do contrato entre ambas celebrado, no valor global de 168.878,41€ (cento e sessenta e oito mil oitocentos e setenta e oito euros e quarenta e um cêntimos), acrescido de juros de mora, à taxa comercial em vigor, contados desde o dia 7 de junho de 2022, bem como a compensação por danos não patrimoniais, no valor de €5.000,00, acrescida de juros de mora, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Alega, para tanto e em síntese, que, por contato que celebrou com a Ré, esta obrigou-se a realizar os serviços de estampagem em várias peças têxteis que lhe entregou para o efeito.

Sucede que o serviço realizado pela Ré não obedeceu às boas práticas e normas de segurança, o que conduziu à perda total/inutilização das referidas peças têxteis.

Em consequência, tem direito a ser indemnizada pelos prejuízos correspondentes aos custos em que incorreu com a produção daquelas peças têxteis e ainda pelo custo das perícias e exames laboratoriais que solicitou para comprovar a origem da contaminação das ditas peças, os quais importam num valor global que, abatido do montante total dos créditos que a Ré detinha sobre ela na respetiva “conta-corrente”, ascende a €168.791,46, que agora reclama da Ré.

Alega ainda que apesar de reconhecer ser devedora de tal valor, a Ré nada pagou.

Sustenta ainda que a atuação da Ré causou ainda prejuízos na sua reputação comercial, pelos quais reclama uma compensação por danos não patrimoniais no montante de €5.000,00

A Ré contestou a pretensão da Autora defendendo que os serviços de estampagem que levou a cabo por encomenda da Autora respeitaram as boas práticas e regras de segurança, tendo utilizado produtos certificados e que cumpriam os parâmetros legais de isenção de substâncias nocivas e proibidas de utilização.

Afirma assim que, a existir eventual contaminação dos produtos da Ré, esta não tem origem no processo de estampagem que realizou.

Afirma que a Autora litiga com má-fé ao reclamar como prejuízos supostos custos derivados de encomendas que nada têm a ver com os serviços objeto deste processo.

Em reconvenção, reclama o pagamento de um conjunto de serviços realizados por encomenda da Autora e não pagos por esta, melhor identificados nas faturas que junta aos autos.

Para a hipótese de a acção vir a ser julgada procedente, deduz o incidente de intervenção acessória das sociedades «C..., Ldª» e «D..., ldª».

Na Réplica, a Autora, pronunciando-se sobre o pedido reconvencional, sustenta que o mesmo não se encontra controvertido, já que se trata precisamente daquele cujo valor foi por si considerado e reconhecido na compensação de créditos que operou e comunicou á Ré, o que não poderá deixar de relevar em sede de condenação em custas.

Pronunciou-se também no sentido de indeferimento do pedido de condenação como litigante de má-fé.

Foi admitida, por despacho judicial, a intervenção acessória das mencionadas sociedades «C..., Ldª» e «D..., Ldª»., as quais, regularmente citadas, vieram apresentar a sua contestação.

A primeira das identificadas chamadas aderiu à contestação da Ré, enfatizando que o produto por ela fornecido para o processo de estampagem levado a cabo pela Ré não tem na sua composição o composto químico nocivo encontrado nas peças têxteis da Autora.

Também a segunda das referidas chamadas reclama a ausência do mesmo composto químico no produto que forneceu à Ré e que se destina ao processo de estampagem levado a cabo pela mesma.

Realizou-se a audiência de julgamento e no final, foi proferida sentença,

“Pelo exposto, decide-se:

a) Julgar a acção parcialmente procedente por provada e consequentemente condenar a Ré a pagar à autora a indemnização pelos prejuízos causados pelo incumprimento contratual a este imputável, a liquidar ulteriormente;

b) Julgar a reconvenção procedente e consequentemente condenar a Autora a pagar à Ré/reconvinte a quantia de €28.196,83 (vinte e oito mil, cento e noventa e seis euros e oitenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal dos juros comerciais, contados desde a modificação da reconvenção;

c) Mais se decide julgar válida e operante a compensação do crédito indemnizatório referido em 1) da Autora com o crédito que sobre ela detém a Ré, identificado no item anterior, a qual só produzirá os seus efeitos se e na medida da liquidação judicial de tal crédito indemnizatório;

Custas pela Autora e Ré em partes iguais.”

Inconformada, a Ré B..., LDA, veio interpor o presente recurso, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“1-Constituem objeto do presente recurso a impugnação da matéria de facto [com recurso aos depoimentos gravados e prova produzida] e erro de julgamento em matéria de direito.

2-Pretende-se que os “factos provados” elencados sob os números 5, 17, 19, 8, 9, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 18 e 20 passem a constar do elenco dos “factos não provados”.

3-Os meios de prova que deverão levar à alteração da matéria de facto são, além da falta de prova, os depoimentos prestados pelas testemunhas, conjugados com os demais elementos do processo.

4-Os depoimentos que serviram de base à formação da convicção do tribunal a quo, quanto à matéria de facto provada nos pontos 5, 17 e 19, são de testemunhas que, de forma direta ou indireta, têm interesse no desfecho da ação e não foram confirmados por qualquer outro meio de prova;

5-A matéria de facto provada nos pontos 5, 17 e 19 não valorizou o depoimento da testemunha AA, no minuto da sua gravação 09:17, no qual afirma que é sim possível detetar ftalatos na malha, tendo ficado provado, pelos depoimentos de BB, minutos 36:05 e 36:44 da sua gravação, de CC, nos minutos 18:31 e 21:20 a 21:50 da gravação e de DD, aos minutos 25:50 da gravação, que recorrida não testa malha antes de prosseguir com a estampagem.

6-A matéria de facto provada nos pontos 17 e 19 também tem de ser alterada para matéria de facto não provada, uma vez que não existe prova de quem terá assumido os custos dos testes realizados.

7-Tanto mais que, se tal realização de testes era uma condição prévia do contrato estabelecido com o cliente E..., tais testes teriam sempre de ser realizados e custeados pelo E... ou pela recorrida, mediante o contrato o contrato estabelecido entre eles.

8-Há manifesto erro de julgamento quanto à matéria de facto dada por provada nos pontos 5, 17 e 19 e da matéria de facto provada que, em face da prova testemunhal, viola flagrantemente as regras da experiência comum, pelo que deve ser alterado para a MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA.

9-Quanto à matéria de facto provada nos pontos 8, 9 e 12, a formação da convicção assenta em: depoimentos de testemunhas que, de forma direta ou indireta, têm interesse no desfecho da ação, e não foram confirmados por qualquer outro meio de prova (confronto com outros depoimentos); e num “relatório de perícia” que não o é.

10-A averiguação da origem da contaminação de ftalatos é uma matéria que impõe conhecimentos técnicos, tendo o julgador suportado a sua convicção num depoimento “técnico” prestado por uma testemunha, EE, com interesse direto no desfecho da ação, uma vez que a mesma é funcionária, de longa data, da recorrida.

11-Este depoimento tinha de merecer especial distanciamento do julgador, impondo-se-lhe que procedesse à confirmação da sua credibilidade por confronto com outros meios de prova, designadamente prova documental e pericial, o que in casu não se verificou.

12-Não foi requerida perícia nestes autos para a perceção e a apreciação da própria explicação dos ftalatos, dos seus tipos, eventuais origens, resultados e análises dos mesmos é algo que não está, completa e seguramente, ao alcance do julgador, violando-se o disposto no art.º 388º do CC e dos art.º 467º e ss do CPC.

13-Além disso, todo o depoimento da referida testemunha, nada mais é que um conjunto de suposições e de possíveis acontecimentos que, em nenhum momento ficaram provados, conforme é possível verificar a partir dos minutos 16:54 e entre os minutos a 20:52 a 21:13 do seu depoimento.

14-Tais suposições deste testemunho não foram, de forma alguma, confrontadas outros depoimentos de outras testemunhas, que, por sua vez, não apresentam um interesse direto no desfecho da ação, pois não são subordinados da recorrente, sendo o caso da testemunha FF e AA.

15-A primeira, no seu depoimento, entre os minutos 08:19, 09:45 a 11:18, apresenta um conjunto de situações que originam a deteção de ftalatos (mau armazenamento da malha, exposição a luminosidade, acondicionamento em sacos de plástico e lavagem da malha), os quais em nenhum momento foram analisados ou ponderados.

16-A segunda testemunha, AA, detentor de conhecimentos técnicos semelhantes ao da senhora engenheira, uma vez que tem como profissão técnico de laboratório, no seu depoimento entre os minutos 06: 34 a 06:45 e 07:01 a 09:18, afirma ser possível a existência de ftalatos nas peças antes de serem estampadas, derivados de outros produtos que não a tinta da estamparia.

17-Mesmo após o conhecimento dos testes positivos, a recorrente realizou novos estampados em malha fornecida pela recorrida, para a realização de mais testes, e, a existir esse comportamento desviante que o julgador e a testemunha EE afirmam ter ocorrido, a recorrente teria se negado a tal prestação de novos estampados.

18-O julgador baseia, ainda, a sua convicção num conjunto de testes apresentados pela recorrida, os quais foram impugnados pela recorrente, quanto ao seu efeito jurídico e valor probatório, através de requerimento de 05-12-2022, com a referência 34064332.

19-Além destes testes se apresentarem em língua inglesa (em desconformidade com o disposto nos artigos 133.º e 134.º do CPC), aos mesmos não se lhes podem atribuir as características de relatório pericial, uma vez que os mesmos incumprem o disposto nos artigos 467º e seguintes do CPC, não passando de resultados de exames, totalmente desacompanhados de qualquer relatório pericial ou análise técnica.

20-Acabando por nem merecer credibilidade do tribunal a quo os testes laboratoriais juntos pela recorrente, porquanto é afirmado que não se lhes pode atribuiu maior credibilidade que os da recorrida, mas, inversamente, os da recorrida sustentaram a decisão proferida.

21-A análise destes testes impõe conhecimentos técnicos e especiais que o julgador a quo não dispõe e os procura no depoimento da testemunha EE, como se confirma entre os minutos 20:52 a 21:13, onde o Meritíssimo Juiz afirma que queria aproveitar o know-how da testemunha.

22-Pelo que, não existe prova suficiente que permita estabelecer o nexo de causalidade entre a origem da contaminação por ftalatos e a culpa da recorrente, pois não pode o tribunal a quo, sem recurso a prova pericial, concluir nesse sentido.

23-Não existe prova sobre a origem da contaminação (tendo tal sido assumido na própria fundamentação da decisão, conforme transcrito supra), nem prova de que a mesma proveio da estampagem.

24-Existem meios de prova que contrariam a testemunha (funcionária da recorrida) quanto à origem da contaminação, designadamente registos fotográficos e depoimentos das testemunhas FF e AA.

25-Não provam os testes que a presença dos ftalatos se circunscreve à estampagem.

26-Há, assim, manifesto erro de julgamento quanto à matéria de facto dos pontos 8, 9 e 12 da matéria de facto provada que, em face da inexistência de prova que a fundamente, deve ser alterado para a MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA.

27-Relativamente à matéria de facto provada nos pontos 13, 14, 15, 16, 18 e 20, há manifesto erro de julgamento, porquanto não é possível concluir que, do depoimento das testemunhas da recorrida, ocorreu efetivamente a destruição total das peças das encomendas.

28-Era à autora/recorrida que, nos termos do n.º 2 do art.º 342º do CC, cabia a prova da destruição, repetição e incumprimento dos prazos, o que não conseguiu.

29-Nenhuma delas viu/presenciou a destruição, nenhuma delas levou a cabo a destruição, nem tão pouco transportou as peças em causa para que fossem destruídas por terceiros, referindo o diretor financeiro da empresa, a testemunha GG, aos minutos 21:57, que não existe documento contabilístico do custo da destruição.

30-Tal incerteza está patente nos diversos depoimentos das testemunhas da autora, em concreto: a testemunha HH, a partir do minuto 22:32 do seu depoimento, afirma que o cliente E... visitou as instalações da recorrida, em meados de junho, e viu as peças; a testemunha EE, minutos 34:47, 45:43 a 46:27, afirma não saber se as peças foram destruídas; a testemunha GG, aos minutos 14:16 e 14:46, 19:49 a 21:42, confirma que lhe disseram (em concreto, o chefe CC) que foram destruídas.

31-Com referência ao depoimento desta última testemunha, GG, que desempenha funções de diretor financeiro na empresa A..., o mesmo afirma que não existe registos contabilísticos da destruição de peças, que desconhece a presunção presente no artigo 86.º do CIVA e que foi a testemunha CC que lhe comunicou que as peças tinham sido destruídas.

32-Em contradição a este depoimento, afirmar a testemunha CC, aos minutos 41:00, 42:00 e 55:58 do seu depoimento, que não sabe pormenores de como as peças foram destruídas, conhecimento que se espera existir de um diretor de produção e membro da direção da empresa.

33-Mais uma vez, o tribunal a quo funda a sua decisão em depoimentos de testemunhas que são altamente parciais, que apresentam um interesse direto ou indireto no desfecho da ação, sem serem confirmadas por qualquer outro meio de prova, e que apenas afirmam que tiveram conhecimento que foram destruídas, mas não sabem como, quando e onde.

34-Com isto, verifica-se manifesto erro de julgamento quanto à matéria de facto do ponto 13 da matéria de facto provada que, em face da inexistência de prova que a fundamente, deve ser alterado para a MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA.

35-No mesmo sentido, o julgador dá como provado que as encomendas tiveram de ser repetidas, conforme facto 14 dos factos provados, posição que a recorrida não pode aceitar uma vez que não ficou provado que ocorreu a destruição da encomenda.

36-Como também não pode aceitar, por não existir prova suficiente, uma vez que nenhuma testemunha foi capaz de indicar quem realizou a repetição das encomendas, bem como a autora nunca juntou ao processo documentação que comprove a repetição.

37-Face ao exposto, há manifesto erro de julgamento quanto à matéria de facto do ponto 14 da matéria de facto provada que, em face da inexistência de prova que a fundamente, deve ser alterado para a MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA.

38-Deu o tribunal a quo, como provado que a recorrida se viu impedida de cumprir com os prazos estipulados para a entrega da encomenda, suportando apenas a sua posição em depoimentos de testemunhas com interesse direto e totalmente parciais, sem confronto com qualquer outro meio de prova.

39-Na verdade, com respeito a este cliente E..., inexiste qualquer prova de incumprimento de prazos, bem como nunca a autora veio ao processo juntar qualquer documento comprovativo dos prazos previamente estipulados, nem comunicações com a negociação dos novos prazos de entrega, sendo factos facilmente provados com prova documental (que não existe).

40-Novamente há manifesto erro de julgamento quanto à matéria de facto do ponto 15 da matéria de facto provada que, em face da inexistência de prova que a fundamente, deve ser alterado para a MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA.

41-No que respeita aos factos dos pontos 16, 18 e 20, não é possível dar como provado o prejuízo da recorrida pois a mesma não apresentou prova de que ocorreu a destruição das peças, nem da existência da repetição das encomendas, nem do não aproveitamento de partes de malha das encomendas iniciais.

42-A recorrida apenas apresentou ao processo todos os custos com as encomendas em causa (como de outras encomendas), através da junção um conjunto elevado e desorganizado de faturas e peticionou o valor total, incluindo o valor da estampagem que nunca foi pago à recorrente.

43-A recorrida não provou a existência efetiva de prejuízo, tendo a mesma apenas lançado na sua contabilidade faturas que não cumprem com os requisitos legais impostos, em total violação do artigo 36.º do CIVA e, ainda, dos artigos 23.º e 23.º-A do CIRC.

44-E, mais, em consideração a tais faturas, o próprio diretor financeiro da recorrida, a testemunha GG, afirmou que não aceitaria as mesmas na contabilidade, audível entre os minutos 31:25 a 32:20 e 34:06 a 34:11 do seu depoimento.

45-O sacrifício injusto da posição do responsável e consubstanciaria abuso de direito na modalidade de desequilíbrio entre exercício do direito e os efeitos dele derivados e subtipo da desproporção entre a vantagem obtida pelo titular do direito exercido e o sacrifício por ele imposto a outrem, cfr. art.º 334º do Código Civil, exceção perentória de Abuso de Direito, que subsidiariamente se invoca para todos os efeitos legais, vide Ac.do TRG de 01/02/2018, proferido no âmbito dos autos n.º 1646/16.0T8VCT.G1; Ac. do TRC de 09/01/2017, proferido no âmbito dos autos n.º 102/11.8TBALD.C2, ambos disponíveis em dgsi.pt.

46-A exceção de abuso de direito constituiu uma exceção perentória, de conhecimento oficioso, e importa a absolvição do pedido, cfr. art.º 576º, n.º 1 e 3 do CPC, o que se requer seja reconhecido e declarado para todos os efeitos legais.

47-Há, assim manifesto erro de julgamento quanto à matéria de facto dada por provada no ponto 16, 18 e 20, por inexistir prova que o demonstre, pelo que deve ser alterado para a MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA.

48-O tribunal a quo dá como provado o facto do ponto 11, que, após a receção dos primeiros testes positivos, a recorrida comunicou à recorrente que iria suspender, de imediato, qualquer pagamento devido pelos serviços de estampagem.

49-Os depoimentos que serviram de base à formação da convicção são de testemunhas que, de forma direta ou indireta, têm interesse no desfecho da ação, e não considerou o depoimento apresentado pelas testemunhas da recorrente, impondo-se ao tribunal uma análise crítica de toda a prova.

50-É possível verificar através do depoimento da testemunha DD, que mesmo após a receção dos testes e da realização da reunião, o contacto com a recorrente se manteve, audível entre os minutos 29:53 a 30:27 do depoimento da referida testemunha.

51-No depoimento da testemunha II, é possível perceber que existia uma pressão para que a encomenda continuasse a ser estampada até se averiguar a origem da contaminação, audível aos minutos 14:36 a 14:48 e 20:12 a 20:32 do seu depoimento, o que também foi confirmado pelo depoimento da testemunha JJ, aos minutos 07:43 a 08:15 da sua gravação.

52-Aqui chegados, há manifesto erro de julgamento quanto à matéria de facto dada por provada no ponto 11 por inexistir prova que o demonstre, pelo que deve ser alterado para a MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA.

53-Em suma, o conhecimento sobre os factos nucleares é manifestamente indireto, é um “talvez”, um “deviam ter sido”, um mero “ouvi dizer”, não podendo por isso ser valorado, sempre seria necessário que existisse alguma outra prova, o que não existe.

54-Em face do que se disse supra, a recorrente não concorda com a apreciação dos factos e a subsunção ao direito da decisão em crise, posto que a mesma faz uma errada interpretação das normas que aplica.

55-A decisão proferida viola o preceituado no art.º 342º, n.º 2 e 798º e seguintes do Código Civil, motivo pelo qual, deve ser alterada, o que se peticiona, uma vez não sinaliza a origem da contaminação, existe prova que descredibiliza que a contaminação ocorreu no processo da estampagem e a recorrida não provou a inutilização das encomendas e, de igual forma, o prejuízo.

56-A perceção e a apreciação da contaminação ocorreram depois dos serviços prestados pela recorrida é algo que não está, completa e seguramente, ao alcance do julgador, Ac. do TRL de 24-09-2019, proferido nos autos n.º 2009/17.6T8OER-C.L1-7, e disponível em www.dgsi.pt.

57-Nem todas as causas fácticas ou naturalísticas poderão ser juridicamente havidas como causa do dano ocorrido; para tanto, hão de integrar o critério da causalidade adequada, constante do citado art. 563.º do CC, vide Ac. do STJ de 24/04/2017, proferido no processo 1523/13.7T2AVR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

Sem prescindir,

58-Deveria ter sido acionado, em primeira linha, a realização de obra nova, conforme prevê o artigo 1221.º do CC.

59-Entendeu o julgador que seria possível recorrer excecionalmente ao direito à indeminização, previsto no artigo 1223.º do CC, sem necessidade de acionar o disposto nos artigos 1221.º e 1222.º., porquanto, sustenta, estes meios jurídicos não se podiam efetivar.

60-Ora, não há prova cabal da destruição das peças, não pode ser dado como provado que a recorrida tenha destruído a camisola completa nem sequer apenas a parte estampada e, além disso, foi colocada a hipótese de ser a recorrente a fazer a repetição das peças.

61-Alega a recorrida ter contratado um terceiro para a realização da mesma obra (repetição) sem, contudo, ter dado essa oportunidade à recorrente, conforme estaria legalmente obrigada.

62-Tendo desta forma gerado uma desproporcionalidade nos custos que pretende imputar à recorrida, em relação ao proveito que esta teria tido mediante o pagamento da estampagem, tendo sido violada, portanto, a escala imperativa imposta pela lei.

63-Existindo, nessa sequência e nos termos apresentados nos autos, uma vantagem da recorrida em cerca de seis vezes mais do que teria de pagar à recorrente pelo serviço (porque peticiona cerca €190.000,00).

64-É referido por Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil anotado, “(…) este artigo não confere ao dono da obra o direito de, por si ou por intermédio de terceiro, eliminar os defeitos, ou reconstruir a obra à custa do empreiteiro. (…) é ao empreiteiro que pode ser exigida a eliminação dos defeitos ou a reconstrução da obra (…) O regime aplicável é, pois, o do artigo 828.", que aliás é o mais razoável, na medida em que salvaguarda legítimos interesses do empreiteiro sem prejudicar o direito fundamental do dono da obra. Só em execução se pode pedir que o facto seja prestado por outrem à custa do devedor (…)”.

65-Viola, assim, a decisão proferida, o preceituado nos artigos n.º 334º, 342º, n.º 1 e 2, 388º, 563º e 798º e seguintes todos os Código Civil, e art.º 133.º e 134.º, 467º e seguintes, 576º, n.º 1 e 3, todos do Código de Processo Civil, pelo que deve a mesma ser alterada, para o que se apela.

Termos em que, com o douto suprimento de V/Excelências, deve o presente recurso merecer total provimento e, em consequência, a recorrida ser absolvida do pedido, com todas as legais consequências, assim se fazendo sã e costumada JUSTIÇA!”

Respondeu ao Recurso, a Autora A..., S.A., pugnando pela sua improcedência e concluindo da seguinte forma:

“I. Inconformada com a douta sentença, que julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, condenou a Ré a pagar à autora a indemnização pelos prejuízos causados pelo incumprimento contratual a este imputável, a liquidar ulteriormente; Julgou a reconvenção procedente e consequentemente condenou a Autora a pagar à Ré/reconvinte a quantia de € 28.196,83 (vinte e oito mil, cento e noventa e seis euros e oitenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal dos juros comerciais, contados desde a modificação da reconvenção; e julgou válida e operante a compensação do crédito indemnizatório referida em 1) pela Autora com o crédito que sobre ela detém a Ré, ao qual só produzirá os seus efeitos se e na medida da liquidação judicial de tal crédito indemnizatório, vem a Apelante interpor recurso de apelação, suscitando diversas questões de fato e de direito, que na sua perspetiva afetam a decisão proferida.

II. Em sede de Reconvenção, a Ré peticionou a condenação da Autora como litigante de má fé, em multa e indemnização não inferior a 5.000,00€ (cinco mil euros), pedido este que o Tribunal a quo entendeu que “face á factualidade provada e não provada, que improcede o pedido de condenação da Autora como litigante de má-fé”

III. Porém, não assiste qualquer razão à Recorrente, como se procurará demonstrar, sendo a decisão recorrida assertiva, transparente e que traduz, com clara objetividade, o resultado da prova produzida nas sessões de julgamento realizadas.

IV. Foi proferido despacho saneador tendo sido fixado o objeto do litígio: “O direito da Autora ser indemnizada pela Ré pelos prejuízos causados pelo incumprimento contratual da Ré, na execução das encomendas (de serviços de estampagem) em causa nos autos, e bem assim o direito de compensar este seu crédito que sobre ela detém relativo ao preço de anteriores serviços de estampagem. Em via reconvencional, o direito da Reconvinte a obter o pagamento do preço dos serviços de estampagem que lhe prestou anteriormente às encomendas em causa nos autos.”

V. No mesmo despacho saneador foram fixados os seguintes temas de prova:

1. As encomendas de serviços de estampagem designadas encomendas “E...” n.ºs ..., ... e ... contratadas entre a Autora e a Ré e os respetivos termos nomeadamente a respeito dos limites químicos a utilizar na estampagem;

2. A presença de produtos químicos – ftalatos – em quantidades superiores aos limites máximos de salubridade estabelecidos - nas peças das referidas encomendas entregues pela Ré à Autora após a realização da estampagem contratada;

3. Saber se tais compostos químicos nocivos tiveram origem nos materiais e produtos utilizados pela Ré no processo de estampagem;

4. A inutilização total de encomendas acima mencionadas em razão da desconformidade com as normas e regulamentos em vigor relativos à utilização de compostos químicos prejudiciais para a saúde;

5. Os prejuízos que tal situação causou à Autora; “

VI. Objeto e Temas da Prova que não mereceram qualquer reparo ou censura por parte da Ré.

VII. Realizado o julgamento, o qual decorreu de forma normal, veio o Tribunal a proferir sentença parcialmente favorável à Autora, condenando a Ré ao pagamento de uma indemnização pelos prejuízos causados pelo incumprimento contratual a esta imputável;

VIII. Pretende agora a recorrente alterar a decisão porquanto:

i. Discorda da factualidade dada como provada;

ii. Entende que o Tribunal fez uma errada subsunção dos factos ao direito aplicável;

IX. Já a aqui recorrida entende que se trata de uma decisão fundamentada, tendo o Tribunal a quo decidido de forma correta e completamente consentânea com toda a prova realizada em audiência de discussão e julgamento.

X. A aqui recorrida não concorda, nem pode concordar, com qualquer um dos fundamentos aduzidos pela recorrente para abalar a decisão a quo que se encontra amplamente motivada e fundamentada.

XI. O Tribunal a quo alicerçou a convicção positiva sobre os factos provados no conjunto da prova produzida em sede de instrução e discussão da causa, conjugada com as regras da experiência.

XII. Ora, com o presente recurso, não pode o recorrente esperar que haja um novo julgamento.

XIII. É indiscutível a afirmação de que, a par da utilização de um processo justo e da escolha e interpretação corretas da norma jurídica aplicável, um dos fundamentos de uma decisão justa é o da verdade na reconstituição dos factos objeto do processo.

XIV. A atividade de fixação dos factos materiais da causa está, por natureza, particularmente exposta a erros e imperfeições; a probabilidade e a relevância de um erro quanto a tal objeto depõem, decisivamente, a favor da possibilidade de controlo, pelo tribunal ad quem, das conclusões fácticas estabelecidas pelo tribunal a quo.

XV. Por um lado, a admissibilidade da impugnação da decisão judicial que tenha por objeto o facto material da causa responde a um interesse da parte prejudicada, por outro, dá a satisfação de interesses gerais da comunidade, dado que favorece o sentimento de segurança e de justiça e o prestígio da atividade jurisdicional. De resto, o direito a um processo equitativo impõe, como dimensão ineliminável, que o exame da sentença da primeira instância seja não só in iure mas também in facto.

XVI. A impugnação, por via do recurso ordinário, perante um tribunal superior, no caso do objeto dessa impugnação consistir no erro do julgamento da decisão da matéria de facto, assenta no pressuposto de que o tribunal superior se encontra em melhores condições para apreciar a questão objeto da causa do que o tribunal recorrido, ou que lhe são garantidas as mesmas condições que estão asseguradas a este último.

XVII. O controlo pelo tribunal superior da correção da decisão da matéria de facto do tribunal a quo não oferece relevantes dificuldades se a forma de obtenção da decisão de um e de outro tribunal forem iguais ou quando o exercício daqueles poderes de controlo não estiverem na dependência da reapreciação, pelo tribunal de recurso a provas que tenham sido produzidas, na instância recorrida, sob o princípio da liberdade de apreciação.

XVIII. Se a prova é produzida sem imediação, não há diferença entre o juiz de primeira e de segunda instância, na hora de tomar conhecimento do resultado da prova e de proceder à sua valoração. De igual forma, o conhecimento, pelo tribunal de recurso, de questões de facto e a atuação dos seus poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto do tribunal a quo também não oferece dificuldades relevantes sempre que esse controlo não esteja na dependência da reapreciação de atos de prova levados a cabo oralmente na instância recorrida.

XIX. A delimitação objetiva do recurso limita-se à impugnação da decisão judicial que tenha por objeto o facto material e também de direito pela parte que se sinta prejudicada pela decisão do Tribunal a quo, não se oferecendo relevantes dificuldades se a forma de obtenção da decisão de um e de outro tribunal, a quo e ad quem respetivamente, forem iguais ou quando o exercício daqueles poderes de controlo não estiverem na dependência da reapreciação, pelo tribunal de recurso a provas que tenham sido produzidas, na instância recorrida, sob o princípio da liberdade de apreciação.

XX. Conforme se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 1/10/2008: “Importa referir que a discordância dos Recorrentes se limita a questionar a valoração da prova pelo Tribunal, valoração essa, livremente formada e fundamentada. Ora, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”. No mesmo sentido vai a jurisprudência uniforme deste Tribunal da Relação: “Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face ás regras da experiência comum”.

XXI. Trata-se da liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou no dizer de Castanheira Neves da “liberdade para a objetividade”.

XXII. A reapreciação da matéria de facto, no âmbito da previsão dos artigos 662º, nº 1 e 640º, nº 1 do CPC, importa a reponderação dos elementos probatórios produzidos em primeira instância, averiguando se permitem afirmar, de forma racionalmente fundada, a veracidade da realidade alegada quando o facto tenha sido julgado não provado ou o inverso, quando o facto tenha sido julgado provado pela primeira instância.

XXIII. Os meios probatórios, nos termos do artigo 341.º do CC, têm por função a demonstração da realidade dos factos, sendo que, através da sua produção não se pretende criar no espírito do julgador uma certeza absoluta da realidade dos factos, o que, obviamente implica que a realização da justiça se tenha de bastar com um grau de probabilidade bastante, em face das circunstâncias do caso, das regras da experiência comum e dos conhecimentos obtidos pela ciência.

XXIV. Independentemente da reapreciação dos atos de prova realizados na primeira instância, e mesmo da renovação dessas provas ou da produção, na instância de recurso, de novas provas - a Relação pode censurar o erro do Tribunal a quo na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais (artigo 666 nº 1 do CPC). O juiz aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (art. 655º, nº 1 do CPC).

XXV. A recorrente começa por manifestar a sua discordância quanto aos pontos 5, 17 e 19 dos factos dados como provados:

XXVI. O Tribunal a quo fundamentou a inserção destes factos no elenco dos factos provados, alicerçando a sua convicção na conjugação da prova produzida em audiência de julgamento, através da prova testemunhal, nomeadamente quanto ao ponto 5) dos factos provados, sustentou-se a douta decisão no depoimento da testemunha CC e BB, bem como através da prova documental junto aos autos.

XXVII. Alega a Recorrente que não foi produzida prova cabal, segura e suficiente que sustente a decisão e que os depoimentos “merecem especial distanciamento e impõem que o julgador proceda à confirmação da sua credibilidade por confronto com outros meios de prova, designadamente prova documental e pericial, o que in casu não se verificou” E, acrescenta ainda que, tanto a Testemunha CC e BB são testemunhas que de forma direta ou indireta têm interesse no desfecho da acusa por serem colaboradores da Recorrida.

XXVIII. Ora, o Princípio da Livre Apreciação da Prova não atribui ao juiz o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas, o princípio da livre apreciação da prova obriga a uma conscienciosa ponderação dos elementos probatórios e das circunstâncias que os envolvem.

XXIX. No que respeita ao pronto 5) dos factos provados, aqui em causa pela Recorrente, ficou demonstrado que a realização de testes ao longo da produção das encomendas da cliente da Autora, é uma exigência do próprio cliente, e se dúvidas restassem, também a testemunha EE que, aos minutos 6:58 da sua inquirição, quando questionada se o cliente faz alguma exigência em especial, esta responde que sim, especificando que o cliente indica uma amostragem que têm de seguir à risca e fazer os testes – minutos 7:12.

XXX. Também não merece qualquer censura os pontos 17) e 19) dos factos provados que estão alicerçados em prova documental bastante, nomeadamente os relatórios dos Testes efetuados pela entidade F... junto aos autos como documento n.º 2 da Petição e ainda os relatórios juntos com o articulado de resposta da Autora/Recorrida – Réplica, que postulam a realização de vários testes realizados às peças estampadas pela Ré, e cujos resultados dão inequívocos: a presença de ftalatos em valores inaceitáveis provêm da estampagem.

XXXI. Para formar a sua convicção, o juiz pode atender a qualquer meio probatório a que o tribunal tenha acesso, independentemente da parte que o produziu e de ter sido acionado a requerimento das partes ou oficiosamente a pedido do tribunal. Nisto se traduz a consagração do princípio da aquisição processual.

XXXII. A prova documental é definida no artigo 366.º do CC, que estabelece que qualquer objeto elaborado pelo Homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto, documentos estes que podem ser autênticos ou particulares. Define o artigo 363.º n,º s 2 e 3 que “Autênticos são os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de atividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública; todos os outros documentos são particulares.” E “Os documentos particulares são havidos por autenticados, quando confirmados pelas partes, perante notário, nos termos prescritos nas leis notariais.”

XXXIII. Por outo lado, a força probatória do documento escrito a que falte algum dos requisitos exigidos na lei é apreciada livremente pelo tribunal – artigo 366.º do CC.

XXXIV. Ora, não sendo estes relatórios dos testes efetuados às peças estampadas pela Ré, documentos com requisitos legais que atribuam força probatória plena, estes são livremente apreciados pelo julgador que in casu, e bem no entender da ora Recorrida, valorou no sentido de considerar provados o facto 17) do elenco dos factos provados, uma vez que em consequência do primeiro teste efetuado às peças estampadas pela Ré ter detetado valore elevadíssimos de ftalatos, viu-se a Autora/Recorrida na obrigação de realizar novos testes de confirmação e despistagem de tais substâncias.

XXXV. Resulta também do depoimento de várias testemunhas que foram, efetivamente realizados, vários exames para esclarecimento da proveniência de ftalatos nas peças produzidas, entre elas, a testemunha BB aos minutos 12:40, 13:13 e 13:48 da sua inquirição;

XXXVI. Também a Testemunha CC, confirma, ao minuto 26:45 da sua inquirição que: “Portanto, fazemos contra testes, quando há uma deteção deste género, testamos novamente para ter a certeza.”

XXXVII. A corroborar tais condutas da Autora, confirmaram ainda as Testemunha DD ao minuto 15:49 que, após a perceção da presença de ftalatos nas peças estampadas “A seguir, retestar novamente a produção.” e a Testemunha EE confirma ao minuto 13:01 da sua inquirição, após questionada se após o primeiro teste foram feitas novas testagens, ao que responde “Sim, repetimos…”

XXXVIII. Face ao exposto, não nos merece censura, face à prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, tendo o tribunal a quo realizado uma análise crítica de toda a prova produzida, pelo que se pugna pela manutenção dos factos 5, 17 e 19 no elenco dos factos provados.

XXXIX. De seguida impugna a Ré/Recorrente contra os pontos 8, 9 e 12 dos factos provados,

XL. Constitui fundamentação destes factos, no entendimento do Tribunal a quo, entre os depoimentos de Testemunhas, concretamente da Testemunha EE que de forma técnica e rigorosa conseguiu esclarecer o Tribunal sobre o que são os ftalatos e as consequências que advêm para a saúde humana quando em contacto com um volume tão elevado desta substância.

XLI. Não foi, no entanto, a única fonte de fundamentação para o Tribunal a quo considerar os pontos 8, 9 e 12 no elenco dos factos provados, mas também, e uma vez mais, os relatórios dos vários exames realizados às peças estampadas pela Ré (junto aos autos como documento n.º 2 da petição inicial e com a resposta à Contestação). Tais testes comprovaram a presença de ftalatos na estampagem formando a seguinte convicção no Tribunal a quo “Por isso, pareceu-nos determinante a análise do relatório de perícia efetuada pelo mesmo laboratório, junto com a resposta à contestação, que analisou isoladamente as componentes das peças em causa – tecido e estampado - do qual resulta a elevada concentração de ftalatos no dito estampado e a ausência de vestígios do mesmo composto químico na parte do tecido que não está abrangido pelo mesmo estampado”

XLII. E, pese embora, relatórios se encontrem redigidos em língua inglesa e a Ré arguir tal para dessa forma colocar em causa tais documentos entendo que, “Pois, que, embora tal requisito não revista carácter obrigatório, tem-se entendido que tal tradução terá que ser feita quando o juiz a ordene e o juiz deverá ordená-la se, no seu prudente arbítrio, entender que a mesma é necessária, nomeadamente por não dominar a língua em causa”

XLIII. O artigo 134. º n.º 1 do CPC estipula que “Quando se ofereçam documentos escritos em língua estrangeira que careçam de tradução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, ordena que o apresentante a junte.”, entendeu o juiz não ser necessária tradução dos relatórios periciais, nem nenhuma das partes requereu a junção a sua tradução ainda que com faculdade para tal. Parece-nos assim, desajustado que a Recorrida coloque agora em causa, em sede de recurso, a tradução de um documento vastamente discutido em sede de audiência de discussão e julgamento e do qual tem conhecimento desde o início dos presentes autos.

XLIV. O Princípio da livre apreciação da prova nunca atribuí ao Juiz um poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas, isto é, a livre apreciação da prova não pode confundir-se com uma análise arbitrária dos elementos probatórios, sendo antes uma conscienciosa ponderação desses elementos e das circunstâncias que os envolvem.

XLV. E de facto, as Testemunhas arroladas pela Autora/Recorrida, pese embora sejam suas colaboradoras, testemunharam de forma livre e ponderada, não só pelos conhecimentos e intervenção direta no caso em apresso, mas também apresentaram uma versão consentânea com a prova documental apresentada, pelo que carece de qualquer razão a insinuação da Recorrente de que estas têm interesse no desfecho da acção.

XLVI. A Recorrente, impugna também a matéria dos pontos 13, 14, 15, 16, 18 e 20 dos factos provados:

XLVII. Tal assunção desta matéria no computo dos factos provados tem como fundamentação do Tribunal a quo: “As consequências e prejuízos que resultaram para a Autora de toda esta situação são descritos, de forma coerente, pelas testemunhas referidas no item anterior e ainda pela testemunha EE, que aludiram, de forma convincente, a necessidade da Autora destruir todas as pelas que foram estampadas pela Ré, o que inviabilizou o cumprimento atempado da encomenda que lhe havia sido feita pelo seu cliente (E...)”

XLVIII. Para formar tal convicção foi importante, tal como referido na douta sentença, as declarações da testemunha EE que questionada sobre o que fazem às peças a partir do momento em que é detetado a presença dos ftalatos, responde aos minutos 34:17: “Portanto, aquilo tem que ser isolado, não é e, depois, terá que ser destruído.” Da mesma forma, a Testemunha CC, questionado sobre o que aconteceu ás peças estampadas pela Ré e após a receção dos testes que indicaram a presença de ftalatos em volume superior ao legalmente permitido, este responde aos minutos 41:01: “Foi tudo destruído, ou seja, nada daquilo pode ser utilizado. Respondendo à sua pergunta, portanto, se o problema está no estampado, é impossível remover o estampado… e aquele estampado em concreto e voltar…” e ainda a Testemunha DD, questionado aos minutos 19:43 sobre se as peças podem ser reutilizadas, responde perentoriamente que não, o que se pode ouvir até aos minutos 20:07 da sua inquirição.

XLIX. Também a testemunha BB, de forma bastantes esclarecedora confirmou que as peças estampadas pela Ré foram destruídas após a deteção de ftalatos nas mesmas e, como consequência, teve a Autora /Recorrida de destruir e repetir a confeção das peças de forma a que o cliente E... não saísse prejudicado com esta situação e tal testemunho é possível ouvir-se aos minutos 23:57 a 26:51 da sua inquirição.

L. Ainda a Testemunha KK, confirma a destruição das peças, o que se poderá ouvir aos minutos 14:07 a 14:39 da sua inquirição;

LI. Ora, dúvidas não restam pois que, em consequência do excessivo volume de ftalatos nas peças estampadas pela Ré, e provenientes da própria estampagem, conforme relatórios dos exames efetuados e juntos aos autos, toda a encomenda teve que ser destruída por não ser possível o seu reaproveitamento uma vez que representava perigo para a saúde pública. E, tendo estas peças sido destruídas, tal resultado implicou para a Autora prejuízos de avultado valor, conforme atestado por estas Testemunhas e, em certa medida também reconhecido pela própria Ré/Recorrente.

LII. No que respeita aos prejuízos da Autora/Recorrida com a destruição da coleção, a KK consegue concretizar os prejuízos sofridos pela Autora, o que se pode ouvir aos minutos 07:23- 18:44 da sua inquirição.

LIII. De igual forma a Testemunha BB concretiza estes prejuízos sofridos, o que se consegue ouvir aos minutos 28:02 - 28:26 da sua inquirição.

LIV. Para além dos depoimentos destas Testemunhas, o Tribunal a quo relevou, e bem, para formar a sua convicção quanto à matéria que considerou provados os documentos n.ºs 3, 6, 7, 13 juntos com a petição inicial da Autora, e que se consubstanciam num conjunto de emails trocados entre Autora e Ré na sequência do apuramento de ftalatos nas peças estampadas pela Ré. Torna-se percetível, na troca de email entre as partes que a Ré assumiu o valor de prejuízos apurado pela Autora, tendo inclusivamente, e conforme se pode ler nos emails, feito a correção do saldo a favor da Autora e que se transcreve do documento n.º 13: “Foi declarado à B... um saldo a favor no montante de 168.4791,46€, não sendo compatível com o valor dos nossos saldos em conta corrente, o valor correto que resulta a vosso favor é de 163.878,41€”.

LV. Ora, resulta do teor deste email uma assunção, confissão de responsabilidade por parte da Ré. A confissão é, nos termos do artigo 352.º do CC, definida como o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.

LVI. A este propósito, pode ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/06/2023:” O valor probatório dos documentos eletrónicos aos quais não seja aposta uma assinatura eletrónica qualificada e certificada é apreciado nos termos gerais de direito (art.º 3.º n.º5 do RJDEAD), o que significa que pode ser livremente apreciado pelo tribunal – art.º 366.º do CCiv. II – Se o “email” a que se reporta determinado facto provado foi aceite pela Ré, na respetiva oposição, nos termos em que foi enviado o dito “email”, não aceitando, todavia, a Ré a interpretação confessória que lhe é dada pela Autora, a matéria em causa não era a da exigência legal de forma, para a prova tarifada do documento, à semelhança do disposto nos art.ºs 373.º n.º1 e 376.º n.º1 do CCiv, mas antes a do valor que o tribunal tivesse atribuído aos documentos escritos em causa. III

- Estabelecida a autoria do “email”, enquanto documento escrito, a declaração dele constante pode integrar uma verdadeira e própria confissão extrajudicial, tal como definida no art.º 352.º do CCiv. IV - O art.º 357.º n.º1 do CCiv exige a inequivocidade da declaração confessória, que se verifica no caso de ocorrer uma proposta séria, independentemente das contas feitas ou por fazer, a cargo do devedor – uma eventual precipitação da declaração, apenas se pode imputar ao comportamento próprio.”

LVII. Sopesadas as declarações das testemunhas que ora se referenciou, bem como os documentos juntos, dúvidas não restam que andou bem o Tribunal a quo quando integrou as matérias dos 13, 14, 15, 16, 18 e 20 no computo dos factos provados, pugnando-se pela sua manutenção da matéria de facto considerado provada.

LVIII. Não concorda ainda a Recorrente com a inserção do ponto 11 da matéria de facto considerada provada pelo Tribunal a quo, impugnando a mesma.

LIX. Constitui fundamento da dita matéria de facto provada o seguinte: “Os emails juntos como documentos 3, 5, 6 e 7 da petição inicial, conjugados com os depoimentos das testemunhas CC, diretor de produção da Autora, BB, gestora de clientes da mesma Autora, DD, planificador têxtil da Autora e ainda GG, diretor financeiro desta empresa, deram conta dos procedimentos seguidos e comunicações logo após a deteção da contaminação das peças com ftalatos, permitiram considerar provados os factos supramencionados sob os n.º 11 e 18.”

LX. Ao contrário do quer a Ré/Recorrente demonstrara ao longo de todo o seu articulado, a formação da convicção do julgador, neste caso em concreto, não assentou única e exclusivamente em prova testemunhal, mas a ponderação entre a prova testemunhal e a prova documental junta aos autos, não sendo, assim uma apreciação arbitrária, ainda que o julgador tenha a liberdade para interpretar e apreciar as provas, dentro do respeito pela lei e pelas regras da experiência.

LXI. Concretamente no que respeita ao ponto 11 da matéria de facto provada, quer-nos parecer que, com o devido respeito, a Recorrente coloca em causa apenas por uma questão de semântica, já que o que no essencial refuta é a conjugação das palavras “após a receção” dos resultados dos testes às peças estampadas pela Ré que a Autora decidiu suspender os pagamentos devidos à Ré.

LXII. Já muito se discorreu, sobre quando e como decidiu a Autora suspender os pagamentos devidos à Ré, e dúvidas não subsistem que tal decisão foi tomada após o conhecimento dos referidos resultados, e de tal é demonstrativo o email enviado pela testemunha GG à Ré em 27/04/2022, junto aos autos na petição inicial como documento n.º 3, onde informa o seguinte “No seguimento da reunião tida hoje entre a B... e a A..., informamos que em face ao problema ocorrido com os indicadores de contaminação que as análises laboratoriais revelaram com as peças (encomendas n.º ..., ... e ...), iremos suspender os pagamentos até a situação ficar estabelecida.”

LXIII. O primeiro teste a revelar a presença de ftalatos nas peças estampadas pela Ré, mais precisamente no estampado, é datado de 14/04/2022, em 27/04/2022 Autora e Ré reuniram para discutir a situação e no mesmo dia é enviado um email a informar/confirmar na sequência da dita reunião, a suspensão dos pagamentos.

LXIV. Como se não bastasse, as testemunhas CC sobre a postura da Autora relativamente à realização de mais encomendas, de pagamentos, e o que terá sido conversado na reunião de 27/04/2022, responde, aos minutos 36:23 da sua inquirição: “Portanto, em termos de pagamentos ficou combinado não haver mais nenhum pagamento até isto ficar tudo esclarecido.”

LXV. Da mesma forma a Testemunha KK, esclarece qual a sua intervenção na reunião que se realizou em 27/04/2022 entre as partes, o que se pode ouvir entre os minutos 8:21 a 33:05 da sua inquirição;

LXVI. Resulta da conjugação da prova documental junta aos autos e testemunhal produzida em sede de instrução e julgamento que a Autora/Recorrida decidiu após a receção dos testes efetuados às peças estampadas pela Ré, e que acusaram a presença de grandes quantidades de ftalatos, suspender a relação comercial entre Autora e Ré, nomeadamente suspender os pagamentos devidos. Suspensão esta que vem na sequência, e é uma consequência, dos referidos testes, razão pela qual não merece qualquer censura a inserção desta matéria no conjunto da matéria dos factos provados, pugnando-se pela sua manutenção nos factos provados tal como dita a Douta Sentença ora recorrida.

LXVII. Em suma, toda a argumentação da Recorrente para tentar abalar a Douta sentença proferida pelo Tribunal a quo assenta na falácia de que as Testemunhas arroladas pela Autora, e na qual o Tribunal a quo recorreu em parte para firmar a sua convicção, têm, direta ou indiretamente, interesse no desfecho da acção por serem colaboradores da Autora, e que nessa medida deviam tais depoimentos serem analisados com distanciamento, carecendo os mesmos de confirmação da sua credibilidade por confronto com outros meios de prova, designadamente prova documental e pericial, posição que não se acompanha.

LXVIII. Têm capacidade para depor como testemunhas todos aqueles que tiverem aptidão mental para depor sobre os factos que constituam objeto da prova, incumbindo ao juiz verificar a capacidade natural das pessoas arroladas como testemunhas, com vista a avaliar da admissibilidade e da credibilidade do respetivo depoimento - artigo 495.º n.ºs 1 e 2 do CPC, sendo que estão impedidos de testemunhar aqueles que na causa possam depor como partes - artigo 496.º do CPC.

LXIX. São obrigações de uma testemunha de entre outras, prestar juramento perante a autoridade judiciária, e acima de tudo, colaborar com a justiça na descoberta da verdade material, postura que todas as testemunhas arroladas pela Autora apresentaram no decorrer das suas inquirições, que responderam com verdade e conhecimento direto dos factos nucleares pela intervenção que cada uma delas teve em todo o processo.

LXX. Além de que, a livre convicção do julgador deverá formar-se pela conjugação e ponderação de todos os meios de prova, seja prova documental, testemunhal ou outra legalmente admitida, presunções judiciais, regras da experiência comum.

LXXI. Pode ler-se no Acórdão do tribunal da Relação do Porto de 29/06/2015 que “ – A liberdade na formação da convicção do julgador deverá assentar em elementos probatórios, em presunções judiciais, em regras da experiencia comum e/ou em critérios lógicos que, de forma sustentada e segura e tendo em conta as regras da repartição do ónus da prova, permitam uma fundada convicção quanto à verificação dos factos que se tenham como provados. II – O depoimento indireto não se confunde com o “por ouvi dizer”, não sendo aquele proibido e situando-se a valoração no âmbito da avaliação da credibilidade (maior ou menor conforme as circunstâncias de caso concreto) que o mesmo possa oferecer ao julgador.”

LXXII. O Tribunal a quo não teve dúvidas, face aos factos apurados e provados, em caracterizar como um contrato de empreitada a relação contratual estabelecida entre Autora e Ré pela realização das três encomendas para estampagem de peças têxteis.

LXXIII. Ora a Autora, enquanto dona da obra, contratou os serviços de estampagem da Ré, tendo-se esta última obrigado a prestar o serviço em conformidade mediante contraprestação de pagamento do preço pela Autora. Certo é que a Ré realizou o seu trabalho de forma defeituosa – cumprimento defeituoso – na medida em que, conforme se provou, a presença dos ftalatos nas peças têxteis que a Autora entregou à Ré para estampagem, teve origem no processo de estampagem, e prova disso mesmo são os testes realizados às peças estampadas pela Ré que demonstram de forma inequívoca que a presença deste composto químico em volumes inaceitáveis do ponto de vista da salubridade, se encontrava na estampagem e não na malha.

LXXIV. Tais testes estão juntos aos autos como documentos n.º 2 e 4 da petição inicial e ainda os resultados dos exames juntos com a Resposta à contestação da Ré com vários relatórios de testes que a Autora pediu à entidade F... para realizar a várias peças estampadas pela Ré e todos são inequívocos: a presença do composto químico – ftalatos – tem origem na estampagem das peças têxteis. E se caso dúvidas houvesse, a Testemunha EE, engenheira têxtil, e com vários conhecimentos técnicos e científicos, de forma espontânea, ponderada e acima de tudo, munida de conhecimentos científicos, explicou o objetivo e resultado dos testes realizados e onde foi possível concluir como sendo o processo de estampagem a causa da presença de ftalatos nas peças têxteis. Começando por explicar como foram realizados os testes, o que se pode ouvir aos minutos 13:42 a 20:44 da sua inquirição.

LXXV. Provou-se desta forma que a presença dos ftalatos decorre do processo de estampagem, provando-se também que a houve um cumprimento defeituoso do contrato de empreitada por parte da Ré.

LXXVI. A análise do regime jurídico do cumprimento defeituoso no contrato de empreitada permite constatar que o legislador facultou ao dono da obra uma série de direitos a exercer sequencialmente. Assim, em primeira linha o dono da obra goza do direito de exigir a eliminação dos defeitos. Caso tal eliminação não seja possível, tem o direito de exigir nova construção – artigo 1221.º n.º 1 do CC. Apenas no caso de não serem eliminados os defeitos ou construída de novo a obra, tem o dono da obra o direito a exigir a redução do preço ou a resolução do contrato – artigo 1222.º do CC. A lei atribui ainda a possibilidade de uma indemnização, nos termos do artigo 1223.º do CC.

LXXVII. Entendeu, porém, o Tribunal a quo, na sua douta Sentença que “Excecionalmente, porém, é de admitir o recurso isolado e imediato ao direito de indemnização, previsto no art. 1223.º, sem necessidade de acionar previamente os direitos previstos nos arts. 1221.º e 1222.º. Tal sucederá – para além das situações e perda de interesse na prestação por parte do dono da obra, objetivamente apreciada (em conformidade com o disposto no art. 808.º, n.º 2 do Código Civil) – nas situações em que os outros meios jurídicos não se possam efetivar. É esta última, a nosso ver, a situação que se verifica no caso em apreço. De facto, em virtude do cumprimento defeituoso da prestação a cargo da Ré, as peças têxteis que foram objeto da mesma tiveram de ser totalmente inutilizadas, inviabilizando assim qualquer possibilidade de eliminação dos defeitos do trabalho de estampagem realizado pela Ré ou a realizar de novos trabalhos de estampagem sobre as mesmas peças têxteis. É, assim, inequívoca a inviabilidade prática de a Autora recorrer a qualquer dos meios jurídicos previstos no art. 2.121.º e 2.122.º do Código Civil, pelo que o mencionado incumprimento, que se resume culposo (art. 799.º do Código Civil) e deve considerar-se definitivo, lhe confere o direito a ser indemnizada, em conformidade com o previsto no art. 1.223.º do Código Civil”

LXXVIII. A Recorrente, coloca em causa tal fundamentação, por considerar que, e passa-se a transcrever “A demonstração da execução indevida das encomendas por parte do recorrente é matéria que impõe conhecimentos técnicos e especiais que o julgador a quo não dispõe.”; “A sentença em crise não indica, não sinaliza a origem da contaminação.”; “Existem provas suficientes que descredibilizam/afastam que a contaminação tivesse ocorrido no processo da estampagem.” ; “A perceção ou averiguação de factos que reclamem conhecimentos especiais que o julgador comprovadamente não domina devem ser demonstrados através de prova pericial.”

LXXIX. Em boa verdade, e caindo no exagero de se repetir o já supra exposto, provou-se de forma clara que a contaminação teve origem no processo de estampagem, - ainda que não se tenha conseguido provar de que forma e em que momento se deu tal contaminação - algo que apenas está na esfera de conhecimento da Ré - e tal prova fuda-se não só nos depoimentos das Testemunhas CC, BB, DD, EE e GG, mas também nos relatórios dos exames realizados às peças estampadas pela Ré que detetaram a contaminação por ftalatos nas estampagens das peças têxteis. Provas irrefutáveis.

LXXX. Além do mais, as tais perícias que a Recorrente alega que deviam ter sido requeridas pelo julgador é um argumento vazio já que, qualquer perícia a realizar sempre teria de ser realizada nas peças estampadas pela Ré, e como se provou, a Autora viu-se obrigada a destruir todas as peças já produzidas e estampadas pela Ré por uma questão de segurança e saúde pública tais eram os valores de ftalatos que as peças apresentavam. E, bem sabe a Recorrente que tinha ao seu alcance a possibilidade de ela própria requerer perícia, uma vez que este meio de prova, para além de puder ser requerido oficiosamente, também está disponibilidade das partes, conforme disposto no artigo 475.º do CPC. No entanto, bem sabe a Ré que tal requerimento seria vazio de sentido e oportunidade, uma vez que bem sabe que as peças por si estampadas foram inutilizadas e destruídas.

LXXXI. Tal destruição das peças implicou para a Autora custos que não teria se a Ré tivesse cumprido o contrato, isto é, tivesse executado a obra sem defeitos, o que não sucedeu.

Tais prejuízos encontram-se amplamente fundamentados e documentados nos autos através de documentos juntos pela Autora na sua petição inicial como documento n.º 8 onde junta o conjunto de todas as faturas dos custos que teve de suportar com os exames efetuados às peças estampadas pela Ré, bem como custos pela nova produção da encomenda do seu cliente E..., seja custos com a matéria-prima, estampagem, confeção, mão de obra, transportes, e todos os custos afetos a um processo produtivo.

LXXXII. Alega a Ré que tais custos podiam ter sido evitados uma vez que a Recorrente se disponibilizou a repetir a obra sem custo adicional e em cumprimento dos prazos iniciais, o que não foi aceite pela Recorrida. Ora, tal não podia acontecer já que se tinha quebrado o vínculo de confiança que deve pautar uma relação contratual. Não podia a Ré confiar novamente no trabalho da Ré já que esta, para além do incumprimento contratual gravoso e culposo, não sabe, ou não quer saber, de que forma é que, no decurso da execução do seu trabalho, se deu a contaminação das peças por ftalatos, já que comprovadamente se provou que tal contaminação resultou do processo de estampagem.

LXXXIII. Tal perda de confiança é atestada pela testemunha KK conforme se consegue ouvir aos minutos 27:19 - 27:35 da sua inquirição.

LXXXIV. Face ao exposto, e tal como postula a Douta Sentença, é inviável o recurso por parte da Autora a qualquer meio jurídico previsto os artigos 1221.º, 1222.º do Código Civil, devendo esta ser indemnizada nos termos do artigo 1223.º do código civil, pugnando-se pela manutenção da decisão de direto tal como proferida pela Sentença ora em crise.

LXXXV. Pelo que o presente recurso interposto da sentença a quo terá necessariamente de improceder, mantendo-se, na íntegra, o teor da sentença proferida em 1ª instância.”

O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II-OBJETO DO RECURSO:

Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso.

As questões a dirimir, delimitadas pelas conclusões de recurso são as seguintes:

-modificabilidade da decisão de facto por reapreciação das provas produzidas e eventual alteração da decisão de direito em consequência de tal modificação.

-validade dos documentos juntos ao processo redigidos em língua estrangeira;

-saber se, em face do incumprimento contratual deveria ter sido acionado, em primeira linha, a realização de obra nova, conforme prevê o artigo 1221.º do CC.

III-FUNDAMENTAÇÃO:

Na sentença foram julgados provados os seguintes factos:

1) A Autora é uma sociedade comercial que se dedica ao fabrico e comércio de confeções e malhas;

2) A Ré é uma sociedade comercial que presta serviços de estampagem nomeadamente, em artigos têxteis;

3) No âmbito da sua atividade comercial, a Autora, confiando nas boas práticas e na qualidade do serviço da Ré, e que lhe foram por esta asseguradas, solicitou a prestação de serviços pela Ré, especificamente, a estampagem de várias peças têxteis (cerca de 28.367), entre as partes identificadas por "encomendas E... nºs ... (composta por 22.235 peças), ... (composta por 3618 peças) e ... (composta por 2514 peças);

4) Aquando do estabelecimento das relações comerciais entre a Autora e a Ré, esta obrigou-se a realizar o serviço solicitado pela Autora de acordo com a legislação aplicável, nomeadamente, em respeito dos limites dos químicos a utilizar na estampagem;

5) O destinatário das mercadorias a que se referiam as mencionadas encomendas, cliente a Autora, estabeleceu como condição prévia do acordo que celebrou com esta, a realização de testes laboratoriais, prévios à expedição das mercadorias, com vista a garantir a conformidade de todos componentes químicos empregues nas peças com as normas legais e regulamentares aplicáveis;

6) Para tanto, a mencionada cliente da Autora selecionou um conjunto de peças têxteis das suas encomendas para serem testados por laboratório externo, em concreto pela F... PLC;

7) Na execução deste procedimento, as peças selecionadas entre aquelas que foram entregues pela Ré após o processo de estampagem, foram enviadas pela Autora para o referido laboratório;

8) Na sequência da análise realizada por esse relatório, detetou-se que as peças analisadas apresentaram valores de ftalatos superiores ao limite máximo legalmente permitido;

9) A presença de ftalatos em excesso proveio do processo de estampagem realizado pela Ré;

10) Os ftalatos são um grupo de compostos químicos derivados do ácido ftálico, tal como o cloro ftalato, utilizado como aditivo para deixar o plástico mais maleável. Tal grupo de compostos é tido como cancerígeno, podendo causar danos ao fígado, rins e pulmão, além de anormalidade no sistema reprodutivo;

11) Após a receção dos referidos resultados, a Autora comunicou à Ré que, sem prejuízo de proceder a diligências para confirmar as conclusões do relatório, que iriam suspender imediatamente quaisquer pagamentos devidos pelos serviços de estampagem;

12) Seguidamente a Autora solicitou ao Laboratório ... a análise de outras peças têxteis por si fabricadas e submetidas ao processo de estampagem da Ré, os quais confirmaram que a presença de ftalatos em excesso provinha do processo de estampagem;

13) Em consequência, as peças produzidas pela Autora e estampadas pela Ré, que integravam as referidas três encomendas, tiveram que ser todas destruídas por não se apresentarem em conformidade com as normas e regulamentos em vigor, particularmente, por poderem ser nocivas para a saúde humana;

14) Em consequência, toda a produção referente às ditas encomendas teve de ser repetida, que implicou para a Autora custos adicionais;

15) Viu-se impossibilitada de cumprir com os prazos que havia inicialmente estipulado com o seu cliente (E...);

16) A Autora havia suportado custos com a produção de tais encomendas cujo valor não foi possível apurar;

17) Suportou igualmente custos com a exames laboratoriais realizados pela F... para confirmar a presença (e quantidades) de ftalatos naquelas peças e a origem dos mesmos no processo de estampagem, cujo valor não foi possível apurar;

18) A Autora remeteu à Ré, em 31 de maio de 2022, um email reclamando uma indemnização correspondente as custos em que incorreu com a produção daquelas três encomendas: especificamente aquisição de malha e fio, serviço de estamparia, acessórios, corte, confeção e embalagem e transporte da mercadoria - e avançou com encontro de contas entre as partes;

19) Seguidamente, a Autora emitiu e remeteu à Ré as faturas ..., ..., ..., ..., ..., correspondente ao valor dos prejuízos que reclamava da Ré, mencionados no ponto 18) e ainda a custos com exames laboratoriais aludidos em 17);

20) E lançou tais documentos na sua conta corrente com a Ré;

21) À data a Autora era devedora á Ré do montante global de €28.196,83 (vinte e quatro mil, quinhentos e quarenta e nove euros e noventa e três cêntimos), correspondente às faturas ..., ... e ... e uma nota de crédito;

22) As três encomendas supramencionadas foram remetidas pela Autora à R., via e-mail, sendo que, em relação a cada uma das encomendas, a Autora discriminou, como requisitos de produção, a utilização, na estampagem, de tinta plastisol e de plastisol brilhante -sendo este último tinta plastisol com a aplicação de folha de foil (vide página 3 do Doc. 1 e página 2 do Doc. 3);

23) A Ré diligenciou pela aquisição de produtos impostos pela Autora para a estampagem (plastidol e foil) ao seu habitual fornecedor;

24) Tendo este garantido que tais produtos fornecidos cumpriam com os parâmetros legais de isenção de substâncias nocivas e proibidas de utilização, designadamente, mostravam-se isentos de ftalatos;

25) A informação de isenção de produtos nocivos no plastisol e no foil, utilizados na produção das encomendas está contida nos boletins técnicos dos referidos produtos, fornecidos pelo próprio fornecedor do produto;

26) A Ré apenas concretizou o serviço de estampar, utilizando, para tal, produtos supra referidos e a malha fornecida pela Autora e por esta transportada para as instalações da Ré;

27) A tinta plastisol e a folha de “foil” que a Ré adquiriu para, em cumprimento das instruções da Autora, proceder à estampagem não continham ftalatos;

28) A Ré adquiriu o “foil” que utilizou nas encomendas da Autora, à sociedade “C..., Lda.”, com sede na Rua ..., ..., ... Matosinhos, a quem pagou o respetivo preço;

29) E, adquiriu o “plastisol”, que utilizou nas encomendas da A., à sociedade “D..., Lda.”, com sede na Rua ..., ... G... - ..., ... ..., Maia, a quem também pagou o preço.

E foram julgados não provados os seguintes factos:

a) Os custos em que a Autora incorreu com a a realização das encomendas aludidas em 3) e com a realização de testes laboratoriais às peças estampadas pela Ré ascenderam ao valor de global de 192.075,24€ (cento e noventa e dois mil e setenta e cinco euros e vinte e quatro cêntimos);

b) A deteção de ftalatos nas peças enviadas para a estampagem pela Ré e a consequente destruição das mesmas inviabilizou a conclusão e a expedição da encomenda para o cliente da Autora (E...);

c) A autora viu afetado o seu bom nome e imagem junto da cliente E...;

d) Não foi a estampagem a causadora da contaminação com ftalatos.

IV-MODIFICABILIDADE DA MATÉRIA DE FACTO:

A impugnação da decisão sobre a matéria de facto está expressamente consagrada e regulada em diversas disposições do Código de Processo Civil nomeadamente nos seus artigos 640º, n.º 1, e 662º n.º 1.

Resulta do artigo 640º citado, que o recorrente, quando pretenda impugnar a matéria de facto,  deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, (a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, (b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e (c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

No caso vertente, mostra-se cumprido este ónus pela Apelante, pelo que nada obsta à apreciação do recurso, na parte em que é feita a impugnação da matéria de facto.

Diz porém a Recorrida, que não pode o recorrente esperar que haja um novo julgamento na Relação (cfr. conclusão XII das contra-alegações), pelo que importa concretizar quais os poderes concretos deste Tribunal superior, nesta matéria.

Decorre do disposto no art.º 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que "A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa." (sublinhado nosso).

A “Exposição de Motivos” que acompanhou a Proposta de Lei nº 113/XII salientou o intuito do legislador de reforçar os poderes da 2ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada ao referir que “para além de manter os poderes cassatórios – que lhe permitem anular a decisão recorrida, se esta não se encontrar devidamente fundamentada ou se mostrar insuficiente, obscura ou contraditória – são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede  reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material”. 

O Tribunal da Relação deve, pois, exercer um verdadeiro e efetivo segundo grau de jurisdição da matéria de facto, sindicando os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou de gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos impugnados diversa da recorrida, e referenciar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

E a análise e a valoração da prova na segunda instância está, naturalmente, sujeita às mesmas normas e princípios que regem essa atividade na primeira instância, nomeadamente a regra da livre apreciação da prova e as respetivas exceções, nos termos previstos no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, conjugado com a disciplina adjetiva dos artigos 410.º e seguintes do mesmo código e com a disciplina substantiva dos artigos 341.º e seguintes do Código Civil (CC), designadamente o artigo 396.º no que respeita à força probatória dos depoimentos das testemunhas.

O Tribunal da Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1ª instância, nos termos consagrados pelo n.º 5 do art.º 607.º do C.P. Civil, sem olvidar porém, o princípio da oralidade e da imediação.

Como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa[1], o juiz deve “expor a análise crítica das provas que foram produzidas, quer quando se trate de prova vinculada, em que a margem de liberdade é inexistente, quer quando se trate de provas submetidas à sua livre apreciação, envolvendo os motivos que o determinaram a formular o juízo probatório relativamente aos factos considerados provados e não provados.”

Não se poderá, porém olvidar que, por força da imediação, da oralidade e da concentração que caracterizam a produção da prova perante o juiz da primeira instância, este está numa posição privilegiada para apreciar essa prova, designadamente para surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir a espontaneidade e a credibilidade dos seus depoimentos, que frequentemente não transparecem na gravação.

Com efeito, a atividade do julgador na valoração da prova pessoal deve atender a vários fatores, alguns dos quais – como a espontaneidade, a seriedade, as hesitações, a postura, a atitude, o à-vontade, a linguagem gestual dos depoentes – não são facilmente ou de todo apreensíveis pelo tribunal de recurso, mormente quando este está limitado a gravações meramente sonoras relativamente aos depoimentos prestados.

A possibilidade que o legislador conferiu ao Tribunal da Relação de alterar a matéria de facto não é absoluta pois tal só é admissível quando os meios de prova reanalisados não deixem outra alternativa, ou seja, em situações que, manifestamente, apontam em sentido contrário ao decidido pelo tribunal a quo, melhor dizendo, “imponham decisão diversa”.

Daí que, por essa razão, Ana Luísa Geraldes[2] salienta que, em caso de dúvida, “face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”.

Isto posto, após audição das gravações e análise da prova documental, importa agora analisar os fundamentos invocados pela Apelante para ocorrência de erro de julgamento da matéria de facto e os concretos pontos impugnados.

Impugna, a matéria de facto provada nos pontos 5, 17 e 19, que pretende ver julgados como não provados.

O facto 5 tem a seguinte redação:

5) O destinatário das mercadorias a que se referiam as mencionadas encomendas, cliente a Autora, estabeleceu como condição prévia do acordo que celebrou com esta, a realização de testes laboratoriais, prévios à expedição das mercadorias, com vista a garantir a conformidade de todos componentes químicos empregues nas peças com as normas legais e regulamentares aplicáveis;

Este facto mostra-se suficientemente demonstrado através dos depoimentos das testemunhas CC, diretor comercial da Autora e BB, gestora de clientes da Autora, pessoa que demonstrou conhecer muitíssimo bem o cliente em causa (E...), com quem a Autora se relaciona comercialmente há oito anos, sendo a testemunha quem pessoalmente se relaciona com esse cliente), testemunhas que  relataram os elevados padrões de qualidade exigidos por aquele cliente, falando em exigências de rigor, de qualidade e de excelência e, quanto aos requisitos de controle de qualidade impostos por aquele destinatário da mercadoria, a exigência de testagem, na fase de produção da mercadoria, em laboratório independente, entre outros, à presença de produtos químicos proibidos.

Também a Engenheira têxtil, EE, que trabalha para a Apelada demonstrou saber da exigência deste cliente quanto à realização de testes.

A testemunha AA, funcionário da Interveniente acessória D..., em cujo depoimento fundamenta a apelante a ocorrência de “erro de julgamento”, nada demonstrou saber sobre este relacionamento comercial entre a Autora e o cliente E....

Improcede pois a impugnação.

Relativamente aos factos 17 e 19, impugnados, os mesmos têm o seguinte teor.

17) Suportou igualmente custos com a exames laboratoriais realizados pela F... para confirmar a presença (e quantidades) de ftalatos naquelas peças e a origem dos mesmos no processo de estampagem, cujo valor não foi possível apurar;

19) Seguidamente, a Autora emitiu e remeteu à Ré as faturas ..., ..., ..., ..., ..., correspondente ao valor dos prejuízos que reclamava da Ré, mencionados no ponto 18) e ainda a custos com exames laboratoriais aludidos em 17);

Limita-se a impugnante a afirmar que estes factos têm de ser julgados não provados, uma vez que não existe prova de quem terá assumido os custos dos testes realizados.

Apreciando.

Uma vez foi julgado não provado o seguinte facto: a) Os custos em que a Autora incorreu com a realização das encomendas aludidas em 3) e com a realização de testes laboratoriais às peças estampadas pela Ré ascenderam ao valor de global de 192.075,24€ (cento e noventa e dois mil e setenta e cinco euros e vinte e quatro cêntimos), o qual não se mostra impugnado, parece-nos irrelevante para a decisão a proferir, apreciar a impugnação efetuada, sob  pena de se estar a levar a cabo atividade inútil,  sendo entendimento da jurisprudência nesta matéria que, nesta situação, deve a Relação abster-se de apreciar da impugnação da decisão da primeira instância sobre a matéria de facto relativamente a factualidade que não interfere de modo algum na solução do caso, sendo alheia à sorte da acção.

Por este motivo, não se conhece da impugnação.

A Apelante impugna ainda os factos constantes dos pontos 8, 9 e 12, que são os seguintes:

8) Na sequência da análise realizada por esse relatório, detetou-se que as peças analisadas apresentaram valores de ftalatos superiores ao limite máximo legalmente permitido;

9) A presença de ftalatos em excesso proveio do processo de estampagem realizado pela Ré;

12) Seguidamente a Autora solicitou ao Laboratório ... a análise de outras peças têxteis por si fabricadas e submetidas ao processo de estampagem da Ré, os quais confirmaram que a presença de ftalatos em excesso provinha do processo de estampagem;

Alega a apelante que o julgador suportou a sua convicção num depoimento “técnico” prestado por uma testemunha, EE, com interesse direto no desfecho da ação, uma vez que a mesma é funcionária, de longa data, da recorrida.

A segunda testemunha, AA, detentor de conhecimentos técnicos semelhantes, uma vez que tem como profissão técnico de laboratório, no seu depoimento, afirma ser possível a existência de ftalatos nas peças antes de serem estampadas, derivados de outros produtos que não a tinta da estamparia.

Acresce, diz a Apelante, que os testes apresentados pela recorrida, foram impugnados pela recorrente, quanto ao seu efeito jurídico e valor probatório, através de requerimento de 05-12-2022, com a referência 34064332 e os mesmos apresentam-se em língua inglesa (em desconformidade com o disposto nos artigos 133.º e 134.º do CPC), sendo que aos mesmos não se lhes podem atribuir as características de relatório pericial.

Vejamos.

Estes factos ora impugnados são factos essenciais, pois da prova dos mesmos depende a precedência da ação.

Com efeito, a autora baseia a sua pretensão jurisdicional, no incumprimento defeituoso do contrato celebrado com a ré, por as peças que lhe entregou para estampagem, terem sido devolvidas, com quantidades de químicos (ftalatos) superior à legalmente permitida.

Na sentença, o tribunal julgou aqueles factos provados, com a seguinte fundamentação: “Não obstante o exposto e a negação por parte da testemunha da Ré, II, funcionário responsável pela processo de estampagem em causa nos autos, da utilização de qualquer tipo de produtos que contivessem ftalatos, a verdade é que resultaram da prova indícios seguros de que contaminação com aquele composto químico das peças que a Autor entregou à Ré proveio do processo de estampagem a cargo desta última.

Desde logo, como explicou a testemunha EE, os ftalatos - que atualmente constituem substâncias proibida elo seus efeitos nocivos para a saúde humana - quando adicionados às tintas num processo de estampagem conferem mais flexibilidade e durabilidade ao resultado final, sendo que até á sua proibição era usual a sua utilização para tal efeito.

E de acordo com a mesma testemunha, não sendo impossível encontrar vestígios de tal produto no próprio tecido (antes da estampagem), eventualmente provenientes da contaminação das embalagens plásticas dos mesmo, tais vestígios seriam sempre residuais e nunca nos valores encontrados através dos testes realizados, muito superiores aos limites máximos permitidos.

Por isso, pareceu-nos determinante a análise do relatório da perícia efetuada pelo mesmo laboratório, junto com a resposta à contestação, que analisou isoladamente as componentes das peças em causa – tecido e estampado – do qual resulta a elevada concentração de ftalatos no dito estampado e a ausência de vestígios do mesmo composto químico na parte do tecido que não está abrangido pelo mesmo estampado.

É verdade que a Ré junta, com a sua contestação, um conjunto de relatórios de exames à malha e à estampagem os quais apenas apresentam resultados positivos à presença de ftalatos quando analisada a malha fornecida pela Autora e estampada com os produtos utilizados nas encomendas (os quais, isoladamente analisados, testaram negativo para a presença de ftalatos) e já não quando o estampado foi realizado sobre malhas que não fornecidas pela Autora.

Todavia, desconhecendo-se se, no processo de estampagem (sobre tecido não fornecido pela Autora) que deu origem às peças que foram objeto desta última analise promovida pela Ré, foi seguido exatamente o mesmo procedimento que foi observado aquando da realização das encomendas da Autora, não podemos conferir mais credibilidade aos resultados destes testes promovidos pela Ré do que aos resultados dos testes levados a cabo pela Autora com base nas peças (comprovadamente) estampadas pela Ré durante a produção das encomendas em causa nos autos.

Como explicou a testemunha EE, estes últimos testes promovidos pela Autora seguiram a metodologia de isolar cada um dos componentes das peças manipuladas pela Ré, analisando separadamente cada uma das cores e tecidos, resultando notório das respetivas conclusões que os tecidos não apresentavam qualquer contaminação, enquanto uma das cores – o laranja – apresentava níveis altíssimos de cerca de 18.000 ppm de ftalatos.

Por tudo isto, embora não tenhamos conseguido determinar qual a concreta origem dos ftalatos (tendo até excluído que a mesma proviesse do “foil” e do “plastisol” fornecido pelas chamadas acessórias), parece-nos que a prova produzida foi suficiente para considerar provado que a contaminação teve origem no processo de estampagem realizado pela Ré. Com base nestes elementos de prova foi possível considerar provados os factos supra elencados sob os n.ºs 8, 9, 10, 12, 23, 24, 25, 27, 28 e 29.”

Concordamos integralmente com esta análise crítica da prova feita na sentença.

Com efeito, a testemunha EE, é engenheira têxtil de formação e para além disso demonstrou ter um conhecimento profundo das questões (de natureza técnica), sobre as quais se pronunciou no seu depoimento, que lhe advém do facto de trabalhar nesta área, há mais de 20 anos.

A forma como prestou o seu depoimento, com clareza, demonstrando assertividade e segurança nas respostas, não permitem concluir, como faz a apelante que a mesma tivesse de alguma forma, faltado à verdade, para “beneficiar” a sua entidade patronal. Pelo contrário, o seu depoimento mostra-se corroborado pelos testes laboratoriais feitos por laboratório independente e dos mesmos é possível tirar a conclusão com a necessária certeza e segurança, que a “contaminação” das peças com uma dosagem excessiva da ftalatos ocorreu no processo de estampagem, pois tal concentração ocorre na parte da estampagem.

Aliás, este depoimento teve ainda o mérito de auxiliar o tribunal na interpretação dos exames laboratoriais juntos aos autos, tendo explicado que, dos sucessivos exames que foram mandados realizar para se perceber a origem do problema, chegou-se á conclusão que a grande concentração de ftalatos foi proveniente duma das cores utilizadas, o laranja.

Pretende a Apelante ver desvalorizadas as conclusões técnicas dos relatórios dos testes laboratoriais que foram juntos aos autos pela autora/apelada, dizendo que oportunamente os impugnou e que os mesmos mostram-se redigidos em língua inglesa, e por isso mostram-se desconformes com o disposto nos artigos 133.º e 134.º do CPC.

Começando pela redação dos mesmos em língua estrangeira, dispõe o nº 1 do art. 134º do CPC que “Quando se ofereçam documentos escritos em língua estrangeira que careçam de tradução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, ordena que o apresentante a junte”.

Em anotação a este artigo, escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa,[3]que “A junção pelas partes de documento originariamente redigido em língua estrangeira deve ser acompanhada, em princípio, da respetiva tradução, a qual pode ser dispensada pelo juiz quando as circunstâncias o justifiquem. A prudência aconselha, porém, que tal dispensa apenas seja autorizada quando for seguro que não compromete as garantias das partes nem a justa composição do litígio, o que poderá revelar-se especialmente pertinente quando se trate de interpretar o teor de algum documento ou de cláusula contratual que se mostrem decisivos para a solução do pleito”.

Em anotação ao art. 140º, nº 1 do anterior CPC, com a mesma redação, escrevia Lopes do Rego,[4] o seguinte: “Procura simplificar-se, de forma substancial, o regime da tradução de documentos escritos redigidos em língua estrangeira, apresentados no processo: a) O nº 1 deixa de condicionar à necessária apresentação de tradução a incorporação nos autos de qualquer documento escrito redigido em língua estrangeira – facultando ao juiz dispensá-la quando entenda que o documento redigido em idioma estrangeiro não carece de tradução (v.g., pela fácil acessibilidade e inteligibilidade dos termos usados, pela sua pequena extensão, (…). Assim, por exemplo, se alguma das partes omitiu a tradução de um documento redigido em francês, de reduzida extensão e de fácil e plena inteligibilidade quanto ao seu conteúdo, pode o juiz dispensar a tradução, em vez de notificar o apresentante para que a ela proceda.”

Neste sentido, e entre outros, o acórdão da RG de 3.03.2004,[5] onde se pode ler: “o disposto nos artºs 139º e 140º nº1 C.P.Civ.[6] não impõe a tradução dos documentos em língua estrangeira existentes no processo, se tal tradução for acessível a todos os intervenientes no processo.”

Nos autos, constata-se que ambas as partes juntaram aos autos relatórios de testes redigidos em língua inglesa. A própria o ré, também o fez, (relativamente aos documentos 5 e 7 que juntou na contestação).

Nenhuma das partes porém, veio suscitar problemas de inteligibilidade quanto ao seu conteúdo, tendo aliás, no decurso da audiência de julgamento sido discutido os respetivos conteúdos, não demonstrando os intervenientes processuais quaisquer dificuldades na apreensão do conteúdo resultante da redação dos mesmos em língua estrangeira.

Desta forma, indefere-se a pretensão da Ré de ver retirado dos mesmos validade enquanto meios probatórios, sendo certo que tal questão deveria ter sido por si suscitada, aquando da notificação os documentos o que não ocorreu, tendo-se limitado a impugná-los genericamente.

Quanto ao seu concreto valor probatório, não se lhes sendo reconhecido, (como não foi, na sentença) valor de prova pericial, têm os mesmos indiscutivelmente um valor probatório muito relevante na apreciação da questão da deteção de ftalatos e sua concentração nas amostras analisadas, mostrando-se os mesmos realizados por laboratórios, cuja independência não foi posta em causa.

Dessa forma, os resultados das análises laboratoriais juntas quer pela autora, quer as juntas pela ré, encontram-se sujeitos à livre apreciação do tribunal, tal como o seriam os exames periciais, nos termos do disposto no art.389º do C.Civil.

 É consabido que a livre apreciação da prova não se traduz numa apreciação arbitrária, pelo que, nas palavras de Ana Luísa Geraldes[7] “o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (…), de modo a possibilitar a reapreciação da respetiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância”.

Por último resta dizer que, para se afirmar um juízo de prova de determinado facto, não é exigível que se afirme a certeza absoluta sobre o mesmo, mas apenas que sobre ele incide um alto grau de probabilidade de ocorrência pretérita, juízo formulado com base em máximas de experiência comum e posto que sejam inexistentes ou irrelevantes as provas divergentes das apresentadas.

Desta forma, porque foi feita prova suficiente que a contaminação das peças ocorreu no processo de estampagem executado pela ré, indefere-se a impugnação da matéria de facto feita.

Impugna ainda a Recorrente os factos alegados nos pontos 13, 14, 15, 16, 18 e 20, no que respeita a destruição das peças contaminadas, pretendendo que seja julgada não provada tal destruição por falta de prova.

Afirma que nenhuma das testemunhas viu/presenciou a destruição, nenhuma delas levou a cabo a destruição, nem tão pouco transportou as peças em causa para que fossem destruídas por terceiros, referindo o diretor financeiro da empresa, a testemunha GG, que não existe documento contabilístico do custo da destruição.

Esta é a nosso ver uma falsa questão, porquanto independentemente da questão das peças terem sido fisicamente destruídas (por inceneração ou por outro meio qualquer), que efetivamente não ficou cabalmente esclarecida, aqui o que se cuida de saber é se as mesmas peças ficaram ou não inutilizáveis para o fim a que se destinavam.

Ora destruição/inutilização, são palavras sinonimas, [8] e o que se provou é que, contendo as peças que a ré devolveu à autora, após o processo de estampagem produtos químicos em quantidade superior aos limites mínimos legais, tais peças ficaram inutilizáveis.

Esta inutilização/destruição ocorre quer junto do cliente final (E...), quer de quaisquer outros clientes, por ser ilegal a sua comercialização naquelas condições.

Acresce que na situação em apreço, nem se coloca a questão de possível aproveitamento das peças uma vez que a estampagem foi feita com o logotipo ou representação gráfica de uma marca ou empresa do cliente da autora.

Improcede pois também aqui a impugnação da matéria de facto.

Finalmente quanto ao facto do ponto 11:

11) Após a receção dos referidos resultados, a Autora comunicou à Ré que, sem prejuízo de proceder a diligências para confirmar as conclusões do relatório, que iriam suspender imediatamente quaisquer pagamentos devidos pelos serviços de estampagem;

Conforme resulta da sentença, este facto mostra-se demonstrado, com base “Os emails juntos como documentos 3, 5, 6 e 7 da petição inicial, conjugados com os depoimentos das testemunhas CC, diretor de produção da Autora, BB, gestora de cliente da mesma Autora, DD, planificador têxtil da Autora e ainda GG, diretor financeiro desta empresa, que deram conta dos procedimentos seguidos e comunicações logo após a deteção da contaminação das peças com ftalatos, permitiram considerar provados os factos supra mencionados sob os n.ºs 11 e 18.”

Este facto mostra-se devidamente provado, com base no documento junto com a p.i, - documento 3 - constituído pelo e-mail de 27 de abril enviado pela autora à ré a comunicar-lhe expressamente que,  “No seguimento da reunião tida hoje entre a B... e a A..., informamos que em face ao problema ocorrido com os indicadores de contaminação que as análises laboratoriais revelaram com as peças (encomendas nº ..., ... e ...), iremos suspender os pagamentos até a situação ficar esclarecida.”

Improcede pois o recurso in tottum, na impugnação da matéria de facto.

V-APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS:

A eventual alteração da solução jurídica dependia da modificação da decisão de facto, o que não sucedeu.

Porém a Apelante, relativamente ao direito aplicado na sentença e independentemente da impugnação da matéria de facto a que procedeu, por via recursiva, alegou a existência de erro na subsunção do direito aos factos, dizendo que, a ser condenada pelo incumprimento do contrato, deveria ter sido acionado, em primeira linha, a realização de obra nova, conforme prevê o artigo 1221.º do CC.

Discorda da decisão do julgador no sentido de que seria possível recorrer excecionalmente ao direito à indemnização, previsto no artigo 1223.º do CC, sem necessidade de acionar o disposto nos artigos 1221.º e 1222.º., porquanto, sustenta, estes meios jurídicos não se podiam efetivar.

Diz que não há prova cabal da destruição das peças, não pode ser dado como provado que a recorrida tenha destruído a camisola completa nem sequer apenas a parte estampada e, além disso, foi colocada a hipótese de ser a recorrente a fazer a repetição das peças.

Alega a recorrida ter contratado um terceiro para a realização da mesma obra (repetição) sem, contudo, ter dado essa oportunidade à recorrente, conforme estaria legalmente obrigada.

Desta forma gerou uma desproporcionalidade nos custos que pretende imputar à recorrida, em relação ao proveito que esta teria tido mediante o pagamento da estampagem, tendo sido violada, portanto, a escala imperativa imposta pela lei.

Vejamos.

Discordamos da sentença, apenas na parte em que qualificou o contrato dos autos, mediante o qual a autora solicitou à ré a estampagem de peças têxteis, como contrato de empreitada, nos termos dos artigos 1207º e segs. do Código Civil, porquanto rigorosamente estamos no domínio da subempreitada – artigos 1213º do C.Civil.

Com efeito, a subempreitada é o contrato através do qual, alguém (subempreiteiro assume a obrigação de realizar a obra, ou parte da obra que o empreiteiro se comprometeu a executar pela celebração do contrato de empreitada com o dono da obra, mediante o recebimento de um preço a pagar pelo empreiteiro (art. 1213º do C.C).[9]

De acordo com Pedro Romano Martinez,[10] “a subempreitada é um contrato subordinado a um negócio jurídico precedente. É uma empreitada de “segunda mão”, que entra na categoria geral do subcontrato, e em que o subempreiteiro se apresenta como um “empreiteiro do empreiteiro”, também adstrito a uma obrigação de resultado.”

O recurso à subempreitada procura dar resposta, normalmente às especiais tarefas especializadas necessárias à execução da obra, mas também visa responder à necessidade do empreiteiro de ter capacidade de resposta em face do volume do encargo no prazo acordado.

Trata-se de um tipo específico de subcontrato, no qual, após a celebração de um primeiro contrato de empreitada, em que ficou definida a prestação a efetuar pelo empreiteiro (a aqui autora), este celebra um segundo contrato de empreitada com um terceiro (a qui ré), em que este se vincula a executar o conteúdo daquela prestação ou de parte dela. O empreiteiro, no primeiro contrato toma a posição de dono da obra no segundo, não existindo relações contratuais diretas entre o dono da obra  (E...) do primeiro contrato e o subempreiteiro do segundo contrato (a ré).[11]

Isto posto, esta precisão em nada altera o decidido na sentença, pois, como vimos, a subempreitada implica na relação do empreiteiro com o subempreiteiro, uma relação dono da obra/empreiteiro.

Assim sendo, subscrevemos que o que aí se afirma, quanto à verificação do incumprimento contratual e quanto á obrigação de indemnização por parte da ré dos prejuízos causados.

Com se pode ler na sentença: “O empreiteiro, em honra ao vínculo contratual entabulado com o dono da obra, está obrigado a realizá-la, em conformidade com o convencionado e sem vícios que lhe reduzam ou excluam o valor ou a aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato, tal como decorre dos arts. 1207.º e 1208.º do Código Civil, constituindo o primeiro direito do dono da obra que a mesma venha a ser por ele adquirida e recebida, integralmente realizada, em face dos princípios vigentes em sede de cumprimento (arts. 762.º e 406.º, n.º 1 do Código Civil).

Na situação em apreço, a Autora alegou e provou que as peças de vestuário que entregou à Ré apresentavam, após o processo de estampagem e por causa dele, quantidades de ftalatos – composto químicos prejudiciais à saúde humana – em valores superiores ao limite máximo legalmente permitido, o que determinou a destruição de toda a mercadoria que foi objeto do processo de estampagem levado a cabo pela Ré.

Quer dizer, ficou demonstrado que a Ré executou a(s) obra(s) que lhe foi(ram) adjudicada(s) de forma indevida, porque com vícios que, no caso, excluem totalmente, a aptidão do objeto da prestação da Ré para o fim a que se destinavam, determinando a sua completa inutilização.

Está-se, assim, perante uma situação de cumprimento defeituoso do contrato de empreitada, imputável à Ré, que não ilidiu a presunção de culpa que sobre si recaía, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 799º, nº 1 e 342º, nº 2, ambos do Código Civil, que se funda na ideia de que o empreiteiro está adstrito a uma obrigação de resultado, cuja produção garante, ou seja, a realizar a obra conforme o acordado e segundo os usos e regras da arte, sempre que este entrega como pronta uma obra que não foi realizada, nos termos devidos, isto é, quando o cumprimento efetuado não corresponde, por deformidade ou vícios, ao resultado prometido.”

A questão que urge solucionar é a de saber se, tal como defende a Apelante, antes da indemnização, deveria ter sido dada oportunidade à ré de refazer as peças.

Perante a existência de defeitos, a lei concede ao dono da obra vários direitos, o primeiro dos quais é o de exigir a sua eliminação – artigo 1221º nº 1 do C.Civil.

Se os defeitos não puderem ser eliminados, cabe ao dono da obra exigir do empreiteiro a realização de uma nova obra.

Na sentença esta questão mostra-se analisada pelo tribunal nos seguintes moldes: “Verificando-se cumprimento defeituoso do contrato de empreitada, o Código Civil concede ao dono da obra cinco meios jurídicos de ressarcimento: a eliminação dos defeitos e a realização de nova obra (art. 1221.º), a redução do preço e a resolução do contrato (art.1222.º), e a indemnização (art. 1223.º), os quais, em princípio, devem ser exercidos escalonadamente.

Excecionalmente, porém, é de admitir o recurso isolado e imediato ao direito de indemnização, previsto no art. 1223.º, sem necessidade de acionar previamente os direitos previstos nos arts. 1221.º e 1222.º.

Tal sucederá – para além das situações de perda de interesse na prestação por parte do dono da obra, objetivamente apreciada (em conformidade com o disposto no art. 808º, n.º 2 do Código Civil) - nas situações em que os outros meios jurídicos não se possam efetivar.

É esta última, a nosso ver, a situação que se verifica no caso em apreço.

De facto, em virtude do cumprimento defeituoso da prestação a cargo da Ré, as peças têxteis que foram objeto da mesma tiveram de ser totalmente inutilizadas, inviabilizando assim qualquer possibilidade de eliminação dos defeitos do trabalho de estampagem realizado pela Ré ou a realização de novos trabalhos de estampagem sobre as mesmas peças têxteis.

É, assim, inequívoca a inviabilidade prática de a Autora recorrer a qualquer dos meios jurídicos previstos no art. 2.121º e 2.122º do Código Civil, pelo que o mencionado incumprimento, que se presume culposo (art. 799º do Código Civil) e deve considerar-se definitivo, lhe confere o direito a ser indemnizada, em conformidade com o previsto no art. 1.223º do Código Civil.”

Não podemos deixar de concordar com esta solução, à qual acresce ainda, a nosso ver, argumentos que acrescem com a qualificação do contrato dos autos, como de subempreitada, a que procedemos.

Com efeito, como salienta Pedro Romano Martinez,[12] os dois contratos (de empreitada e subempreitada) não os prosseguem por via de regra uma finalidade económica comum, como, sobretudo, Têm identidade, pelo menos parcial, de conteúdo e de objeto. “Daí que a relação existente entre a empreitada e a subempreitada seja a de uma união de contratos unilateral, funcional e necessária”.

Os dois contratos prosseguem a mesma finalidade, isto é, apesar de serem contratos distintos visam ambos a realização do interesse do dono da obra.

Mais á frente, afirma, “os contratos de empreitada e de subempreitada estão funcionalizados um em relação ao outro, pois foram celebrados para a prossecução de uma finalidade comum.”

Emergiu provado que em consequência da defeituosa execução do serviço de estampagem, a autora viu-se impossibilitada de cumprir com os prazos que havia inicialmente estipulado com o seu cliente (E...) (facto 15 dos factos provados).

Atenta a união de contratos de empreitada e subempreitada, tal significa que, para além de ser objetivamente impossível “descontaminar” as peças que ficaram inutilizadas, como se observou na sentença recorrida, também não era possível já à autora cumprir o contrato de empreitada que celebrou com a E..., tendo dessa forma ficado prejudicado o cumprimento do contrato principal.

Considerando a união daqueles contratos e o prosseguimento de objetivo comum -  entrega ao cliente E... das peças que encomendou à autora, que implicavam na sua execução a estampagem do seu logotipo (parte da empreitada que foi submetida á ré) - também não se mostrava possível a realização de obra nova, pois a realização da obra defeituosa pela subempreiteira impossibilitou a autora de cumprir com os prazos que havia inicialmente estipulado com o seu cliente (E...).

Concluindo, não só os defeitos não são elimináveis (não é possível descontaminar as peças que foram estampadas pela ré), como não é possível exigir a realização de obra nova, uma vez que de mostrava excedido o prazo de entrega ao cliente final, no âmbito do contrato de empreitada – contrato principal.

Desta forma, impõe-se manter a decisão recorrida e julgar improcedente o presente recurso.

 

VI-DECISÃO

Pelo exposto e em conclusão acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso e em confirmar a sentença recorrida.

Custas pela Apelante.


Porto, 9 de abril de 2024.
Alexandra Pelayo
Rui Moreira
Anabela Miranda
_______________
[1] Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra 2019, p. 720.
[2] IN Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, pg.609.
[3] In CPC Anotado, Vol. I, pág. 157.
[4] In Comentários ao CPC, Vol. I, 2ª ed, 2004, pág. 147,
[5] Proferido no P. 152/04-2 (Vieira e Cunha), disponível em www.dgsi.
[6] Anterior redação dos atuais arts. 133º e 134º do CPC:
[7] Obra citada, pág. 591.
[8] Ver Infopédia – Dicionários da Porto Editora, disponível on line.
[9] Definição de Cura Mariano in “Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, Almedina, pg.185.
[10] IN Direito das Obrigações Parte Especial, Contratos, Almedina, pg. 373.
[11] Cura Mariano, ob cit, pg. 185 e 186.
[12] Obra citada, pgs 374 e ss.