Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
21209/20.5T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: DIREITO À HONRA
OFENSA DO BOM NOME
OFENSA DO CRÉDITO
AFIRMAÇÕES FEITAS NOS ARTICULADOS
Nº do Documento: RP2023062921209/20.5T8PRT.P1
Data do Acordão: 06/29/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A ofensa do direito à honra e ao crédito pode ser praticada nos articulados de uma acção judicial e não é o simples facto de isso constituir o exercício do direito de acesso à justiça que exclui, sem mais, a ilicitude da ofensa.
II - Todavia, o contexto da acção pode permitir concluir que determinadas afirmações não podem ser qualificadas como ofensivas e ilícitas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO DE APELAÇÃOECLI:PT:TRP:2023:21209.0.5T8PRT.P1
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SUMÁRIO:

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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. Relatório:

AA, contribuinte fiscal n.º ..., residente em ..., instaurou acção judicial contra BB, contribuinte fiscal n.º ..., residente na Póvoa de Varzim, pedindo que a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 11.500,00€, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento.

Para fundamentar o seu pedido alegou em súmula, que nos articulados que apresentaram em duas acções judiciais que o autor instaurou contra a ré e contra a sociedade A..., Lda., estas fizeram afirmações que violam o seu direito à honra e ao bom nome, causando-lhes danos dos quais pretende ser ressarcido.

A ré foi citada e apresentou contestação, defendendo a improcedência da acção com a alegação de que não cometeu qualquer ofensa à honra e ao bom nome do autor.

Foi requerida e admitida a intervenção principal passiva da sociedade A..., Lda., a qual foi citada e não apresentou contestação.

Realizada sem sucesso tentativa de conciliação e dispensada a audiência prévia, foi proferido saneador-sentença, tendo a acção sido julgada improcedente e a ré e interveniente principal absolvidas do pedido.

Do assim decidido, o autor interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:

I. O inconformismo do recorrente prende-se com o facto de o Tribunal de primeira Instância ter julgado a acção totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, absolvido a Ré BB e a chamada “A..., Lda.” do pedido.

II. O Tribunal a quo entendeu não estar preenchido um dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, a saber, o pressuposto da ilicitude.

III. Salvo o devido respeito, laborou em profundo e manifesto equívoco o Tribunal a quo.

IV. As rés realizaram afirmações que violam objectivamente o direito à honra e ao bom nome do aqui recorrente AA, tendo sido violada a norma do artigo 484.º do CC.

V. A sua violação acarreta responsabilidade civil aquiliana e implica a obrigação de indemnizar se verificados os requisitos legais do artigo 483 ° do Código Civil, ao que se aditam os requisitos particulares do artigo 4840 do Código Civil, normas que resultaram violadas pelo Tribunal a quo.

VI. In casu, o tribunal a quo deu como provados todos estes pressupostos da obrigação de indemnizar, com a excepção do requisito da ilicitude.

VII. A ilicitude é um juízo de actuação desconforme com o Direito.

VIII. A alegada “elevada litigiosidade” (que nem vem alegada pelas rés) não é causa de exclusão da responsabilidade, nem é causa de desculpação das RR. por não ser esta uma causa de justificação do facto danoso e como tal excludente da ilicitude.

IX. Assim, sempre deveria ter sido dado como provado o requisito da ilicitude e em consequência deve ser dada como provada a presente acção e condenar-se as rés nos exactos termos peticionados.

X. Os direitos de personalidade são direitos absolutos cuja violação é uma forma de ilicitude que se insere no preceito do artigo 483º°, n.º 1 do CC.

XI. Resulta da sentença recorrida que o Tribunal a quo não julga verificada quaisquer causas justificativas do facto danoso, com vista à exclusão da ilicitude.

XII. Não se encontram preenchidas nenhuma das causas gerais ou especiais, que se consagram a propósito do exercício e tutela dos direitos, que possibilitam a violação ilícita de direitos de outrem ou de normas dirigidas a proteger interesses alheios.

XIII. Tendo, no caso vertente o autor demonstrado a existência de ilicitude, não lograram as rés demonstrar invocar e ou sequer demonstrar qualquer causa impeditiva de tal facto.

XIV. Com efeito, na conflitualidade entre os direitos de liberdade de expressão e os direitos de personalidade, sendo embora os dois direitos de igual hierarquia constitucional, é indiscutível que o direito de liberdade de expressão, pelas restrições e limites a que está sujeito, não pode atentar contra o bom nome e reputação de outrem, salvo se estiverem causa um interesse legítimo, ou haja imprescindibilidade no respectivo exercício e esta seja exercida de forma a não exceder o necessário.

XV. Sendo que o art. 484º do Código Civil prevê caso particular de antijuridicidade que deve ser articulado com aquele princípio geral - contido no art. 483º.

XVI. Como Antunes Varela ensina, em nota de rodapé constante de páginas 559 do seu I volume de "Das Obrigações em Geral, 7ª edição, para haver culpa, no caso de afirmação ou divulgação de factos susceptíveis de prejudicar o crédito ou o bom nome de alguém, basta, em principio, que o agente queira afirmar ou difundir o facto.

XVII. Também Pires de Lima e Antunes Varela esclarecem que consideram que é expressamente antijurídica a conduta que ameace lesar o direito ao crédito e ao bom nome.

XVIII. Assim como também reconhece a sentença em mérito, que empreendeu uma errada aplicação e interpretação do direito, com todo o devido respeito, a previsão normativa constante do artigo 484º do CC alinha-se no comando constitucional ínsito no artigo 26.º, n.º 1, da CRP e do corolário geral do artigo 70.º, n.º 1, do CC, normas que a Decisão recorrida também viola.

XIX. Indubitavelmente no caso dos autos, as afirmações produzidas pelas rés constituem ofensas ao bom nome e reputação e integram o núcleo fundamental dos direitos de personalidade,

XX. Os quais são direitos subjectivos pessoais e absolutos e cuja violação, no caso dos autos é geradora de responsabilidade civil, nos termos do citado artigo 483º CC.

Normas jurídicas violadas: 1) artigos 70.º, 483.º e 484.º, ambos do Código Civil. 2) artigos 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos e noutros melhores de direito que V. Exas. muito doutamente suprirão: a) deve ser julgado procedente o presente recurso e a decisão do Digno. Tribunal de 1ª instância revogada e substituída por outra que condene as rés nos exactos termos peticionados, nos termos de uma correcta aplicação da lei civil. b) ou, subsidariamente, julgando verificado este pressuposto, ordene a prossecução dos autos para a apreciação da verificação dos demais pressupostos da existência de responsabilidade civil extracontratual, por parte das rés.

As recorridas não responderam a estas alegações.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:

As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se as afirmações feitas pela ré e pela interveniente principal nos articulados das acções constituem uma ofensa ao crédito ou ao bom nome do autor.

III. Fundamentação de facto:

Na decisão recorrida elencam-se os seguintes factos provados:

1. O autor viveu em união de facto com a ré BB entre o ano de 2006 e o ano não concretamente apurado de 2012 ou 2013, tendo durante esse período partilhado com a mesma o leito, mesa e habitação.

2. O autor e a ré BB são sócios da sociedade chamada "A..., Lda.".

3. No âmbito do processo n.º 605/17.0T8PVZ, intentada pelo aqui autor, AA, contra a aqui chamada "A..., Lda.", que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível da Póvoa do Varzim - Juiz 3, sob a forma de processo comum, a aqui chamada "A..., Lda.", no âmbito da contestação, afirmou que:

«46. O requerente tem perfeita noção de que o que recebeu, recebeu por causa da relação amorosa que tinha com a legal representante da requerida.

47. E, pelo menos à data dos factos, o requerente estava agradecido por todas as ajudas que a requerida e a sua legal represente lhe prestaram, num momento em que o requerente vivia em casa dos seus pais e sem condições para pagar a pensão de alimentos que devia ao seu filho e suportar-se autonomamente.

48. E tanto assim era que, enquanto durou o relacionamento entre o requerente e a legal representante da requerida, o requerente nunca reivindicou o que quer que seja, designadamente o que ora alega.

49. Somente agora, depois de o requerente sair da requerida e ir viver para o Algarve com uma cidadã Brasileira, há mais de cinco anos, é que se lembrou de perseguir a requerida e a sua legal representante com pedidos, no mínimo, inconsequentes.»

4. No âmbito do processo sob o n.º 208/17.0T8PVZ, intentada pelo aqui autor, AA, contra a aqui ré BB, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, no Juízo Local Cível da Póvoa do Varzim - Juiz 1, sob a forma processo especial de prestação de contas, a aqui ré BB, na contestação, afirmou que:

«76. O requerente não teve qualquer participação na criação ou desenvolvimento do negócio e da actividade da A..., Lda.

77. Não angariou clientes, não angariou fornecedores, não participa no know-how, enfim, rigorosamente nada.

78. A A..., Lda., foi criada exclusivamente pela requerida.

79. E foi criada para trabalhar uma carteira de clientes que a requerida já detinha no âmbito de outra empresa do seu grupo, ou seja, a B..., Lda.

80. Os serviços que a A..., Lda. prestava, eram de todo em todo, idênticos aos da B..., Lda.

81. Sendo que a requerida é sócia maioritária e gerente na B..., Lda.

82. A B..., Lda., é uma empresa criada e explorada pela requerida, desde 2001.

83. Os clientes com que o A..., Lda. trabalhava, pertenciam integralmente à carteira de clientes da B..., Lda.

84. A A..., Lda. era um projecto já lançado pela requerida, muito antes sequer de conhecer o requerente.

85. E tinha como objectivo separar uma carteira de clientes, com base na sua localização geográfica, a fim de rentabilizar melhor os custos e a eficiência dos serviços que eram prestados.

86. Quando a requerida avançou com a criação da A..., Lda., incluiu o requerente na referida empresa, com uma participação absolutamente marginal, por motivos puramente emocionais.

87. O requerente nunca trabalhou para o sucesso da A..., Lda. (...)

89. Até porque, o requerente estava muito agradecido à requerida que, num momento difícil da sua vida, proporcionou-lhe uma casa, alimentação, ajuda financeira, apoio emocional e, literalmente, uma vida nova e cheia de confortos que o requerente não tinha, junto da casa dos seus pais.

90. É que, apesar de ser um projecto exclusivo da requerida, há muito tempo preparado por esta, quando a requerida finalmente avançou, estava envolvida num relacionamento com o requerente.

91. Com efeito, o requerente, à data da constituição da A..., Lda., não tinha emprego, vivia em casa dos pais e não conseguia sequer pagar as prestações de alimentos que devia à mãe do seu filho.

92. O requerente, quando foi recolhido pela requerida na sua habitação e na sua vida, não tinha rendimentos para se sustentar e cumprir com as suas obrigações, especialmente a pensão de alimentos que foi suportada pela requerida durante vários anos. (-)

94. A requerida, atenta a relação emocional que tinha com o requerente, inclui-o como sócio, o que fez apenas e só porque, estava apaixonada por ele.

95. Sem nenhuma razão lógica para o fazer, porque efectivamente, não houve nenhuma razão lógica na cabeça da requerida, quando incluiu o nome do requerente no pacto social.

96. O que o requerente muito bem sabe e, friamente, aproveitou por repetidas vezes e agora mais uma, volvidos todos estes anos.»

5. No âmbito do processo referido em 3. foi proferida sentença, transitada em julgado, no âmbito da qual foram dados como provados os seguintes factos:

"1. A R. é uma sociedade comercial que gira no tráfego jurídico negocial sob a firma A..., Lda., tratando-se de uma sociedade comercial, por quotas, que se dedica a consultoria para negócios, actividades de auxílio ao desenvolvimento, marketing, design, organização e administração interna de empresas, comércio a retalho e por grosso de vestuário de cozinha, fardas e utensílios de cozinha, actividades de projecto em maquinaria ligeiro e pesada de higiene e limpeza, importação e exportação e, ainda, formação.

2. A sociedade vincula-se quer com a assinatura de ambos os sócios, quer apenas com a da sócia BB.

3. A sobredita sociedade comercial tem o capital social de €5.000,00 (Cinco Mil Euros), distribuído por duos quotas, o saber: 1 quota com o valor nominal de €4.750,00 (quatro mil, setecentos e cinquenta euros), subscrito pela ex-companheira do autor, BB; 1 quota no valor nominal de €250,00 (duzentos e cinquenta euros) subscrito pelo autor

4. Tal divisão do capital social foi efectuada desta forma e por decisão da outra sócia da R., com o que o ora autor concordou, desde o momento da constituição da sociedade R., o que ocorreu em 14.03.2007, junto da Conservatória do Registo Comercial da Póvoa de Varzim.

5. O autor contribuiu com o seu Know-how e trabalho para o sucesso da R.

6. O requerente viveu em união de facto com BB entre o ano de 2006 e 11 de Setembro de 2012, tendo durante esse período partilhado com a mesma o leito, mesa e habitação em casa propriedade da segunda, cujo empréstimo para aquisição, e outras despesas como condomínio, água, luz e empregada eram suportadas por esta.

7. Não obstante ter sido o esforço comum de ambos que determinou um incremento patrimonial para o casal foi sempre aquela sócia da R. a administrar em exclusivo esses mesmos bens.

8. Em Setembro de 2012 a outra sócia da ré, pôs termo à referida união de facto.

9. O autor e a referida sócia da ré constituíram aquela sociedade comercial por quotas a fim de gerarem rendimentos para as despesas do seu dia a dia.

10. Na sobredita sociedade comercial, desde o início da actividade até à presente data, aquela outra sócia da ré exerceu unicamente funções de gerência, quer de facto, quer de direito.

11. Já o autor nunca exerceu funções de gerência atenta a relação de confiança pessoal existente entre si e a co-sócia.

12. Desde o início da sua actividade até Setembro de 2012, o autor trabalhou na sociedade com isenção de horário de trabalho, com total disponibilidade inclusive ao fim de semana, ministrando formação, por conta da empresa, contribuindo para os resultados positivos que a sociedade veio a registar e, em consequência, para o próprio incremento patrimonial do acervo societário.

13. O autor é autor de um livro, com know-how e uma rede de contactos que passou para a ré, quer nas escolas de hotelaria em que dava aulas e formação quer no programa de cozinha que fez no ... Canal e na Confraria..., na Póvoa de Varzim.

14. Depois de cessar as suas funções na ré, o autor manteve a realização do programa de cozinha do ... Canal e a ré e a sua sócia deixaram de ter participação no mesmo.

15. O autor desempenhava todas as tarefas que fosse necessário desempenhar na sociedade R., inclusive de contacto e logística com fornecedores e clientes, feiras, formação, entre outros, apenas estando afastado da contabilidade, cujo acesso sempre lhe foi vedado.

16. Não deixa de ser também verdade que essencialmente o assunto em que o autor é perito e que foi o seu grande aporte para a ré é toda a panóplia de situações que se relacionam com a sua formação e experiência como chefe de cozinha.

17. Os montantes que o autor recebia a título pessoal, nessas formações que ministrava, depositava-os (ou ordenava a transferência àquelas entidades) na conta conjunta com o n.º ...46, domiciliada no Banco 1..., e co titulada por si e pela id. BB.

18. Bem como o mesmo aquele fazia com os valores que recebia a título de reembolso em sede de IRS.

19. A outra sócia da ré naquele que era o exercício dos seus poderes de administração, determinou, unilateralmente, e que ao autor fosse atribuída uma quantia, pelos serviços prestados à sociedade, que a ré designou de retribuição a título de remuneração de sócio gerente, com carácter mensal e regular até Junho de 2012, no montante de € 936,47 €.

20. Para si própria decidiu a outra sócia da ré atribuir uma quantia de 5.000,00€.

21. Do mesmo posso, o autor tinha direito a utilizar viatura da ré e a seguro de saúde.

22. O montante percebido pelo autor era por este utilizado para pagar, regular e mensalmente, enquanto este o recebeu, algumas despesas de alimentação ligadas à vida em comum que o autor e a outra sócia da ré tinham estabelecido.

23. Da sua remuneração, o autor destinava a quantia de 250,00€ (duzentos e cinquenta euros), ao pagamento da pensão, o título de alimentos, devida ao seu único filho menor, fruto de um anterior casamento do mesmo.

24. Nos meses de Julho, Agosto e Setembro de 2012 o autor continuou o prestar serviços à ré.

25. Quando terminou com a vida em comum com o autor, a supra identificada BB, do mesmo passo, de forma unilateral pôs igualmente termo aos serviços prestados por aquele à ré, arredando-o por completo da vida societária, impedindo-o, inclusivamente, de aceder às instalações onde a sociedade labora, e não lhe facultando qualquer informação sobre as contas e escrituração daquela sociedade.

26. A partir de então, o autor deixou de viver em casa da co-sócia, não mais recebeu qualquer quantia da ré, e, durante o mês de Setembro de 2012, deixou de ter acesso ao veículo facultado pela mesma, a conta supra referida em que recebia a remuneração que esta lhe pagava passou o não ter saldo positivo, o mesmo sucedendo com a conta da ré a que até então tinha acesso e, em Fevereiro de 2013, ficou sem o seguro de saúde.

27. Com a cessação da sua actividade na ré, o autor ficou sem qualquer rendimento para prover à sua subsistência, com excepção de 200,00 € de serviços que, como até então, continuou a prestar à Tupperware a título individual, o que perdurou durante um período não concretamente determinado.»

6. No âmbito do processo referido em 4. foi proferida decisão, transitada em julgado, a absolver a aqui ré BB da instância, por o tribunal ser materialmente incompetente para conhecer da acção.

IV. Matéria de Direito:

O autor pretende através da presente acção obter da ré e da interveniente principal uma indemnização pelos danos que diz ter sofrido em consequência das ofensas ao seu direito ao crédito e ao bom nome perpetradas por aqueles nos articuladas de duas acções judiciais.

A regra básica de distribuição dos riscos e que constitui um dos princípios básicos da responsabilidade traduz-se na máxima casum sensit dominus. A imputação delitual dos danos a outrem pressupõe a lesão de direitos subjectivos, de posições jurídicas que mereçam ser protegidas de qualquer agressão.

Só porque ocorreu um dano e ele resultou de uma actuação voluntária do agente não se pode concluir de forma automática pela responsabilidade do agente pelo ressarcimento dos danos. Fora dos casos excepcionais em que o próprio legislador responsabiliza o agente por factos lícitos, para haver responsabilidade é necessário, desde logo, haver um acto ilícito.

A ilicitude pode resultar da violação de direitos subjectivos ou normas legais de protecção ou da violação de deveres de prestação de origem contratual.

Nos termos do artigo 483.º do Código Civil, “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. Ao definir o âmbito da responsabilidade civil, este preceito distingue duas modalidades básicas de ilicitude: a violação de um direito de outrem e a violação de qualquer disposição legal destinada à protecção de interesses alheios.

No primeiro caso, a ilicitude advém da ofensa perpetrada a um determinado bem jurídico que a lei protege mediante a qualificação desse interesse como um verdadeiro direito da pessoa. No outro, a ilicitude provém de uma actuação desconforme com a regra de conduta que a lei impõe como forma de tutela de interesses de outrem. Ao lado dessas duas modalidades básicas de ilicitude para efeitos de responsabilidade civil, encontram-se várias outras previsões específicas de actos ilícitos.

Uma delas é o artigo 484.º do Código Civil, segundo o qual quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom-nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados. Aqui a ilicitude traduz-se na ofensa ao crédito ou ao bom-nome de uma pessoa singular ou colectiva, através da divulgação de factos susceptíveis de os prejudicar.

Este preceito é a concretização dos meios de tutela dos direitos de personalidade, consagrados no n.º 2 artigo 70.º. Segundo este preceito, a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral, sendo que a pessoa ameaçada ou ofendida, independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.

Tal preceito visa cumprir o estabelecido no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, o qual reconhece a todos, entre outros direitos pessoais, o direito ao bom nome e à reputação, como expressão directa do princípio da dignidade humana. Este direito fundamental tem por objecto o tipo de representação que os outros têm sobre uma pessoa, abrangendo todos os aspectos relativos a uma projecção social positiva e à consideração daí resultante no seio da sociedade.

O artigo 484.º do Código Civil tem a sua origem no Anteprojecto de Vaz Serra, o qual receando que se se suscitassem dúvidas sobre a inclusão do direito ao crédito, com incidência em aspectos de cariz económico, nos direitos de personalidade, inspirando-se no artigo § 824 do BGB, previu, expressamente, no artigo 733.º, n.º 3, do seu Anteprojecto, a ressarcibilidade dos danos resultantes da sua ofensa.

Segundo explicou na exposição de motivos do Anteprojecto, in Boletim do Ministério da Justiça, ano 92.º, página 129, «parece haver vantagem em esclarecer que o crédito, a aquisição e a prosperidade são direitos subjectivos ou, pelo menos, interesses juridicamente protegidos contra falsas informações susceptíveis de os prejudicar. Poderia duvidar-se sobre se são direitos de personalidade e talvez seja, por isso, útil declarar que quem, contra a verdade, afirma ou difunde um facto susceptível de pôr em perigo o crédito de outrem ou de causar outros prejuízos à sua aquisição ou prosperidade é obrigado a reparar o dano daí resultante, se conhece a inexactidão ou devia conhecê-la».

A ofensa ao crédito da pessoa ocorre quando se atinge, diminui ou coloca em causa a confiança dos outros na capacidade ou na vontade de uma pessoa para satisfazer as suas obrigações, a crença dos outros em que a pessoa não faltará aos seus compromissos, a imagem pública quanto à sua capacidade ou vontade de honrar e satisfazer os seus compromissos de natureza económica, a projecção social das aptidões e capacidades económicas dos autores (apud Capelo de Sousa, in O Direito Geral de Personalidade, Coimbra, 1995, pág. 304 e Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª edição, página 549).

Segundo Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, I - Direito das Obrigações, Tomo III, página 553, o facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de uma pessoa corresponderá a «uma afirmação ou insinuação, feita pela palavra (escrita ou oral), pela imagem ou pelo som, que impliquem ou possam implicar desprimor para o visado. Este resultará (ou poderá resultar apoucado, aviltado ou, por qualquer modo, diminuído na consideração social ou naquela que ele tenha de si mesmo. A pessoa média normal (bonus pater famílias) sentir-se-ia bem consigo próprio e com os outros se fosse vítima da afirmação ou da insinuação em causa? A resposta dir-nos-á, em regra, se há facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome do visado”. Terá de haver a imputação de um facto, não bastando alusões vagas e gerais (v. Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 9ª ed., pp. 516 e 517), bem que os juízos de valor e qualquer outra manifestação não factual ofensiva possa também ser censurada e reprimida.»

Não há, contudo, violação do direito ao crédito de alguém sem a publicitação do acto que pode afectar esse direito, sem se tornar pública a imputação a alguém de uma actuação que possa atingir, diminuir ou colocar em causa a confiança dos outros na capacidade ou na vontade da pessoa para satisfazer as suas obrigações.

Para haver ilicitude, consubstanciada numa violação injusta do direito ao crédito, é necessário que o agente tenha tornado pública a imputação da actuação que pode importar a lesão do direito, tenha transmitido essa imputação a terceiros levando-os a crer na imputação e a formarem uma convicção sobre a veracidade da imputação e a actuarem em conformidade com isso.

Já o bom nome de uma pessoa é ofendido quando se prejudica, diminui ou coloca em crise o conceito favorável que a pessoa tem na comunidade, o reconhecimento público da imagem positiva que ela logrou obter ou construir na comunidade com que se relaciona e onde é conhecida, o seu prestígio ou reputação.

Na obra colectiva Comentário ao Código civil: direito das obrigações, das obrigações em geral, Coord. de José Brandão Proença, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2018, página 287, escreveu-se que como «este artigo apenas tutela a dimensão social da honra, seja, a avaliação de respeito e deferência que os outros fazem de uma pessoa, a acção juridicamente relevante consistirá na divulgação a um terceiro de um facto ofensivo do bom nome ou crédito de outrem. (…) [a] ilicitude da conduta … não se basta com a imputação a outrem de um facto lesivo do bom nome, reputação e crédito, exigindo para além disso a falsidade do facto ou, sendo este verdadeiro, a ausência de interesse legítimo na sua divulgação». Já antes, na página 286 se escreveu que «aqui está em causa a imputação de um facto potencialmente lesivo dos bens jurídicos tutelados e não a emissão de um simples juízo de valor. «Uma afirmação de facto refere-se a um acontecimento concreto, objectivamente existente ou verificado, e com isso susceptível de prova da verdade. Pelo contrário, os juízos de valor poderão ou não basear-se em factos, mas, mesmo nesta segunda hipótese, o núcleo factual é suficientemente indeterminado para que se tome possível a prova da verdade» (Sinde Monteiro, 2005: 385)

Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 1987, pág. 486, sustentam que «exista ou não, por parte das pessoas singulares ou colectivas, um direito subjectivo ao crédito e ao bom nome, considera-se expressamente como antijurídica a conduta que ameace lesá-los, nos termos prescritos. Pouco importa que o facto afirmado ou divulgado corresponda ou não à verdade, contanto que seja susceptível, dadas as circunstâncias do caso, de diminuir a confiança na capacidade e na vontade da pessoa para cumprir as suas obrigações (prejuízo do crédito) ou de abalar o prestigio de que a pessoa goze ou o bom conceito em que seja tida (prejuízo do bom nome) no meio social em que vive ou exerce a sua actividade (...) A afirmação ou divulgação do facto pode, no entanto, não ser ilícita, se corresponder ao exercício de um direito ou faculdade ou ao cumprimento de um dever (...)» [no mesmo sentido cf. Antunes Varela, in Das obrigações em geral, Vol. I, Almedina, 1986, pág. 501].

Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 11ª edição, págs. 564-565, refere a propósito do artigo 484.º do Código Civil o seguinte: «Infere-se da lei que tem de haver a imputação de um facto, não bastando alusões vagas e gerais. A regra consiste na irrelevância da veracidade ou falsidade do facto, mas, sempre que esteja em causa a protecção de interesses legítimos, parece de admitir a exceptio veritatis. (…). Sublinhe-se, por fim, que o facto afirmado ou difundido deve mostrar-se, ponderadas as circunstâncias concretas, susceptível de afectar o crédito ou a reputação da pessoa visada — pessoa singular ou colectiva, onde se incluem as sociedades».

Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, vol. II, p. 349, escreveu que: «É indubitável que a divulgação de um facto verdadeiro pode, em certo contexto, atentar contra o bom-nome e a reputação de uma pessoa. Por outro lado, a divulgação de um facto falso atentatório pode não constituir um delito – por carência, por exemplo, de elemento voluntário. Por isso, a solução deve resultar do funcionamento global das regras da imputação delitual».

Filipe Albuquerque Matos in Responsabilidade Civil por Ofensa ao Crédito ou ao Bom Nome, Almedina, 2011, pág. 396 e seguintes, esclarece que o preceito inspirador do artigo 484.º é o §824 do B.G.B., no qual o carácter não verídico das declarações constitui pressuposto da responsabilidade do agente. Para este autor «os factos verdadeiros, pela circunstância de o serem, não deixam de ter uma potencialidade ofensiva para os bens da personalidade”, razão pela qual considera ser “possível no âmbito do próprio preceito dedicado ao ilícito ao crédito ou ao bom nome encontrar fundamento, mediante o apelo à influência regulativa do princípio da proporcionalidade, … impor ao agente a obrigação de indemnizar, não obstante ter divulgado factos verdadeiros».

Acrescenta que o que importa é «averiguar se a actuação do declarante está legitimada por um interesse social relevante, se se revela adequada e necessária e não se manifestou, quanto aos efeitos, excessiva ou exorbitante, face à densidade e intensidade dos interesses prosseguidos com as afirmações», concluindo que «quando tal não suceder, podemos fazer recair sobre quem proferiu declarações verdadeiras a obrigação de indemnizar os prejuízos decorrentes de violação dos direitos ao bom nome e ao crédito».

Já Sinde Monteiro, in Rudimentos da Responsabilidade Civil, Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano 1-2005, pág. 386, sustenta o seguinte: «(..) coloca-se a questão de saber se apenas existe delito quando se afirma ou divulga facto não (demonstravelmente) verdadeiro (“capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome”). A lei nada diz a este respeito. Mas o sistema jurídico não está de forma alguma órfão de valorações. Em geral, a afirmação ou divulgação de factos verdadeiros tem de ser considerada lícita (..). Não há dúvida de que a divulgação de factos verdadeiros pode gerar responsabilidade. O que nos parece dever acentuar-se é que uma e outra hipóteses integram, em nossa opinião, dois delitos completamente diferentes. Os requisitos da responsabilidade pela afirmação de um facto verídico terão de ser outros; o direito não pode encarar com os mesmos olhos a verdade e a mentira. E quando a lei, no art. 484, afirma a responsabilidade como regra, sem outros resguardos, deve entender-se, parece-nos, que tem em vista apenas os factos desconformes com a realidade».

Para Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, página 301 e seguintes, a honra é a projecção na consciência social do conjunto dos valores pessoais de cada indivíduo, desde os emergentes da sua mera pertença ao género humano até aqueloutros que cada indivíduo vai adquirindo através do seu esfoço pessoal. O crédito da honra é devido naturalmente, sendo que a honorabilidade só pode ser descartada quando os actos do indivíduo demonstrem o contrário. A honra, em sentido amplo, inclui também o bom nome e a reputação, enquanto sínteses do apreço social que o indivíduo merece.

Para Maria Paula Andrade, in Da Ofensa do Crédito e do Bom Nome, Contributo para o estudo do artigo 484º do Código Civil, página 97, «a honra é um bem da personalidade, que se traduz numa pretensão ou direito do indivíduo a não ser vilipendiado no seu valor aos olhos da sociedade e que constitui modalidade do livre desenvolvimento da dignidade humana (…)».

No caso dá-se a circunstância de as afirmações alegadamente ofensivas do direito ao crédito e ao bom nome terem sido feitas nos articulados de acções instauradas pelo aqui autor contra a aqui ré e a interveniente principal. Sabendo-se que a ilicitude é excluída quando há consentimento do lesado ou a actuação do agente corresponde ao exercício de um direito legítimo ou ao cumprimento de um dever, coloca-se a questão de saber como se relacionam o direito de acesso à justiça e à defesa e o direito ao bom nome e ao crédito.

O direito de acesso à justiça, tal como o direito à honra e à consideração pessoal, é um direito constitucionalmente garantido, dotado da tutela que é própria dos direitos fundamentais. Essa circunstância impõe algum cuidado na responsabilização da parte que toma a iniciativa do processo pelas consequências da sua instauração ou daquela que confrontada com um processo se vê obrigada a apresentar a sua defesa. Designadamente, não pode nunca permitir que da simples perda da demanda se conclua pela ilegitimidade da iniciativa processual ou que do simples decaimento da defesa se conclua pela ilicitude dos factos alegados como meio de defesa, e se retire o dever de indemnizar a parte contrária dos prejuízos sofridos em consequência da demanda.

Sucede, porém, que esse direito não é, como não são outros de maior relevo, irrestrito ou insusceptível de adequação prática e, portanto, não pode servir nunca para legitimar toda e qualquer postura processual. Seria inconcebível que o processo, enquanto conjunto de regras instrumentais destinadas a permitir a aplicação do direito substantivo ao caso concreto e a realização da Justiça, pudesse afinal permitir a violação impune de direitos materialmente consagrados. Se o processo serve, por exemplo, para que uma pessoa ofendida nos seus direitos de personalidade possa obter o ressarcimento dos danos que essa violação lhe causou, evidentemente que não pode servir para acobertar nova violação desses direitos no decurso do processo e através do processo e isentar de responsabilidade o autor do novo acto ilícito.

O direito de acção, nomeadamente na acepção de direito de defesa é um direito instrumental, no sentido de que não consubstancia em si mesmo um direito subjectivo material, mas é somente o mecanismo através do qual se obtém a tutela dos direitos substantivos. Esse direito não compreende nem exige no e para o seu exercício qualquer carta branca para se poder dizer ou fazer tudo no processo, designadamente violar legítimos direitos de outrem.

A Constituição de República Portuguesa consagra no seu artigo 20.º o direito de acesso aos tribunais, dizendo que a todo o direito corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente. O mesmo consagra o legislador ordinário no artigo 2.º do Código de Processo Civil. Em ambos os casos a consagração é irrestrita, isto é, não exceptua as violações de direitos perpetradas no âmbito de um processo judicial, o que significa, precisamente com base nesses preceitos, que também a pessoa que viu os seus direitos violados no âmbito de um processo goza da faculdade de lançar mão dos mecanismos judiciais que tenham por objecto reconhecer os seus direitos em juízo, prevenir ou reparar a violação deles, realizá-los coercivamente.

Se mais não fosse alcançar-se-ia a mesma solução com recurso ao princípio da boa fé e ao instituto do abuso de direito, presente em todo o sistema jurídico e, como tal, também, no sistema de regras que é o caminho para a realização dos direitos materiais, isto é, o processo. O processo visa antes de mais a protecção, a defesa, a realização, o ressarcimento da violação dos direitos legítimos, dos direitos merecedores - quanto ao conteúdo ou ao modo de exercício - dessa tutela e, por isso, tem de ser ele mesmo inócuo, no sentido de que tal como deve ser garantia da efectiva tutela a que tende, não pode ser ele mesmo fonte de violação desses direitos. O contrário seria uma afronta flagrante do princípio da boa fé que nada justifica e, sobretudo, uma violação das próprias regras de direito material enformadas por aquele.

Assim, em regra, uma actuação processual que importe a violação de direitos materiais legítimos não pode deixar de constituir um acto recusado pela ordem jurídica, um acto ilícito quae tal. Por isso, desde que essa actuação corresponda a um acto culposo, não pode deixar de implicar responsabilidade civil pelos danos que forem consequência dessa actuação.

Havendo conflito, real ou aparente, entre direitos ou interesses igualmente protegidos pela constituição, a divulgação de factos desonrosos deve revelar-se adequada e necessária à salvaguarda do direito ao abrigo do qual a divulgação é feita, sob pena de a divulgação ser ilícita.

Lida e relida a matéria de facto não encontramos na mesma absolutamente nada que possa constituir uma ofensa ao crédito ou ao bom nome do autor.

Não há, desde logo, na matéria de facto nenhum facto que seja susceptível de diminuir ou colocar em causa a confiança dos outros na capacidade ou na vontade do autor para satisfazer as suas obrigações, a crença dos outros em que ele não faltará aos seus compromissos.

O facto de ter sido afirmado que numa determinada altura e num determinado contexto ele não teria meios de subsistência próprios e beneficiava da ajuda económica da ré é absolutamente anódino a esse respeito porque não é por uma pessoa num certo momento passar por uma situação dessas, a ser verdadeira, que o seu crédito é posto em causa.

Acresce que a situação é descrita como facto passado e não é objecto de divulgação pública porque as afirmações estão circunscritas ao contexto de uma acção judicial que sendo embora pública não é frequentada por um conjunto de pessoas suficiente para que a voz do processo se transforme numa voz pública ou conhecida do público.

Também o facto de se afirmar que o autor não desenvolvia actividade profissional no âmbito de uma empresa e que retirava benefícios desta sem contrapartida de trabalho ou actividade de relevo não é de modo algum algo que diminua ou coloque em crise o conceito favorável que o autor pudesse ter na comunidade, o reconhecimento público da imagem positiva que ele tenha logrado obter ou construir na comunidade com que se relaciona e onde é conhecido, o seu prestígio ou reputação.

Desde logo porque essa reputação é alcançada através da intervenção que ele alcança no espaço público e esta nada tem a ver com a circunstância de ele o fazer enquanto sócio, trabalhador ou colaborador de uma sociedade ou a qualquer outro título e por isso as afirmações feitas nos articulados das acções não têm qualquer capacidade de fazer reverter essa reputação.

Depois porque o contexto da acção não é um contexto de espaço público capaz de levar as afirmações nela feitas para o domínio público de modo a que as mesmas sejam susceptíveis de influenciar a opinião dos outros.

Acresce que as acções são notoriamente o espaço de discussão da relação pessoal entre o autor AA e a ré BB, aspecto que é notório para qualquer pessoa que com elas contacte, a qual apreende e compreende de imediato os excessos das afirmações ali feitas e que as mesmas não são para levar à letra por estarem influenciadas e perturbadas pelos sentimentos pessoais e o modo como cada um deles reagiu à ruptura da relação pessoal.

Em conclusão, a nosso ver, os factos provados relativos ao comportamento da ré são insuficientes para lhe imputar a prática de um facto ilícito, devendo, ao invés, concluir-se que nas concretas circunstâncias do caso se deve considerar excluída a ilicitude do comportamento da ré.

V. Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.

Não há lugar ao pagamento de custas do recurso porque estas eram da responsabilidade do recorrente, este beneficia da dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos, as custas seriam devidas apenas na acepção da taxa de justiça e custas de parte, mas as recorridas não responderam ao recurso.


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Porto, 29 de Junho de 2023.

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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 760)
Judite Pires
Isoleta de Almeida Costa


[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]