Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
379/19.0PAVFR.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOS PRAZERES SILVA
Descritores: CRIME DE ROUBO AGRAVADO
COBERTURA
CRIMINALIDADE VIOLENTA
VÍTIMAS ESPECIALMENTE VULNERÁVEIS
AMNISTIA
APLICABILIDADE
EXCLUSÃO
PERDÃO
SUCESSÃO DE CRIMES
CONCURSO DE CRIMES
PENA ÚNICA
CRITÉRIOS
LIMITES
Nº do Documento: RP20240117379/19.0PAVFR.P2
Data do Acordão: 01/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A norma do artigo 7º da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, que estabelece um perdão de penas e amnistia infracções, prevê exceções quanto à sua aplicação, preceituando, entre o mais, que não beneficiam do perdão os condenados pelos crimes elencados nas alíneas a) a h) do n.º 1.
II – No elenco dos crimes contra o património está expressamente excecionado, entre outros, o perdão apenas relativamente ao crime de roubo agravado, nada se prevendo quanto ao roubo simples.
III – No entanto, quanto a este, seja consumado ou meramente tentado, também se mostra excluída a aplicação do perdão em virtude de tal ilícito integrar crime praticado contra vítimas especialmente vulneráveis, em que se incluem as vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta.
IV – No caso de subsistência de condenações por crimes que excluem a aplicação de perdão e por crimes que a admitem importa distinguir se existe sucessão de crimes ou concurso de crimes.
V – Na primeira situação o perdão incide unicamente sobre as penas impostas pelos crimes não excecionados, quer se trate de condenação por um crime único ou de concurso de crimes, recaindo nesta hipótese sobre a pena única correspondente.
VI – Quando exista concurso de crimes excludentes da aplicação de perdão e crimes não excecionados na lei, o condenado continua a beneficiar do perdão relativamente a estes últimos crimes, porém, uma vez que o perdão recai forçosamente sobre a pena única, também neste caso o perdão incide sobre a pena do concurso de crimes.
VII – Todavia, nesta situação de cúmulo jurídico a medida do perdão não pode ser superior à pena parcelar que determina a aplicação do perdão, na hipótese de somente um dos crimes não excluir o perdão, assim como, na hipótese inversa de só um dos crimes estar excluído de perdão, a pena única remanescente após a aplicação do perdão não pode ser inferior à pena parcelar relativa àquele crime excluído de perdão.
VIII – Contudo, nas situações de cúmulo jurídico que inclua penas excluídas de perdão em que se revele inconciliável a observância dos limites indicados na aplicação do perdão à pena única, considera-se que a prevalência deve ser atribuída à aplicação do perdão correspondente à pena parcelar que o admite, dado que o condenado não pode deixar de beneficiar de perdão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Relatora: Maria dos Prazeres Silva
1.ª Adjunta: Carla Oliveira
2.º Adjunto: William Themudo Gilman

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I. RELATÓRIO:
No âmbito dos presentes autos de processo comum coletivo em que é arguido por despacho de 01/09/2023 (Referência: 128807098) foi decidido, ao abrigo do disposto nos arts. 1.º, 2.º, n.ºs 1, 2 e 4, 3.º, n.º 1, e 8.º da Lei n.º 38-A/2023 de 02/08, declarar perdoado o remanescente da pena única de prisão, ainda por cumprir, imposta ao indicado arguido, sob a condição resolutiva prevista na lei.

1. Inconformado com tal despacho, o Ministério Público interpôs o presente recurso, apresentando a motivação que remata com as seguintes

CONCLUSÕES:
1 – AA foi condenado, no âmbito do apenso dos presentes autos, na pena única de 1 ano e 1 mês de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação;
2 – Concorda-se com a aplicação da Lei 38-A/2023 aos presentes autos, designadamente no que concerne ao crime de ofensa à integridade física simples (relativamente ao qual a pena parcelar foi de 9 meses de prisão).
3 – Concorda-se ainda com a exclusão da aplicação da lei do perdão no que ao crime de roubo simples na forma tentada concerne, atento o estatuído nos artigos 7º, n.º 1, alínea g), da referida Lei e 67º A e 1º, alínea j), ambos do CPP.
4 – Já não pode de todo concordar-se com a decisão de perdoar todo o remanescente da pena única de 1 ano e 1 mês de prisão, a 1 de Setembro de 2023, porquanto, em tal data, o condenado ainda não havia cumprido os 10 meses de prisão – pena parcelar aplicada pela prática do crime de roubo simples na forma tentada e que deverá permanecer incólume.
5 – Com efeito, estando a pena aplicada por este crime excluída da aplicação do perdão, tal pena (parcelar) deverá ser “intocável” e, por isso, o condenado cumpri-la na íntegra; só assim se compreende o espírito do legislador, ao estabelecer determinadas categorias de crimes excluídas do perdão.
6 – A ser assim, tendo em consideração que a pena (parcelar) aplicada por tal crime foi de 10 meses de prisão, estando o condenado privado de liberdade desde 12 de Dezembro de 2022 (e ininterruptamente), a 1/09/2023 não haviam, ainda, decorrido 10 meses (pena que deverá cumprir).
7 – Considerar que todo o remanescente da pena de prisão está perdoado será “fazer entrar pela janela o que não entrou pela porta”, no que aos crimes excluídos do perdão concerne.
8 – O despacho recorrido violou o disposto nos artigos 3º, n.º 4, 7º, nºs 1, alínea g) e 3, ambos da mencionada lei 38-A/2023, devendo ser substituído por outro que julgue verificadas as condições de aplicação da dita lei, mas apenas no que “acresce” à pena parcelar relativa ao crime de roubo simples na forma tentada, já que esta pena tem que permanecer “intocável”.
9 – Devendo o condenado cumprir, ainda, 1 mês e 11 dias de prisão – a cumprir em regime de permanência na habitação, tal como até àquela data.

PELO EXPOSTO, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, o despacho ora colocado em crise ser revogado e substituído por outro que julgue verificados os pressupostos da aplicação da lei 38-A/2023, mas apenas julgue perdoados 3 meses de prisão (atendendo a que a pena parcelar pela prática do crime de roubo simples na forma tentada foi de 10 meses de prisão e este encontra-se excluído da aplicação da mencionada lei).

Deste modo, farão VOSSAS EXCELÊNCIAS J U S T I Ç A
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2. O arguido apresentou resposta, na qual pugnou pela improcedência do recurso, tendo alegado:
1. -
Salvo o devido respeito, o recurso assenta, todo ele, num equívoco: o de pretender forçar o crime de roubo na forma tentada aos conceitos legais constantes nos artigos 67º-A do Código de Processo Penal (definição de “vítima”) e 1º, alínea j) do mesmo diploma (definição de “criminalidade violenta”) para, no passo seguinte, o tentar inserir na exclusão do artigo 7º, alínea g) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto (Perdão de penas e amnistia de infrações) que dispõe (excluindo):
Os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º -A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro;
É manifestamente rebuscada a tentativa de procurar sustentação para o douto recurso neste segmento normativo que manifestamente não abrange nenhum dos crimes constantes do cúmulo jurídico do arguido e não os exclui da aplicação do perdão de penas.
Até porque, além disso,
2. -
Se, reconhecidamente,
«…apesar de o crime de roubo, previsto e punido pelo art.º 210.º, n.º 1, do C.P., não constar elencado no n.º 1, alínea b) i), da Lei em análise, onde apenas se faz referência, na parte que agora interessa, ao roubo agravado, p. e p. pelo art.º 210.º, n.º 2, do mencionado diploma,…» - página 4 (de 8) do douto recurso do Ministério Público.
Pois efetivamente, dispõe-se nessa norma (artigo 7º, alínea b) i), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto):
Por crimes de abuso de confiança ou burla, nos termos dos artigos 205.º, 217.º e 218.º do Código Penal, quando cometidos através de falsificação de documentos, nos termos dos artigos 256.º a 258.º do Código Penal, e por roubo, previsto no n.º 2 do artigo 210.º do Código Penal.
Ora, se o legislador teve o cuidado de inserir o crime de roubo agravado (e só este, note-se bem) na exclusão dos crimes “perdoados” isso significa que se pretendesse excluir o crime em apreço e sobre que versa o recurso, o teria, indubitavelmente, feito,
Assim, o roubo não consta na exclusão e se o legislador se deu ao trabalho e teve o cuidado de contemplar expressamente o roubo agravado na exclusão, nenhuma referência fazendo ao roubo per se, é um sinal nítido, congruente e insofismável de que não pretendeu efetivar a exclusão do crime de roubo (maxime, na sua forma tentada).
Sendo de presumir que o legislador exprimiu o que pretendia verdadeiramente exprimir e não outra coisa que um intérprete voluntarioso e excessivamente zeloso ali pretenda encontrar.
Pois, “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” - artigo 9º, n.º 3 do Código Civil.
Sobretudo em processo penal em que o rigor dos preceitos, a tipicidade que o enforma e a incindibilidade dos seus princípios não pode conduzir a conceitos indeterminados como aqueles que parecem estribar a douta argumentação que ora se põe em causa, como “…a vítima daquele será sempre uma vítima especialmente vulnerável, …” - página 4 (de 8) do recurso do Ministério Público.
Será significa: pode ser ou pode não ser, uma eventualidade, uma hipótese, uma incerteza – uma contingência, isto é, um facto possível, mas incerto.
Ora, quando um legislador apresenta na norma (para o excluir de um perdão de pena ou amnistia, como aqui) o crime de roubo agravado e deixa intocado o crime de roubo e o crime de roubo na forma tentada, isto é contempla um tipo legal de crime na sua forma agravada, mas não na sua forma “simples” ou a tentativa, isso não quer dizer outra coisa de que não pretendeu deixar de excluir o crime, mas só quis excluir o que se reveste da respetiva forma agravada – não sendo lícito, nem idóneo, por vias travessas e escusas repescar um crime que o legislador assim excluiu por recurso a normas e conceitos cuja determinabilidade não é segura e objetiva.
Estando tudo dito, quando é o próprio Ministério Público que reconhece que o crime de roubo não está elencado – e se não está não pode ser excluído, o que seria uma flagrante violação do princípio da tipicidade, pretendendo o MP, contra legem e contra todos os princípios nucleares do processo penal, excluir um tipo legal de crime que a lei notoriamente não excluiu.
3. -
A douta argumentação do recurso em apreciação não pode colher vencimento junto do(s) decisor(es), por tudo o exposto e pela (boa e apropriada) fundamentação constante da decisão recorrida,
Sendo certo que não é possível, maxime em processo penal, reconduzir a mens legis do diploma em causa, nem no seu espírito, nem na sua literalidade, à interpretação deslocada que consta na alegação do Ministério Público que procura ler e extrair da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto aquilo que, manifestamente, não lá está.
A decisão recorrida, bem alicerçada e categórica, deve ser louvada, e bem assim a bondade dos seus fundamentos,
Termos em que deve ser mantida a decisão recorrida, como é de JUSTIÇA.
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3. Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer no qual pugnou pela improcedência do recurso, alegando que não assiste razão ao recorrente, com os fundamentos seguintes:
Com efeito, a Lei nº 38-A/2023, de 02.08. - Perdão de penas e amnistia de infrações - no seu artº 7º exceciona os crimes que não beneficiam quer do perdão, quer da amnistia.
Não obstante, o nº 3 do mesmo artº 7º da Lei nº 38-A/2023, de 02.08. refere “A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos.”.
E, no artº 3º, nº 1:
“Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.”
Acrescentando o nº 3 do mesmo artº 4º que “Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.”
Ora entendemos que a Lei diz, claramente, que o desconto de 1 ano, caso o haja, será sobre a pena aplicada em cúmulo.
Como já decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, as leis de amnistia, como providências de exceção, devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações, nem restrições que nelas não venham expressas.
Sendo que o legislador definiu com precisão as regras aplicadas, nos seus precisos termos, na decisão recorrida.
Delas resulta a previsão de um perdão até 1 ano de prisão a todas as penas de prisão aplicadas, a título principal, em medida inferior ou igual a 8 anos e que as penas de prisão aplicadas em medida superior a 8 anos não beneficiam de perdão, perdão é, em caso de concurso de infrações, aplicado à pena única.
Nem sempre foi estipulado que o perdão seria aplicado à pena única e quando o começou a ser, relativamente aos cúmulos jurídicos englobando várias penas, em que umas beneficiam do perdão e outras não, as soluções foram variando ao longo do tempo, o que foi seguramente tido em conta pelo legislador que dispôs com clareza que, havendo perdão de uma pena parcelar em concurso e não de outras, o perdão seria descontado na pena única, se esta não ultrapassasse os 8 anos de prisão, índice inultrapassável de gravidade de comportamento do agente adotado pelo legislador.
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No que diz respeito à interpretação dos preceitos normativos da Lei da Amnistia e à definição do seu âmbito, sempre se dirá que a primeira consideração de que se deve partir, nesta matéria é, a nosso ver, aquela que sinteticamente o Supremo Tribunal de Justiça exarou no seu Acórdão de 7 de Dezembro de 2000, proc. n.º 2748/00-5: “as leis de amnistia, como providências de excepção, devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações, nem restrições que nelas não venham expressas”.
Ora, o legislador definiu com precisão as regras aplicadas, nos seus precisos termos, que o perdão se aplica à pena única, no caso de concurso de crimes, o que só tem lugar se a pena a que possa ser aplicado o perdão for até 8 anos, independentemente de nem todas as infrações em concurso estarem abrangidas pela Lei da amnistia e perdão.
Dessas disposições resulta a previsão de um perdão até 1 ano de prisão a todas as penas de prisão aplicadas, a título principal, em medida inferior ou igual a 8 anos e que as penas de prisão aplicadas em medida superior a 8 anos não beneficiam de perdão.
Pelo que o perdão é, em caso de concurso de infrações, aplicado à pena única.
(…)

Em conclusão, emitiu parecer no sentido de que:
- foi corretamente declarado perdoado o remanescente da pena única de prisão;
-o recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão ora em crise, nos seus precisos termos.
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4. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código Processo Penal, não foi apresentada resposta.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO:
1. DESPACHO RECORRIDO
A Lei n.º 38-A/2023 de 02/08, com início de vigência no dia de hoje, 01/09/2023, estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infrações, que abrange as sanções penais relativas a ilícitos praticados até às 00.00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tivessem entre 16 e 30 anos à data da prática dos factos.
É perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos. Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.
Vejamos.
O arguido AA, nascido em .../.../1995, foi condenado em cúmulo jurídico superveniente, por acórdão transitado em julgado em 03/04/2023, na pena única de 1 ano e 1 mês de prisão, executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância. Pela prática, nos processos cujas penas foram objeto do cúmulo, de um crime de ofensa à integridade física simples e de um crime de roubo na forma tentada.
O arguido não tinha ainda completado 30 anos ao tempo da prática dos crimes por que foi condenado. Crimes esses que não estão excluídos do âmbito do perdão (art. 7º).
O arguido AA iniciou o cumprimento da pena em 12/12/2022, tendo esta termo previsível em 12/01/2024.
Como tal, o arguido deverá beneficiar do perdão do remanescente da pena, que lhe falta cumprir, que é bastante inferior a 1 ano.
Assim, ao abrigo do disposto nos arts. 1º, 2º, n.ºs 1, 2 e 4, 3º, n.º 1 e 8º da Lei n.º 38-A/2023 de 02/08, declaro perdoado o remanescente da pena única de prisão, ainda por cumprir, imposta nestes autos ao indicado arguido, sob a condição resolutiva de o mesmo não praticar infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor daquela lei, caso em que à pena que vier a ser aplicada à infração superveniente acrescerá o cumprimento da parte da pena ora perdoada e, consequentemente, determino o termo da vigilância eletrónica
Notifique. (…)
***
2. APRECIAÇÃO DO RECURSO:
Conforme jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da apreciação de todas as matérias que sejam de conhecimento oficioso.
No presente recurso a matéria controvertida desdobra-se em dois aspetos, primeiro saber se o crime de roubo simples na forma tentada está excluído do perdão concedido pelo artigo 3.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08; segundo, na hipótese afirmativa, em caso de cúmulo jurídico que abranja uma pena parcelar aplicada pela prática de crime excluído do perdão (designadamente o de roubo simples tentado) e uma outra pena por crime não excecionado no artigo 7.º da referida lei, saber se o perdão de penas, a incidir sobre a pena única, implica em todos os casos, e em particular no caso concreto, que seja mantida incólume a medida da pena parcelar do crime excluído de perdão.

No despacho recorrido o tribunal a quo considerou que os crimes de ofensa à integridade física simples e de roubo na forma tentada, pelos quais o arguido se encontra condenado não estão excluídos do âmbito do perdão (art. 7º), em decorrência do que declarou perdoado o remanescente da pena única, imposta pelo concurso daqueles crimes, que o mesmo tinha ainda a cumprir em 01/09/2023, correspondente a 4 meses e 11 dias de prisão, em regime de permanência na habitação.
O recorrente mostra-se inconformado com o decidido por entender que o crime de roubo pelo qual o arguido se encontra condenado está excluído da aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, atento o estatuído no artigo 7º, n.º 1, alínea g), por referência ao disposto no artigo 67º-A, n.º 3, do CPP (e artigo 1º, alínea j), do CPP). Ademais, sustenta que a pena aplicada ao crime “imperdoável” permanece incólume, devendo o condenado cumpri-la na íntegra, significando, na prática, que se “desfaça” o cúmulo jurídico efectuado, devendo AA cumprir “apenas” a pena que lhe foi aplicada pela prática do crime de roubo na forma tentada – ou seja, 10 meses de prisão. Em consequência, defende que o perdão deve ser computado em 3 meses da pena imposta ao arguido e, atenta a data de início da execução da pena (12/12/2022), em 01/09/2023, quando foi proferido o despacho recorrido, não podia ser determinado o perdão do total da pena que lhe faltava cumprir.

Vejamos.
O âmbito de aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, está definido no seu artigo 2.º, sendo limitado, no concernente aos ilícitos penais, aos crimes praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade na data da prática dos factos.
A norma do artigo 7.º da referida lei estabelece exceções quanto à respetiva aplicação, preceituando, entre o mais, que não beneficiam do perdão os condenados pelos crimes elencados nas alíneas a) a h) do n.º 1.
No elenco dos crimes contra o património está excecionado o perdão relativamente ao crime de roubo agravado (artigo 210.º, n.º 2, do Código Penal), no ponto i), da alínea b), do n.º 1, do citado artigo 7.º, da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08.
Quanto ao crime de roubo simples (artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal), consumado ou tentado, não abrangido no preceito suprarreferido, também se mostra excluída a aplicação do perdão em virtude de tal ilícito integrar crime praticado contra vítimas especialmente vulneráveis, em que se incluem as vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta [por força do n.º 3 do artigo 67.º A, do Código Penal, com referência ao artigo 1.º, alíneas l) e j), do Código Processo Penal], assim se mostrando preenchida a exceção prevista na alínea g), do n.º 1, do mencionado artigo 7.º, da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08[1].
Dada a expressa menção na primeira norma da Lei de Perdão de penas e amnistia de infrações citada ao tipo de crime de roubo restrito à sua modalidade agravada, reconhece-se que a redação do texto legislativo pode suscitar ambiguidade ou equivocidade sobre o alcance e abrangência da segunda norma no que concerne ao crime de roubo simples.
Todavia, a análise objetiva do conjunto das normas que integram a menciona lei não permite afirmar a presença de ressalva ou limitação alguma quanto ao enquadramento das vítimas de roubo simples, consumado ou tentado, no âmbito do conceito legal de vítimas especialmente vulneráveis [artigo 67.º-A, n.º 1, alínea b), e n.º 3, do Código Processo Penal] conjugado com a definição legal de criminalidade especialmente violenta e criminalidade violenta [artigo 1.º, alíneas l) e j), do Código Processo Penal], para efeitos de preenchimento da causa de exclusão do perdão de penas que a mesma lei prevê no seu artigo 7.º, n.º 1, alínea g).
Portanto, a inclusão expressa do roubo agravado no catálogo dos crimes contra o património que não beneficiam do perdão [artigo 7.º, n.º 1, da alínea b), ponto i), da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08] não autoriza a ilação de que foi propósito do legislador não excecionar da aplicação do perdão o crime de roubo simples, consumado ou tentado, enquanto ilícito cometido contra vítimas especialmente vulneráveis [artigo 7.º, n.º 1, da alínea g), da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08].
Também a integração do crime de roubo, qualquer que seja a sua forma simples ou agravada, no âmbito dos crimes contra vítimas especialmente vulneráveis, excecionados na alínea g), do n.º 1, do mencionado artigo 7.º, da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, não implica desnecessidade ou incoerência na sua inclusão no rol dos crimes contra o património que se encontram excluídos do perdão no ponto i), da alínea b), do n.º 1, do citado preceito legal, mas antes resulta de diferente organização temática das exceções à aplicação do perdão, baseada em critérios diversos, nomeadamente em razão do tipo de crime e área de bens jurídicos tutelados, por um lado, e em função das vítimas, por outro.
Acontece, aliás, que também o preenchimento de outras exceções previstas nas alíneas h) a k), do n.º 1, do artigo 7.º, da indicada lei, pode ocorrer em simultâneo ou independentemente do cometimento de crime incluído no âmbito dos delitos discriminados nas alíneas a) a f) do mesmo preceito legal, donde não resulta qualquer incongruência e/ou inutilidade na discriminação dos crimes excecionados operada no preceito legal em análise.
Assim, acompanhámos o entendimento jurisprudencial, o qual sabemos não ser uniforme[2], que considera não ser admissível a aplicação do perdão, concedido no artigo 3.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, aos condenados pelo crime de roubo simples[3], aderindo à argumentação que lhe subjaz, que também é inteiramente aplicável ao crime de roubo simples na forma tentada com a especificidade de este integrar o conceito de criminalidade violenta [artigo 1.º, alínea j), do Código Processo Penal] (correspondendo o crime de roubo simples consumado a criminalidade especialmente violenta, nos termos da alíneas l), do citado artigo 1.º, do Código Processo Penal), por se afigurar que corresponde à interpretação correta do texto legal.
Procede, pois, sob este aspeto, o recurso.

Uma vez determinado que um dos crimes integrado no cúmulo jurídico de penas realizado nos autos não beneficia de perdão, cumpre decidir sobre se ao arguido deveria ser imposto o cumprimento integral da pena parcelar correspondente a tal ilícito.
A apreciação de tal segmento recursório depende da interpretação das normas dos artigos 3.º, n.ºs 1 e 4, 7.º, n.ºs 1 e 3, da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, e sua aplicação às circunstâncias concretas do caso.
Estabelece o citado artigo 3.º, n.º 1, que é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos, mais determina o n.º 4 do preceito legal que no caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.
Por seu turno, o supramencionado artigo 7.º, n.º 1, prevê que não beneficiam de perdão os condenados pelos crimes discriminados nas alíneas a) a h), mais estatui o n.º 3 do preceito legal que a exclusão do perdão previsto nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º relativamente a outros crimes.
Das normas legais convocadas, verificados os pressupostos relativos à data da prática dos factos e à idade do agente (artigo 2.º), extrai-se, com segurança, as ilações seguintes:
- são objeto de perdão as penas de prisão com duração igual ou inferior a 8 anos, ou seja, as penas de prisão impostas em medida superior a 8 anos não beneficiam de perdão;
- o perdão é de 1 ano, sendo da totalidade da pena quando a mesma for inferior a 1 ano;
- no caso de condenação pelo concurso de crimes o perdão incide sobre a pena única, ou seja, está excluída a aplicação de perdão sobre as penas parcelares que integram o cúmulo jurídico;
- na situação de coexistência de crimes abrangidos na previsão do artigo 7.º, n.º 1, e de outros ilícitos ali não incluídos, o condenado não deixa de beneficiar do perdão relativamente a estes últimos crimes.
Ora, no caso de subsistência de condenações por crimes que excluem a aplicação de perdão e por crimes que a admitem importa distinguir se existe sucessão de crimes ou concurso de crimes. Na primeira situação não ocorre dificuldade alguma na aplicação do perdão que incide unicamente sobre as penas impostas pelos crimes não excecionados, quer se trate de condenação por um crime único ou de concurso de crimes, recaindo nesta hipótese sobre a pena única correspondente. Quando exista concurso de crimes excludentes da aplicação de perdão e crimes não excecionados na lei, o condenado continua a beneficiar do perdão relativamente a estes últimos crimes, porém, uma vez que o perdão recai forçosamente sobre a pena única, também neste caso o perdão incide sobre a pena do concurso de crimes, apesar de englobar crimes incluídos na previsão do artigo 7.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08.
Todavia, na situação de cúmulo jurídico a medida do perdão não pode ser superior à pena parcelar que determina a aplicação do perdão, na hipótese de somente um dos crimes não excluir o perdão, assim como, na hipótese inversa de só um dos crimes estar excluído de perdão, a pena única remanescente após a aplicação do perdão não pode ser inferior à pena parcelar relativa àquele crime excluído de perdão[4].
A interpretação do texto legislativo exposta é a que se afigura coerente com o sentido objetivo do texto legal e a conjugação das normas aplicáveis, revelando-se ainda compatível com as normas que regem o cúmulo jurídico das penas (artigos 77.º e 78.º do Código Penal).
Contudo, nas situações de cúmulo jurídico que inclua penas excluídas de perdão em que se revele inconciliável a observância dos limites indicados na aplicação do perdão à pena única, como ocorre nas concretas circunstâncias do caso presente, considera-se que a prevalência deve ser atribuída à aplicação do perdão correspondente à pena parcelar que o admite, dado que o condenado não pode deixar de beneficiar de perdão, nos termos previstos no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08.
Assim sendo, não se reconhece a existência de fundamento legal para a operação de desfazer o cúmulo jurídico propugnada no recurso, com vista a garantir que o condenado cumpra a pena parcelar correspondente ao crime excluído de perdão, aliás, em qualquer caso o perdão continua sempre a recair sobre a pena única e jamais sobre as penas parcelares, como resulta do explanado supra.
Por conseguinte, o perdão do remanescente da pena determinado no despacho recorrido encontra fundamento no texto legal (artigos 3.º, n.ºs 1 e 4, e 7.º n.ºs 1 e 3 da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08), ainda que se considere excluída a aplicação de perdão relativamente ao crime de roubo simples na forma tentada abrangido na condenação do concurso de crimes, como referido, visto se reunirem os requisitos legais, atenta a duração da pena a cumprir (4 meses e 11 dias de prisão, sob regime de permanência na habitação) e demonstrados os demais pressupostos legais, que aliás não foram impugnados no recurso, atinentes à data da prática dos crimes (todos anteriores a 19/06/2023) e à idade do arguido AA (nascido em .../.../1995) no momento do seu cometimento (o último crime foi praticado em 29/12/2018), atento ainda que o crime de ofensa à integridade física simples não se mostra excecionado no artigo 7.º, n.º 1, da mencionada lei.
Nestes termos, procede parcialmente o recurso.
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III. DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso, e, em consequência, revogam o despacho recorrido na parte em que considera o crime de roubo simples na forma tentada não excluído do perdão concedido pelo artigo 3.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, confirmando no mais o referido despacho.
Sem custas.
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Porto, 17 de janeiro de 2024
Maria dos Prazeres Silva
Carla Oliveira
William Themudo Gilman
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[1] Vd. Pedro José Esteves de Brito, Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, Julgar Online, n.º 23, págs. 30 a 32.
[2] Cf. Acórdão Tribunal da Relação de Lisboa de 06-12-2023, proc. 2436/03.6PULSB-D.L1-3, disponível em www.dgsi.pt., segundo o qual, a interpretação mais consentânea com a natureza da medida de clemência prevista na Lei de Amnistia nº 38-A/23 de 02.08 e que resulta mais harmonizada com o pensamento do legislador reflectido na documentação do processo legislativo que lhe esteve na base, e no texto da mesma Lei, é aquela segundo a qual o condenado por crime de roubo previsto e punido pelo artº 210º, nº 1 do Cód. Penal não está excluído do perdão de pena previsto no artº 3º, nº 1 da referida Lei. No mesmo sentido voto de vencido exarado no Acórdão Tribunal da Relação de Lisboa de 28-11-2023, proc. 7102/18.5P8LSB-A.L1-5, também disponível em www.dgsi.pt..
[3] Cf. citado Acórdão Tribunal da Relação de Lisboa de 28-11-2023, proc. 7102/18.5P8LSB-A.L1-5, disponível em www.dgsi.pt, e Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 10-01-2024, proc. 485/20.9T8VCD.P2, em que a ora relatora teve intervenção como adjunta, não publicado.
[4] Vd. Pedro José Esteves de Brito, Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, Julgar Online, n.º 23, págs. 36 e 37. Vd. também Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de Porto, de 11-10-2023, proc. 31/21.7SPPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt.