Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4182/19.0T8GDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA DIAS DA SILVA
Descritores: UNIÃO DE FACTO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
DIREITO REAL DE HABITAÇÃO
CADUCIDADE
Nº do Documento: RP202205044182/19.0T8GDM.P1
Data do Acordão: 05/04/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE /DECISÃO CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 2 . ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Sendo a união de facto, na sua essência, uma situação de coabitação com comunhão de vida, um dos domínios em que o legislador, desde cedo, sentiu necessidade de intervir foi precisamente na protecção da casa de morada de família.
II - Desde a Lei n.º 135/99, de 28.08, passou-se a conferir aos unidos de facto em caso de ruptura ou de cessação da união de facto, seja por separação do casal em vida, seja por morte de um deles, um direito real de habitação, reunidos que fossem os demais requisitos previstos na lei, mormente a necessidade.
III - Esse direito real de habitação constitui-se por determinação legal (e, portanto, sem necessidade de reconhecimento judicial) com a morte do membro da união de facto proprietário da casa, extinguindo-se por caducidade uma vez atingido o seu prazo.
IV - Independentemente da existência ou inexistência de união de facto, não se mostram preenchidos todos os requisitos de que depende a atribuição da casa de morada de família à autora, já que à data do falecimento do seu companheiro a mesma era proprietária de duas fracções autónomas sitas no mesmo concelho de Gondomar, onde alegadamente se situação a casa de morada de família dos alegados unidos de facto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação
Processo n.º 4182/19.T8GDM.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo de Família e Menores de Gondomar - Juiz 2

Recorrente – AA
Recorridas – BB e CC

Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntas – Desemb. Ana Lucinda Cabral
Desemb. Maria do Carmo Domingues



Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I AA, divorciada, intentou no Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo de Família e Menores de Gondomar a presente acção declarativa ao abrigo do art.º122.º n.º1 b) da LOSJ e art.ºs 3.º al. a), 5.º n.º1 e 8.º n.º1 al. a) e n.º 3 da Lei n.º 7/2001 de 11.05, o reconhecimento da dissolução de união de facto alegadamente existente com o seu companheiro, DD, por mais de dois anos e residentes na Rua ..., ... Gondomar, e dissolvida por morte deste, ocorrida em 21.10.2019 e a consequente atribuição do direito à casa de morada de família, contra, BB, na qualidade de cabeça de casal da herança deixada por óbito do referido DD, enquanto única filha e única herdeira conhecida do falecido, residente em Inglaterra, em morada desconhecida, indicando o seu domicílio profissional em Inglaterra e ainda o domicilio, aquando em Portugal.
Alegou, para tanto, e em síntese que pelo menos desde 1.06.2017 que a autora e o falecido, ambos divorciados, no seguimento de relação amorosa que mantinham desde há largo tempo, em concretização de projecto comum de vida, decidiram viver em união de facto; tendo a partir daquela data, passaram com carácter definitivo e permanente a habitar a mesma casa, nela fazendo as refeições em comum, pernoitando em conjunto na mesma cama, guardando os seus pertences e bens pessoais, vivendo em comunhão de leito, mesa e habitação e a viver um projecto de vida em comum, em condições análogas às dos conjugues naquela morada, sendo a casa de morada de família, um imóvel propriedade do falecido companheiro, sito no ..., da Rua ..., ..., concelho de Gondomar, o qual fora, pelo que sabe, adquirido com recurso crédito bancário, que se encontrava ainda em pagamento.
Enquanto o companheiro se manteve profissionalmente activo, era médico no Centro de Saúde ..., no Porto, e a requerente ia praticamente todos os dias ao seu encontro no Centro de Saúde para tomarem as refeições juntos, comportando-se publicamente como se marido e mulher se tratassem. A autora, como unida de facto com o falecido, beneficiava da assistência médica ADSE, em virtude de ele ter pedido a sua inscrição, após o decurso de 2 anos de vida em comum.
Por opção do casal, a autora deixou de trabalhava fora, dedicando-se apenas à vida doméstica, como dona de casa tradicional, cuidando da casa, tratando das roupas, confeccionando refeições, fazendo compras, decorando a casa a seu gosto; passando a comemorar juntas as épocas festivas, fazendo passeios e férias juntos, mantendo uma intimidade e vida sexual, como se estivessem efectivamente casados.
Tal relação manteve-se até ao pretérito dia 21.10.2019, data em que o companheiro faleceu, morte, essa, prematura e inesperada. Mas autora durante todo o período de internamento hospitalar do seu companheiro permaneceu junto dele praticamente todo o tempo que lhe era permitido, sofrendo um grande abalo com a perda prematura do seu companheiro, com quem se comprometera dedicar toda a sua vida.
A casa onde a autora e seu companheiro viviam e onde a autora ainda se encontra a residir, sendo que é lá que tem todos os seus pertences, sendo o único local que tem para viver e presentemente não tem qualquer rendimento, que lhe permita arrendar uma casa.
O seu falecido companheiro tinha uma filha nascida do seu anterior casamento, com quem ele não se relacionava há anos e que sabe residir em Inglaterra, onde casou e tem um filho menor. Mais sabe que a referida filha renunciou a qualquer contacto com o seu pai, segundo ouviu dizer, retirou do seu o nome o apelido do pai e também não esteve no funeral dele, desconhecendo o que pretende ela fazer em relação ao imóvel que constitui casa de morada de família.
No passado dia 5.11, a irmã de seu companheiro, de modo abusivo e sem qualquer legitimidade para tal, tentou vedar-lhe o acesso à sua residência, mudando-lhe a fechadura da porta da entrada e da caixa do correio, vendo-se a autora obrigada a chamar a polícia e a apresentar queixa, contra aquela, CC, para voltar a poder ser reapossada da casa, de todo o seu recheio e dos seus bens pessoais que lá se encontravam.
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Pessoal e regularmente citada a ré BB, na qualidade de cabeça-de-casal da herança deixado por óbito de DD, veio contestar comunicando que no dia 20 de Agosto de 2020, por escritura pública lavrada no Cartório Notarial do Dr. EE, localizado no Porto, renunciou à herança deixada por óbito de seu pai DD, em benefício de sua tia, irmã do seu falecido pai CC, conforme fotocópia da escritura que se juntou.
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A autora veio responder, alegando, em síntese, que em meados de Junho do corrente ano, a ré representada pelas suas mandatárias veio reclamar à autora a entrega de 3 veículos automóveis, pertencentes ao seu falecido companheiro e pai da requerida, que se encontravam na sua posse, depositados na garagem do prédio onde reside, pertencente à casa de morada de família, e para tanto entregou habilitação de herdeiros e procuração e no acto da entrega dos referidos veículos à mandatária da ré, aquela emitiu o termo de entrega, pelo que é inequívoca a aceitação da herança por parte da ré.
Porém, no passado dia 3.09 a requerida veio juntar aos autos escritura celebrada em 20.08, pela qual renuncia, gratuitamente a favor da sua tia, CC, à herança deixada por óbito de seu pai, DD. Todavia, não se vislumbra um repúdio, porquanto a ré chegou a entrar na herança e arrogou-se da qualidade de herdeira, o que decorre não só da escritura de habilitação de herdeiros, como também do facto de ter reclamado, chamando a si, a entrega dos veículos automóveis, bens pertencentes ao de cujus e assim integrantes da herança.
Sucede que a ré tem descendentes, um filho menor, pelo que não pode renunciar a herança em favor da sua tia, irmã do pai, não sendo esta que seria a beneficiária em caso de repúdio, sob pena de estar a deserdar de forma velada o seu filho.
Termina requerendo que a ré identifique o seu filho menor a fim de ser/serem demandados no âmbito dos presentes autos, na qualidade de herdeiro(s) da herança deixada por óbito de DD. Mas caso se venha a entender que algum direito na herança assiste à tia da ré, CC, requer que esta venha a ser demandada nessa qualidade.
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Notificada a ré BB, esta veio responder alegando que a aceitação, da herança é de facto irrevogável, mas que no caso sub judice, aceitou a herança, mas isso não invalida que não pudesse efectuar a renúncia à mesma. Trata-se de uma renúncia com eficácia translativa, devolutiva ou atributiva, a qual aliás, foi aceite pela beneficiária, como resulta da aludida escritura.
Conclui que a sua tia CC, é a legítima herdeira do seu falecido irmão e como tal deverá esta requerer a sua habilitação.
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Em 25.10.2020 foi proferido despacho de onde consta: “(…) A personalidade judiciária – definida por lei como sendo a susceptibilidade de ser parte (cfr. art.º 11º, nº 1, do actual CPC e art.º 5º, nº 1, do anterior CPC) – coincide, por regra, com a personalidade jurídica, já que, como determinam os nºs 2 das citadas disposições legais, quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária.
Todavia, essa correspondência entre personalidade jurídica e personalidade judiciária não é total, já que, como decorre do disposto nos art.ºs 12º e 13º do actual CPC, entendeu o legislador conferir personalidade judiciária a determinadas entidades que estão desprovidas de personalidade jurídica.
É assim que, nos termos das citadas disposições legais, dispõem de personalidade judiciária a herança jacente e os patrimónios autónomos semelhantes cujo titular não esteja determinado.
Ora, a herança jacente é a herança aberta, mas ainda não aceite nem declarada vaga para o Estado – cfr. art.º 2046º do CC.
De facto, a morte do seu autor determina a imediata abertura da herança e o chamamento à titularidade das relações jurídicas do falecido daqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis (art.ºs 2031º e 2032º do CC). Todavia, ainda que sejam conhecidos e estejam determinados os sucessíveis chamados por efeito da abertura da herança, tal não significa que esses sucessíveis assumam, de imediato, a titularidade daquelas relações jurídicas e o domínio e posse dos bens da herança, já que, para que tal suceda, é necessário que o chamado aceite a herança, expressa ou tacitamente (cfr. art.ºs 2050º e segs. do CC). Refira-se que os sucessíveis chamados à herança poderão repudiá-la, determinando o chamamento dos sucessíveis subsequentes e assim sucessivamente (art.º 2032º, nº 2, do CC), podendo, na falta de sucessíveis, ser declarada vaga para o Estado. Significa isto, portanto, que, enquanto não for aceite pelos sucessíveis chamados, não estão determinados os efectivos titulares dos direitos e relações jurídicas que fazem parte da herança e é neste período transitório que a herança se considera como jacente.
A figura da herança jacente designa, portanto, como referem Pires de Lima e Antunes Varela, in código Civil anotado “…o património da pessoa falecida durante o período de crise que decorre entre o chamamento do sucessível e a aceitação efectiva da herança ou do legado, ou seja, entre o momento da vocação sucessória e a devolução efectiva dos bens e dos deveres que integram a herança” e, como refere Rabindranath Capelo de Sousa, in Direito das Sucessões “…nasce no momento da abertura da sucessão, aquando da morte do de cuius (…) e finda, quer no momento em que é aceita pelos herdeiros, quer no momento em que, por falta ou repúdio dos demais sucessíveis, é declarada vaga para o Estado”.
É indiscutível, portanto, que a herança jacente é coisa diversa da herança que, não obstante permanecer ainda em situação de indivisão (por não ter sido efectuada a partilha), já foi aceite pelos sucessíveis que foram chamados à titularidade das relações jurídicas que dela fazem parte.
Ora, sendo indiscutível que a herança (seja ela uma herança jacente ou uma herança já aceite mas ainda indivisa) não dispõe de personalidade jurídica, é também indiscutível que só à primeira a lei conferiu personalidade judiciária.
Com efeito, a necessidade de atribuição de personalidade judiciária à herança jacente radica, precisamente, na circunstância de os respectivos titulares não estarem determinados (por isso o legislador também aludiu, na mesma alínea, a outros patrimónios semelhantes cujo titular não esteja determinado), coisa que não acontece com a herança já aceite, mas ainda indivisa, porquanto, neste caso, estão já determinados (por via da aceitação da herança) os respectivos titulares (herdeiros) e, como tal, poderão ser estes a exercer e a assumir os respectivos direitos e deveres, sem que exista, portanto, uma real necessidade de atribuir personalidade judiciária à herança indivisa, personalidade esta que seria redundante.
Neste sentido se tem pronunciado, aliás, a nossa jurisprudência, podendo ver-se, entre outros, o Acórdão do STJ de 15.01.2004 (proc. nº 03B4310), o Acórdão do STJ de 12.09.2013 (proc. nº 1300/05.9TBTMR.C1.S1), o Acórdão do STJ de 31.01.2006 (proc. nº 05A3992), o Acórdão da Relação do Porto de 13.12.2011 (proc. nº 54/10.1TBBGC-H.P1), Acórdão da Relação de Coimbra de 28.05.2013 (proc. nº 325/09.0TBCTB.C2) e Acórdão da Relação de Coimbra de 16.11.2010 (proc. nº 51/10.7TBPNC.C1).
Portanto, aceite a herança, cessa a personalidade judiciária atribuída à herança jacente e, quem pode intervir como partes são os respectivos titulares, enquanto herdeiros do de cuius, ou o cabeça-de-casal naquelas situações em que a lei expressamente o prevê.
Aliás, isso mesmo resulta do artigo 2091,º, nº 1, do Código Civil, no qual se estatui que: “Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no art.º 2078º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros”.
Ou seja, fora dos casos excepcionais em que se poderá verificar a intervenção do cabeça de casal, ou de qualquer herdeiro ou mesmo terceiro, casos esses previstos nos artigos 2075.º, 2078.º e 2087.º a 2 089.º do mesmo diploma (e que no caso se não aplicam), as acções com interesses respeitantes ao acervo hereditário ainda por partilhar terão de ser intentadas por ou contra a totalidade dos herdeiros, actuando estes em litisconsórcio necessário, activo ou passivo – (artigo 33.º, nº 1 do C.Civil).
Trata-se, portanto, de legitimidade imposta por lei, decorrente da falta de personalidade judiciária por parte da herança ilíquida e indivisa.
Estando os herdeiros já determinados – e tocado o período de pendência da herança, portanto, o seu termo –, tornando-se inviável a essa massa patrimonial por si demandar ou contradizer, necessário se torna que no lugar dela (como que suprindo essa incapacidade) intervenham os respectivos titulares em bloco, seja, os ditos herdeiros que, mediante o competente acto de aceitação, nela se viram encabeçados.
Tais herdeiros funcionam como se, representantes de tal massa, fossem reunindo no conjunto deles, na respectiva colectividade, não só o requisito da personalidade judiciária, mas também, “ex vi legis”, o da legitimidade processual activa ou passiva.
Ora, à partida, a herança aqui em causa não se pode considerar aceite (pelo menos tacitamente), como refere a autora, pela simples circunstância de a herdeira do de cujus ter assumido o cargo de cabeça de casal, o que pressuporia aceitar a herança, pois que é inconcebível o herdeiro assumir o cargo de cabeça de casal sem aceitar a herança, pelo que, aceite a herança pelo menos por um herdeiro, esta deixa de ser jacente, razão pela qual já não dispõe de personalidade judiciária.
Vejamos porque não podemos concordar com tal posição.
A lei não define o momento em que se inicia a administração da herança, ao invés do que sucede quanto ao seu termo (artigo 2079.º do Civil).
Como refere Capelo de Sousa, in Lições de Direito das Sucessões, a melhor solução para esta questão será o de atender a que a administração em causa está intimamente ligada à figura do cabeçalato e a que o cargo de cabeça-de-casal prioritariamente se defere ex lege (nº 1 do artigo 2080.º do C.Civil) a certas categorias de pessoas (que não são necessariamente herdeiras) independentemente quer da sua aceitação de tal cargo quer da aceitação de eventual vocação hereditária.
Existe, pois, aí, uma forma de administração legal de bens com vista à conservação e frutificação e a todos os demais actos de administração ordinária dos bens da herança, assim como à realização de interesses de matiz pública, como por exemplo, a satisfação dos credores da herança, o que torna, portanto, o mecanismo administrativo previsto no artigo 2079.º e ss. operacional a partir da data da abertura da sucessão.
Não se pode esquecer aqui que o nosso ordenamento jurídico, reflectindo a situação que é normal de os poderes jurídicos do cabeça-de-casal serem exercidos após a aceitação da herança pelos herdeiros com designação prevalente, regula o capítulo da “Administração da herança”, após os da “Herança jacente” da “Aceitação” e do “Repúdio” da herança e, mesmo, depois do da “Petição da herança”, sendo certo ainda que, na fase da herança jacente o C.Civil (artigos 2047.º e 2048.º) preveniu modalidades especiais da sua administração.
Acontece que, os mecanismos administrativos especiais nos casos de herança jacente ou, ainda, de herança abandonada (artigos 2047.º e 2048.º do Civil) justificam-se pela específica situação de falta de titularidade subjectiva de certas situações de jacência e não importam a impossibilidade da existência de cabeça-de-casal nessas situações.
Com efeito, o nº 1 do artigo 2047.º apenas atribui uma faculdade jurídica ao sucessível ainda não aceitante ou repudiante (não lhe impondo uma obrigação jurídica (cfr. a expressão “não está inibido” daquela disposição) e apenas no caso de “do retardamento das providências poderem resultar prejuízos”, tudo o que se compagina com a possibilidade da existência, no período de jacência, de cabeça-de-casal, o qual, aliás, pode estar temporariamente impedido de tomar tais providências ou poder tomá-las mas não nas melhores condições.
Também, a nomeação da curadoria à herança jacente (artigo 2048.º, nº 1) só é possível, para além do mais, quando não houver “quem legalmente…administre os bens de tal herança”, do que decorre “a contrario” a impossibilidade dessa nomeação havendo cabeça-de-casal e a legitimidade da existência de cabeça-de-casal na situação de jacência.
Dos factos alegados pela autora não se pode retirar, ainda que, de forma tácita, que a filha do de cujus haja aceite a herança, tanto mais como se refere no artigo 2056.º nº 3 do C.Civil os actos de administração praticados pelo sucessível não implicam aceitação tácita da herança, pelo que a mera aceitação do cargo de cabeça-de-casal não pressupõe, só por si, a aceitação da vocação sucessória.
Por outro lado, a habilitação de herdeiros, tomada isoladamente, não é índice seguro, só por si, da aceitação tácita da herança, isto porque, tendo a aceitação tácita de traduzir-se por actos inequívocos, a habilitação significa apenas que o indivíduo é investido na qualidade de herdeiro, não definindo a sua posição relativamente à herança.
É que se, por um lado, a aceitação tácita tem que ser inequívoca, e por outro lado há que considerar duas situações diversas: a da atribuição da qualidade de herdeiro e a da posição que o herdeiro assume em relação à herança.
A solução da questão em apreço passa por determinar o que se deve entender por “sucessor”, está claramente dirigida a abarcar quem, cabendo dentro do conceito de “sucessor”, justifique que é ele quem substitui o de cujus na relação substantiva que é objecto do pedido.
Ou seja, a expressão “sucessor” abarca as pessoas e/ou quem esteja legitimado para a substituição apontada (o herdeiro que já tenha aceite a herança), mas vai mais longe e, nos casos em que, não tendo havido ainda aceitação e ocorra a situação de herança jacente, abrange quem substitua o falecido naquela relação substantiva desde que se encontre legitimada para o substituir, o que significa admitir a substituição da parte falecida pela herança jacente, que não é sucessor nem sucessível, mas um património autónomo, detentor de personalidade judiciária.
Estando-se perante um filho do falecido, e como tal seu sucessível – art.º 2133º, nº 1, al. a) do C.Civil -, em plano de normalidade de aceitação é o natural sucessor. Mas, se não se concede um benefício a quem o não quer – a lei não impõe aos chamados um benefício, pelo que estes são livres de o querer ou não -, compete-lhes tomar posição, optando por um dos termos da alternativa: ou aceitam ou repudiam a herança.
A figura da “não aceitação” ou da “ainda não aceitação” tem de se resolver em “aceitação” ou “repúdio” sempre que uma situação processual aponte para esse esclarecimento. Cabendo ao sucessível o dever de tomar tal posição afigura-se-nos razoável construir a tese de que deve ser sobre ele que recai o ónus de tomar posição face a tal alternativa.
Sendo a normalidade a regra e a anormalidade a excepção, e sabendo-se que em geral os filhos, como sucessíveis legítimos, aceitam a herança (presunção judicial – art.º 351º C.Civil) é sobre estes que recai o ónus de provar a sua não aceitação (art.º 342°, n° 2 C.Civil), juntando documento de repúdio, e sendo a aceitação um acto jurídico livre, unilateral, individual e não receptício, ou seja, um negócio que não carece de ser dirigido e levado ao conhecimento de pessoa determinada, pode ser expressa ou tácita.
Ora, também o repúdio da herança é livre e irrevogável (art.º 2067º do Código Civil) e os seus efeitos retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão, considerando-se como não chamado o sucessível que a repudia (art.º 2062º do Código Civil).
É certo que o repúdio se torna incompatível com a aceitação anterior da herança, uma vez que esta é irrevogável (art.º 2016º do CC).
Mas existe nos autos um elemento no processo que permita concluir que a requerida tivesse aceite a herança que veio depois a repudiar.
Se, conforme deixamos expresso supra, não releva para efeitos de aceitação da herança a eventual habilitação de herdeiros feita apenas para efeitos fiscais, na medida em que se tal decorre de uma obrigação legal fiscal (cfr. Acórdão da Relação de Évora de 14.07.2004, publicado em http://www.dgsi.pt - processo n.º 535/04-2 - relator desembargador Pereira Baptista), nem o facto de ter tomado posse dos veículos do falecido, já releva, porém, a declaração feita nos autos pela cabeça de casal no seu articulado e a junção da escritura de renúncia.
Ora, dispõe o artigo 2057º do CC, sob a epigrafe (Caso de aceitação tácita) que: 1. Não importa aceitação a alienação da herança, quando feita gratuitamente em benefício de todos aqueles a quem ela caberia se o alienante a repudiasse. 2. Entende-se, porém, que aceita a herança e a aliena aquele que declara renunciar a ela, se o faz a favor apenas de algum ou alguns dos sucessíveis que seriam chamados na sua falta.
Posto isto, entendemos que não obstante a posição da herdeira cabeça de casal ser dúbia relativamente ao repúdio da herança, podemos olhar para a escritura de renúncia a favor de sua tia como um acto de aceitação de herança e vontade de alineação da sua quota na herança para outro sucessível.
Cremos, assim, que a renúncia em causa não consiste de facto em verdadeiro repúdio – acto unilateral, não recipiendo, irrevogável, cuja ocorrência faz funcionar, quando se verifiquem os respectivos pressupostos, o instituto da representação sucessória (C.Civil, art.ºs 2039.º e 2043.º; cfr. CN, art.º 46.º/3) – e, portanto, renúncia abdicativa; trata-se, antes, de repúdio in favorem, e, portanto, de renúncia com eficácia translativa, devolutiva ou atributiva. A hipótese não é a do repúdio tratado nos art.ºs 2062.º e ss. do C.Civil, senão a que expressamente se encontra prevista no n.º 2 do art.º 2057.º
Dispõe, na verdade, este preceito que se entende “que aceita a herança e a aliena aquele que declara renunciar a ela, se o faz a favor apenas de algum ou alguns dos sucessíveis que seriam chamados na sua falta”. Como nota Francisco Pereira Coelho, in “A Renúncia Abdicativa no Direito Civil”, 1995, p. 34, “o efeito que se produz aqui, não é naturalmente apto a produzi-lo um puro repúdio sucessório”, posto que “só mediante uma aceitação inicial da herança, e a sua subsequente alienação em favor de algum ou alguns dos ‘sucessíveis que seriam chamados na sua falta’, é que é possível esse específico efeito de atribuir a herança, ou um quinhão dela, a pessoas diversas dos beneficiários normais do repúdio.”
Estamos portanto em presença de uma renúncia que, pese embora sê-lo, envolve uma aceitação tácita presumida da herança por parte do sucessor que a faz. Mas importa perceber em bons termos o regime aí estatuído, em particular no que toca à produção do efeito da alienação (isto é, a transmissão do direito à herança pelo renunciante e a correspectiva aquisição desse direito pelo beneficiário especificado/individualizado no acto de renúncia). Continuando com F. Pereira Coelho, “Se a renúncia aí [no art.º 2057.º/2] hipotizada é feita de forma unilateral, como um comum repúdio – e é essa hipótese aquela que se afigura tida em consideração pela lei –, então é difícil (será aliás incorrecto) vir dizer-se que essa renúncia importa “aceitação” e “alienação” da herança”, uma vez que “qualquer forma de alienação, gratuita ou onerosa, exige o concurso da aceitação do adquirente, ou seja, exige a forma contratual”, e assim é que, “Na melhor das hipóteses, o que se poderá dizer, em bom rigor, é que, na renúncia unilateral em favor daquelas pessoas, se entende haver aceitação da herança e proposta de alienação da herança aceite – proposta que, dirigida àquelas pessoas, naturalmente tem de ser por elas aceite para que o respectivo contrato de ‘alienação’ se perfaça.”
Ora daquela escritura existe, pois, a aceitação dessa doação, tornando-se claro a herdeira que exerce o cargo de cabeça de casal deixou de ocupar a posição de titular da posição hereditária em causa.
Acontece, porém, que a herdeira BB foi citada na qualidade de cabeça de casal da herança jacente por óbito de DD, sendo que quem foi considerada parte nestes autos foi a herança jacente e não a mera herdeira do de falecido pai, pretendendo esta, como que invocando a sua ilegitimidade, que seja citada para os autos a sua tia em relação à qual foi transmitida a sua quota da herança.
Cremos que, desde logo, ao tempo tinha personalidade e capacidade judiciárias e legitimidade a herança jacente, enquanto tal, dado que se desconhecia quem eram os herdeiros do falecido.
Partindo do pressuposto que estarão determinados os herdeiros do falecido, a questão deverá ser abordada de uma outra forma.
Nesta problemática existem assim dois entendimentos.
O entendimento doutrinal do Professor Antunes Varela o qual, defendendo a persistência da personalidade judiciária da herança indivisa até ser efectuada a partilha, no qual afirma no seu Manual do Processo Civil, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Coimbra Editora, 1985, pág.111, nota 1, o seguinte: "...por analogia [com o artigo 6º do CPC] (baseado no argumento maiori ad minus) se há-de entender que, estando o processo de inventário em curso [havendo já determinação dos herdeiros], mas não estando efectuada a partilha, é em nome da herança (ou contra a herança) embora carecida de personalidade jurídica que hão-de ser instauradas as acções destinadas a defender (ou a sacrificar) interesses do acervo hereditário, sendo a herança normalmente representada, nesse caso, pelo cabeça-de-casal (conf. art.º 2088º e 2089º do CC) desde que a intervenção deste caiba nos seus poderes de administração ".
Pelo que, a herança ilíquida e indivisa, ainda não partilhada, é dotada de personalidade judiciária e pode ser representada pelo cabeça de casal no âmbito dos seus poderes de administração, ainda que não obrigatoriamente.
Tal é o caso dos autos em apreciação.
E, o entendimento da Intervenção dos Herdeiros plasmado no AC. STJ de 12.09.13, onde se refere que ainda que se entendesse que a personalidade judiciária unicamente seria atribuível à herança enquanto herança jacente e não á herança indivisa (não partilhada) o certo é que nele se conclui que: "Em acção (.,,) instaurada por herança não jacente, mostrando-se que todos os respectivos herdeiros "intervieram" na mesma, tendo outorgado procuração forense ao ilustre advogado da autora e propondo-se esta defender e alcançar interesses e objectivos coincidentes com os daqueles, não deve ser decretada a absolvição da instância filiada na excepção dilatória de falta de personalidade judiciária da autora, no caso da ré (...)"
Ora, tal é também, manifestamente, o caso dos presentes autos, na medida em que se encontra junta aos mesmos, escritura pública de renúncia a favor de outrem em que a herdeira do seu pai identificada na escritura de habilitação de herdeiros (também patente nos mesmos) renuncia gratuitamente a favor de sua tia à herança deixada pelo óbito de DD.
A considerar que permanecendo a situação de indivisão dos bens que integram a herança, despida ela de personalidade judiciária, os direitos que lhe são relativos devem ser, conforme se salientou, exercidos pelos herdeiros. Ora, sendo eles conhecidos, estando terminada a situação de jacência, necessário se torna que no lugar da herança intervenham os respectivos titulares em bloco, ou seja, os herdeiros identificados. Estes, na defesa dos interesses da herança por partilhar, deverão contestar a acção apresentando-se como representantes da herança, embora impropriamente falem em “herança por eles representada”. São os herdeiros quem intervém como parte passiva, actuando, não em nome próprio, mas em nome do património representado que não dispõe da possibilidade de ser parte em processo judicial, reunindo, assim, no conjunto deles, não só o requisito da personalidade judiciária, mas também o da legitimidade processual passiva (art.º 2091º/1, C.C. e 28º/C.P.C.).
Face ao exposto, cite a identificada tia da cabeça de casal, melhor identificada nos autos para a presente acção”.
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Pessoal e regularmente citada, veio CC contestar pedindo a improcedência da acção e deduzir reconvenção, pedindo que seja reconhecido que lhe assiste o direito de ser integrada na posse da fracção autónoma em apreço nos autos, e dos bens móveis que constituem o respectivo recheio, e ainda que seja a autora condenada em indemnização pelo prejuízo correspondente, pelo menos, ao valor da renda mensal que poderia ser obtida se a herança estivesse investida no pleno gozo e fruição da habitação e se a mesma fosse colocada no mercado normal de arrendamento, no montante mensal de €600,00, por cada mês que decorreu desde 22.10.2019 (dia imediato ao óbito do falecido DD) e até efectiva restituição, da habitação, em causa, totalmente livre de pessoas e dos bens móveis. Subsidiariamente, a falta de restituição, sem qualquer justificação, da habitação e do respectivo recheio, constitui, para a autora/reconvinda, uma fonte de enriquecimento ilegítimo, a que corresponde um correlativo empobrecimento, por parte da herança, correspondendo a um valor que ascende à quantia global de €7.800,00, o qual deverá ser acrescido de igual quantia (€600,00), por cada mês que decorrer até efectiva restituição. Mais requereu a condenação da autora como litigante de má-fé.
Para tanto, alegando ser a única e universal herdeira do falecido, da herança ilíquida e indivisa, aberta por óbito do referido DD, impugnou os factos alegados pela autora, mais dizendo que efectivamente o seu irmão era proprietário da casa em questão, a qual foi adquirida com recurso a um financiamento bancário, ainda, parcialmente em débito (já que o referido financiamento, foi contraído sem lhe estar associado qualquer seguro de vida), sendo verdade que, desde há alguns anos, o seu irmão não mantinha contacto com a sua única filha.

Mais alegou que nunca reconheceu, como não reconhece, a autora como companheira do seu falecido irmão, já que a mesma nunca viveu com aquele em união de facto.
Por outro lado, a autora é dona e legítima proprietária da fracção autónoma designada pelas letras “HZ”, correspondente à habitação ..., no ..º e ..º, andares, com entrada pelo n.º ... da Rua ..., na freguesia ..., concelho de Gondomar, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito à Rua ..., na freguesia ... e ..., concelho de Gondomar, descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... (freguesia ...), e é, ainda, dona da fracção autónoma designada pela letra “V”, correspondente ao aparcamento ..., na cave, do mesmo prédio urbano, as quais foram adquiridas, em 31.03.2010, por compra e na proporção de metade para cada um, pela autora (que, então, usava o nome de AA1) e por FF (o qual foi casado com a autora), e em que os mesmos declararam que destinavam a fracção autónoma HZ a sua habitação própria e permanente. Em 04.07.2019, a autora (que, entretanto, passou a usar o nome de AA), adquiriu ao seu ex-marido, por compra, a metade de que o mesmo era titular nas supra indicadas fracções autónomas, passando, assim, a ser proprietária exclusiva das mesmas. Estando esses imóveis situados no concelho de Gondomar, nos termos do n.º 6 do art.º 5.º da Lei n.º 7/2001 de 11/05, não lhe assiste o direito de ver ser-lhe reconhecido um direito real de habitação e um direito de uso do recheio, relativamente à habitação de que foi proprietário o falecido DD.
Inexiste qualquer fundamento para que seja reconhecida a dissolução da união de facto por óbito do seu irmão, pois nunca existiu qualquer união de facto.
Finalmente alegou que está privada de aceder à habitação, supra identificada, e aos bens móveis que constituem o respectivo recheio, pois a autora recusa-se a restituir os referidos bens, tendo mesmo, em 05.11.2019, sem o conhecimento e consentimento de quem quer que fosse, procedido à mudança da fechadura da fracção. Tal está a causar à herança que representa, sérios prejuízos, quer que índole moral, quer patrimonial, já que tem vindo a suportar todas as despesas inerentes à propriedade do imóvel, em causa, sem estar a usufruir do mesmo e sem conseguir dar ao mesmo o destino que entender, tendo já despendido cerca de €6.700,00, no pagamento de prestações do empréstimo bancário contraído pelo seu falecido irmão, para compra da respectiva habitação, algumas das quais já se encontravam em débito à data do respectivo falecimento e as demais que se venceram após tal falecimento, sendo certo que terá de continuar a suportar as prestações vincendas do mesmo empréstimo, uma vez que não existe qualquer seguro de vida associado ao financiamento e está a suportar ainda as mensalidades do condomínio, bem como o IMI.
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A autora veio responder às excepções invocadas, alegando, em suma, que efectivamente o imóvel referido não é seu, antes pertence à sua filha, GG, porquanto o seu ex-marido adquiriu para ela as duas fracções autónomas (habitação e garagem), ainda era ela menor, mas em virtude da necessidade de recorrer ao crédito para habitação e por questões de necessidade e facilidade no deferimento desse crédito, o imóvel ficou titulado em nome dos pais da menor, embora à data já se encontrassem divorciados, mas a intenção de ambos foi a doação efectiva à filha de ambos, tendo sido o ex-marido da autora a tratar sozinho de todos os procedimentos para tal. Todavia, o seu ex-marido quando quis regressar à Rússia e voltar a casar, para protecção dos direitos de sua filha, propôs como solução mais rápida, a realização de venda da sua quota-parte que lhe pertencia à autora, pois que o imóvel ainda se encontrava onerado com o crédito hipotecário, e a filha de ambos, apesar de em 2019 já ser maior, sendo ainda estudante e não tinha rendimentos para assumir e obter a concessão de um crédito habitação na totalidade do crédito hipotecário ainda em divida.
Pede finalmente que o pedido reconvencional seja julgado improcedente.
*
Notificadas as partes da intenção do Tribunal conhecer do mérito da causa em sede de audiência prévia, realizou-se esta, e no âmbito da mesma decidiu-se não admitir o pedido reconvencional.
Após proferiu-se sentença de onde consta: “Em face do exposto, e independentemente da existência ou inexistência de união de facto, que no caso, nos dispensamos de analisar, não se mostram preenchidos todos os requisitos de que depende a atribuição da casa de morada de família à autora, sendo certo que à data da interposição da presente acção, a autora era proprietária de duas fracções autónomas no concelho de Gondomar, e, como tal a acção improcede, assim como a condenação da ré como litigante de má- fé.
Custas pela autora.
Registe e Notifique.
Os presentes autos prosseguem para conhecer da litigância de má-fé, suscitada pela ré, pelo que fica a parte notificada para alegar e juntar prova, no prazo de 10 dias.
Notifique”.


Inconformada com a tal decisão, dela veio a autora recorrer de apelação pedindo a sua revogação e substituição por outra que lhe atribua a casa de morada de família até decisão sobre o reconhecimento da união de facto.
A apelante juntou aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes conclusões:
A. O presente recurso tem por objecto a decisão contida na acta de Audiência Prévia datada de 04.11.2021.
B. Não se conformando com a mesma, vem a recorrente recorrer da decisão de não atribuir a casa de morada de família, versando-se o recurso exclusivamente sobre matéria de direito mormente no que concerne à Lei aplicável.
C. O Tribunal formou a sua convicção apenas no facto de, à data da propositura da acção, a recorrente ser proprietária de duas fracções autónomas no Concelho de Gondomar.
D. O Tribunal escusou-se de analisar a existência da união de facto desde 2006 e sua dissolução pela morte de um deles, mesmo conhecendo a acção intentada para o efeito, processo n.º 2671/21.5T8GDM a correr termos no 2.º Juízo Cível de Gondomar.
E. Igualmente não se pronunciou quanto ao benefício da prerrogativa de preferência na compra.
F. O Tribunal não aplicou ao caso a Lei em vigor, Leis n.º 135/99, de 28 de Agosto, e n.º 7/2001, de 11 de Maio, tendo fundamentado a decisão com base nas alterações introduzidas em 2010.
G. O direito real de habitação da recorrente já se achava constituído quando entraram em vigor as alterações introduzidas pela Lei n.º 23/10, de 30 de Agosto, art.º 5.º, n.º 6.
H. Só neste caso, se impediria a atribuição de tal direito ao membro sobrevivo se este tiver casa própria na área do respectivo concelho da casa de morada da família, incluindo-se, no caso das áreas dos concelhos de Lisboa ou do Porto, os concelhos limítrofes, o que não se verifica neste caso.
I. A necessidade da casa pela recorrente é actual e concreta.
J. A compra das duas fracções tinha como objectivo final a doação à filha de ambos os comproprietários, os pais, a recorrente e ex-marido.
K. A escritura de doação apenas se realizou em 2021 por altura em que cessou a moratória para pagamento do empréstimo.
L. À recorrente assiste o direito real de habitação que não pode ser impedido pelo facto de ser, à data da propositura da acção, proprietária de outro imóvel no mesmo Concelho.
M. Não se podendo senão concluir que a decisão não teve em consideração a Lei aplicável ao caso concreto.
N. Por todos os motivos expostos, a decisão de não atribuir a casa de morada de família viola o disposto nos artigos 4.º e 5.º das Leis n.º 135/99, de 28 de Agosto, e n.º 7/2001, de 11 de Maio, pelo que deverá ser revogada.

CC juntou aos autos as suas contra-alegações onde pugna pela confirmação da decisão recorrida.

Em 11.01.2022, foi proferida a seguinte decisão: “(…) Em face do exposto, decide-se condenar a autora como litigante de má-fé numa multa processual que se fixa em 10 UCS.
Quanto à indemnização a liquidar à contraparte, apenas se invocou um único dano. Com efeito, provou-se os autos, aliás, como resulta dos autos que a requerida não beneficia de apoio judiciário, em nenhuma das suas modalidades.
Por outro lado, a dispensa do pagamento de custas e de honorários de advogado não pode servir para permitir a dedução indiscriminada de pretensões sem qualquer fundamento válido e com base em omissão de factos essenciais.
Com a presente acção, a ré tem, sem dúvida um dano que se materializa nos honorários a liquidar à respectiva mandatária e nas custas processuais.
Verifica-se o nexo de causalidade entre a conduta da autora e os consequentes danos, pelo que se condena a autora a liquidar as custas processuais, bem como os honorários a liquidar à ilustre mandatária da ré, valor a liquidar a final.
Custas pela autora.
Notifique e Registe.
*
Tendo em consideração que resulta do processo administrativo de concessão do benefício de apoio judiciário, que a Requerente, omitiu, junto da Segurança Social, ser proprietária de duas fracções autónomas, bem como omitiu ser titular do direito (litigioso) a uma prestação de um seguro de vida no valor de 100.000€ (o qual foi reconhecido por sentença já transitada em julgado, cuja cópia se mostra junta aos autos com as alegações da ré como Doc. 1), proceda a secção à notificação dos competentes serviços da Segurança Social (Proc. APJ n.º 160397/2019) e do Ministério Público, para os efeitos previstos na alínea b) do n.º 1 e nº 3 do art.º 10.º da Lei n.º 34/2004 de 29/07.
Notifique”. – decisão de que se não recorreu.


II – Com interesse para a decisão do presente recurso, documentalmente, estão provados nos autos os seguintes factos:
1. Encontram-se registadas em nome da autora (AA) e de FF - AP. ... de 2010/03/31 - a propriedade, por compra, das fracções autónomas “HZ” correspondente ao ..º e ..º andares para ... ... – e “V” correspondente a aparcamento ... na cave com 14m2 e entrada pelos n.ºs ... e ... do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito no Lugar ..., ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ... da freguesia ... e ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ..../.........
2. Pela AP. ... de 2019/07/09 encontra-se registada em nome da autora (AA) a propriedade, por compra a FF de ½ das referidas fracções autónomas “HZ” correspondente ao ..º e ..º andares para ... ... - e “V” correspondente a aparcamento ... na cave com 14m2 e entrada pelos n.ºs ... e ...,do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito no Lugar ..., ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ... da freguesia ... e ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ..../.........
3. DD faleceu no dia .../.../2019, no estado de divorciado.
4. À data da sua morte DD tinha a sua casa de morada de família instalada na fracção autónoma, de que era exclusivo proprietário, correspondente à habitação no ... andar, com entrada pelo n.º ... da Rua ..., do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito à referida Rua ..., da união de freguesias ... (...), ... e ..., concelho de Gondomar.
5. Corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Cível de Gondomar – Juiz 2, com o n.º 2671/21.5 T8GDM, acção intentada pela ora autora para reconhecimento da união de facto em referência nos presentes autos.
6. Por escritura pública lavrada em 2 de Agosto de 2021 no Cartório Notarial do Dr. HH em ... a autora, AA declarou doar a sua filha, GG, por conta da quota disponível, as fracções autónomas “HZ” correspondente ao 5.º e 6.º andares para habitação ... ..., e “V” correspondente a aparcamento ... na cave com 14m2 e entrada pelos n.ºs ... e ... do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito no Lugar ..., ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ... da freguesia ... e ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ..../.........


III – Como é sabido o objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Ora, visto o teor das alegações da autora/apelante são questões a apreciar no presente recurso:
1.ª - Da alegada omissão de pronunciamento relativamente à existência ou não, da união de facto desde 2006 entre a autora e o falecido DD e sua dissolução pela morte do referido DD e sobre o benefício da prerrogativa de preferência na compra da fracção que alegadamente constituía a casa de morada de família.
2.ª – Da lei aplicável ao caso em análise.
3.ª – Da alegada necessidade de casa por parte da autora.
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1.ªquestão - Da alegada omissão de pronunciamento relativamente à existência ou não, da união de facto desde 2006 entre a autora e o falecido DD e sua dissolução pela morte do referido DD e sobre o benefício da prerrogativa de preferência na compra da fracção que alegadamente constituía a casa de morada de família.
A este propósito pode ler-se na decisão recorrida, depois de correcta exposição sobre o actual entendimento sócio-jurídico da situação de união de facto, da atribuição de direitos ou benefícios, em vida ou por morte, fundados na união de facto, mormente a atribuição da casa de morada de família, fundada na declaração da cessação dessa união de facto, que nos dispensamos de aqui reproduzir mas a que damos o nosso total assentimento, “Ora, cremos que não se mostram preenchidos os requisitos que permitem a atribuição da casa de morada de família à autora e isto, independentemente da prova de que esta tenha vivido ou não em união de facto com o falecido DD, uma vez que resulta dos autos, que à data do óbito deste e inclusive à data da propositura da presente acção, a autora possuía casa própria na área do respectivo concelho da casa de morada da família – cfr., documentos juntos com a contestação apresentada pela ré e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais” e mais abaixo “Em face do exposto, e independentemente da existência ou inexistência de união de facto, que no caso, nos dispensamos de analisar, não se mostram preenchidos todos os requisitos de que depende a atribuição da casa de morada de família à autora, sendo certo que à data da interposição da presente acção, a autora era proprietária de duas fracções autónomas no concelho de Gondomar, e, como tal a acção improcede…”
Ou seja, depois de se ter firmado correctamente que “…a união de facto extingue-se com o falecimento de um dos membros (artigo 8.º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 7/2001, de 11/05), por vontade de um dos seus membros (artigo 8.º, n.º 1, al. b)) e com o casamento de um deles (artigo 8.º, n.º 1, al. c)).
Entre os efeitos decorrentes da união de facto prescritos na Lei n.º 7/2001, de 11/05, no artigo 3.º, al. a) está consagrado que as pessoas que vivem em união de facto nas condições previstas naquela lei, têm direito a protecção da casa de morada da família, nos termos ali definidos, como temos vindo a referir. E, uma vez dissolvida a união de facto, surgem frequentemente posições diferentes entre os membros quanto à sua atribuição.
No que se refere aos unidos de facto, dispõe o artigo 5.º da Lei n.º 7/2001, de 11/05 sobre a protecção da casa de morada da família em caso de morte. Assim, quando a casa de morada da família e o respectivo recheio é bem próprio do membro da união de facto que falece, como é o caso dos autos, o membro sobrevivo pode permanecer na casa, pelo prazo de cinco anos, como titular de um direito real de habitação e de um direito de uso do recheio (n.º 1, do artigo 5.º).
No entanto, este direito não é conferido ao membro sobrevivo da união de facto, se o mesmo tiver casa própria na área do respectivo concelho da casa de morada da família. No caso das áreas dos concelhos de Lisboa ou do Porto incluem-se os concelhos limítrofes (n.º 6, do artigo 5.º).
Nos casos em que a união de facto teve início há mais de cinco anos antes da morte, o membro sobrevivo pode permanecer na casa por tempo igual ao da duração da união (n.º 2, do artigo 5.º). Se os membros da união de facto eram comproprietários da casa de morada da família e do respectivo recheio, o sobrevivo tem os direitos mencionados anteriormente, em exclusivo (n.º 3, do artigo 5.º), pelo que inexiste fundamento legal para o pagamento pelo sobrevivo de contrapartida pecuniária pela utilização da casa enquanto titular de um direito real de habitação”, concluiu-se que face ao que resultava provado dos autos estava manifestamente prejudicado o conhecimento da questão da existência ou não da alegada situação de união de facto entre a autora e o falecido DD e sua cessação. E isto pela singela situação fáctica indesmentivelmente provada nos autos de que “…à data do óbito deste e inclusive à data da propositura da presente acção, a autora possuía casa própria na área do respectivo concelho da casa de morada da família – cfr., documentos juntos com a contestação apresentada pela ré e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais”. Ou dito de outra forma, quer à data do óbito de DD - .../.../2019 – e da propositura da presente acção – 12 de Dezembro de 2019 – a autora/apelante era proprietária inscrita no respectivo Registo Predial, pela AP. ... de 2010/03/31em conjunto com FF, por compra, das fracções autónomas “HZ” correspondente ao 5.º e 6.º andares para ... ... – e “V” correspondente a aparcamento ... na cave com 14m2 e entrada pelos n.ºs ... e ..., do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito no Lugar ..., ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ... da freguesia ... e ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ..../........ e desde da AP. ... de 2019/07/09 da propriedade total dessas mesmas fracções autónomas, o que é ainda comprovado pelo facto de a mesma autora/apelante as ter posteriormente doado - em 2 de Agosto de 2021 - à sua filha GG, por conta da quota disponível da mesma.
Preceitua o n.º6 do art.º 5.º da Lei n.º7/2001de 11 de Maio, na redacção da Lei n.º 71/2018, de 31.12, que entrou em vigor 1.01.2019, sob a epígrafe “Protecção da casa de morada da família em caso de morte” que “O direito real de habitação previsto no n.º 1 não é conferido ao membro sobrevivo se este tiver casa própria na área do respectivo concelho da casa de morada da família; no caso das áreas dos concelhos de Lisboa ou do Porto incluem-se os concelhos limítrofes”.
In casu” manifesto é de concluir que prejudicado ficou qualquer pronunciamento, por inútil e como tal proibido por lei, cfr. art.º 130.º do C.P.Civil, relativamente à existência ou não, da alegada situação união de facto desde 2006 entre a autora/apelante e o falecido DD, sua dissolução pela morte do referido DD e sobre o benefício da prerrogativa de preferência na compra da fracção que alegadamente constituía a casa de morada de família.
Improcedem as respectivas conclusões da apelante.
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*
2.ªquestão – Da lei aplicável ao caso em análise.
Em suma defende a autora/apelante que “O Tribunal não aplicou ao caso a Lei em vigor, Leis n.º135/99, de 28 de Agosto, e n.º7/2001, de 11 de Maio, tendo fundamentado a decisão com base nas alterações introduzidas em 2010. Não aplicou ao caso a Lei em vigor, Leis n.º 135/99, de 28 de Agosto, e n.º 7/2001, de 11 de Maio, tendo fundamentado a decisão com base nas alterações introduzidas em 2010. O direito real de habitação da recorrente já se achava constituído quando entraram em vigor as alterações introduzidas pela Lei n.º 23/10, de 30 de Agosto, art.º 5.º, n.º 6”.
Mas como é óbvio não lhe assiste qualquer razão.
Vejamos.
Como é sabido o Direito surge na sociedade, justamente, como o conjunto de normas que regulam a vida social e a sua função essencial e básica é portanto garantir a segurança da organização social. Donde o mesmo não poderia ser estranho às diversas formas de organização familiar, mormente ao incremento das situações de união de facto e consequentemente o nosso ordenamento jurídico tem vindo, progressivamente, a reconhecer essa realidade social, regulando-a e protegendo de diversas formas os seus intervenientes e os seus dependentes.
Assim surgiu inicialmente no nosso ordenamento jurídico a Lei n.º 135/1999, de 28.08, que adoptou medidas de protecção da união de facto, a que se seguiu a Lei n.º 7/2001, de 11.03 (que por força do seu art.º 10.º, revogou a primeira), seguiram-se as Lei n.ºs 23/2010, de 30.08; 2/2016, de 29.02; 49/2018, de 14.08 (que alteraram várias normas da segunda) e, por fim, temos a mais recente actualização daquela segunda Lei dada pela Lei n.º 71/2018, de 31.12 que entrou em vigor a 1.01.2019.
Como refere Rute Teixeira Pedro, in “Breves Reflexões sobre a Protecção do Unido de Facto quanto à Casa de Morada de Família Propriedade do Companheiro Falecido”, IUC, 2016, pág. 309 “A evolução dos efeitos reconhecidos à união de facto, conforme transparece da sequência dos diplomas legais que a regulam, redundou, sem dúvida, na ampliação e reforço da eficácia jurídica dessas relações factuais caracterizadas pela comunhão de vida e vivência análogas à comunhão conjugal. Todavia, continua a acolher-se, neste domínio, uma protecção fragmentária e especialmente dirigida a cenários de crise em que as debilidades dos seus membros se concretizam ou manifestam com mais intensidade. É, então, nesses momentos que se torna necessária a ingerência jurídica através de “soluções de tipo «assistencial”.
Como acima já se referiu dá-se aqui por reproduzida a fundamentação expressa na decisão de 1.ª instância relativamente à situação de união de facto no nosso actual ordenamento jurídico. Sendo a união de facto, na sua essência, uma situação de coabitação com comunhão de vida, um dos domínios em que o legislador, desde cedo, sentiu necessidade de intervir foi precisamente na protecção da casa de morada de família, pois sempre esteve presente na mente do legislador que na grande maioria das situações, embora os membros da união de facto habitem a mesma casa, a titularidade do direito sobre a mesma – v.g. propriedade ou arrendamento – pertence apenas a um deles, causando uma situação de desprotecção total em caso de ruptura ou de cessação da união de facto, seja por separação do casal em vida, seja por morte de um deles. Daí que o art.º 3.º da revogada Lei n.º 135/99, de 28.08, assim como a actual Lei n.º 7/2001, de 11.05, prevê também no seu art.º 3.º al. a) o direito à protecção da casa de morada de família nos termos da presente lei.
Dúvidas não há que desde a Lei n.º 135/99, de 28.08 se passou a conferir aos unidos de facto em caso de ruptura ou de cessação da união de facto, seja por separação do casal em vida, seja por morte de um deles, um direito real de habitação, reunidos que fossem os demais requisitos previstos na lei, mormente a necessidade.
Na redacção inicial da Lei n.º 7/2001, de 11.05, preceituava-se no seu art.º 4.º n.º1 que “em caso de morte do membro da união de facto proprietário da casa de morada comum, o membro sobrevivo tem direito real de habitação, pelo prazo de cinco anos, sobre a mesma, e, no mesmo prazo, direito de preferência na sua venda”.
Mas a alteração dada à Lei n.º 7/2001 pela Lei n.º 23/2010, de 30.08, e que está actualmente em vigor, veio alterar profundamente esse quadro normativo em matéria de protecção da casa de morada de família, reforçando a tutela conferida ao unido de facto sobrevivo quando o seu companheiro fosse proprietário da casa de morada comum. Assim passou a preceituar-se no seu art.º 5.ºque: “1 - Em caso de morte do membro da união de facto proprietário da cada de morada de família e do respectivo recheio, o membro sobrevivo pode permanecer na casa, pelo prazo de cinco anos, como titular de um direito real de habitação e de um direito de uso do recheio.
2 - No caso de a união de facto ter começado há mais de cinco anos antes da morte, os direitos previstos no número anterior são conferidos por tempo igual ao da duração da união.
3 - Se os membros da união de facto eram comproprietários da casa de morada da família e do respectivo recheio, o sobrevivo tem os direitos previstos nos números anteriores, em exclusivo.
4 - Excepcionalmente, e por motivos de equidade, o tribunal pode prorrogar os prazos previstos nos números anteriores considerando, designadamente, cuidados dispensados pelo membro sobrevivo à pessoa do falecido ou a familiares deste, e a especial carência em que o membro sobrevivo se encontre, por qualquer causa.
5 - Os direitos previstos nos números anteriores caducam se o interessado não habitar a casa por mais de um ano, salvo se a falta de habitação for devida a motivo de força maior.
6 - O direito real de habitação previsto no n.º1 não é conferido ao membro sobrevivo se este tiver casa própria na área do respectivo concelho da casa de morada da família; no caso das áreas dos concelhos de Lisboa ou do Porto incluem-se os concelhos limítrofes.
7 - Esgotado o prazo em que beneficiou do direito de habitação, o membro sobrevivo tem o direito de permanecer no imóvel na qualidade de arrendatário, nas condições gerais do mercado, e tem direito a permanecer no local até à celebração do respectivo contrato, salvo se os proprietários satisfizerem os requisitos legalmente estabelecidos para a denúncia do contrato de arrendamento para habitação, pelos senhorios, com as devidas adaptações.
8 - No caso previsto no número anterior, na falta de acordo sobre as condições do contrato, o tribunal pode fixá-las, ouvidos os interessados.
9 - O membro sobrevivo tem direito de preferência em caso de alienação do imóvel, durante o tempo em que o habitar a qualquer título.
10 - Em caso de morte do membro da união de facto arrendatário da casa de morada da família, o membro sobrevivo beneficia da protecção prevista no artigo 1106.º do Código Civil”.
Vejamos então no caso em análise, a existir na titularidade da autora/apelante o aludido direito real menor de habitação por força da cessação da alegada união de facto por morte de DD, quando o mesmo nasceu e consequentemente qual a lei em vigor à data.
Dúvidas não restam de que o direito real de habitação constitui-se por determinação legal (e, portanto, sem necessidade de reconhecimento judicial) com a morte do membro da união de facto proprietário da casa, extinguindo-se por caducidade uma vez atingido o seu prazo.
Ora, constituindo-se tal direito, desde logo, com a cessação da alegada situação de união de facto pela morte de um dos unidos, resta-nos concluir que “in casu”, tal direito a existir, ou seja, verificados os demais requisitos previsto na lei, nasceu em .../.../2019, data do falecimento de DD. Pelo que é nessa data e face à Lei em vigor então em vigor que se tem de aquilatar se estão ou não reunidos os demais requisitos previstos na lei para a constituição do referido direito real de habitação em benefício do unido de facto sobrevivo.
Em 21.10.2019 estava em vigor a Lei n.º 7/2001 de 11.05, com as alterações dadas pelas Leis supra referidas, mormente pela Lei n.º 23/2010, de 30.08, que no que respeita à atribuição/protecção da casa de morada da família em caso de morte de um dos membros da união de facto, proprietário da cada de morada de família e do respectivo recheio, que é o caso invocado pela autora/apelante nos presentes autos, preceitua no seu art.º 5.º que acima se reproduziu. Sendo relevante o preceituado no n.º 6 de tal norma, segundo a qual: “O direito real de habitação previsto no n.º1 não é conferido ao membro sobrevivo se este tiver casa própria na área do respectivo concelho da casa de morada da família; no caso das áreas dos concelhos de Lisboa ou do Porto incluem-se os concelhos limítrofes”.
E como resulta dos factos provados nos autos, dúvidas não restam de que em 21.10.2019 a autora/apelante era proprietária, por compra, por compra, de duas ...” correspondente ao 5.º e 6.º andares para ... ... – e “V” correspondente a aparcamento ... na cave com 14m2 e entrada pelos n.ºs ... e ... do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito no Lugar ..., ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ... da freguesia ... e ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ..../........, ou seja, situadas no mesmo concelho – Gondomar, onde alegadamente se situava a casa de morada de família do casal unido de facto por ela e pelo falecido DD outrora constituído.
Destarte e, em conclusão, foi exactamente recorrendo aos supra referidos preceitos legais que a 1.ª instância decidiu, correctamente, que “…independentemente da existência ou inexistência de união de facto, que no caso, nos dispensamos de analisar, não se mostram preenchidos todos os requisitos de que depende a atribuição da casa de morada de família à autora, sendo certo que à data da interposição da presente acção, a autora era proprietária de duas fracções autónomas no concelho de Gondomar…”.
Improcedem assim as respectivas conclusões da apelante.
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3.ª questão – Da alegada necessidade de casa por parte da autora.
Reafirma a autora/apelante que a compra das duas fracções autónomas de que foi proprietária até que, em 2.08.2021 as doou à sua filha, ou seja, Alega expressamente a apelante que: “A recorrente, à data da propositura da acção, era proprietária de um imóvel, composto por duas fracções, sito no mesmo Concelho da sua residência habitual. 7. Nunca negou ter adquirido o referido imóvel, tendo aliás sempre apresentado ao Tribunal os mesmos fundamentos, tendo feito prova da sua verdadeira intenção de doar à sua filha. 8. A doação seria o segundo negócio a realizar após a compra, conforme vontade da recorrente e do com o seu ex-marido, comproprietário do referido imóvel. 9. Nunca a recorrente residiu neste imóvel e nunca o considerou como seu. 10. Foi adquirido especificamente para beneficiar a filha e só não ficou em nome da mesma, por motivos fiscais e bancários, uma vez que houve necessidade de contrair empréstimo para aquisição e porque a mesma era ainda estudante universitária. 11. Aliás, este imóvel foi adquirido no ano de 2010, sendo certo que a requerente já vivia, desde 2006, com o falecido e desde 2007 na sua residência em ..., onde ainda hoje vive. 12. A doação acabou por se concretizar em Agosto de 2021, altura em que cessou a moratória para pagamento do empréstimo”.
Dá-se aqui por reproduzida por correcta toda a fundamentação expressa na decisão recorrida quanto à caracterização da actuação da autora/apelante e do seu ex-marido na compra e posterior venda da parte deste à autora e finalmente quanto á doação feita pela autora à sua filha GG das duas ...” correspondente ao 5.º e 6.º andares para ... ... – e “V” correspondente a aparcamento ... na cave com 14m2 e entrada pelos n.ºs ... e ..., do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito no Lugar ..., ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ... da freguesia ... e ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ..../........, como um negócio simulado, negócio dissimulado ou como um negócio indirecto, certo é que, tal como se concluiu em 1.ª instância, em face do que resulta provado nos autos, o que é indesmentível é que autora e seu ex-marido compraram aquelas duas fracções autónomas e posteriormente tendo a autora adquirido a propriedade plena das mesmas, veio a doá-las à sua filha GG, ou seja, “no caso dos autos, emerge, assim, do conteúdo da escritura em causa um encontro de vontades entre vendedor e os compradores, mas não figura nela nenhum terceiro, a quem supostamente se pretendia doar, para sim se considerar que o que se pretendia era fazer uma doação a esse terceiro, no caso a filha da autora.
De qualquer forma, a verdade é que não existe qualquer simulação de negócio pois que, atenta a própria alegação da autora a mesma quis, ainda que, com procuração passada ao seu ex-marido comprar a habitação em causa, pois só assim a poderia fazer o negócio. Se não realizou e concretizou o segundo negócio, já é causa imputável a requerida, não existindo aqui nenhuma simulação… não há um concerto fraudulento entre a autora e ex-marido que intervieram na veste de compradores de duas fracções autónomas, quando o que queriam, tal como a sua mulher (também interveniente no negócio) era dar posteriormente à filha a propriedade, ficando a constar na escritura, “falsamente e”, que quem era o adquirente eram eles próprios. O que na verdade faltou foi o segundo negócio (o de doação) que a autora veio, por fim e no decurso da acção, a realizar, em que nada a tivesse impedido a faze-lo, nomeadamente as causas que alegou inicialmente”, e ainda que, “não resulta adquirido que a autora tivesse por fim esconder, ocultar ou esquivar um outro fim, diverso ou “oculto”, que não fosse a compra de duas fracções autónomas com destino à sua habitação.
Não se descortinam outros motivos ou intenções (jurídicas e/ou económicas) subjacentes ou com projecção no negócio jurídico formado entre a demandante e o terceiro, pelo que o pretendido negócio jurídico indirecto não existe e como tal não procede”.
Destarte e sem necessidade de outros considerandos, não obstante a intencionalidade futura da autora/apelante relativamente ao destino a dar às supra referidas fracções autónomas de que era proprietária, por as ter adquirido por compra e por ter o respectivo direito de propriedade registado em seu nome na Conservatória do Registo Predial, certo é que à data da cessação da alegada situação de união de facto existente entre a mesma e DD (21.10.2019) a autora/apelante era proprietária das supra referidas fracções autónomas, logo nada mais resta do que chamar á colação o preceituado no n.º6 do art.º 5.º da Lei n.º 7/2001 e consequentemente julgar o pedido formulado na presente acção totalmente improcedente, ficando prejudicado a averiguação dos demais pressupostos de concessão do benefício do direito real de habitação em apreço.
Improcedem as derradeiras conclusões da apelante.

Sumário:
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IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela autora/apelante.

Porto, 2022.05.04
Anabela Dias da Silva
Ana Lucinda Cabral
Maria do Carmo Domingues