Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
466/22.8T8VNG-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO RAMOS LOPES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ATO INÚTIL
DIREITO DE PROPRIEDADE
RECONHECIMENTO DO DIREITO
AQUISIÇÃO DERIVADA
PRESUNÇÃO DA TITULARIDADE DO DIREITO
Nº do Documento: RP20240116466/22.8T8VNG-D.P1
Data do Acordão: 01/16/2024
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Sendo a matéria impugnada pelo recorrente indiferente e alheia à sorte da acção, não interferindo de modo algum na solução do caso, de acordo com o direito (considerando as soluções plausíveis da questão de direito), não deverá a Relação conhecer da impugnação (da pretendida alteração), sob pena de estar a levar a cabo actividade inútil, infrutífera, vã e estéril.
II - Atendendo ao princípio da consensualidade estabelecido no art. 408º, nº 1 do CC, de acordo com o qual a constituição e transferência de direitos reais ocorre por mero efeito do contrato, a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito é efeito do contrato de compra e venda (exemplo paradigmático dos negócios reais quod effectum), pois o contrato que é ‘fonte de efeitos obrigacionais é a própria fonte dos efeitos reais’, decorrendo da sua celebração esse efeito que constitui elemento essencial do contrato, o qual (tal efeito – transmissão da propriedade) não fica dependente do cumprimento das obrigações de entrega da coisa ou do pagamento do preço (sem prejuízo de, em determinadas circunstâncias, o não cumprimento poder dar lugar à resolução do contrato).
III - Pretendendo-se obter na acção o reconhecimento do direito de propriedade sobre imóvel e a sua restituição, os factos constitutivos da pretensão são, tão só, os que constituem pressuposto do aparecimento daquele direito (os relativos à transferência/aquisição do direito de propriedade) e são factos impeditivos os que obstam à formação/aparecimento do direito.
IV - Invocando o autor a aquisição derivada do direito de propriedade, cabe-lhe tão só, de acordo com a teoria das normas (assente na relação entre regra e excepção), provar a outorga do negócio gerador de efeitos reais (a emissão, por parte dos contratantes, das declarações negociais enformadoras do negócio), não lhe cabendo já demonstrar a ausência de vício susceptível de gerar a invalidade do contrato, pois a existência de vício é a excepção, não a regra – pretendendo valer-se da norma do art. 879º, a) do CC, ao autor cabe demonstrar os factos integrantes da previsão (a celebração do negócio de compra e venda); a invalidade do negócio aparece como facto impeditivo do direito do autor, não lhe cabendo demonstrar a não verificação da excepção.
V - Demonstrando a parte ter adquirido, por contrato de natureza real (v. g., de compra e venda), o direito de propriedade sobre a res de quem era titular inscrito no registo (e por isso de transmitente que gozava da presunção de titularidade derivada do registo, nos termos do art. 7º do Código do Registo Predial), ficará suplantada a objecção que a regra do nemo plus iuris ad alium transfere potest quam ipse habet suscita a propósito da insuficiência da simples demonstração da aquisição derivada do direito em acção real (a alegação do negócio de aquisição não basta para provar a existência do direito que se quer ver reconhecido, porque poderá faltar o direito do transmitente).
VI - Nas situações em que o transmitente é o último titular inscrito no registo, a prova do direito do adquirente beneficia já da presunção da existência do direito do transmitente, que resulta do registo, sendo absurdo exigir, mesmo nesses casos, a prova da cadeia ininterrupta de transmissões da coisa até encontrar um título de aquisição originária.
VII - Do exercício dos poderes de facto exercidos sobre a coisa (conceder a terceiros o gozo e fruição da coisa, para tanto celebrando com eles contratos de arrendamento, recebendo as rendas respectivas) infere-se a intenção de domínio, pois que tal utilização dada à coisa revela vontade de retirar dela os benefícios correspondentes ao domínio.
VIII - Como resulta dos arts. 1292º e 303º do CC, a usucapião não opera automaticamente, impondo-se a sua invocação (judicial ou extrajudicial) pelos interessados, ainda que se não exija para tanto a obediência a qualquer fórmula sacramental, sendo suficiente que se aleguem os factos a ela conducentes, pois tal significará que, com toda a probabilidade, que querem aproveitar-se os efeitos dela.
IX - A usucapião consubstancia modo de aquisição originária do domínio que abstrai de direito anterior, impondo-se mesmo contra ele.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 466/22.8T8VNG-D.P1
Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Alberto Taveira
Alexandra Pelayo (vencida, conforme declaração a final lavrada)
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto.
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Apelante (autor): AA
Apelados (réus): Massa Insolvente de BB, credores da massa insolvente de BB e insolvente BB.
Juízo de comércio de Vila Nova de Gaia (lugar de provimento de Juiz 2) - Tribunal Judicial da Comarca do Porto.
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Tramitada a presente acção de verificação do direito à restituição de bens da massa insolvente (art. 146º do CIRE) interposta (em Setembro de 2022) pelo autor AA contra os réus Massa Insolvente de BB, credores da Massa Insolvente de BB e insolvente BB, pedindo lhe seja reconhecido o direito de propriedade sobre imóvel que identifica, apreendido para a massa insolvente no apenso de apreensão de bens (bem que constitui a verba nº 1 do auto de apreensão de bens – urbano composto de casa de rés do chão e quatro andares com logradouro), seja reconhecido como único legítimo proprietário e possuidor do referido bem, lhe seja reconhecido o direito à separação e restituição do referido imóvel e sejam os réus condenados a reconhecê-lo como único legítimo proprietário e possuidor do imóvel, abstendo-se da prática de qualquer acto lesivo de tais direitos e condenada a ré massa insolvente a excluir do auto de apreensão o mencionado imóvel, ordenando-se o cancelamento do registo de apreensão efectuado à ordem dos autos e que nele incide e de todas as hipotecas indicadas na petição, realizado que foi julgamento, foi proferida sentença que julgou totalmente improcedente a acção e absolveu os réus dos pedidos.
Apela o autor, pretendendo a revogação da sentença e substituição por decisão em que lhe reconheça a propriedade sobre o imóvel, nos termos requeridos na petição, terminando as alegações pelas seguintes conclusões:
A. Entendem os Recorrentes que os supra concretos pontos 1, 4 e 5 dos factos não provados foram incorretamente julgados.
B. Com efeito, as declarações de parte do A. AA, as declarações das testemunhas CC e DD impões decisão diversa da recorrida.
C. Deve por isso julgar-se provado, quanto a tais pontos que:
23 - O autor pagou a BB o preço de vinte e oito milhões de escudos mencionado na escritura referida no ponto 8 dos factos provados através de diversas entregas de valores feitas pelo aqui autor e pela mesma recebidos.
24 - A insolvente quis vender ao autor o imóvel identificado no ponto 6 dos factos provados na escritura mencionada em 8.
25 - O autor quis adquirir o aludido bem através dessa escritura.
D. A quantia relativa ao preço em causa nos presentes autos foi entregue pelo Autor, através da sua procuradora, à Insolvente a título de pagamento do preço de compra do prédio da insolvente.
E. A insolvente quis vender ao autor o imóvel identificado no ponto 6 dos factos provados e o autor quis adquirir o aludido bem através dessa escritura.
F. Inexiste qualquer prova que contrarie os supra referidos factos incorrectamente julgados.
G. Face à supra indicada alteração da matéria de facto, impõe-se, necessariamente, julgar procedente a presente ação, condenando-se os Réus em conformidade.
H. De facto, o Autor demonstrou e provou que pagou à Insolvente o valor da aquisição do prédio em causa nos presentes autos.
I. Para além disso, a declaração de compra e a declaração de venda pela Insolvente faz concretizar o negocio e atingir a perfeição negocial do mesmo, sendo inelutável que por força desta perfeição negocial, através da cobertura da escritura, o negocio concretiza-se.
J. Os factos provados impossibilitam seja julgada improcedente a presente acção, independente do julgamento dos factos não provados no presente recurso.
K. Ficou provada a existência de compra e venda do bem imovel que teve como consequência a transmissão do imóvel.
L. Não era necessário a demonstração do pagamento de qualquer preço pelo A. à Insolvente.
M. A obrigação de pagamento do preço ou prova da existência do pagamento do preço não tem qualquer implicação na transmissão da propriedade do imóvel.
N. Tal circunstância e facto reporta-se única e exclusivamente a uma das obrigações essenciais da compra e venda.
O. Não foram alegados factos consubstanciadores de simulação.
P. Dos factos provados resulta que, no dia 23 de julho de 2001, no Oitavo Cartório Notarial do Porto, foi lavrada uma escritura de compra e venda, na qual o autor adquiriu da ré BB um imóvel pelo valor de vinte e oito milhões de escudos.
Q. Este imóvel consiste num prédio urbano composto por rés do chão e quatro andares, com logradouro, localizado na Rua ..., n.ºs ... a ..., e Rua ..., ..., na freguesia ..., concelho do Porto.
R. Encontrando-se aquele bem imóvel registado na matriz sob o artigo ... e descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número ... da freguesia ....
S. Contudo, o Tribunal a quo não reconheceu o direito de propriedade do Autor, mesmo perante a existência de um documento autêntico com pleno valor probatório – que é a escritura pública – e que comprova a transferência da propriedade a favor do Autor, atenta a eficácia real da compra e venda.
T. Neste contexto, deriva do enquadramento legal da compra e venda, conforme delineado nos artigos 874º e 879º do Código Civil, que a propriedade do bem vendido é transferida para o comprador através do contrato, sendo esta transferência um dos efeitos fundamentais do negócio jurídico, juntamente com as obrigações de entrega do bem e pagamento do preço.
U. Da mesma forma, a compra e venda é legalmente “categorizada” como um contrato real no que diz respeito aos seus efeitos, uma vez que resulta na imediata transmissão do direito de propriedade (de acordo com os artigos 1317º, alínea a), e 408º, nº. 1 do mesmo Código), e como um contrato obrigacional, no que se refere às obrigações de entrega e pagamento decorrentes do contrato.
V. No caso em apreço, “em cima da mesa”, está em questão uma transação imobiliária, tornando o contrato válido unicamente por meio de escritura pública, em conformidade com o artigo 875.º do Código Civil, o que foi observado no presente caso, tanto mais que nenhum vício foi apontado ao referido contrato.
W. Dado que a escritura pública é um documento autêntico, de acordo com o artigo 363º, nº 2, do Código Civil, este documento fornece prova completa dos factos declarados pelo notário: qualquer ação ou afirmação atribuída ao notário deve ser considerada exata (conforme dispõe o artigo 371º, nº 1, primeira parte do Código Civil).
X. Uma escritura pública de compra e venda é inquestionavelmente considerada um documento autêntico (de acordo com os artigos 369.º, n.ºs 1 e 2 do CC) e, como tal, constitui prova plena dos factos certificados pelo notário (nos termos do artigo 371.º, n.º 1 do CC).
Y. Através da sua qualidade, um documento autêntico confirma a veracidade dos factos ocorridos na presença do notário, embora não garanta a veracidade dos mesmos.
Z. No entanto, a escritura pública em questão inclui uma confissão de dívida por parte da Ré BB. Sendo uma confissão extrajudicial inserta num documento autêntico, feita à outra parte, é admissível por natureza e tem pleno valor probatório contra o declarante, de acordo com os artigos 355.º, n.ºs 1 e 4, e 358.º, n.º 2 do CC.
AA. Prova do alegado, é o documento junto com a Petição Inicial – cfr. documento n.º 5 – onde o recorrente demonstra que o imposto em vigor naquela data (SISA) foi tratado em 18 de julho de 2001, documento esse validado pelo Ofício do 1.º Serviço de Finanças do Porto junto aos autos por esta entidade em 27 de março de 2023.
BB. Além disso, também foi apresentado, e dado como provado, um documento particular autenticado que reforça o inquestionável direito de propriedade do Requerente, nomeadamente uma Autorização de Cancelamento de Hipoteca, datada de 10 de julho de 2001, em relação ao imóvel em questão, autorizando o cancelamento das hipotecas registadas a favor da Banco 1..., S.A, em nome de BB.
CC. Este documento foi assinado por CC, na qualidade de procurador da Banco 1..., SA, e autenticado por um notário.
DD. O artigo 56.º do Código de Registo Predial prescreve que o cancelamento de hipoteca "é feito com base em documento que contenha o consentimento do credor. 2 - O documento referido no número anterior deve conter a assinatura reconhecida presencialmente, salvo se esta for feita na presença de funcionário de serviço de registo no momento do pedido."
EE. Não se pode olvidar que as instituições bancárias não emitem documentos particulares autenticados que permitam o cancelamento de hipotecas sobre imóveis sem que o crédito esteja totalmente liquidado, e essa liquidação só podia vir do pagamento do preço.
FF. Assim sendo, o documento particular cuja autenticidade é reconhecida, de acordo com o artigo 376º do Código Civil, apresenta prova plena das declarações atribuídas ao seu autor.
GG. Além disso, tem o mesmo valor probatório dos documentos autênticos, tal como estipulado no artigo 377.º do Código Civil.
HH. Portanto, o seu conteúdo deveria ser aceite com o mesmo peso probatório que a escritura pública e, ao mesmo tempo, ser um elemento valorizado na decisão.
II. No entanto, no presente caso, o Tribunal a quo considerou o teor deste documento como provado, mas não o valorizou na decisão em relação à propriedade do Requerente, o que não pode ser aceite.
JJ. Uma vez que apenas a escritura pública deveria ter sido suficiente para fazer prova da transmissão da propriedade do aqui Recorrente.
KK. Assim não sendo, o documento particular autenticado também deveria ter sido analisado de acordo com a sua força probatória, pois que apenas reforça a premissa da propriedade do Autor.
LL. Ora, uma vez que a escritura pública de compra e venda de 23/07/2001 prova o pagamento do preço, beneficiando da força probatória dos documentos autênticos, conferida pelos artigos 369 a 372 do C.C., e uma vez que através dessa escritura a Ré BB deixa de ser proprietária do imóvel referido, transmitindo a propriedade do mesmo para o Autor AA, deve reconhecer-se a existência de tal direito real, constituído a favor do Autor e, bem assim, ser-lhe reconhecido o direito à separação e restituição do imóvel, com a consequente exclusão desse bem do auto de apreensão.
MM. Atento todo o exposto, deverão os factos 1, 4 e 5, da matéria de facto não provada, passarem a ser dados como provados.
Não foram oferecidas contra-alegações.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Delimitação do objecto do recurso.
Considerando, conjugadamente, a decisão recorrida (que constitui o ponto de partida do recurso) e as conclusões das alegações (por estas se delimita o objecto do recurso, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, nos termos dos arts. 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), as questões a decidir reconduzem-se a apreciar:
- da pretendida alteração da decisão da primeira instância sobre a matéria de facto,
- da demonstração do direito de propriedade do autor apelante sobre o imóvel objecto do pedido (por o ter adquirido da insolvente por contrato de compra e venda) e do consequente direito à separação do mesmo da massa insolvente e sua restituição ao apelante.
Importará também apurar, sendo que a propósito se cumpriu já o contraditório, se a valorização de factualidade apurada e não impugnada (pontos 1, 2, 3, 4 e 22 dos factos provados), leva a concluir ter a insolvente adquirido a posse (aquisição originária, nos termos do art. 1263º, a) do CPC) sobre o imóvel, que manteve por prazo suspcetível de lhe conferir a faculdade de adquirir o direito de propriedade por usucapião e se a alegação de tal factualidade no processo significa que, com toda a probabilidade, quis aproveitar-se dela.
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FUNDAMENTAÇÃO
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Fundamentação de facto
Na sentença recorrida consideraram-se, com interesse para a decisão da causa:
Factos provados
1. BB apresentou-se à insolvência em 19/1/2022 fazendo constar da petição inicial apresentada que ‘o seu imóvel sito na Rua ..., n.º ... a ... e Rua ..., n.º ... a ... encontra-se penhorado no âmbito do processo executivo que corre termos sob o número 863/04.0TVPRT, no Tribunal Judicial da Comarca do Porto Processo - Juízo de Execução do Porto - Juiz 2.’.
2. Em 1/2/2022 juntou relação de bens fazendo constar da mesma que ‘A Requerente declara que é proprietária do prédio urbano em propriedade total sito na Rua ..., nºs. ... a ... e Rua ..., nºs. ... a ..., da freguesia ..., composto por Edifício de cave, r/c e quatro andares, com logradouro, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número ..., da freguesia ... e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..., o qual lhe foi legado pela sua falecida mãe, EE, com o valor actual de mercado de quatrocentos mil euros.
3. Nessa relação de bens juntou ainda uma relação de arrendamentos em vigor sobre o prédio de que é proprietária fazendo constar do mesmo os seguintes arrendamentos:
Com entrada pela Rua ...:
- Arrendamento relativo ao rés-do-chão do prédio com entrada pela Rua ..., ..., correspondente a duas lojas, no valor anual de 1.800,00€, em que é arrendatário FF, NIF ...;
- Arrendamento relativo ao rés-do-chão do prédio com entrada pela Rua ..., correspondente a uma loja, no valor mensal de 50,00€, em que é arrendatário GG;
Com entrada pela Rua ...:
- Arrendamento relativo ao rés do chão do prédio com entrada pela Rua ..., correspondente a uma loja/quiosque, no valor mensal de 50,00€, em que é arrendatário HH;
- Arrendamento relativo ao primeiro andar, apartamento ... e ..., com entrada pela Rua ..., correspondente a uma habitação, no valor anual de 900,00€, em que é arrendatário FF, NIF ...;
- Arrendamento relativo ao primeiro andar, apartamento ..., com entrada pela Rua ..., correspondente a uma habitação, no valor anual de 900,00€, em que é arrendatário II, NIF ...;
- Arrendamento relativo ao segundo andar, apartamento ..., com entrada pela Rua ..., correspondente a uma habitação, no valor anual de 600,00€, em que é arrendatário CC, NIF ...;
- Arrendamento relativo ao segundo andar, apartamento ..., com entrada pela Rua ..., correspondente a uma habitação, no valor mensal de 278,50€, em que é arrendatário JJ;
- Arrendamento relativo ao terceiro andar, apartamento ..., com entrada pela Rua ..., correspondente a uma habitação, no valor mensal de 50,00€, em que é arrendatário KK;
- Arrendamento relativo ao terceiro andar, apartamento ..., com entrada pela Rua ..., correspondente a uma habitação, no valor mensal de 55,82€, em que é arrendatário LL;
- Arrendamento relativo ao quarto andar, apartamento ..., com entrada pela Rua ..., correspondente a uma habitação, no valor mensal de 52,27€, em que é arrendatário MM;
- Arrendamento relativo ao rés do chão do prédio com entrada pela Rua ..., correspondente a uma loja, no valor anual de 900,00€, em que é arrendatária II;
- Arrendamento relativo ao rés do chão do prédio com entrada pela Rua ..., correspondente a um escritório, no valor anual de 900,00€, em que é arrendatário II;
- Arrendamento relativo à cave do prédio com entrada pela Rua ..., correspondente a um armazém, no valor anual de 1.000,08€, em que é arrendatário II’.
4. Juntou ainda a essa relação de bens cópias de vários recibos de renda designadamente recibos emitidos em nome de II.
5. Por sentença transitada em julgado foi declarada a insolvência de BB.
6. O Sr. administrador da insolvência nomeado no processo de insolvência referido em 1 e 5 apreendeu para a massa, em 23/5/2022, sob a verba 1, o ‘Edifício de cave, r/c e quatro andares, com logradouro sito na Rua ..., ... e Rua ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto, sob o nº ..., freguesia ..., inscrita na matriz predial urbana da freguesia ... sob o artº ... com o valor patrimonial e atribuído de 638.232,21€ (seiscentos e trinta e oito mil duzentos e trinta e dois euros e vinte e um cêntimos)’.
7. Foi registada na Conservatória do Registo Predial a declaração de insolvência de BB respeitante sob a ap. ... de 2022/06/01.
8. No dia 23/07/2001, no Oitavo Cartório Notarial do Porto, foi outorgada uma escritura de compra e venda cuja certidão se encontra junta à petição inicial sob doc. n.º 2, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, da qual consta que ‘compareceram como outorgantes
PRIMEIRO
NN (…) residente na Rua ..., n.º ..., 1.º andar, freguesia ..., cidade do Porto (…), o qual outorga na qualidade de procurador de BB (…) cuja qualidade e poderes verifiquei por uma procuração que arquivo.
SEGUNDA
DD (…) residente na Rua ..., n.º ..., 1.º andar, freguesia ..., cidade do Porto (…), a qual outorga na qualidade de procuradora de AA (…) casado com II, no regime de comunhão geral (…) cuja qualidade e poderes verifiquei por uma procuração que arquivo. (…)
PELO PRIMEIRO OUTORGANTE NA QUALIDADE EM QUE OUTORGA FOI DITO
Que pela presente escritura, e pelo preço de VINTE E OITO MILHÕES DE ESCUDOS, que já recebeu, vende ao representado da segunda outorgante, um prédio urbano composto de casa de rés do chão e quatro andares com logradouro, sito na Rua ..., n.º ... a ... e Rua ..., ..., freguesia ..., concelho do Porto, inscrito na matriz sob o art. ... (…) descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número ... da freguesia ....
Que o referido prédio está inscrito a favor da vendedora pela inscrição G, apresentação vinte e cinco de 8 de junho de dois mil, com inscrições de hipoteca a favor da Banco 1..., SA, pela inscrição C, apresentação vinte e seis de oito de junho do ano de dois mil, C, apresentação trinta e dois, de oito de novembro de dois mil e C, apresentação onze de dois de abril de dois mil e um, tendo porém, esta Instituição já autorizado o seu cancelamento (…)’.
9. A Banco 1... emitiu em 10/07/2001 o documento denominado ‘Autorização de Cancelamento de hipoteca’ cuja cópia se encontra junta à petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido no qual consta que ‘A Banco 1... (…) DECLARA AUTORIZAR O CANCELAMENTO DA(S) HIPOTECA(S) que se acha(m) registada(s) a seu favor na 1.ª Conservatória do Registo Predial do PORTO, pela(s) inscrição(ões) C, Ap. ..., ..., Ap. ... e ..., Ap. ..., que incide(m) sobre o(s) prédio(s) descrito(s) na citada Conservatória, sob o(s) número(s) ...-..., e acha(m)-se registada(s) para garantia(s) do(s) empréstimo(s) de TRINTA MIL CONTOS, TRINTA MIL CONTOS E QUARENTA E SETE MIL CONTOS, concedido(s) pela Banco 1..., SA, a BB, por escritura(s) notarial(ais).
10. Tal documento foi assinado por CC na qualidade de procurador da Banco 1..., SA e foi autenticado por notário.
11. O autor não registou a propriedade do imóvel a seu favor na Conservatória do Registo Predial após a outorga da escritura mencionada em 8, tendo apenas tentado registar essa propriedade através da ap. ... de 1/9/2022, registo esse que foi recusado conforme resulta das ap. ..., ... e ... de 1/9/2022.
12. A Banco 1..., SA intentou contra BB uma ação executiva que correu termos sob o n.º 863/04.0TVPRT no juízo de Execução do Porto, J2.
13. Na execução mencionada em 12 foi penhorado o prédio descrito no ponto 6 dos factos provados.
14. Consta registada no prédio em causa uma penhora a favor da Banco 1... através da AP. ... de 2008/12/26.
15. Bem como vários registos de transmissão de créditos pelas AP. ... de 2019/04/01, AP. ... de 2019/04/01 e AP. ... de 2019/04/01, realizados por esta Banco 1..., S.A., a favor da A... Company por cessão de créditos.
16. E registos de transmissão de créditos, pelas AP. ... de 2021/12/23, AP. ..., de 2021/12/23 e AP. ... de 2021/12/23, realizados por esta A... Company a favor de B..., Lda. na proporção de 25% e da C..., Unipessoal Lda. na proporção de 75%.
17. Por apenso ao processo executivo mencionado em 12 II intentou, em 15/7/2020, embargos de terceiro pedindo que seja declarada a existência e titularidade do direito de arrendamento da embargante dos seguintes locados: loja com entrada pelo nº ... Cave, loja com entrada pelo rés-do-chão do n.º ... e loja com entrada pelo rés-do-chão do nº ....
18. Nesses embargos de terceiro a embargante alegou que é arrendatária de 3 lojas sitas no prédio sito no ângulo das Ruas ..., nº ... e ... e da Rua ..., nº ... e ..., ..., Porto (…), sendo senhoria a executada.
19. No processo de execução mencionado em 12 II declarou pretender exercer o direito de preferência na aquisição dos locados.
20. Por despacho de 7/12/2021 foi-lhe negado o exercício desse direito de preferência por o prédio não estar constituído em propriedade horizontal.
21. O autor é casado com II desde 15 de dezembro de 1964 no regime de comunhão geral de bens.
22. A insolvente BB manteve o gozo e fruição do imóvel mencionado no ponto 6 após a outorga da escritura mencionada em 8, tendo outorgado vários contratos de arrendamento respeitantes a partes desse imóvel com terceiros, designadamente com a mulher do aqui autor.
Factos não provados
1. O autor pagou a BB o preço de vinte e oito milhões de escudos mencionado na escritura referida no ponto 8 dos factos provados através de diversas entregas de valores feitas pelo aqui autor e pela mesma recebidos.
2. O autor tem pago todos os IMIs devidos desde a compra que realizou do imóvel em causa até ao dia de hoje.
3. O autor desde a escritura mencionada em 8 esteve na posse do imóvel, usando e fruindo do mesmo como seu proprietário.
4. A insolvente quis vender ao autor o imóvel identificado no ponto 6 dos factos provados na escritura mencionada em 8.
5. O autor quis adquirir o aludido bem através dessa escritura.
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Fundamentação jurídica
A. Da impugnação da decisão de facto.
Impugna o apelante a decisão da primeira instância sobre a matéria de facto sustentando deverem julgar-se provados os factos que a decisão apelada, sob os números 1, 4 e 5, entendeu julgar não provados.
Patente a irrelevância de tal impugnada matéria para a decisão da causa, impondo-se à Relação abster-se de apreciar e decidir da impugnação.
A apreciação da modificabilidade da decisão de facto é actividade reservada a matéria relevante à solução do caso, devendo a Relação abster-se de conhecer da impugnação cujo objecto incida sobre factualidade que não interfira de modo algum na solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados[1].
O propósito precípuo da impugnação da decisão de facto é o de possibilitar à parte vencida a obtenção de decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido quanto ao mérito da causa, o que faz circunscrever a sua justificação às situações em que a matéria impugnada possa ter interferência na solução do caso, ou seja, aos casos em que a solução do pleito em favor do recorrente esteja dependente da modificação que o mesmo pretende ver introduzida nos factos a considerar na decisão a proferir.
Sendo a matéria impugnada pelo recorrente indiferente e alheia à sorte da acção, não interferindo de modo algum na solução do caso, de acordo com o direito (considerando as soluções plausíveis da questão de direito[2]), não deverá a Relação conhecer da impugnação (da pretendida alteração), sob pena de estar a levar a cabo actividade inútil, infrutífera, vã e estéril – se os factos impugnados não forem relevantes, considerando as soluções plausíveis de direito da causa, é de todo inútil a reponderação da correspondente decisão da 1ª instância, como sucederá nas situações em que a substituição pretendida pelo impugnante seja indiferente à solução da causa e irrelevante ao enquadramento jurídico do objecto da lide[3].
Tal é, precisamente, o que ocorre no caso dos autos.
Considerando que a pretensão de tutela jurisdicional formulada pelo autor apelante se consubstancia no reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel identificado nos factos provados, com a sua consequente separação dos bens da massa e restituição, que funda no facto de ter adquirido tal direito em negócio de compra e venda em que figurou como adquirente e a insolvente como alienante, fácil é concluir, numa primeira aproximação, a desnecessidade e irrelevância de apurar do pagamento do preço convencionado no contrato de compra e venda aludido no facto provado 8 (pagamento de preço julgado não provado no número 1 dos factos não provados e que o apelante pretende ver julgado provado).
Atendendo ao princípio da consensualidade estabelecido no art. 408º, nº 1 do CC, de acordo com o qual a constituição e transferência de direitos reais ocorre por mero efeito do contrato (enfileira o nosso no grupo de sistemas jurídicos que perfilham a transmissão ou constituição do direito real ‘solo consensu, isto é, dependente do mero acordo de vontades’, e por isso que quem, ‘sem reserva de domínio ou estipulação semelhante, realiza a compra, a venda, a doação, a constituição de usufruto, a constituição de superfície, a consignação de rendimentos, etc., atribui ou adquire o correspondente jus in re sem dependência de qualquer acto ulterior’[4]; o ‘simples acordo, substancial e formalmente válido, produz os efeitos reais visados, sem que seja necessário um ato adicional de entrega da coisa ou de inscrição em registo ou um acordo ulterior’[5]), a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito é efeito do contrato de compra e venda (o exemplo paradigmático dos contratos com eficácia real, isto é, dos negócios reais quod effectum, quanto aos efeitos), pois o contrato que é ‘fonte de efeitos obrigacionais é a própria fonte dos efeitos reais’[6], decorrendo da sua celebração esse efeito que constitui elemento essencial do contrato, o qual (tal efeito – transmissão da propriedade) não fica dependente do cumprimento das obrigações de entrega da coisa ou do pagamento do preço (sem prejuízo de, em determinadas circunstâncias, o não cumprimento poder dar lugar à resolução do contrato)[7].
Irrelevante, pois, à decisão da causa, apurar do pagamento do preço – ao mérito da causa, ponderando a pretensão formulada, relva a natureza real do contrato de compra e venda (a transferência do direito real), não a sua natureza obrigacional (os seus efeitos obrigacionais).
Indiferente também apreciar se o autor apelante quis adquirir e a insolvente apelada quis alienar o imóvel objecto do pedido – números 4 e 5 dos factos não provados.
Considerando o objecto da acção – uma verdadeira acção real, em que se pretende o reconhecimento do direito de propriedade (a pronuntiatio) e a restituição de imóvel (a condemnatio) –, os eventuais vícios do negócio constituem factos impeditivos susceptíveis de obstar à procedência da acção (por obstarem à produção do efeito real do contrato de compra e venda – os efeitos do contrato de natureza real só não se produzirão se o contrato foi inválido[8]), não sendo já matéria constitutiva do direito invocado – factos constitutivos são, tão só, os que constituem pressuposto do aparecimento do direito que se quer fazer valer em juízo (no caso, os relativos à transferência/aquisição do direito de propriedade) e são factos impeditivos os que obstam à formação/aparecimento do direito[9], e por isso que, na situação dos autos, de acordo com a teoria das normas (assente na relação entre regra e excepção)[10], não cabe ao autor apelante provar mais do que a outorga do negócio gerador de efeitos reais (a emissão, por parte dos contratantes, das declarações negociais enformadoras do negócio), não lhe cabendo já demonstrar a ausência de vício susceptível de gerar a invalidade do contrato, pois a existência de vício é a excepção, não a regra – pretendendo valer-se da norma do art. 879º, a) do CC, ao autor cabe demonstrar os factos integrantes da previsão que aproveitam à sua pretensão e são constitutivos do direito invocado, que se consubstanciam, no caso, na celebração do negócio de compra e venda; a invalidade do negócio aparece como facto impeditivo do direito do autor, não lhe cabendo demonstrar a não verificação da excepção.
De concluir, pois, que a modificação que o apelante pretende introduzir no acervo factual a considerar não releva ao mérito da causa – para concluir pela transmissão do direito de propriedade por efeito do contrato de compra e venda referido no facto provado número 8 é indiferente a prova do pagamento do preço e, também, a demonstração (pela positiva) de que não existe qualquer facto que determine a invalidade do negócio.
Atento o exposto (porque a matéria impugnada é irrelevante à decisão da causa), abstém-se a Relação de apreciar da impugnação da decisão de facto.
B. Do mérito da causa – da demonstração do direito de propriedade sobre o imóvel objecto do pedido.
Apreendidos indevidamente para a massa (em vista de serem liquidados e o produto da alienação ser distribuído pelos credores do devedor insolvente – essa a finalidade do processo de execução universal em que o processo de insolvência se traduz, como estabelecido no art. 1º, nº 1 do CIRE) bens pertencentes a terceiro, devem os mesmos ser dela separados – a alínea c) do nº 1 do art. 146º do CIRE contempla a tutela dos terceiros que vejam bens seus indevidamente apreendidos para a massa.
Fundamento que o apelante invocou em vista da pedida separação e consequente restituição do imóvel referido nos factos provados – sustentou caber-lhe o direito de propriedade sobre o referido imóvel.
Cabendo ao apelante a demonstração da aquisição do direito de propriedade, e devendo reconhecer-se que a demonstração em juízo de tal aquisição não tem que ser feita através da prova de factos que demonstrem a aquisição originária do domínio[11] (ou seja, do estabelecimento duma cadeia ininterrupta de aquisições até ao adquirente originário da coisa), conclui-se, todavia, não estar demonstrado nos autos, valorizando os factos provados, que o autor seja o titular do domínio sobre a coisa.
Certo que demonstra o autor apelante ter adquirido da devedora insolvente, por contrato de compra e venda, o direito de propriedade sobre o imóvel objecto da lide, e sendo a devedora insolvente, então, a última titular inscrita no registo (como se conclui do facto 8 , donde consta que a aquisição do bem a favor da insolvente se mostrava inscrita nas tábuas do registo e por isso que ela, transmitente, gozava da presunção de titularidade derivada do registo – nos termos do art. 7º do Código do Registo Predial, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito), estaria suplantada a objecção que a regra do nemo plus iuris ad alium transfere potest quam ipse habet suscita a propósito da insuficiência da simples demonstração da aquisição derivada do direito em acção real (a alegação do negócio de aquisição não basta para provar a existência do direito que se quer ver reconhecido, porque poderá faltar o direito do transmitente) – nas situações em que o transmitente é o último titular inscrito no registo, mesmo que não ‘esteja apoiado numa cadeia ininterrupta de transmissões desde a descrição e a primeira inscrição do imóvel no registo (por falta ou por não aplicação do princípio do trato sucessivo), a prova do direito do adquirente beneficia já da presunção da existência do direito do transmitente, que resulta do registo’, sendo ‘absurdo exigir, mesmo nesse caso, a prova da cadeia ininterrupta de transmissões do imóvel até encontrar um título de aquisição originária’[12] (situações em que a demonstração de que o direito transmitido já existia no transmitente – dominium auctoris – assenta na presunção derivada do registo).
Porém, na situação dos autos, resulta provado que a insolvente, independentemente de ter transmitido a propriedade da coisa para o autor apelante, manteve-se a praticar sobre ela (sobre o imóvel) actos de posse durante mais de vinte anos até que, em 2022, o mesmo foi apreendido para a massa insolvente – donde resulta que, ainda que o autor tivesse adquirido o direito de propriedade sobre a coisa em 2001, o perdeu para a insolvente, que pela posse ao longo de mais de vinte anos, adquiriu, por usucapião (art. 1287º do CPC), o direito de propriedade sobre o imóvel.
Como resulta dos factos provados (factos 1, 2, 3, 4 e 22 – factos cuja aquisição para os autos não foi impugnada nem censurada pelo apelante, mormente por traduzirem qualquer excesso de pronúncia[13], e que por isso têm de ser relevados e valorizados), a insolvente, mesmo depois da alienação (em Julho de 2001), manteve o gozo e a fruição do imóvel, outorgando contratos de arrendamento com terceiros respeitantes a partes dele (o imóvel não estava constituído em propriedade horizontal), recebendo as rendas respectivas.
De acordo com a noção legal expressa no art. 1251º do CC, posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
A posse é, no direito português, o ‘exercício de poderes de facto sobre uma coisa em termos de um direito real (rectius: do direito real correspondente a esse exercício)’, envolvendo, ‘portanto, um elemento empírico – exercício de poderes de facto – e um elemento psicológico-jurídico. Ao primeiro é o que se chama corpus e ao segundo animus’, sendo tais elementos interdependentes, existindo entre eles uma relação biunívoca[14]. ‘Corpus é o exercício dos poderes de facto que intende uma vontade de domínio, de poder jurídico-real. Animus é a intenção jurídico-real, a vontade de agir como titular de um direito real que se exprime (e hoc sensu emerge ou é inferível) em (de) certa actuação de facto’, inferência ou correspondência acentuada no art. 1251º do CC[15].
A intenção de domínio (melhor e mais correcto: o exercício de poderes de facto sobre a res, com intenção de exercer o direito real) não tem de ser explícita nem de ser declarada (a intenção de domínio ‘não tem de explicitar-se e muito menos por palavras’), importando que ‘se infira do próprio modo de actuação ou de utilização’, devendo na ‘dúvida quanto aos termos em que se processa, ao direito real em termos do qual se possui – sabendo que é em termos de um direito real, em termos de domínio pleno ou de uma derivação desse domínio –’ entender-se ‘que é em termos de propriedade, já que esta envolve no seu licere toda a «lógica da coisa» e, por isso, qualquer tipo de manifestação empírica.’[16]
Inferência do animus retirada da ‘análise dos actos praticados pelo possuidor e que sejam reveladores de uma vontade, que não é a psicológica ou emanada da perscrutação da intenção do agente, mas, sim, a que resulta da exteriorização daquele comportamento e do que dele se pode retirar quanto ao direito que se quer afirmar’[17] – é no controlo material das utilidades gozadas (no caso, o ceder a outrem o gozo e fruição da coisa através de contrato de arrendamento e receber as rendas correspectivas) que ‘se deve descobrir a posse, não podendo ser rejeitadas a presença e a relevância do respectivo «animus» quando o «corpus» que o traduz seja revelador, por parte de quem o exerce, da vontade de criar em seu benefício uma aparência de titularidade correspondente ao direito real’[18].
Da matéria de facto acima posta em relevo resulta que a insolvente exerceu sobre a coisa poderes de facto (permitiu o seu uso, fruição e gozo a terceiros, com eles outorgando para tanto contratos de arrendamento, recebendo as respectivas rendas), exercício do qual se infere a intenção de domínio, pois que tal utilização dada à coisa revela vontade de retirar dela os benefícios correspondentes ao domínio (que sempre se terá de considerar, como acima dito, correspondente ao direito real pleno) – intenção que o declarado na petição com que se apresentou à insolvência e na relação de bens que fez acompanhar com aquela peça processual (vejam-se os factos provados 1, 2 e 3) mais não faz do que confirmar.
Factos dos quais resulta ter a insolvente adquirido a posse pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais de que se infere a intenção do domínio (aquisição paulatina da posse, prevista na alínea a) do art. 1263º do CC – estão compreendidos em tal previsão normativa actos referentes a poderes de direito e que traduzem igualmente poderes de facto, que demonstrem a inserção da coisa na esfera de disponibilidade fáctica do sujeito), sem qualquer acto de violência (não foi obtida através de coacção física ou moral – art. 1261º do CC), com publicidade (foi exercida de modo a poder ser conhecia pelos interessados, pois ao facultar o gozo do imóvel a terceiros, através da outorga de contratos de arrendamento, na qualidade de senhoria, a actuação da insolvente exteriorizou-se, tornando-se cognoscível pelos interessados/afectados, mormente pelo autor apelante – art. 1262º do CC –, pois tivesse actuado com a mediana e normal diligência[19], teria tido conhecimento da actuação da insolvente).
Tratando-se de posse adquirida sem violência (posse pacífica – art. 1261º do CC) e pública (art. 1262º do CC), presumida de má fé (art. 1260º, nº 2 do CC) porque não titulada [não fundada em título legítimo de adquirir, como dispõe o art. 1259º, nº 1 do CC – a aquisição paulatina é uma forma de aquisição originária da posse, surgindo ‘ex novo na esfera de disponibilidade empírica do sujeito’, não dependendo ‘geneticamente de uma posse anterior (nem quanto à existência, nem quanto ao âmbito ou conteúdo, nem quanto à extensão ou área de incidência)’, dependendo ‘apenas do facto aquisitivo’, e ainda que tenha existido uma posse anterior, a posse do adquirente, na aquisição originária, não provém da anterior, não tem causa nela, não provém dela e é adquirida ‘contra ela ou apesar dela’[20]], é facultada ao possuidor a aquisição do direito de propriedade por usucapião, sendo certo que o prazo para tanto, tratando-se de imóvel (e atentas as apontadas características da posse – não titulada e presumida de má fé), é de vinte anos (art. 1296º do CC), já decorrido à data em que o imóvel foi apreendido para a massa.
Como resulta dos arts. 1292º e 303º do CC, a usucapião não opera automaticamente, não podendo ser oficiosamente conhecida, impondo-se a sua invocação (judicial ou extrajudicial) pelos interessados, ainda que se não exija para tanto a obediência a qualquer fórmula sacramental, sendo suficiente que se aleguem os factos a ela conducentes, pois tal significará que, com toda a probabilidade (até prova em contrário), que querem aproveitar-se os efeitos dela[21] - alegados os factos de posse que se coadunam com tal figura e invocado o domínio (o direito real de propriedade) sobre a coisa (vejam-se os factos provados 1, 2, 3 e 4), tem de considerar-se invocada a usucapião, ponderando que a necessidade da sua invocação assenta no princípio de que ninguém pode ser forçado a adquirir o que não quer, devendo as aquisições ser voluntárias, invocação que no caso não pode negar-se pois a insolvente, logo que se apresentou à insolvência, invocou a titularidade do direito real sobre a coisa[22] (a alegação dos factos foi feita pela insolvente logo depois de se apresentar à insolvência, na relação de bens que fez juntar a tal processo principal – e assim que, relativamente a esta acção de verificação do direito à restituição de bens, se trata de invocação extrajudicial dos factos integradores da usucapião).
Resulta do exposto que a insolvente adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade sobre o bem - modo de aquisição originária do domínio que abstrai de direito anterior, impondo-se contra ele.
Improcede, pois, a apelação, sendo de confirmar (ainda que por fundamentos completamente distintos) a sentença apelada.
C. Síntese conclusiva.
Resulta do exposto a improcedência da apelação – o autor não demonstrou ser o titular do direito de propriedade sobre o imóvel objecto dos autos –, podendo sintetizar-se a argumentação decisória (art. 663º, nº 7 do CPC) nas seguintes proposições:
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DECISÃO
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Pelo exposto, acordam, por maioria, os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em manter a sentença apelada.
Custas pelo apelante.
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Porto, 16/01/2024
João Ramos Lopes
Alberto Taveira
Alexandra Pelayo [Voto de vencida:
Constituindo a ação em apreço, uma ação com natureza de ação de reivindicação, em que se pretende o reconhecimento do direito de propriedade e a restituição do imóvel, competia ao autor/apelante a demonstração de tal direito, o que o autor/apelante fez, ao demonstrar ter adquirido, mediante contrato de compra e venda (válido), celebrado com a insolvente, o direito de propriedade sobre o imóvel objeto da lide, apesar de tal direito não ter sido levado a registo, permanecendo dessa forma, o registo inscrito em nome da vendedora, que assim goza da presunção de registo.
Tal presunção resultante do registo, (art. 7º do Código do Registo Predial) mostra-se porém, afastada pela prova do concreto negócio de compra e venda translativo do direito de propriedade celebrado entre a insolvente e o apelante.
Da matéria de facto provada resulta assim que, o autor/apelante adquiriu do titular inscrito o direito de propriedade sobre o identificado imóvel, mediante negócio jurídico translativo da propriedade válido.
Entendo que, tal como se afirma no acórdão, o tribunal não pode conhecer oficiosamente da usucapião (art. 1287º do C.C), porque esta forma aquisitiva originária de direitos reais, para ser operante, tem de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita e dela pretende prevalecer-se.
Daí que discorde da decisão, na parte em que, não obstante, se entendeu estar invocada a usucapião, através da alegação dos factos a ela conducentes, porquanto a insolvente, apesar de se arrogar proprietária do imóvel, (indicando-o como bem pertencente à massa insolvente), não veio invocar a aquisição originária do direito, mediante usucapião.
Dessa forma, daria razão ao Apelante, revogando a sentença recorrida.

(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
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[1] Assim, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime (Decreto Lei nº 303/07, de 24/08) – 2ª edição revista e actualizada, p. 298.
[2] As soluções aventadas na doutrina e/ou na jurisprudência, ou que, em todo o caso, o juiz tenha como dignas de ser consideradas (como admissíveis a uma discussão séria) – Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 188, nota 1 –, isto é, as soluções que a doutrina e a jurisprudência adoptem para a questão (designadamente nos casos em que em torno dela se tenham formado duas ou mais correntes) e também aquelas que sejam compreensivelmente defensáveis, considerando a lei e o direito aplicáveis – Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, pp. 417 e 418 –, os (todos os) ‘possíveis enquadramentos jurídicos do objecto da acção’, as ‘possíveis soluções de direito da causa’, as soluções jurídicas (entendimentos e posições) propostas pela doutrina e/ou jurisprudência para resolver a questão suscitada no litígio – Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, p. 311 –, as vias de solução possível do litígio, ponderando as correntes doutrinárias e jurisprudenciais formadas em torno dos tipos de questão levantadas pela pretensão deduzida em juízo e excepções invocadas – Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 2001, p. 381.
[3] Acórdão da Relação de Coimbra de 14/01/2014 (Henrique Antunes), no sítio www.dgsi.pt. No mesmo sentido, v. g., os acórdãos do STJ de 19/05/2021 (Júlio Gomes) e de 14/07/2021 (Fernando Baptista), no sítio www.dgsi.pt.
[4] Orlando de Carvalho, Direito das Coisas [coordenação de Francisco Liberal Fernandes, Maria Raquel Guimarães e Maria Regina Redinha], Coimbra Editora, 2012, pp. 214 e 25.
[5] Ana Afonso, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Portuguesa (coordenação de Luís Carvalho Fernandes e José Brandão Proença), nota II ao artigo 408º, p. 68.
[6] Orlando de Carvalho, Direito das Coisas (…), p. 215.
[7] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 2ª edição revista e actualizada, nota 3 ao art. 879º, p. 152.
[8] Orlando de Carvalho, Direito das Coisas (…), p. 215.
[9] Rita Lynce de Faria, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Portuguesa (coordenação de Luís Carvalho Fernandes e José Brandão Proença), nota V ao artigo 342º, p. 812.
[10] Cfr., a propósito da teoria das normas, p. ex., Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, pp.452 e ss., maxime pp. 454 a 456 e Rita Lynce de Faria, in Comentário (…), nota VII ao artigo 342º, p. 813.
[11] Antunes Varela, in RLJ, Ano 120, p. 220 (anotação a acórdão do STJ de 16/08/1983).
[12] Antunes Varela, in RLJ (…), p. 221.
[13] Note-se que a nulidade da sentença por excesso de pronúncia (mormente pela valorização de factos não alegados adquiridos fora dos condicionalismos previstos no art. 5º, nº 2 do CPC) não é de conhecimento oficioso e, assim, que não pode esta Relação declarar tal excesso, por não invocado na apelação (cfr., a propósito, Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2ª Edição, p. 607, Abrantes Geraldes, Paulo Pimento e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2018, p. 734 e Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª Edição, pp. 728 e 729.
[14] Orlando de Carvalho, Direito das Coisas (…), p. 268.
[15] Orlando de Carvalho, Direito das Coisas (…), p. 267.
[16] Orlando de Carvalho, Direito das Coisas (…), p. 268.
[17] Acórdão do STJ de 15/12/2022 (Tibério Nunes da Silva), no sítio www.dgsi.pt.
[18] Acórdão do STJ de 15/02/2018 (Alexandre Reis), no sítio www.dgsi.pt.
[19] A propósito do padrão referencial para aferir da característica da publicidade da posse, Orlando de Carvalho, Direito das Coisas (…), p. 287.
[20] Orlando de Carvalho, Direito das Coisas (…), p. 290/291.
[21] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2ª edição revista e actualizada (com a colaboração de Henrique Mesquita), nota 3 ao art. 1293º, pp. 71/72.
[22] Cfr., (citando, a propósito, Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais), o acórdão do STJ de 17/04/2018 (José Rainho), no sítio www.dgsi.pt.
A legitimação pelos arts. 1282º e 305º do CC facultada aos credores para invocar a usucapião a favor do devedor (apreciação que ao caso não releva) assenta na consideração de que a eles convém o aumento do património do devedor - Pires de Lima e Antunes Varela, Código (…), Volume III, nota 3 ao art. 1293º, p. 72.