Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ISABEL SILVA | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO PAULIANA TRANSMISSÕES SUCESSIVAS INSTAURAÇÃO DE ACÇÃO EXECUTIVA TERCEIRO ADQUIRENTE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA | ||
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Nº do Documento: | RP202205191784/21,8T8LOU-A.P1 | ||
Data do Acordão: | 05/19/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA A DECISÃO | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Tendo em conta que a transmissão do bem objeto duma ação de impugnação pauliana permanece válida, só perdendo eficácia perante o credor e apenas “na medida do seu crédito”, é possível prefigurar a hipótese de futuras transmissões, razão pela qual as transmissões sucessivas têm também de ser impugnadas para poderem surtir idêntico efeito. II - Tendo as transmissões posteriores sido efetuadas após a sentença de impugnação e antes de instaurada a ação executiva, o terceiro subadquirente pode ser executado diretamente caso a primitiva ação de impugnação tenha sido sujeita a registo predial [art.º 3º nº 1 al. a) do CRP], já que a sentença produz também efeitos contra ele, ainda que não tenha intervindo no processo, ao abrigo do art.º 263º nº 3 do CPC. III - Desde que o Tribunal se mova nos limites e fins da ação executiva, qualquer questão substantiva ou adjetiva pode ser suscitada, e conhecida, nos embargos de executado, designadamente a impugnação pauliana, a qual também pode ser suscitada por via de exceção. IV - A sentença de impugnação pauliana não constitui título executivo relativamente a um terceiro que adquiriu o bem do primeiro adquirente, mas não tenha intervindo na ação pauliana. V - Porém, sendo esse subadquirente uma sociedade comercial, constituída exclusivamente por sócios que foram Réus na ação de impugnação, e tendo sido alegados os factos pertinentes no requerimento executivo, bem como na resposta aos embargos de executado, à desconsideração da personalidade coletiva, é de considerar essa sociedade/terceiro parte legítima para a execução. VI - É que, a eventual operância do levantamento da personalidade coletiva resultará na possibilidade de os imóveis poderem ser diretamente penhorados na execução, assim se atingindo diretamente o património desse terceiro subadquirente, razão pela qual terá interesse direto em ser parte na execução. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Apelação nº 1784/21.8T8LOU-A.P1 ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO I – RESENHA HISTÓRICA DO PROCESSO 1. AA instaurou execução contra BB, I..., SA e contra C..., Unipessoal, Lda [1], constituindo título executivo uma sentença (não transitada em julgado), que declarou a ineficácia do ato de alienação pelo Réu BB, mediante entrada em espécie no capital social da Ré I..., S.A., de: a) metade indivisa de um prédio urbano, parcela de terreno destinada a construção, sito no Lugar ..., ..., freguesia ..., concelho de Paços de Ferreira, descrito na CRP Paços de Ferreira sob o n.º ..., inscrito na respetiva matriz sob o n.º ..., e b) metade indivisa de um prédio urbano, parcela de terreno destinada a construção, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho de Paços de Ferreira, descrito na CRP Paços de Ferreira sob o n.º ..., na qual, pela AP. ... de 2018/06/14, inscrito na respetiva matriz sob o n.º ..., autorizando-se a execução respetiva na medida em que tal execução se mostre necessária para assegurar ao Autor o pagamento de 100.000 EUR. A Executada X..., L.da deduziu embargos de executado em que, para além de impugnar parcialmente a factualidade alegada, suscitou a sua ilegitimidade, a impropriedade do meio processual de execução e o abuso de direito. Em contestação, a Exequente respondeu às exceções suscitadas e sustentou a improcedência dos embargos. Em saneador-sentença, o M.mº Juiz considerou a Embargante parte ilegítima para a execução, pelo que a absolveu da instância executiva. 2. Inconformado com tal decisão, dela apelou o Exequente, formulando as seguintes CONCLUSÕES: «1. Vem o presente recurso interposto do saneador sentença do Juízo de Execução de Lousada (Juiz 1), de fls..., proferido nos autos de embargos do executado em referência e que julgou absolver da instância executiva a embargante X..., L.da, com a inerente extinção da execução contra a mesma e levantamento da penhora de bens de sua propriedade, incluindo sobre os imóveis referidos nos factos provados. 2. De acordo com o essencial da fundamentação do saneador sentença de que ora se recorre, a embargante não figura como devedora/condenada na sentença exequenda, de tal forma que, pela regra geral, não lhe assiste legitimidade passiva para a execução, a que acresce o facto de as alusões do exequente aos artigos 54º/1 do NCPC e 613º, 616º e 617º/2 do CC serem despropositadas, e, a única hipótese, vislumbrada pelo Tribunal, de salvaguardar a posição do exequente/credor (autor na ação de impugnação pauliana) seria apenas concebível na hipótese de aquele ter registado a ação de impugnação pauliana antes do registo da transmissão posterior, o que, manifestamente, não ocorreu, pois a ação nem sequer foi registada, razão pela qual a sentença recorrida conclui lhe imputando toda a responsabilidade pelas eventuais dificuldades que encontre em assegurar o seu direito no caso de sucessivas transmissões dos bens. 3. Salvo o devido respeito, a sentença recorrida viola o princípio da tutela jurisdicional efetiva dos direitos do credor ao interpretar, restritivamente, a letra da lei, mais ignorando inúmera jurisprudência reputada e consolidada sobre a temática da ação pauliana mas, sobretudo, ignorando a globalidade dos factos trazidos para o processo, não os considerando nem interpretando como um todo, recorrendo, inclusive, a presunções judiciais as quais seriam sempre admissíveis. 4. Na verdade, é jurisprudência maioritária que o registo da ação de impugnação pauliana não é obrigatório e não define, por si só, a possibilidade ou impossibilidade de o credor fazer valer o seu direito de crédito, no caso de s sucessivas transmissões dos bens cuja ineficácia foi declarada na dita ação. 5. O registo tem apenas por finalidade e/ou utilidade dar publicidade à existência do litígio e facilita o ónus da prova da má-fé, a que se refere o art. 612º C.C., no caso de o credor querer “perseguir” o bem, instaurando novas ações de impugnação pauliana, dispensando-o, nesse caso, daquela prova. 6. Da falta de registo da ação de impugnação pauliana não resulta, contudo, a boa fé do terceiro adquirente do bem, nem sequer, a intangibilidade dos bens transmitidos a esse terceiro, o qual, de má fé, será sempre responsável pelo valor dos bens que lhe foram transmitidos ou, se de boa fé, pela medida do seu enriquecimento (vide art. 616º C.C.). 7. A embargante confessou na petição de embargos (cfr. art. 24º a 36º) ser conhecedora da existência e dos termos da ação de impugnação pauliana movida contra BB, I..., S.A., CC e DD, cuja sentença se deu como título bastante à execução de que estes embargos são apensos, mais confessando que todos os ali demandados se limitaram (posteriormente, no decurso da ação, ao constituir sucessivas sociedades das quais eram sócios e/ou acionistas e que vieram a adquirir, sucessivamente, os bens) a exercer “o direito e o dever de lutar pela vida, direito que o exequente tem procurado e continua a procurar impedir de ser exercido” (cfr. petição embargos). 8. Ou seja, a interpretação acolhida pela sentença recorrida faz tábua rasa da má fé da aqui embargante (ou conhecimento assumido por ela própria de que os bens que estava a adquirir respondiam pela dívida do credor exequente e a anterior transmissão já havia sido declarada ineficaz em ação na qual os seus sócios CC e DD haviam sido, inclusive, demandados individualmente), 9. Permitindo que a embargante, em manifesto abuso de direito (cfr. art. 334º C.C.), não responda, perante o credor/embargado, pelo valor dos bens que recebeu (não obstante conhecedora da declaração anterior da ineficácia da transmissão), com o intuito de, em conluio com os demais, os libertar ou não os fazer responder pela dívida originária de BB (sócio gerente da embargante e pai dos restantes sócios CC e DD), numa manobra de claro prejuízo para o credor/embargado. 10. Existirá abuso de direito quando a embargante, detentora embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito do embargado a ser pago dos 100 mil euros, criando-se uma desproporção objetiva entre a utilidade do exercício do direito por parte da embargada (sociedade criada ficticiamente para “pôr a descoberto” os bens objeto da ação pauliana) e as consequências a suportar pelo embargado AA contra o qual é invocado. 11. Ou seja, tendo a transmissão da propriedade dos bens ora penhorados para os subadquirentes ocorrido na pendência da ação impugnação pauliana que não foi, nem tinha que ser objeto de registo, e não depois de transitada em julgado e registada a sentença proferida nesta ação, sempre se aplicaria, a contrario, à situação sub iudice o art. 263º/3 do CPCP que dispõe que “a sentença produz efeitos em relação ao adquirente, ainda que este não intervenha no processo, exceto no caso de a ação estar sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo (o que não é, como vimos, o caso, isto é, a ação não está sujeita a registo!). 12. Nesse pressuposto, o credor, aqui embargado/recorrente optou por exercer as faculdades previstas no art. 616º/2 e 3 C.C., responsabilizando os adquirentes de má fé pelo valor dos bens em crise nos autos, sem ter que discutir (desnecessariamente) os pressupostos de que depende a ação de impugnação pauliana. 13. Porquanto, como é evidenciado por Cura Mariano (ob. Cit.), já está definida a má-fé desde a primeira alienação e a “responsabilidade deriva, a partir da má fé e da segunda alienação, como simples decorrência legal”. 14. Ora, se é o valor dos bens sobre os quais foi deferida a impugnação pauliana que pode ser perseguido pelo credor, basta a simples indicação pelo exequente do valor dos mesmos e do valor da responsabilidade do adquirente. 15. Conforme se alegou e resultou confessado (nos art. 24º a 35º da petição de embargos), a embargante encontra-se de má-fé porquanto os seus sócios foram demandados individualmente na ação pauliana e, sendo titulares da vontade conformadora da sociedade (não existindo outros sócios para além deles, a saber, BB, CC e DD), pode-se afirmar que a X..., Lda., também desse facto detinha direto conhecimento. 16. No que toca a atos de alienação de bens a terceiros, a procedência da ação de impugnação pauliana concede ao credor a possibilidade de os executar ou executar providências conservatórias dos mesmos, no património de terceiro, e, como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela “não é necessária a entrada dos bens no património do alienante para aí serem executados. Pode mover-se logo a execução contra o adquirente dos mesmos bens”. 17. A este respeito Amâncio Ferreira acrescenta que a impugnação pauliana “... se encontra(r) equiparada à prevista naquele preceito legal no art. 818º CC sob a epígrafe execução de bens de terceiro, onde se possibilita uma execução sobre estes bens por estes se encontrarem ou vinculados à garantia do crédito ou onerados com a obrigação de restituição, e não, em nenhum dos casos, por os terceiros figurarem no título como devedores. Como defende Amâncio Ferreira a legitimidade passiva do adquirente, em caso de impugnação pauliana procedente não se funda no art. 55º CPC.”. 18. Um dos casos em que a sentença pode produzir efeitos em relação a terceiros, ainda que este não intervenha no processo, é aquele em que a transmissão da coisa ou direito litigioso se processa para o adquirente na pendência da ação declarativa de impugnação pauliana e a sentença seja proferida contra o transmitente, (vide acórdão Relação Porto de 04/02/2014 cit.). 19. O exequente/embargado/recorrente dispõe, assim, de título executivo bastante para promover a execução contra a embargante/adquirente, com vista a obter o pagamento do seu crédito a partir do produto da venda do bem alienado. No requerimento executivo o credor exequente limitou-se a indicar à penhora os bens que constituíram o objeto da venda impugnada na ação pauliana, excluindo quaisquer outros bens da embargante, porque não respondem pela dívida. 20. Neste sentido, e ainda quanto à legitimidade passiva do terceiro adquirente, dispõe mesmo o acórdão da Relação de Guimarães, de 2/5/2007 (relator Maria Rosa Tching, in CJ nº 199, Ano XXXII, Tomo III/2007, P. 290) que, “até por razões de economia processual e de exercício do direito ao contraditório previsto no art. 3º/2 do CPC” aconselham que se faça “intervir na execução o terceiro adquirente do bem penhorado para aí o executar no seu património. É que, com a procedência da ação de impugnação pauliana, o adquirente do bem passou a ser um terceiro na relação jurídica obrigacional, sujeito à sanção executiva e, por isso, com legitimidade para intervir na ação executiva. É que, como se escreveu no Acórdão da Relação do Porto de 23/04/01, só a posição formal de executado permite a este terceiro salvaguardar os seus interesses na execução. 21. Penhorados que foram os bens da adquirente X..., L.da, esta poderia, quanto muito, e se estivesse de boa-fé – o que, desde início, se contesta - opor-se à extensão da penhora – artigo 784º nº 1 al. a) 2ª parte do CPC. 22. Nestes termos, a decisão que julgou os embargos procedentes afigura-se iníqua e legalmente inadmissível porquanto, e, atentos os factos assentes na sentença dada à execução - mais a mais, a prova das sucessivas alienações e, bem assim, a alegação e prova da má-fé e a confissão do conhecimento de todos os atos praticados pela embargante (cfr. 26º a 36º da petição de embargos, bem assim, o alegado em A a C supra e artigos 8º a 12º da contestação de embargos) - deveria o Tribunal ter levado tal matéria a factos assentes, julgada provada a má-fé da embargante e, consequentemente, declarados os embargos improcedentes. 23. Não existindo fundamento legítimo para os mesmos, deveriam os embargos ter sido liminarmente rejeitados e, antes, determinado o prosseguimento da execução nos bens nomeados à penhora. 24. Atento o supra exposto, decidindo o douto saneador sentença no sentido apontado, violou o disposto nos artigos 610º, 616º, 818º do Código Civil e artigos 55º e 325º do CP.C., pelo que deve ser revogado e substituído por outro que defira o prosseguimento da execução nos bens indicados, tal como requerido pelo exequente. 25. Caso assim não se entenda, então, pelo menos, a matéria relativa à má-fé da embargante (artigos 8º a 12º da contestação de embargos) deveria ter sido levada, necessariamente, a temas de prova para discussão e julgamento na presente ação de embargos, sendo, por estes motivos, a sentença nula por insuficiência da matéria de facto. 26. Verificando-se que da decisão da matéria de facto da sentença de que se recorre não consta pronúncia específica sobre factos alegados e considerados essenciais para a discussão da causa (dsg. a má fé da embargante), 27. E, por outro lado, se considere que do processo não constam produzidos meios probatórios para, de forma cabal, poder ser suprida aquela patologia pela Relação, ocorre a previsão do art. 662º nº2 c) do CPC, devendo ser anulada a decisão proferida na 1ª instância com vista a por esta ser ampliada a matéria de facto, abrangendo os factos alegados nos artigos 8º a 12º da contestação de embargos (art. 712º, nº 4 do C.P.C.).» 3. A Ré contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. II - FUNDAMENTAÇÃO 4. OS FACTOS Foram os seguintes os factos considerados no douto saneador-sentença: «A) O exequente deduziu execução para pagamento de quantia certa contra BB, I..., S.A. e C..., Unipessoal, Limitada, alegando o que consta do requerimento executivo de 23.06.2021, e peticionando o pagamento do seu crédito de € 100.00,00 pela venda dos bens envolvidos no negócio que foi declarado ineficaz em relação ao exequente pela sentença de impugnação pauliana apresentada à execução. B) Para o efeito, o exequente apresentou, como título executivo, a sentença proferida, em 13.07.2020, na ação de impugnação pauliana com o n.º 2623/19.5T8PNF, do juízo central cível de Penafiel-J2, a qual se mostra junta na execução, com o teor que aqui se dá por reproduzido, onde o ora exequente figura como autor e BB, I..., S.A., EE, DD, CC e FF figuram como 1º, 2º, 3º, 4º 5º e 6º réus, respetivamente. C) Da sentença exequenda consta, além, do mais, o seguinte dispositivo: “(…) Nos termos expostos, julga-se a acção procedente, por provada, pelo que se determina a ineficácia do acto de alienação pelo 1º Réu, mediante entrada em espécie no capital social da 2ª Ré, de metade indivisa de um prédio urbano, parcela de terreno destinada a construção, sito no Lugar ..., ..., freguesia ..., concelho de Paços de Ferreira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paços de Ferreira sob o número ... e noventa, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ... e de metade indivisa de um prédio urbano, parcela de terreno destinada a construção, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho de Paços de Ferreira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paços de Ferreira sob o número mil quatrocentos e sessenta e sete, na qual, pela AP. ... de 2018/06/14, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..., autorizando-se a execução respectiva na medida em que tal execução se mostre necessária para assegurar ao Autor o pagamento de 100.000 EUR, conforme decisão proferida nos autos melhor identificados em A).”. D) A ação de impugnação pauliana não foi registada na descrição predial dos imóveis referidos no dispositivo da sentença exequenda. E) Da descrição predial do imóvel descrito na CRPredial de Paços de Ferreira sob o n.º ... constam as seguintes inscrições relevantes: a. Aquisição, por permuta, a favor de C..., Unipessoal, Lda”, pela ap. ..., de 21.01.2021, tendo I..., S.A. como sujeito passivo; b. Penhora de um meio na execução apensa, pela ap. ..., de 06.08.2021. F) Da descrição predial do imóvel descrito na CRPredial de Paços de Ferreira sob o n.º ... constam as seguintes inscrições relevantes: a. Aquisição, por permuta, a favor de C..., Unipessoal, Limitada”, pela ap. ..., de 21.01.2021, tendo I..., S.A. como sujeito passivo; b. Penhora de um meio na execução apensa, pela ap. ..., de 06.08.2021. G) I..., S.A., na qualidade de primeira outorgante, e C..., Unipessoal, Lda, como segunda outorgante, outorgaram a escritura pública de permuta junta como documento 4 do requerimento executivo, datada de 15.01.2021, com o teor que aqui se dá por reproduzido.» 5. APRECIANDO O MÉRITO DO RECURSO O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC). O recurso suscita uma única questão: apurar da (i)legitimidade da Executada/Embargante. 5.1. Da (i)legitimidade da Executada/Embargante 5.1.1. Enquadramento O quadro factual em causa nos autos: o título executivo é uma sentença proferida em 13/07/2020, em ação de impugnação pauliana, que julgou ineficaz um determinado ato de compra e venda de metade indivisa de 2 prédios urbanos. A ação de impugnação pauliana não foi registada na Conservatória de Registo Predial. A aqui Exequente/Embargante não foi parte nessa ação de impugnação pauliana. Posteriormente, em 15/01/2021, a Exequente/Embargante adquiriu à I... (que foi Ré na ação de impugnação pauliana), por permuta, a totalidade dos prédios referidos na ação de impugnação pauliana. São esses prédios que agora se pretende penhorar, considerando a Embargante (atual proprietária) ser parte ilegítima na execução. E, para melhor esclarecimento, uma breve incursão no regime jurídico do instituto da impugnação pauliana. Costuma dizer-se que a impugnação pauliana constitui uma garantia geral e pessoal [2] [3], das obrigações (art.º 610º do CC), já que concede ao credor o “direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição” (art.º 616º nº 1 CC). Porém, a impugnação pauliana não tem como efeito imediato e automático o fazer regressar os bens (alvo de impugnação) à esfera jurídica dos alienantes. Donde, com mais propriedade, lhe caiba a designação de “meio de conservação de garantia patrimonial”, ao invés de garantia em sentido estrito. Daqui decorre que o ato dispositivo impugnado (aqui, uma compra e venda) permanece válido; ele só perde eficácia perante o credor e apenas “na medida do seu crédito” [4]. E tanto assim é que bastará o devedor satisfazer o crédito para que a eficácia da impugnação pauliana deixe de ser operante (manifestação do caráter obrigacional). Utilizando aqui os ensinamentos de Manuel de Andrade, estamos perante uma ineficácia relativa, na medida em que opera apenas perante o credor e só ele pode invoca-la [5]. Daí que se possa dizer que a ação pauliana só ganha efetividade prática na fase de execução; só depois de o impugnante obter o título executivo (a sentença), é que pode ir penhorar os bens que, apesar de já não serem propriedade do devedor (relembre-se que o negócio é válido), a lei permite que continuem vinculados à satisfação do crédito. Ou seja, por força da sentença da impugnação pauliana, e do caso julgado que atinge os “obrigados à restituição”, o credor pode ir executar diretamente ao terceiro adquirente os bens objeto da impugnação, ao abrigo do art.º 610º, nº 1 do art.º 616º e art.º 818º do CC. Porém, se o negócio impugnado é válido, esses adquirentes podem posteriormente vender o bem a um outro terceiro que não foi parte na ação pauliana e, portanto, esse terceiro não está sujeito ao caso julgado firmado na sentença. Neste caso, quid iuris? O credor fica impossibilitado de executar o bem que foi objeto da ação pauliana no património desse outro terceiro? É o que importa decidir. Em termos de ação declarativa, a situação está prevenida no art.º 612º do CC: em primeiro lugar, as transmissões posteriores estão dependentes da verificação dos requisitos da primeira transmissão; as demais ficam sujeitas aos mesmos requisitos da impugnabilidade da primeira alienação, designadamente a má fé quanto a transmissão tiver sido a título oneroso. Ou seja, o credor tem de, por via de ação, suscitar a impugnação de todas as transmissões. «Mas a má fé ou a gratuitidade têm de estar presentes em todos os atos de transmissão ocorridos, não podendo a impugnação pauliana operar per saltum. Não estando presente um destes requisitos numa transmissão, quebra-se a corrente que vai permitindo a extensão do alcance da impugnação pauliana.» [6] Quanto à natureza dos embargos, partilhamos do entendimento de Rui Pinto, que aqui deixamos transcrito: «Processualmente, a defesa do executado não integra o procedimento de execução: tem a natureza e a função que uma petição inicial que impulsiona uma ação declarativa, incidental à execução, fisicamente correndo por apenso. Nela o autor é o executado e o réu o exequente. No final a sentença ditará a procedência ou improcedência do pedido de extinção da execução do autor-executado, parte passiva da execução. Trata-se de uma contra-ação no dizer de Anselmo de Castro e de alguns arestos, dotada de autonomia de instância, mas acessória da ação executiva, porquanto justificada pela sua estrita função de defesa de uma pretensão executiva: sem execução não há oposição à execução. Desta acessoriedade decorre, ainda, tratar-se de uma ação especial, pelo objeto e pelo procedimento. Adiante, (…), veremos, ainda, que é uma ação declarativa constitutiva processual e, acessória e eventualmente, uma ação de simples apreciação da existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda.» [7] Daqui decorre que, tendo sido invocadas exceções na petição de embargos, o Exequente tem direito de resposta e, a respetiva matéria por ele alegada quanto à exceção da ilegitimidade (designadamente o constante dos seus números 10 a 54), tem de ser tida em consideração. Desde que o Tribunal se mova nos limites e fins da ação executiva, qualquer questão substantiva ou adjetiva pode ser suscitada, e conhecida, nos embargos de executado, designadamente a impugnação pauliana, a qual também pode ser suscitada por via de exceção. [8] 5.1.2. Sobre a legitimidade Como regra geral, a legitimidade, enquanto pressuposto processual, «(…), exprime a relação entre a parte no processo e o objeto deste (a pretensão ou pedido) e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o.» [9] Assim, a legitimidade das partes será apurada em função do pedido e da causa de pedir pois só em função desses dois elementos é possível averiguar do interesse direto, da utilidade ou prejuízo resultantes da ação. Quer o interesse direto e a utilidade/prejuízo terão de ser aferidos em função da causa de pedir e pedido formulados pelo Autor, a versão fáctica por ele trazida aos autos. No caso, estamos no âmbito de uns embargos à execução e, no processo executivo, existem regras próprias a assegurar a legitimidade. No que toca às ações executivas, a regra geral sobre legitimidade está consignada no nº 1 do art.º 53º do CPC: a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor. Segundo esta regra, manifestamente que a Embargante não tem legitimidade passiva, pois que não foi parte na ação pauliana, não figura no título e não é devedora da Exequente. Contudo, para além desta, existem outras regras especiais que podem e devem ser chamadas à colação. Ora, de acordo com o art.º 54.º nº 1 do CPC: Tendo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda; no próprio requerimento para a execução o exequente deduz os factos constitutivos da sucessão. Este preceito também não é aqui aplicável; na verdade, pese embora a X..., L.da tenha adquirido o direito de propriedade dos imóveis, aqui na execução não estamos a executar esse direito de propriedade, nem ela sucedeu em qualquer obrigação perante a Exequente. [10] Na ação declarativa, também não foi despoletado o mecanismo da habilitação do adquirente [11] Justifica-se aqui uma breve alusão ao art.º 263º nº 3 do CPC [12], “A sentença produz efeitos em relação ao adquirente, ainda que este não intervenha no processo, exceto no caso de a ação estar sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo da ação”. Ou seja, no caso de uma ação sujeita a registo, um terceiro adquirente fica abrangido pela sentença, mesmo não tendo intervindo no processo, desde que a ação tenha efetivamente sido sujeita a registo. O que bem se compreende face à publicidade do registo. Contrariamente à alegação da Recorrente, o registo da ação de impugnação pauliana é obrigatório, e já o era à data da respetiva interposição e da sentença. Nos termos do art.º 3º nº 1 al. a) do Código de Registo Predial, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto-Lei nº 116/2008, de 04/07, as ações de impugnação pauliana passaram a estar sujeitas a registo a partir do dia 21 de julho de 2008. [13] No caso, a ação pauliana não foi registada. Nessa medida, a Embargante não fica sujeita ao caso julgado formado na ação de impugnação pauliana por força da exceção contemplada na última parte do nº 3 do art.º 263º do CPC. Por fim, há que ter em conta que o título executivo é uma sentença e, «Tratando-se de uma execução baseada em sentença, terá de se ter em conta os fundamentos possíveis de oposição prescritos no art.º 729º do CPC. A al. c) deste preceito permite a oposição com fundamento na falta de pressupostos processuais, adiantando, contudo, “sem prejuízo do seu suprimento”.» [14] A (i)legitimidade é um pressuposto processual passível de suprimento e, como atrás referimos, a impugnação pauliana pode ser suscitada e conhecida por via de exceção, em sede de embargos de executado. [15] Passemos então à abordagem do art.º 55º do CPC: “A execução fundada em sentença condenatória pode ser promovida não só contra o devedor, mas ainda contra as pessoas em relação às quais a sentença tenha força de caso julgado”. Será que a X..., L.da, empresa que não foi parte na ação de impugnação pauliana, pode ser abrangida pela força de caso julgado da sentença aí proferida? Afigura-se-nos que a resposta terá de ser afirmativa. A questão dos terceiros abrangidos pelo caso julgado remete-nos para o âmbito da eficácia subjetiva do caso julgado. Em primeiro lugar, importa referir que o conceito de “terceiro” tido em vista no art.º 581º nº 2 do CPC é o conceito material de terceiro e não de um conceito formal, «é ainda parte o sujeito que não esteve no processo (terceiro processual), mas está na relação jurídica que foi julgada.» [16] «Igualmente há que atender, na definição de identidade das partes, à extensão subjetiva da eficácia da sentença, pois a identidade de sujeitos estende-se, além das partes: aos terceiros juridicamente indiferentes (o credor comum, ou outro titular de direito relativo, perante a sentença que declare que o seu devedor, ou outra contraparte, não é titular de certo direito absoluto, cuja titularidade é de quem com ele litigou (…); ao adquirente do direito litigioso ou do direito já reconhecido ou constituído pela sentença e aos outros substituídos processuais. Todos os casos de extensão a terceiros da eficácia da sentença são equiparados aos da estrita identidade de partes, para o efeito dos arts. 577.º-e e 581.º do CPC.» [17] Se bem que, no caso em concreto, se nos afigura não ser necessário recorrer à equiparação, por não se tratar sequer de pessoas distintas. Pese embora a atribuição de personalidade jurídica às sociedades comerciais, que as torna formalmente pessoas jurídicas distintas e autónomas face à pessoa dos seus sócios, do ponto de vista material nem sempre essa autonomia e distinção se verifica, designadamente no caso de os sócios verem “a sociedade” apenas como um instrumento para servir os seus próprios fins pessoais. Face aos contornos do caso em concreto, parece-se tratar-se aqui de um desses casos. Em nossa opinião a “X..., L.da” não integra pessoa distinta dos seus sócios DD e CC, que foram Réus na ação de impugnação pauliana, tudo se passando como se estes Réus, pessoas singulares, “tivessem tirado um casaco e vestido outro” [18]; da mesma forma que a anterior “C..., Unipessoal, Lda” se não distinguia da pessoa do seu sócio único CC. Subjacentes ao instituto do abuso de direito e ao do “levantamento/desconsideração da personalidade coletiva” estão princípios e valores de ordem pública, o que os torna de conhecimento oficioso. Na contestação aos embargos, a Exequente faz apelo expresso ao abuso de direito e, apesar de não se referir expressamente ao levantamento da pessoa coletiva, nenhum obstáculo existe que o Tribunal o considere, já que a “indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” é da competência do juiz (art.º 5º nº 3 do CPC). Os demais factos constantes dos autos indiciam que os Réus pessoas singulares recorreram à constituição de “pessoa coletiva” com o propósito de prejudicar fraudulentamente o aqui Exequente. Senão, vejamos: Para além dos factos considerados no douto saneador-sentença, importa ter ainda em conta os seguintes elementos factuais, colhidos do requerimento executivo e dos documentos trazidos aos autos por ambas as partes nos embargos: Consultado esse requerimento executivo, dele consta a seguinte alegação: «4º No entanto, a mesma [19] torna-se absolutamente indispensável, porquanto se verificou que a ali ré I..., SA, demandada na qualidade terceira adquirente dos bens objeto da ação pauliana, aqui executada, não obstante conhecedora do teor e alcance da supra identificada sentença, procedeu à permuta dos supra identificados bens (cujos anteriores atos de alienação foram declarados ineficazes) para a aqui segunda executada C..., Unipessoal, Lda (docs. 1 e 2), cuja quota única pertence a CC (5º Réu demandado na ação pauliana de que a presente execução é apensa e filho de BB) e cuja gerência pertence, justamente, ao devedor, ali Réu BB – tudo conforme cópia de publicação no Portal da Justiça (registo comercial) que ora se junta. Doc. 3. 5º A supra referida transmissão operou-se em 15/1/2021, por contrato de permuta (doc. 4 – certidão que ora se junta), encontrando-se registada a constituição da supra identificada C..., Unipessoal, Lda pela AP. ..., ou seja, todos atos celebrados após o proferimento da sentença que serve de título executivo à presente execução, entre partes intervenientes na referida ação e, portanto, em manifesta de má-fé e detrimento do aqui exequente. Cfr. Doc. 3» [20] O assim alegado encontra suporte nos documentos autênticos aí referidos e/ou não impugnados pela Embargante: doc. 1 e 2 (informação predial simplificada referente aos prédios donde constam as sucessivas transmissões); doc. 3 (página do Portal da Justiça, onde se publica a constituição da “C..., Unipessoal, Lda”, logo em outubro de 2020, sendo seu titular único CC e seu gerente BB); doc. 4 (certidão da escritura pública de permuta outorgada em 15/1/2021, e mediante a qual a I..., SA (também Ré na impugnação pauliana) cede os prédios aqui em questão à C..., Unipessoal, Lda e esta, em troca, cede àquela duas frações autónomas que se compromete a construir nos prédios, no prazo de 3 anos). Por outro lado, da sentença exequenda constam ainda como provados os seguintes factos: BB foi casado com EE, tendo-se divorciado em 2018 (facto provado “DD”). A I... foi constituída por eles (BB, EE, DD e CC) e por FF em 2018, tendo o capital social de 100 mil € sido realizado por 2 entradas em espécie, no valor de 97 mil €, sendo 30 mil por BB, e 67 mil por EE, e por entradas em dinheiro, no valor de mil euros cada, por DD, CC e por FF (factos provados “X” e “AA”). Essas entradas em espécie consubstanciaram-se nos bens imóveis aqui em causa e outros (facto provado “CC”). A executada “C..., Unipessoal, Lda” procedeu à alteração da denominação social em 16 de maio de 2021, pela Ap. n.º ..., passando a designar-se “X..., L.da”, constituindo agora uma sociedade por quotas, de que são únicos titulares DD e CC - cf. página do Portal da Justiça junta como doc. nº 1, pela própria Embargante na sua PI de embargos). A sentença de impugnação pauliana foi, entretanto, confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto, por acórdão datado de 09/11/2021 - doc. junto pela Exequente com a contestação aos embargos. Ora, face a esta factualidade é muito plausível vir a concluir-se (provada a factualidade) que a subalienação dos prédios à C..., Unipessoal, Lda integrou uma ação concertada entre os Réus da ação pauliana (I... e pessoas singulares) com o propósito de os retirarem formalmente da sua esfera jurídica e assim prejudicarem fraudulentamente o aqui Exequente. Nessa medida, a situação pode integrar juridicamente um abuso de direito ou de levantamento da personalidade coletiva. E, a operar qualquer um destes institutos, ficamos então apenas (de novo) com os Réus que foram parte na ação de impugnação, medida em que os imóveis podem ser objeto de penhora nesta execução. «Como nos diz Pupo Correia (Direito Comercial, 2003, pp. 541 e 542), a autonomia patrimonial da sociedade em relação aos sócios gera o perigo de manipulação abusiva das regras legais, em detrimento de terceiros. Múltiplas situações podem surgir na prática, envolvendo basicamente a confusão, num primeiro momento, dos patrimónios da sociedade e do sócio e, num segundo momento, a invocação por este da separação patrimonial para frustrar as expetativas dos credores. A desconsideração da personalidade jurídica visa combater essa utilização inadequada da sociedade, enquanto pessoa coletiva com património próprio, para satisfazer desígnios próprios dos sócios, em detrimento dos credores societários. A problemática diz respeito à utilização abusiva da personalidade jurídica das sociedades, mas sobretudo ao abuso da autonomia patrimonial de que elas gozam, isto é, à colheita de vantagens ilícitas com a manipulação da separação do património da sociedade em relação aos sócios.» [21] «I - O princípio da atribuição da personalidade jurídica às sociedades e da separação de patrimónios, ficção jurídica que é, não pode ser encarado, em si, como um valor absoluto e não pode ter a natureza de um manto ou véu de protecção de práticas ilícitas ou abusivas – contrárias à ordem jurídica –, censuráveis e com prejuízo de terceiros.» [22] «VI - Salvo pontual estatuição (artigos 84º, 501º e 270º-F/4 do CSC), o instituto do levantamento da personalidade jurídica colectiva não tem consagração expressa no nosso ordenamento jurídico e foi a sua construção doutrinal que o corporizou em função das teorias do abuso ou da penetração institucional e da aplicação da norma ou do fim da norma. VII - No contexto da primeira, afasta-se a separação entre a sociedade e o sócio sempre que a utilização da pessoa jurídica é desconforme à ordem jurídica, recorrendo-se ao conceito de abuso do direito. No contexto da segunda, os concretos problemas do afastamento da personalidade resolvem-se tomando em conta o sentido e a finalidade das normas no quadro do ordenamento jurídico geral. VIII - A desconsideração da personalidade jurídica, também designada por levantamento da personalidade colectiva das sociedades comerciais, tem, na sua base, o abuso do direito da personalidade colectiva, ou seja, o instituto deve ser usado, se e quando, a coberto do manto da personalidade colectiva, a sociedade ou sócios, dolosamente, utilizarem a autonomia societária para exercerem direitos de forma que violam os fins para que a personalidade colectiva foi atribuída em conformidade com o princípio da especialidade, assim almejando um resultado contrário a uma recta actuação. IX - Deve entender-se por desconsideração o desrespeito pelo princípio da separação entre a pessoa colectiva e os seus membros ou, dito de outro modo, desconsiderar significa derrogar o princípio da separação entre a pessoa colectiva e aqueles que por detrás dela actuam. Existe, na desconsideração, um atingimento de pessoa jurídica diferente da visada.» [23] Nos factos atrás considerados não se faz qualquer alusão à má fé (elemento essencial); porém, o Exequente alegou-a na resposta à petição de embargos, podendo ela vir a ser apurada por presunções judiciais pois, como refere Cura Mariano [24], «Apesar de, numa primeira reflexão, parecer que o adquirente de má fé será necessariamente um subalienante de má fé, assim como o adquirente de boa fé será um subalienante de boa fé, uma vez que o sujeito do conhecimento é o mesmo e as situações de amnésia são raras, este raciocínio pode não corresponder à realidade, sendo sempre necessário demonstrar o estado subjetivo daquele nas duas ocasiões relevantes – quando adquire e quando posteriormente aliena.» (negritos nossos) Na verdade, como resulta da factualidade provada, tendo a sentença de impugnação pauliana sido proferida em 13/07/2020, o aí Réu CC apressou-se a constituir a sociedade unipessoal logo em outubro de 2020, e, apesar de sócio único, nomeando sócio gerente o seu pai BB; e, pouco depois, em 15/01/2021, a I... (também Ré na ação, constituída por elementos da mesma família, sendo a mãe a administradora) vem a permutar os imóveis para a unipessoal C..., Unipessoal, Lda, dando esta em troca bens futuros, ou seja, duas frações autónomas que se propõe construir nos imóveis, no prazo de 3 anos. Ou seja, os presentes embargos de executado reúnem as condições para que a transmissão efetuada pela I... à C..., Unipessoal, Lda (entretanto denominada “X..., L.da”) possa ser apreciada, por eventual desconsideração da personalidade coletiva da C..., Unipessoal, Lda (a apreciar na sentença dos embargos), e de cuja eventual procedência resultará a possibilidade de os imóveis poderem ser diretamente penhorados dado que o levantamento da personalidade jurídica societária conduz à imputação de tais atos aos sócios por eles responsáveis. Nessa medida, e porque o (agora) seu património pode vir a ser atingido pela penhora, a C..., Unipessoal, Lda (entretanto denominada “X..., L.da”) tem todo o interesse em figurar na execução, razão pela qual se lhe deve ser reconhecida legitimidade. 6. SUMARIANDO (art.º 663º nº 7 do CPC) ……………………………… ……………………………… ……………………………… III. DECISÃO 7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, considerando-se a executada “C..., Unipessoal, Lda” (entretanto denominada “X..., L.da”) parte legítima. Custas do recurso a cargo da Executada, face ao vencimento. Porto, 19/05/2022 Isabel Silva João Venade Paulo Duarte Teixeira _______________ [1] A qual, em 16/05/2021, “procedeu à alteração da sua denominação social”, passando a designar-se “X..., L.da”, segundo a própria informou na PI de embargos. [2] Pelo que a ação de impugnação pauliana tem natureza obrigacional, e não real. [3] Segundo Vaz Serra, “Responsabilidade Patrimonial”, estudo publicado no Boletim do Ministério da Justiça (BMJ), nº 75, pág. 287: «A acção pauliana é dada aos credores para obterem, contra um terceiro, que procedeu de má-fé ou se locupletou, a eliminação do prejuízo que sofreram com o acto impugnado. Daqui resulta o seu carácter pessoal ou obrigacional. O autor na acção exerce o crédito de eliminação daquele prejuízo... O efeito da acção deve ser uma simples consequência da sua razão de ser e, por isso, parece dever limitar-se à eliminação do prejuízo sofrido pelo credor, deixando o acto, quanto ao resto, tal como foi feito». Cf., ainda, Pedro Romano Martinez e Pedro Fuseta da Ponte, “Garantias de Cumprimento”, Almedina, 5ª edição, pág. 38-39. [4] Assim, Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Coimbra Editora, vol. I, em anotação 1 ao artigo 616º. No mesmo sentido, acórdão do STJ, de 25/06/2009 (processo nº 184/09.2YFLSB), disponível em www.dgsi.pt, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem: «1 - A impugnação pauliana - arts. 610º e segs. do Código Civil - consiste no pedido de declaração de ineficácia do acto impugnado pelo credor prejudicado, respondendo os bens transmitidos pelas dívidas do alienante, agora no património do adquirente, na medida do interesse do credor, caso tal pedido proceda. 2 – Desta procedência não resulta a extinção do direito real adquirido pelo terceiro, nem tão pouco a sua modificação, sendo que esta não afecta a validade dos actos de alienação realizados pelo devedor; apenas confere ao credor impugnante, no plano obrigacional e com fundamento na má-fé, tratando-se de negócios onerosos - como é o caso - o direito de obter daquele, e à custa dos bens que adquiriu, a quantia necessária à satisfação do seu crédito.» [5] Manuel Domingues de Andrade, “Teoria Geral da Relação Jurídica”, vol. II, pág. 411-412. [6] Cura Mariano, “Impugnação Pauliana”, Almedina, 3ª edição revista e aumentada, pág. 203. [7] Rui Pinto, “A Ação Executiva”, AAFDL Editora, 2020, reimpressão, pág. 366-367. No mesmo sentido, acórdão do STJ de 12/11/2009 (processo nº 3910/05.5TVLSB-A.L1.S1). [8] Cf. acórdãos do STJ, de 29/11/2004 (processo nº 0455947) e de 06/10/2005 (processo nº 0534229). [9] Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, "Código de Processo Civil Anotado", vol. 1º, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 51. [10] Relembre-se o que atrás se referiu sobre a especificidade da ação de impugnação pauliana: ela não se destina a invalidar o negócio de transmissão, fazendo retornar o direito ao transmitente (restauração do património do devedor), mas apenas à reconstituição da garantia patrimonial do crédito do impugnante, fazendo com que este possa ir diretamente penhorar o bem objeto do negócio declarado ineficaz ao património do adquirente. [11] Nem o poderia ter sido, dado que quer a sua constituição, quer a transmissão, não haviam ainda ocorrido à data da sentença de impugnação pauliana. [12] Necessária, em virtude de a Recorrente continuar a laborar em erro quanto ao registo da ação de impugnação pauliana. [13] Cf. art. 36º nº 1 desse Decreto-Lei. [14] Acórdão do STJ, de 12/11/2009 (processo nº 3910/05.5TVLSB-A.L1.S1). [15] Acórdão do STJ, de 29/11/2004 (processo nº 0455947). [16] Rui Pinto, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, revista Julgar online, novembro de 2018, pág. 29. No mesmo sentido, Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, obra citada, vol. 2º, 3ª edição, pág. 592. [17] Lebre de Freitas, “Um Polvo Chamado Autoridade do Caso Julgado”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 79, vol. III/IV, julho-dezembro 2019, pág. 694-695. [18] Utilizando a expressão feliz usada pelo Tribunal dos Estados Unidos no caso “First National Bank of Chicago v. Trebein Company”, 1898, 59 Oh. St. 316. [19] Referindo-se à execução. [20] Consigna-se que estes 2 factos alegados pela Exequente no requerimento executivo são também transcritos pela ora Embargante na sua petição de embargos como suporte para invocar a sua ilegitimidade. [21] Citação inserida na fundamentação do acórdão do STJ, de 23/02/2021 (processo nº 1014/14.9TVLSB.L1.S1). [22] Acórdão do STJ, de 07/11/2017 (processo nº 919/15.4T8PNF.P1.S1). [23] Acórdão do STJ, de 09/05/2019 (processo nº 1669/14.4TBSTS.P1.S2). [24] Obra citada, pág. 202. |