Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2201/19.9T8MAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA TENREIRO
Descritores: COMUNICAÇÃO SOCIAL
OFENSA À HONRA E CONSIDERAÇÃO
LIBERDADE DE INFORMAÇÃO
Nº do Documento: RP202004282201/19.9T9MAI.P1
Data do Acordão: 04/28/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O desempenho da actividade informativa, pelos meios de comunicação social, assegura uma função social de escrutínio dos poderes públicos e contribui para garantir o pluralismo e transparência inerentes ao Estado democrático, dando a conhecer à opinião pública factos susceptíveis de interesse relevante.
II - O TEDH, seguido pelo TJUE, tem vindo a sublinhar que a liberdade de expressão/informação, que denominou de cão de guarda público (public watchdog), aplica-se não somente a informações ou às ideias que são recebidas favoravelmente ou consideradas inofensivas ou indiferentes mas também àquelas que ofendem, chocam ou perturbam.
III - O intérprete nacional deve observar, na aplicação da lei, o consenso europeu democrático designadamente na matéria de conflito entre o direito à honra, bom nome e reputação e o direito de informar, sem restrições consideradas desnecessárias.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2201/19.9T8MAI.P1
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Relatora: Anabela Tenreiro
Adjunta : Lina Castro Baptista
Adjunta : Alexandra Pelayo
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I - RELATÓRIO
B… e “C…, S.A.” intentaram a presente acção declarativa condenatória, com processo comum, contra “D…, S.A.”, E… e F…, pedindo que sejam condenados a pagar, solidariamente, a cada um dos Autores a quantia de 7.500€ e juros de mora, sobre essa quantia, à taxa legal em vigor, contados desde a citação, alegando terem sofrido danos com a publicação de uma notícia que relatava a exploração dos trabalhadores dos barcos de turismo no rio C….
Os Réus contestaram, defendendo que se limitaram a exercer o direito de informar, com obediência às regras profissionais.
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Proferiu-se saneador-sentença que julgou totalmente improcedente a acção.
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Inconformados com a sentença, os Autores interpuseram recurso, terminando com as seguintes
Conclusões
I - Por saneador-sentença, o tribunal a quo absolveu os demandados dos pedidos com dois juízos conclusivos, entremeados por quatro curtos parágrafos, culminando na inexistência de ilicitude, enjeitando a natureza ignominiosa das notícias por aqueles criadas, aprovadas e publicadas, as quais considerou não adequadas a ofender o bom nome, a honra, a reputação ou o crédito “de ninguém” - cfr. nono parágrafo da pág. 5 da decisão, in fine.
II - Do n.º 1 do art. 205.º da Constituição da República Portuguesa e do n.º 3 do art. 607.º do Cód. de Proc. Civil resulta que o juiz está obrigado a fundamentar as suas decisões, discriminando os factos que considera provados e indicando, interpretando e aplicando as normas jurídicas pertinentes. Não obstante, no saneador-sentença, o julgador limitou-se a concluir que as imputações aduzidas nas notícias não são ofensivas do bom nome, crédito e reputação dos autores, sem qualquer suporte de facto ou de direito. Ao não permitir saber quais os factos e as normas de direito que sustentaram tal entendimento, a decisão recorrida está ferida de nulidade, ao abrigo da al. b) do n.º 1 do art. 615.º do Cód. de Proc. Civil.
III - No terceiro parágrafo das notícias, os demandados começam por referir a existência de sessenta e um operadores, passam a nomear apenas dez e daí destacam um, “a líder C…”. Há “a líder” C… e depois há as “outras”. Mais à frente, no nono parágrafo, sobre o contrato colectivo de trabalho, a situação repete-se: há “muitas empresas” que não aplicam. E depois, há “a C…”. Poderá argumentar-se não ser, a autora, a única atingida pelas notícias, mas que é a principal, a especificamente visada no universo de sessenta e um operadores, ninguém contestará.
IV. O tribunal a quo cingiu a sua apreciação à esfera jurídica da autora, olvidando os direitos do autor B…, o que se mostrou capital para a imediata decisão do litígio - cfr. oitavo parágrafo da pág. 5 da decisão. No terceiro parágrafo das notícias, onde expressamente se elencam as firmas de (só) dez dos sessenta e um operadores, apesar da existência de dezenas, quiçá centenas de outros empresários, administradores e gestores do sector, somente o nome de um foi mencionado, o “empresário B…”. Tal conduz à óbvia constatação de que também o autor foi especificamente visado nas notícias criadas, aprovadas e publicadas pelos demandados.
V. Atento o cenário global traçado nas notícias e o significado das imputações aí feitas pelos demandados, de que os autores exercem medo, escravatura, escravatura laboral, exploração, forjam documentos e alimentam trabalhadores com restos, estas são adequadas a lesar o bom nome, a reputação, o crédito e a honra daqueles, porquanto criam, no leitor médio, a imagem de que “a líder C…” e o “empresário B…” são gananciosos, desprezíveis, infames, repugnantes, sem respeito pelo próximo, nem escrúpulos.
VI. A atribuição, a terceiros, da autoria das imputações lesivas, além de imprecisa -no título, no subtítulo e no corpo das notícias lê-se medo, escravatura, precariedade, escravatura laboral, refeições feitas de restos, sem aspas, o que significa serem expressões dos demandados - é insusceptível de eximir os demandados de responsabilidades, porquanto o que releva para efeitos de ilicitude da sua conduta é o facto de terem criado, aprovado e publicado as notícias sem cumprir a obrigação legal de ouvir previamente todas as partes com interesses atendíveis no caso, mormente os autores.
VII. A decisão recorrida violou o disposto nos arts. 205.º/1, 26.º/1 e 37.º/4 da Constituição da República Portuguesa, 607.º/3 e 615.º/1/b) do Cód. de Proc. Civil, 70.º, 483.º/1, 484.º e 496.º/1 do Cód. Civil, 2.º/2/f) e 3.º da Lei da Imprensa, 14.º/1/e) do Estatuto do Jornalista e no ponto 1 do Código Deontológico dos Jornalistas, cuja correcta interpretação impunha o prosseguimento dos autos e a condenação dos demandados no pedido.
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Os Réus apresentaram contra-alegações.
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II - Delimitação do Objecto do Recurso
As principais questões decidendas, delimitadas pelas conclusões do recurso, consistem em saber se a sentença é nula por falta de fundamentação e se a actuação dos Réus, no exercício do direito da liberdade de informar, ofendeu o bom nome e/ou a reputação dos Autores.
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- Da nulidade da sentença
Os Recorrentes defendem que a sentença está ferida de nulidade ao abrigo da al. b) do n.º 1 do art. 615.º do Cód. de Proc. Civil, porquanto não permite saber quais os factos e as normas de direito que sustentaram o entendimento de que a notícia não é ofensiva.
A sentença, após identificar as partes, o objecto do litígio e enunciar as questões que cumpre solucionar, expõe os fundamentos, ou seja, discrimina os factos que considera provados e não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas por lei ou por regras da experiência (cfr. n.ºs 2 a 4 do art. 607.º do C.P.Civil).
Como se sabe, a fundamentação da decisão permite aos destinatários a compreensão do sentido da decisão e a reapreciação da causa, em caso de recurso.[1]
É nula a sentença quando nomeadamente não especifique os fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão - cfr. artigo 615.º, n.º 1, al.b) do C.P.Civil.
Tem sido entendido, de forma reiterada e unânime pela doutrina e jurisprudência, que este vício (falta de fundamentação) só existe no caso de se verificar uma absoluta e total falta de fundamentação, quer ao nível do quadro factual apurado quer no que respeita ao respectivo enquadramento legal.
Assim, a sentença que contenha uma deficiente, incompleta ou não convincente fundamentação[2] não enferma deste vício.
Trata-se, portanto, de um vício de natureza meramente formal (omissão total da discriminação dos factos e/ou das normas jurídicas aplicáveis) e não substancial.
O saneador-sentença, proferido neste processo, discriminou os factos, indicou as normas aplicáveis e justificou a decisão no sentido de que os factos (descritos na notícia) praticados pelos Réus não desrespeitaram o direito invocado pelos Autores, pelo que é manifesto que não se verifica o apontado vício.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
FACTOS PROVADOS
(com aditamento dos factos constantes dos documentos juntos na contestação)
1 - O autor B… é presidente do conselho de administração da autora C…, a qual se dedica, além do mais, a actividades marítimo-turísticas, fluviais de aprazimento, desportivas, recreativas e de promoção turística, desenvolvidas por meio de embarcações no Rio ….
2-A 1ª ré é uma sociedade que tem por objecto, além do mais, a redacção, composição e edição de publicações periódicas, sendo proprietária do jornal “D…”.
3-O segundo réu é jornalista tendo sido, entre Outubro de 2016 e Junho de 2018, director do jornal “D…”.
4-A terceira ré é jornalista exercendo funções no “D…” desde o ano de 2017.
5-O “D…” é uma publicação portuguesa, periódica e informativa, que compreende duas edições, uma impressa em papel, de tiragem matutina e diária, e outra on-line, acessível através do sítio www.D....pt, permanentemente actualizável.
6-Na edição de papel do “D…” de 8/9/2017 foi publicada a notícia, junta à petição como documento nº 1, cujo teor se dá por reproduzido.
6.1. Consta, além do mais, da notícia em causa: “A estas embarcações, explicou ao D… G…, da Federação dos Sindicatos de Agricultura, Alimentação, Bebidas, Hotelaria e Turismo de Portugal (FESAHT), pertencente à CGTP, “aplica-se o Contrato Colectivo de Trabalho da hotelaria e alojamento”. Ou, pelo menos, assim deveria acontecer: “Muitas empresas não estão a aplicar, incluindo a C… que assinou um Acordo Colectivo de Trabalho com outras organizações”. Por isso, justifica “tem disso difícil organizar estes trabalhadores”. Diagnóstico anotado: “Há muita precariedade, quase 100%.”.
7-Na mesma data, na edição on-line do “D…”, foi publicada, às 7h57 e posteriormente actualizada às 13h02, a notícia junta à petição inicial como documento nº 2 que se dá por reproduzida.
8-O título das notícias é “Denúncia de “medo” e “escravatura” nos barcos do C… sai à rua”.
9-O subtítulo na edição de papel é: “Medo, precariedade, escravatura laboral. O que se esconde por detrás dos negócios de milhões dos barcos do C…? Plataforma Laboral e Popular organiza uma manifestação amanhã”.
10-Na edição on-line o subtítulo é: “medo, precariedade, escravatura laboral. O que se esconde por detrás dos negócios de milhões dos barcos do C…? Plataforma Laboral e Popular organiza uma manifestação este sábado nos cais de … e …”.
11-O primeiro parágrafo da notícia refere o seguinte: “Salários baixos. Contratos maioritariamente temporários, quase sempre de três ou seis meses. Sazonalidade. Jornadas laborais de 60 horas semanais. Contínuas. Folgas em plano B. Dormidas a bordo em espaços exíguos, sem privacidade. Refeições feitas de restos. O cenário é traçado pela Plataforma Laboral e Popular (PLP)-e corroborada por vários trabalhadores e ex-trabalhadores dos barcos turísticos do C…, ainda que sob anonimato. Fala mais alto o medo de represálias e das portas do turismo fechadas para sempre. Amanhã no cais de … (10h) e do … (15h), a plataforma criada em 2016 manifesta-se e tenta uma “organização dos trabalhadores” para combater a “vergonha da precariedade”.
12 -As referências aos autores nas notícias são as seguintes:
“Há vários operadores a actuar nas águas durienses. Além do líder C…, do empresário B…, há outras como a C1…, a C2…, a C3…, a C4…, a C9…, a C5…, a C6… a C7…, a C8… Neste ano devem alcançar um milhão de passageiros, estima a Administração dos portos de Douro e Leixões (APDL), que revela que são 61 os operadores turísticos no rio, com 143 embarcações, 20 delas navios-hotel. “Todos exploradores”, acusa H…”; (…)
“A estas embarcações, explicou ao D… G…, da Federação dos Sindicatos de Agricultura, Alimentação, Bebidas, Hotelaria, e Turismo de Portugal (FESAHT) pertencente à CGTP “aplica-se o Contrato Colectivo de Trabalho da hotelaria e alojamento”. Ou pelo menos, assim deveria acontecer: “Muitas empresas não estão a aplicar, incluindo a C… que assinou um Contrato Colectivo de Trabalho com outras organizações”. Por isso justifica” tem sido difícil organizar estes trabalhadores” Diagnóstico anotado. “Há muita precariedade, quase 100%”.
13-Na edição on-line é dito, ainda, “já esta sexta-feira, o D… contactou as empresas C1… e C…, duas das mais representativas nas travessias do …, mas os responsáveis não estavam disponíveis no momento, estando o D… à espera de respostas a questões colocadas por e-mail. Esta manhã, o empresário B… reagiu na sua página pessoal do Facebook, dizendo que o noticiado são “práticas não existentes” e acusando o porta-voz da PLP de “ameaças e calúnias” a vários operadores turísticos do …”.
14-No 5º bimestre de 2017, a edição impressa do “D…” teve uma tiragem de 32.658 exemplares e circulação de 34.665 exemplares.
15-No mês de Setembro de 2017 o sítio da internet www.D....pt recebeu 11.050.140 visitas.
16 - A 3ª ré é a autora das notícias que por ela foram escritas e assinadas.
17-Em 5 de Agosto de 2011, o deputado I… remeteu ao Ministério da Economia e do Emprego uma série de perguntas onde o assunto era “denúncia de ilegalidade e abusos laborais na empresa C…” e referiam-se, entre outras “ilegalidades/irregularidades”, os “ritmos de trabalho, devido ao número reduzido de trabalhadores”, que obrigavam a “16 a 18 horas por dia, sem as devidas compensações pela prestação deste trabalho extraordinário” e a falta de vistoria aos barcos– cfr. Documento nº 2 junto com a contestação que se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
18-O Autor B… é uma figura pública, capa de vários jornais e revistas, noticiado e conhecido publicamente, nacional e internacionalmente-cfr. documento nº 7 junto na contestação, que se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
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IV - DIREITO
Os Autores não se conformaram com a sentença, reiterando, em sede de recurso, que a notícia referente às condições de trabalho, nas embarcações turísticas do …, é adequada a ofender o seu bom nome e reputação.
Explicitação do Quadro Legal aplicável
A honra, reputação e bom nome das pessoas singulares, decorrem do princípio da dignidade humana, e são qualificados como direitos absolutos.
Na definição ampla sugerida por Pedro Pais de Vasconcelos[3] a honra, na vertente pessoal traduz-se no respeito e consideração que cada pessoa tem por si própria e na vertente social, objectiva, traduz-se no respeito e consideração que cada pessoa merece ou de que goza na comunidade a que pertence.
Para além da tutela do direito à honra, bom nome e reputação resultar dos artigos 70.º e 484.º do C.Civil, a sua relevância axiológica, por ser inerente ao reduto essencial da dignidade das pessoas, mereceu consagração na Constituição da República Portuguesa fazendo parte do elenco dos direitos fundamentais (arts. 25.º, n.º 1 e 26.º), na Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 12.º), no Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civil e Políticos[4] (art. 17.º) e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art. 10.º, n.º 2).
O art. 2.º da Constituição da República Portuguesa proclama que Portugal é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e na organização política democráticas, no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência dos poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa. (itálico nosso)
O pluralismo postula um princípio geral de liberdade e todos os corolários que lhe são inerentes-v.g liberdade de pensamento, de expressão, de desenvolvimento da personalidade, de manifestação, de reunião, de religião e culto, de consciência, de criação cultural, de aprender e de ensinar.[5]
A democracia, nas palavras de Alessandra Silveira[6], para além de legitimar o exercício do poder político, permite a convivência do pluralismo-isto é, permite a convivência das opiniões e interesses divergentes.
Ao exercício da actividade informativa, pelos meios de comunicação social, é reconhecida uma função social de escrutínio dos poderes públicos e de contributo fulcral para assegurar o pluralismo e transparência inerentes ao Estado democrático, dando a conhecer à opinião pública factos susceptíveis de interesse relevante.
Por conseguinte, a liberdade de expressão, de informar e de ser informado é um direito enquadrado na jusfundamentalidade, plasmado nos artigos 37.º e 38.º da CRP.
A lei fundamental garante a todos o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações, sendo que, o exercício desses direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura (cfr. art. 37.º, n.º 1 e 2).
Este direito tem, assim, uma dupla vertente: activa, por banda daqueles que exercem uma função informativa e passiva, do lado dos cidadãos, receptores das notícias por aqueles transmitidas.
O exercício deste direito, quer pelos jornalistas, quer pelas pessoas, está impedido de sofrer, por qualquer forma, impedimentos ou limitações consideradas desnecessárias.
Pela sua importância na sociedade, o direito à liberdade de expressão e de informação está ainda contemplado e garantido nos seguintes diplomas: Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 19.º), Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos (art. 19.º n.º2), Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art. 10.º), Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (art. 11.º), Lei da Imprensa n.º 2/99 de 13.01 (arts. 1 e 2.º) e Estatuto do Jornalista-Lei n.º 1/99 de 13.01 (arts. 6.º e 7.º).
Maria Ana Ferraz e Filipe Guerra[7] referem que “a liberdade de imprensa, enquanto meio de veiculação de informações e ideias políticas, é encarada como uma das peças fundamentais do pluralismo democrático.
Desta forma, os limites da crítica aceitável são consideravelmente mais vastos em relação aos políticos do que em relação ao homem comum, porquanto aqueles se colocam sob o escrutínio do público em geral (da opinião pública) e dos jornalistas (da imprensa) em especial, cujas análises e opiniões impõem um elevado grau de tolerância, ainda que emitidas de forma exagerada ou em tons mais hostis, satíricos ou provocatórios. Elevado grau de protecção conferido à liberdade de imprensa quando o seu exercício incide sobre questões de interesse público.”
No mesmo sentido, há várias décadas que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem interpreta o artigo 10.º da CEDH de forma a garantir a efectiva liberdade de expressão e de informação.
Nos termos do citado preceito, qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informação ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras (n.º 1).
Porém, o exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a restrições, legalmente previstas e necessárias, numa sociedade democrática, nomeadamente para proteger a honra ou direitos de terceiros (n.º 2).
A CEDH contempla um acervo de normas, aplicáveis directamente na ordem jurídica interna, por força do disposto no artigo 8.º, n.º 2 da CRP: As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.
Sobre a omissão de referência, no art. 16.º, n.º 2 da CRP, à Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), Jorge Miranda[8] deu nota que o Tribunal Constitucional considera desnecessária a sua invocação nos recursos por a Constituição portuguesa abranger todos os direitos que ali se encontram a consumir. E salienta que o Tribunal Constitucional tem trabalhado com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem para densificar normas constitucionais sobre direitos fundamentais.
Seguindo o entendimento maioritário da doutrina, Maria Luísa Duarte[9] explica que o legislador constitucional optou, neste artigo 8.º, por uma cláusula geral de recepção plena, não carecendo de qualquer acto de aceitação pois produz efeitos jurídicos de forma directa e automática, vinculando, imediatamente, todas as entidades públicas-legislador, tribunais, administrações públicas e também entidades privadas.
Acrescenta, com relevância, que em relação a um litígio concreto, sobre questões materialmente relevantes, o direito aplicável abarca as normas e princípios do direito internacional geral ou comum, o qual, em caso de conflito, deverá prevalecer sobre o direito interno ordinário. (…)
No entanto, considera que as normas constantes de uma convenção internacional, apesar de ocuparem uma posição infraconstitucional, “não inibe a conveniência de uma interpretação das normas constitucionais em conformidade com as convenções internacionais existentes sobre a matéria.”
A vinculação dos tribunais internos à jurisprudência densificadora das normas da CEDH, na medida em que a actividade interpretativa do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem é considerada integrante da via convencional[10], a que se encontram adstritos os Estados aderentes, determina uma interpretação do julgador nacional conforme aos princípios e metodologia do TEDH.
No mesmo sentido, especificamente sobre a liberdade de imprensa, Henrique Gaspar[11] assegura que as decisões internas sobre o exercício da liberdade de expressão e consequências do exercício no plano do ilícito penal ou civil, não podem, hoje, deixar de passar também pelas construções jurisprudenciais do TEDH que integram já um “consenso europeu”.
O consenso europeu, nesta problemática, resulta ainda, de forma inequívoca, da anotação ao artigo 11.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), elaborada sob a responsabilidade do Praesidium da Convenção que redigiu a Carta. Nessa anotação esclarece-se que o artigo 11.º da CDFUE corresponde ao art. 10.º da CEDH, ou seja, tem um sentido e um âmbito iguais ao direito garantido pela CEDH.
Importa notar que, nesta temática dos denominados abusos de liberdade de imprensa, já se regista uma inflexão da jurisprudência portuguesa no sentido de proceder a uma análise e valoração dos litígios e interesses conflituantes à luz do consenso jurisprudencial europeu sobre a liberdade de expressão e de informação.[12]
No que respeita à interpretação do art.º 10.º da CEDH, as decisões proferidas, ao longo dos anos, pelo TEDH manifestam, com fundamento no aludido normativo, uma prevalência do direito à liberdade de expressão, reconhecido alicerce do princípio democrático, admitindo apenas restrições com base na legalidade e em determinadas finalidades necessárias designadamente para proteger a honra e direitos de terceiros (n.º 2).
Estes limites consubstanciam excepções, razão pela qual apenas admitem uma interpretação restritiva[13], devendo a ingerência corresponder a uma necessidade social imperiosa e proporcional ao objectivo legítimo pretendido.
Desenvolvendo essas ideias, na apreciação dos casos concretos, o TEDH tem vindo a sublinhar que a liberdade de expressão/informação, a quem denominou de , aplica-se não somente a informações ou às ideias que são recebidas favoravelmente ou consideradas inofensivas ou indiferentes mas também àquelas que ofendem, chocam ou perturbam[14].
O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), em estrita conformidade com a jurisprudência do TEDH, teve oportunidade de corroborar no Acórdão Connolly, de 6 de Março de 2001[15] que a liberdade dos media compreende a liberdade de transmitir ideias, todo o tipo de declarações, juízos de valor, sentimentos, emoções, atos de vontade, comentários, propaganda, comunicação de factos, sejam eles verdadeiros ou falsos, compreensíveis ou ininteligíveis e indecifráveis, favoráveis, inofensivos e indiferentes ou ofensivos, chocantes, perturbadores e incómodos para um determinado setor da população ou para uma determinada atividade. Trata-se, pois, de um verdadeiro exercício de crítica, sendo que as exigências do pluralismo e da tolerância caracterizadoras de uma “sociedade democrática” impõem, nesta matéria, um âmbito de protecção alargado.
Relevante para ajuizar se foram ultrapassados, ou não, os limites do núcleo essencial deste direito, é saber se a questão merecia o interesse público[16] e/ou se a pessoa visada é uma personalidade pública[17], sendo, nestas hipóteses, os limites de crítica mais latos.
No caso submetido ao TEDH sobre a crueldade da caça às focas[18] esclareceu-se que não se pode concluir que o interesse inquestionável dos membros da tripulação em proteger a sua reputação era suficiente para compensar o interesse público vital em assegurar um debate público informado sobre uma matéria de interesse local e nacional, bem como internacional.(itálico nosso)
O TEDH tem igualmente reiterado que, na avaliação destes casos, o julgador deve proceder a uma distinção entre o relato de factos (em relação aos quais os jornalistas agem de boa fé face à credibilidade das fontes) e de juízos de valor, estes últimos insusceptíveis de prova.[19]
Na interpretação do artigo 10.º, uma outra orientação, com total pertinência para a apreciação do caso sub judice, diz respeito à transmissão de afirmações de terceiros, eventualmente de natureza difamatória.
Nesta matéria, o TEDH tem entendido que os tribunais não devem impor aos jornalistas técnicas de reportagem[20] e que exigir destes um distanciamento sistemático e formal do conteúdo de uma afirmação que possa difamar ou prejudicar terceiros não é conciliável com o papel da imprensa de informação sobre eventos, opiniões e ideias da actualidade.[21]
Conclui, neste aspecto, que os jornalistas não podem ser responsabilizados por afirmações proferidas por outras pessoas.
Tendo presente o acervo legal e orientações jurisprudenciais que devemos observar, cumpre analisar os factos dados como provados para aferir se, eventualmente, o exercício do direito à liberdade de informação ultrapassou os limites consideráveis aceitáveis, prejudicando, gravemente e desnecessariamente, o direito ao bom nome e reputação dos Autores.
Da leitura do primeiro parágrafo da notícia em causa, em suporte de papel e on line, com o título Denúncia de “medo” e “escravatura” nos barcos do … sai à rua”, ressalta que foi transmitido à opinião pública uma situação laboral, vivenciada por trabalhadores das 61 embarcações turísticas do …, relativamente às quais os mesmos não se conformam : salários baixos, precariedade, sazonabilidade, jornadas de 60 horas semanais contínuas, falta de condições de alojamento e alimentação não aceitável.
A razão de ser desta notícia prendeu-se com o anúncio de uma manifestação de protesto, em … e no …, contra as condições laborais daqueles trabalhadores, confirmadas pela Plataforma Laboral e Popular (PLP) e, segundo a notícia, corroboradas por vários trabalhadores e ex-trabalhadores dos barcos turísticos do …, ainda que sob anonimato.
Especificamente sobre a sociedade Autora foi a mesma incluída no elenco das 61 empresas com responsabilidades turísticas, que dispõem de embarcações (143) que navegam no rio …, e o Autor referido como dono daquela sociedade.
G…, da Federação dos Sindicatos de Agricultura, Alimentação, Bebidas, Hotelaria, e Turismo de Portugal (FESAHT) pertencente à CGTP declarou que se aplica ao sector “o Contrato Colectivo de Trabalho da hotelaria e alojamento”, sendo que muitas empresas não a aplicam incluindo a sociedade Autora.
O representante da PLP, H…, declarou que são “todos exploradores”, comentário notoriamente emotivo, atendendo ao contexto de um protesto público sobre os direitos dos trabalhadores.
A cobertura noticiosa de uma manifestação convocada por aquela organização, em consequência de alegados incumprimentos/irregularidades dos direitos dos trabalhadores, num sector relevante da economia portuguesa, constitui, sem dúvida, matéria de interesse local, nacional e até internacional.
O manifesto interesse público decorre ainda da intervenção do deputado I… junto do Ministério da Economia e do Emprego, com base numa “denúncia de ilegalidade e abusos laborais na empresa C…” e referiam-se, entre outras “ilegalidades/irregularidades”, os “ritmos de trabalho, devido ao número reduzido de trabalhadores”, que obrigavam a “16 a 18 horas por dia, sem as devidas compensações pela prestação deste trabalho extraordinário” e a falta de vistoria aos barcos.
O desabafo, em tom exagerado, por parte da pessoa referida na notícia, reflete o estado emocional decorrente das condições de trabalho por ele consideráveis degradantes e inaceitáveis.
Os jornalistas e a empresa de informação nunca poderiam ser responsabilizados por opiniões, comentários ou afirmações, com potencial ofensivo, proferidas por terceiros, como acima tivemos oportunidade de explicar.
Em parte alguma da notícia é feita uma acusação directa à sociedade Autora ou ao Autor, (referido como representante da sociedade A. e personalidade conhecida da opinião pública) sobre a alegada prática dos actos descritos pelos trabalhadores, nem mesmo sobre a falta de aplicação do Contrato Colectivo de Trabalho, pois nada é concretizado sobre este aspecto.
Por conseguinte, concordamos com o raciocínio do Julgador quando concluiu que a conduta dos Réus não é ilícita uma vez que o artigo noticioso não era, só por si, susceptível de afectar o sentimento de honorabilidade e/ou o prestígio dos Autores, sendo as acusações generalistas, ou seja, dirigidas a um sector de actividade turística.
A credibilidade da pessoa identificada na notícia nem podia ser posta em causa pois foi entrevistada na qualidade de representante da organização da manifestação pública de protesto, com apoio nas declarações de trabalhadores anónimos e na intervenção de um deputado que relatou queixas laborais no sector.
O título da notícia, contém, em parte, um juízo de valor (escravatura) assente em base factual resultante das queixas apresentadas pelos trabalhadores (que inclusivamente justificaram a organização de protestos públicos) e, consequentemente, face à jurisprudência do TEDH, acima referenciada, mostra-se abrangido pelo direito à liberdade de informar, com independência e sem inibição ou censura.
A sentença, ao absolver os Réus, julgou em estrita obediência à lei e à jurisprudência do TEDH, não merecendo reparo.
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V - DECISÃO
Pelo exposto, acordam as Juízas que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, confirmam a sentença.
Custas pelos Recorrentes.
Notifique.
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Porto, dia 28 de Abril de 2020
Anabela Tenreiro
Lina Baptista
Alexandra Pelayo
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[1] cfr. Freitas, José Lebre de, A Acção declarativa Comum, 3.ª edição, Coimbra Editora, pág. 332 e Varela, Antunes, ob. cit., pág. 689.
[2] cfr. Reis, Alberto dos, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 140, Varela, Antunes, e outros, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 687.
[3] Direito de Personalidade, pág. 76.
[4] Ratificado por Portugal através da Lei n.º 29/78 de 12.06.
[5] Otero, Paulo, Direito Constitucional, vol. I, Almedina, pág. 59.
[6] Princípios de Direito da União Europeia, 2.ª edição, QJ, pág. 44.
[7] Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia Comentada, anotação ao artigo 11.º, obra coordenada por Alessandra Silveira e Mariana Canotilho, Almedina, 2013.
[8] Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 5.ª edição, Porto Editora, pág. 186, notas 4 e 5.
[9] Direito Internacional Público e Ordem Jurídico Global do Século XXI, Coimbra Editora, 1.ª edição, págs.303-311.
[10] Irineu Cabral Barreto, citado por António Henrique Gaspar, A Influência da CEDH no diálogo interjurisdicional, Revista Julgar n.º 7-2009.
[11] “A Influência da CEDH no diálogo Interjurisdicional”, Revista Julgar, n.º 7, 2009.
[12] A título de exemplo, cfr. Acs. STJ de 10.12.2019 e de 21.10.2014, disponíveis em www.dgsi.pt.
[13] Cfr. Handyside c. Reino Unido, Ac. de 07/12/1976, série A, n.º 24 e Lindon, Otchakousky-Laurens et July c. França, n.º s 21279/02 e 36448/02, CEDH 2007-IV, consultáveis através dos sites hudoc.echr.coe.int e www.gddc.pt..
[14] Bladet Tromso e Stensaas c. Noruega n.º 21980/93, Ac. 20.05.99 (crueldade na caça à foca), CEDH 1999/III, Thorgeirson c. Islândia (brutalidade policial), Ac. de 25.06.92, Série A, n.º 239, consultável em hudoc.echr.coe.int
[15] Proc.C-274/99 P, considerando 39, citado por Maria Ana Ferraz e Filipe Guerra na anotação ao art. 11.º da CDFUE Comentada, coordenada por Alessandra Silveira e Mariana Canotilho, Almedina, pág. 165; no referido acórdão é expressamente citada a jurisprudência do TEDH designadamente o conhecido Ac. Handyside c. Reino Unido, acima mencionado.
[16] Cfr., entre outros, Leempoel & SA ED Ciné REvue C. Bélgica, Ac. de 09/11/2006, n.º 64772/01.
[17] Cfr., entre outros, Axel Springe AG C.Alemanha, Ac. de 07/02/2012, n.º 39954/08 e Minelli C Suíça, Ac. de 04/06/2005, n.º 14991/02.
[18] Bladet Tromso e Stensaas c. Noruega, ac. de 20/05/99.
[19] Lingens c. Austria Ac. de 08.07.86, série A, n.º 103.
[20] Jersil c. Dinamarca, Ac. de 23.09.94-Queixa n.º 15890/8., todos disponíveis em hudoc.echr.coe.int
[21] Lionarakis C. Grécia, Queixa n.º 1131/05, Ac. de 05/07/2007