Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ISABEL SILVA | ||
Descritores: | PRIVAÇÃO DE USO DE BEM DANO INDEMNIZÁVEL SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA | ||
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Nº do Documento: | RP202409129522/22.1T8VNG.P1 | ||
Data do Acordão: | 09/12/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA PARCIAL | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - A mera privação da possibilidade do uso de um bem de que se é proprietário constitui um dano indemnizável. Se alguém tem uma casa deve poder utilizá-la como bem lhe aprouver, seja habitando-a ou arrendando-a. E mesmo que não a habite de forma contínua. II - O maior ou menor grau dessa privação é que já necessita de concretização factual (por exemplo, frequência e tipo de utilização) para se poder aquilatar de um maior ou menor montante indemnizatório. III - A possibilidade de se impor a sanção pecuniária compulsória prevista no nº 1 do art.º 829º-A do CC só existe relativamente a obrigações de prestação de facto infungíveis. IV - Extrai-se do nº 2 do art.º 767º CC que: i. a infungibilidade pode assumir dupla modalidade: a infungibilidade natural e a infungibilidade convencional.; ii. a infungibilidade deve ser perspetivada em concreto, ou seja, em função do interesse do credor e do seu eventual prejuízo com a substituição do devedor. V- O art.º 1436º nº 1 al. g) do CC não impõe ao Condomínio a exclusividade para, pessoalmente, realizar as obras necessárias aos espaços comuns, nem aí se mostra contemplada qualquer infungibilidade legal da respetiva obrigação. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Apelação nº 9522/22.1T8VNG.P1 ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO I – Resenha do processado 1. AA instaurou ação contra Condomínio ... e contra BB, pedindo a sua condenação: a) Ser a 1.ª Ré condenada à realização de obras de reparação das partes comuns do edifício que são responsáveis pelas infiltrações de água e humidade na fração da Autora; b) Ser a 1.ª Ré condenada à reparação integral dos danos existentes na fração da Autora, designadamente paredes e tectos, em todas as divisões afetadas ou que venham a ser afetadas na consequência das obras acima descritas; c) Ser a 1.ª Ré condenada no pagamento de 170,00€ (cento e setenta euros) por cada mês em que a Autora esteve privada do uso pleno da sua fração, isto é, desde maio de 2018, até à data de conclusão das referidas obras. d) Ser a 1.ª Ré condenada no pagamento da quantia de 133,65€ (cento e trinta e três euros e sessenta e cinco cêntimos), a título das despesas da Autora com as vistorias da A... e CTT; e) Serem ambas as Rés condenadas no pagamento da quantia de 5000,00€ (cinco mil), a título de danos não patrimoniais. f) Ser a 1.ª Ré condenada ao pagamento de sanção pecuniária compulsória no valor diário de 50,00€ (cinquenta euros) por cada dia de atraso na realização das obras. g) Ser a 2.ª Ré exonerada judicialmente das suas funções. Para o efeito alegou que, sendo dona duma fração integrada naquele Condomínio, começou a sofrer infiltrações decorrentes da deterioração da impermeabilização dos terraços da face superior de uma varanda e da fissuração da fachada do edifício. Apesar de interpelado o Autor para a realização das obras necessárias, nada foi feito. Posteriormente, a Autora apresentou desistência do pedido formulado sob a alínea g) da petição inicial (exoneração do segundo Réu das funções de administrador), bem como a desistência da instância quanto ao Réu BB, o que foi homologado. Mais tarde, a Autora apresentou articulado superveniente invocando a existência de danos ocorridos após a propositura da ação e peticionando a condenação dos Réus no pagamento da quantia de €3.007,65, a título de despesas suportadas, bem como da quantia de €2.000,00, a título de danos não patrimoniais. Em contestação, os Réus alegaram que os condóminos, reunidos em assembleia que se realizou em 29 de novembro de 2021, não aprovaram o orçamento apresentado pela sua então administradora. Mais alegou o primeiro Réu que requereu a prorrogação do prazo para a realização das obras por não conseguir encontrar empreiteiros. Por fim, invocou a exceção de não cumprimento e o abuso de direito, resultantes do facto de a Autora manter em dívida quotas de condomínio desde janeiro de 2017 e junho de 2021, num total de €2.032,83, valor esse necessário para a realização das obras. Fixado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, posto o que se proferiu sentença que decidiu: a) Condenar o Réu na realização das obras de reparação das partes comuns do edifício que são responsáveis pelas infiltrações de água e humidade na fração autónoma de que é proprietária a Autora; b) Condenar o Réu na reparação integral dos danos existentes na fração da Autora, paredes e tetos, em todas as divisões afetadas ou que venham a ser afetadas na consequências das obras acima descritas; c) Condenar o Réu no pagamento da quantia de €133,65, a título de despesas suportadas pela Autora com as vistorias da A... e CTT; d) Condenar o Réu no pagamento da quantia de €2.000,00, a título de danos não patrimoniais; e) Absolver, no mais, o Réu do pedido. 2. Para assim decidir, o Tribunal considerou a seguinte matéria de facto: Factos provados 1) A Autora é proprietária da fracção autónoma designada pela letra “G”, correspondente ao primeiro andar direito posterior, com entrada pelo n.º ..., habitação T3, do prédio constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ... e Rua ..., ..., da freguesia ..., descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o número ......; 2) A 7.05.2018, a anterior proprietária da fração em causa procedeu à comunicação detalhada dos diversos danos existentes na fração autónoma, solicitando a marcação de uma assembleia extraordinária para apresentação e aprovação de um orçamento para a reparação urgente; 3) Dado que a administração do condomínio não procedeu ao levantamento da carta, a anterior proprietária viu-se forçada a remeter nova comunicação, datada de 24.08.2018, com denúncia dos defeitos em zona comum; 4) A 5.08.2020, a Autora remeteu à administração do primeiro Réu uma missiva com o seguinte teor: “Na qualidade de inquilina da fração G do prédio sito em Rua ... e na tentativa frustrada de contacto com o proprietário da mesma fração, com o qual disputo uma ação de preferência do mesmo imóvel, venho por este meio reclamar das várias infiltrações que tenho dentro da fração devido ao estado de conservação do terraço na parte superior e fachada do prédio. Quando fiz a reclamação diretamente por telefone à administração, prontamente atenderam e procederam a uma pré-vistoria. No entanto agora já passaram 3 semanas e continuo aguardando vossa intervenção. Desde essa pré verificação que realizaram no dia 15 de julho de 2020, já caiu um pedaço do teto na sala, como podem constatar nas fotografias que anexo, o que demonstra uma rápida deterioração e degradação permanente. Como tal e encontrando-me privada do uso da divisão, e temendo que algo pior possa acontecer, solicito máxima urgência na reparação de todos os danos que as infiltrações estão a causar”; 5) No mesmo dia, isto é, a 5.08.2020, a Autora requereu junto da A..., uma vistoria para verificação da salubridade da habitação; 6) A 23.09.2020, a A... procedeu a uma pré-vistoria ao imóvel da Autora, onde se assinalaram as seguintes anomalias: - Manifestações de manchas de humidade de águas pluviais nos tetos sob os terraços da habitação superior, designadamente dum quarto, da cozinha e da sala, cujas anomalias indiciam a deterioração da camada de impermeabilização dos terraços; - Deterioração/desagregação de parte do reboco do teto da sala, com risco de queda, sendo visível a abobadilha da laje; - Manifestações de manchas de humidade de águas pluviais no paramento interior de um quarto, cujas anomalias indiciam ser resultantes de infiltração através de fissuração existente na fachada; - Destacamento da tinta da parte inferior da varanda da sala da habitação superior, indiciando a deficiente impermeabilização da face superior daquela varanda. 7) A 22.04.2021 foi realizada a vistoria técnica no imóvel por parte da A... e, nessa sequência, por ofício datado de 6.07.2021, foi a Autora notificada de que foi proferida proposta de decisão no sentido de determinar a execução de obras para a correção das anomalias registadas, a iniciar dentro de 45 dias úteis e a completar no prazo máximo de 180 dias úteis; 8) Culminou tal proposta de decisão nos seguintes termos: “Analisadas as patologias assinaladas pelos peritos, conclui-se que as mesmas provocam insegurança e insalubridade no local, afetando significativamente as condições de uso do edifício em causa, para além de prejudicarem a harmonia estética da paisagem urbana envolvente”; 9) A administradora do primeiro Réu entrou em contacto com a Autora, em 17 de setembro de 2021, com vista a marcar uma data para se dirigirem ao imóvel e aferirem os diversos danos e apresentar orçamentos, tendo ficado de comunicar a disponibilidade dos técnicos; 10) A visita ao locado teve lugar no mês de setembro de 2021, onde foi possível apurar os diversos danos existentes no imóvel da Autora; 11) Por notificação datada de 14.10.2021, a A... deu conhecimento à Autora da ordem administrativa transmitida ao primeiro Réu, para realização de obras, com um elenco das diversas anomalias e prazo de 45 dias para o seu início e 180 dias para a sua conclusão; 12) A 19.11.2021 a Autora voltou a interpelar a administradora do primeiro Réu sobre a necessidade urgente de iniciar a realização das obras, tudo conforme documento 10 que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido. 13) As referidas obras nunca tiveram lugar; 14) Por falta da realização das obras, os danos existentes na sala foram-se agravando; 15) A Autora está impossibilitada de gozar e fruir da sala da sua habitação; 16) Enquanto arrendatária, a Autora pagava a quantia de €510,00 mensais a título de renda; 17) A Autora suportou a quantia de €133,65, a título das despesas com as vistorias da A... e CTT (, tudo conforme documento 5; 18) A administração do primeiro Réu conseguiu arranjar um orçamento para realização das obras no exterior e nas frações afetadas nos termos que constam do documento n.º 1 anexo à contestação; 19) No dia 22 de novembro de 2021, realizou-se a assembleia de condóminos tendo como ponto 1 da ordem de trabalhos a apresentação, análise e discussão do orçamento a que se alude no facto anterior, sobre o qual foi deliberado o seguinte “Devido a uma queixa apresentada na A..., que resultou no Processo de Contraordenação n.º ..., foi necessário a realização de uma vistoria e posterior orçamentação das obras a ser realizadas, Depois de apresentado o orçamento único, apenso à ata e mais bem identificado Orçamento ..., em virtude das necessidades apontadas pelo Relatório de Vistoria 0009/21, também ele anexado à ata, foi dado início à discussão do orçamento. (…) Concluído o debate, o Orçamento apresentado foi (…) rejeitado; 20) Quando notificada da decisão da A... no sentido de serem realizadas as obras, a administração do primeiro Réu pediu a prorrogação do prazo; 21) Corre termos no Julgado de Paz de Vila Nova de Gaia a ação nº 333/2022-JP, proposta pelo primeiro Réu contra a Autora e B..., Lda em 29.09.2022, na qual peticiona a condenação das Rés no pagamento da quantia de €2.651,28, a título de contribuições para pagamento das despesas e serviços necessários à conservação e fruição das partes comuns, desde fevereiro de 2017 a junho de 2021; 22) Anteriormente havia corrido termos uma ação executiva contra a aqui Autora, a qual veio a ser declarada extinta quanto aos valores identificados no facto anterior, no âmbito dos embargos de executado movidos por esta, com fundamento na falta de título executivo; 23) Para além da habitação da Autora, outras do mesmo edifício sofrem de infiltrações; 24) Apesar de convocada para todas as assembleias de condóminos, a Autora nunca compareceu; 25) No dia 29 de março de 2023, a Autora recorreu aos Bombeiros Sapadores ...; 26) No relatório da ocorrência elaborado pelos Bombeiros Sapadores consta o seguinte: Apartamento habitado ocasionalmente. Os moradores tinham chegado do estrangeiro e encontraram a sua casa com infiltrações, principalmente na sala. O teto da sala tinha tinta descaída, falta de revestimento (gesso) e até um buraco. Como tem um terraço por cima da sala, pensamos que a infiltração virá daí”; 27) A Autora tem um filho, nascido em ../../2023; 28) A Autora permaneceu em hotéis nos seguintes períodos temporais: a) 27 de março a 3 de abril de 2023 no Hotel ..., tendo sido suportado um custo de €894,00 referente à estadia e €52,50, referente ao parqueamento de um veículo automóvel; b) 3 de abril de 2023 a 7 de abril de 2023, no Hotel 1..., tendo sido suportado um custo de €538,25, referente à estadia; c) 10 de abril a 14 de abril de 2023, no Hotel 1..., tendo sido suportado um custo de €530,25 referente à estadia; 29) No período compreendido entre os dias 22 e 28 de junho de 2023 a Autora permaneceu hospedada no Hotel 2..., tendo a Autora suportado um custo de €963,60; 30) A Autora sente desgosto ao ver o estado em que se encontra a sua habitação, nomeadamente por apresentar a sala um buraco no teto e de tal divisão não poder usufruir; 31) A demora na execução das obras provoca na Autora inquietação, angústia e desgaste psicológico; 32) A Autora tem necessidade de proceder à limpeza da sala quando há quedas de estuque do teto, no que despende tempo e causa desgaste físico; 33) O apartamento da propriedade da Autora encontra-se habitado “ocasionalmente” porquanto a Autora reside no estrangeiro, apenas se deslocando esporadicamente a Portugal. Factos não provados a) Se as obras na fração da Autora tivessem sido realizadas entre 2018 e 2020, os custos seriam bastante mais diminutos em relação aos custos que a obra comporta aos dias de hoje, porquanto b) Durante o período de pandemia, altura em que a Autora e a sua família se viram forçados a permanecer na habitação, em teletrabalho e telescola, mesmo nas condições descritas de total insalubridade; c) A administração do Condomínio contactou empreiteiros no sentido de apresentarem orçamentos, tarefa que se veio a revelar dificílima nos dias que correm em função da falta de mão de obra e do exponencial aumento dos materiais; d) O pedido de prorrogação de prazo junto da A... deveu-se ao facto de não conseguir a administração do Condomínio encontrar empreiteiros que apresentassem orçamentos e quisessem realizar as obras; e) A principal razão porque os condóminos não aprovam orçamentos para obras prende-se com o facto de não querem pagar uma quota extra; f) O valor cujo pagamento é peticionado no âmbito do processo que corre termos junto do Julgado de Paz de Vila Nova de Gaia foi liquidado pela anterior proprietária; g) No dia 29 de março de 2023 o apartamento estava inundado; h) No dia 29 de março de 2023, o apartamento apresentava piores condições de salubridade do que aquelas que anteriormente se verificavam; i) Por causa do agravamento das más condições do apartamento, a Autora viu-se forçada a sair de casa, juntamente com o seu filho; j) Em virtude de não ter a Autora familiares que lhe conseguissem ceder casa para residir temporariamente teve a mesma que pernoitar em hotéis porque só assim conseguia assegurar as condições dignas de habitação ao seu filho menor, que se encontrava a estudar nessa altura; k) No período compreendido entre os dias 22 e 28 de junho de 2023, a Autora teve que ficar hospedada com o seu filho num hotel em virtude das más condições que a fração autónoma apresentava; l) Em produtos adquiridos para proceder à limpeza profunda que na sua habitação teve que realizar, despendeu a Autora a quantia de €56,05; m) Em face dos danos apresentados na fração, a Autora ficou impossibilitada de usufruir, juntamente com a sua família, da sua habitação e viu-se impedida de a habitar; n) O facto de não saber quando é que as obras serão executadas, obrigou a Autora a organizar a sua vida em função das circunstâncias atuais do imóvel; o) Por causa das infiltrações, a Autora viu-se obrigada a sair temporariamente da sua habitação; p) Os meses de março e abril de 2023 foram particularmente secos, praticamente com ausência de precipitação; 3. Inconformada com tal decisão, dela apelou a Autora, formulando as seguintes conclusões: A. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos autos supra e à margem referenciados, por entender a AA. que o Tribunal a quo deveria ter condenado o RR. No pagamento da quantia de €170,00 por cada mês em que esta esteve privada do uso pleno da sua fração, isto é, desde maio de 2018, até à data de conclusão das referidas obras. B. Assim como no pagamento de sanção pecuniária compulsória no valor diário de €50,00 por cada dia de atraso na realização das obras, conforme peticionado pela AA. C. Porquanto, conforme consta dos presentes autos e dos factos dados como provados na douta sentença, é por demais evidente o estado de degradação em que a fração da AA. se encontra, sendo que os danos remontam a 2015. D. Pese embora as inúmeras interpelações da AA. com vista a obter, por parte do RR., as obras que lhe incumbiam, i.e., primeiramente as obras de reparação das partes comuns do edifício que são responsáveis pelas infiltrações de água e humidade na fração autónoma de que é proprietária e, posteriormente, a reparação integral dos danos existentes no interior da fração, nomeadamente paredes e tetos, em todas as divisões afetadas, E. O certo é que o RR. se descartou de realizar as referidas obras, o que originou uma degradação contínua da fração da AA., em especial da divisão da sala. F. O que levou o Tribunal a quo a considerar, no facto 15.º dado como provado, que “A Autora está impossibilitada de gozar e fruir da sala da sua habitação”. G. Contudo, pese embora o correto entendimento do douto Tribunal ao considerar que a AA. se encontra impossibilitada de gozar e usufruir da sua sala, o certo é que não considerou que a assistia razão à AA. quanto à existência de um dano de privação que justifique a atribuição indemnizatória pretendida. H. Tal decisão derivou do facto de se ter considerado que a AA. “a Autora apenas ocasionalmente utiliza a fração, já que reside no estrangeiro e aí se desloca ocasionalmente”. I. Salvo o devido respeito, não pode a AA. aceitar a conclusão extrapolada pelo Tribunal a quo, através da qual sustenta que a AA. reside no estrangeiro e, por via disso, apenas faz uso da fração ocasionalmente. J. Não é verdade que a AA. se encontre a residir no estrangeiro, até porque desde 2012 que a AA. arrendou a referida fração, tendo posteriormente adquirido a propriedade da mesma, o que não seria plausível para um cidadão comum que estivesse, de facto, a residir no estrangeiro, K. Na medida em que estaria a suportar um encargo mensal avultado (510.00 Euros, conforme o facto 16.º) com um imóvel que, no entender do douto Tribunal, apenas utiliza ocasionalmente. L. Não obstante, e mesmo que se venha a entender que a AA. residia, de facto, no estrangeiro, o certo é que ficou provado que a AA. se encontrou em Portugal por inúmeras vezes e, de todas essas vezes, se viu impossibilitada de usufruir do imóvel por conta das condições em que o mesmo se encontrava. M. Assim, fazendo jus ao entendimento do Tribunal da Relação do Porto, de 04/05/2022, Proc. 3156/15.4T8GDM.P1, Relator Fernanda Almeida, salienta-se que “a ilícita privação do uso de uma casa configura em si mesma um prejuízo resultante da impossibilidade de usar tal bem, sendo um dano autónomo”, N. Ao que se acrescenta “este dano é indemnizável ainda que não se tenha provado a utilidade ou vantagem concreta que o proprietário teria retirado do bem durante o período de privação”. O. E pese embora existam diversas correntes jurisprudenciais que versam sobre o dano de privação do uso, a verdade é que até as teses mais conservadores permitem acolher o entendimento da AA., porquanto afirmam que a existência do dano e a prova da repercussão negativa do mesmo são suficientes para constituir o RR. na obrigação de indemnizar. P. Em igual sentido, também o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 28/01/2021, Proc. 14232/17.9T8LSB.L1.S1, Relator Rosa Tching, afirmou que “Competindo ao lesado provar o dano da privação do uso, não é suficiente, para tanto, a prova da privação da coisa, pura e simples, mas também não é de exigir a prova efetiva do dano concreto, bastando, antes, que o lesado demonstre que pretende usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades (ou alguma delas) que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela atuação ilícita do lesante”. Q. Assim, mesmo que se viesse a entender que a AA. não fazia um uso reiterado do imóvel, sempre seria forçoso concluir que a mesma demonstrou, por inúmeras vezes, a sua intenção de usufruir do imóvel em causa e de retirar todas as vantagens inerentes ao mesmo. R. Contudo, mercê do estado lastimável em que a sala se encontrava, a AA. ficou impossibilitada do uso e fruição das utilidades que normalmente lhe proporcionaria, o que violou, naturalmente, o seu direito de propriedade consagrado no art. 1305.º do Código Civil, S. Constituindo, assim, o RR. na obrigação de indemnizar a AA. pelos prejuízos para ela decorrentes da perda temporária dos poderes de gozo e fruição, que computa em €170,00 mensais, desde maio de 2018 e até à data da conclusão das obras, nos termos do art. 483.º do Código Civil. T. A AA. considera ainda que o Tribunal a quo deveria ter condenado o RR. no pagamento no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, no valor diário de €50,00, por cada dia de atraso na realização das obras, quer no edifício, quer na fração autónoma. U. Como bem se sabe, a sanção pecuniária compulsória visa uma dupla finalidade de moralidade e de eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, enquanto por outro lado se favorece a execução específica das obrigações de prestação de facto infungíveis, incitando o devedor ao cumprimento do julgado. V. Esta sanção encontra-se reservada às prestações de facto não fungíveis e, no entender do Tribunal da Relação do Porto, de 17/10/2005, Proc. 0553099, Relator Pinto Ferreira, “o juízo acerca da (in)fungibilidade tem sempre de ser apreciado em concreto”. X. Assim, pese embora o douto Tribunal a quo tenha considerado que a reparação dos defeitos da fração autónoma da AA. não constitui uma obrigação de facto infungível, a verdade é que tal conceito deveria ter sido perspetivado nas suas várias vertentes: infungibilidade natural, convencional e legal. Z. No conceito de infungibilidade natural, deve sempre ser perspetivado o interesse do credor, conforme assim prevê o art. 767.º e 808.º do Código Civil. AA. E no conceito de infungibilidade legal, temos de atender ao que se encontra plasmado na lei, nomeadamente no art. 1436.º, n.º1, al. g) do Código Civil, que dispõe que é função do administrador de condomínio “Realizar os atos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns”, BB. Sendo que o Tribunal a quo reforçou o presente conceito ao considerar que efetivamente a prestação deveria ser prestada pelo RR., condenando o mesmo na realização das obras e não referindo qualquer expressão que permita entender que essas obras poderiam ser realizadas por intermédio de outrem. CC. Assim, entende a AA. que o conceito de infungibilidade deveria ter sido avaliado de forma casuística e que, no caso dos autos, e como se encontra amplamente explicado e fundamentado na sentença recorrida, estão preenchidos os pressupostos da aplicação da sanção pecuniária compulsória do artigo 829.º-A, n.º 1, do Código Civil. DD. Não o tendo feito, entende a AA. que a decisão em crise viola as disposições conjugadas dos arts. 20.º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa, art. 2.º e 152.º, n.º2 do Código de Processo Civil e arts. 767º, 808.º 879.º-A, do Código Civil. Termos em que se requer a V. Exas. que o presente recurso seja julgado totalmente procedente com todas as legais consequências, com o que se fará inteira e sã JUSTIÇA! 4. O Réu contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. II - FUNDAMENTAÇÃO 5. Apreciando o mérito do recurso O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC). No caso, são as seguintes as questões a decidir: ● Se o Réu deve ser condenado a indemnizar a Autora pelo dano de privação do uso da fração; ● Se o Réu deve ser condenado em sanção pecuniária compulsória pelo atraso na realização das obras; 5.1. Do dano de privação do uso da fração Efetivamente, a Autora havia pedido a condenação do Réu no pagamento de €170,00 por cada mês em que a Autora esteve privada do uso pleno da sua fração, desde maio de 2018 até à data de conclusão das referidas obras. A Mmª Juíza indeferiu esta pretensão por considerar que a Autora apenas ocasionalmente utiliza a fração e «Neste confronto entre uma efetiva limitação no uso de parte da fração autónoma e o seu não uso pela Autora por residir no estrangeiro, apenas aí se deslocando ocasionalmente, afigura-se-nos não estar provado o dano de privação que justificaria a atribuição indemnizatória pretendida, que assim lhe será negada.» Sobre o tema, tem-se feito a distinção entre a privação do uso e a mera privação da possibilidade desse uso. Na verdade, a efetiva privação do uso duma fração autónoma destinada a habitação pode originar danos ou prejuízos de vária índole, designadamente lucros cessantes (por exemplo, se a mesma se destinava a arrendamento e esse se frustrou face às condições da fração) e/ou danos emergentes (por exemplo, as despesas originadas pela necessidade de arrendar outra fração ou ter de recorrer a hotel). No caso em apreço, o pedido da Autora reportou-se à simples privação do uso do veículo – “pagamento da quantia de €170,00 por cada mês em que a Autora esteve privada do uso pleno da sua fração, isto é, desde maio de 2018, até à data de conclusão das referidas obras”. Ou seja, estamos no âmbito de danos patrimoniais autónomos, os transtornos e arrelias de quem não pode retirar as vantagens proporcionadas por uma coisa de sua propriedade. Esta mera privação desse uso, será ela um dano indemnizável? Utilizando a síntese formulada em douto acórdão do STJ, dir-se-á que «II -Sobre tal matéria é possível identificar dois entendimentos distintos na jurisprudência do STJ: para determinado sector jurisprudencial, a privação do uso da coisa constitui, só por si, um dano patrimonial indemnizável, visto que envolve, para o seu proprietário, a perda de uma utilidade, a de usar a coisa quando e como lhe aprouver, utilidade que, considerada em si mesma, tem um valor pecuniário; para outra orientação jurisprudencial, a privação do uso de uma coisa, por parte do seu proprietário, causada por terceiro, só é ressarcível, se aquele provar, como é ónus do lesado, quais os danos em concreto que decorrem da privação (a esta subjaz o argumento da que a privação do uso da coisa não gera, per si, prejuízos, pelo que é necessária a alegação e a prova dos danos provocados).» [[1]] [[2]] [[3]] Entendimento corroborado pelo recentíssimo acórdão do STJ, de 09/07/2024, processo nº 3068/21.2T8STR.E1.S1: «A privação do uso de um imóvel é suscetível de constituir, por si, dano patrimonial, por impedir o proprietário de fruir prédio todas as suas utilidades e como tal, é passível de reparação.» Também nós consideramos ser indemnizável a mera privação da possibilidade do uso de um bem de que se é proprietário. Na verdade, se alguém tem uma casa deve poder utilizá-la como bem lhe aprouver, seja habitando-a ou arrendando-a. E mesmo que não a habite de forma contínua. Existe sempre uma utilidade proporcionada por um bem e é a pessoa que dela se vê privada quando decide usar esse bem. Apesar de viver no estrangeiro, o certo é que a Autora decidiu comprar a fração para as visitas que faz a Portugal, em desprimor de se alojar em hotel ou de arrendar. Tal é significativo da utilidade que para ela é (foi) significativa em ter casa própria para o efeito das deslocações a Portugal. Na verdade, na linha do referido no acórdão do STJ atrás citado, tal decorre da simples constatação de que a privação de um bem envolve para “o seu proprietário, a perda de uma utilidade, a de usar a coisa quando e como lhe aprouver, utilidade que, considerada em si mesma, tem um valor pecuniário”. O maior ou menor grau dessa privação é que já necessitaria de concretização factual (por exemplo, frequência e tipo de utilização) para se poder aquilatar de um maior ou menor montante indemnizatório. Ora, ficou provado que a Autora está impossibilitada de gozar e fruir da sala da sua habitação (facto provado 15). E, para além da sala, que a casa não tem condições de salubridade, apresentando manchas de humidade de águas pluviais nos tetos sob os terraços da habitação superior, designadamente dum quarto, da cozinha e da sala, cujas anomalias indiciam a deterioração da camada de impermeabilização dos terraços; que existe desagregação de parte do reboco do teto da sala, com risco de queda, sendo visível a abobadilha da laje. A entidade oficial A... concluiu pela insegurança e insalubridade no local, afetando significativamente as condições de uso do edifício em causa e ordenou a realização compulsiva das obras (factos provados 6 a 8, 11, 25 e 26). Apesar de ter comprado uma habitação para as suas deslocações a Portugal, a Autora não pode usufruir da fração e tem-se visto compelida a recorrer a hotéis, como resulta dos factos provados 28 a 29. Será caso para dizer que de nada valeu o investimento na compra. Quanto ao lapso de tempo a considerar, a Autora pretende a indemnização desde maio de 2018 e por cada mês em que tem estado privada da fração. E neste ponto surgem as dificuldades. O dano respeita ao proprietário e não sabemos desde quando a Autora se tornou proprietária, referindo os factos provados 2 e 3 que em maio e agosto de 2018 ainda existia uma “anterior proprietária”. Mas sabemos que m 2020, já era a Autora a interpelar o Condomínio e as entidades oficiais (factos provados 4 e 5). Assim, iremos considerar o ano de 2020 como o início da privação do uso da fração, já na qualidade de proprietária. Por outro lado, desconhece-se a frequência das deslocações da Autora a Portugal, sabendo-se apenas que em 2023 (factos provados 28 a 29) aqui permaneceu nos meses de março e abril e alguns dias de junho. É sabido que o prejuízo da privação do uso, pela sua própria natureza, é impossível de ser quantificado com rigor, pelo que se impõe o recurso a critérios de equidade (art.º 496º nº 4 e 566º nº 3 do CC), sem que seja de confundir equidade com a subjetividade do julgador. Na verdade, «(…) - não poderá deixar de ter-se em consideração que tal «juízo de equidade» das instâncias, alicerçado, não na aplicação de um estrito critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito», pelo que tal juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade – muito em particular, se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser adoptados, numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando, em consequência, a segurança na aplicação do direito, decorrente da necessidade adopção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados, e, em última análise, o princípio da igualdade. Deste modo, mais do que discutir e reconstruir a substância do casuístico juízo de equidade que esteve na base da fixação (…) do valor indemnizatório arbitrado, em articulação incindível com a especificidade irrepetível do caso concreto, plasmada nas particularidades singulares da matéria de facto fixada, importa essencialmente verificar, num recurso de revista, se os critérios seguidos e que estão na base de tais valores indemnizatórios são passíveis de ser generalizados para todos os casos análogos – muito em particular, se os valores arbitrados se harmonizam com os critérios ou padrões que, numa jurisprudência actualista, devem sendo seguidos em situações análogas ou equiparáveis – (…)». [4] Neste âmbito, à míngua de dados exatos, e olhando aos factos existentes, iremos considerar que as estadias da Autora em Portugal se cifram numa média de dois meses por ano e se iniciaram em 2020. Quanto ao quantum, consideramos equilibrados os € 170,00 mensais peticionados, o que corresponde a um valor de € 340,00 (2 meses) anuais, desde 2020 e devido até à data de conclusão das obras. 5.2. Sobre a sanção pecuniária compulsória § 1º - Pediu também a Autora a condenação do Réu no pagamento de sanção pecuniária compulsória no valor diário de € 50,00 por cada dia de atraso na realização das obras. E também lhe foi negada tal pretensão com a argumentação que se está perante uma obrigação fungível e que a Autora poderá recorrer à ação executiva para o efeito - «A obrigação que sobre o Réu recai, de realizar obras no edifício e de reparar os danos existentes na fração autónoma, configura uma prestação de facto, que pode ser executada nos termos do art.º 828º C.C. no âmbito do especial ritualismo da ação executiva para tal finalidade (cfr. art.º 868º e ss. d C.P.C.). Pelo que, e face ao exposto, não há lugar à aplicação de qualquer sanção pecuniária compulsória.» De acordo com o art.º 829º-A nº 1 do Código Civil (CC), ”Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infração, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso”. Pretendendo-se com ela incitar ou compelir o devedor a cumprir, a sanção pecuniária compulsória assume uma dupla natureza: a de medida coercitiva patrimonial (sendo uma medida de carácter patrimonial e, por isso podendo ser satisfeita pelas vias executivas normais, o devedor sentir-se-á sob essa ameaça dessa condenação acessória constrangido a cumprir) e a de medida compulsória (forma de pressão sobre o devedor para cumprir a obrigação). Ela distingue-se da indemnização, quer pela sua natureza, quer pela sua função, pelo que nada impede a sua cumulação. [5] «Noutros termos, a sanção pecuniária compulsória é meio de coerção indirecta e psicológica, pronunciado para a futuro, a fim de induzir o devedor a cumprir e de prevenir o ilícito ou a sua repetição (incumprimento).» [6] Depois, como do art.º 829º-A nº 1 se extrai, expressa e claramente, ela só está prevista para as obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo. Já as obrigações de prestação de facto fungíveis são aquelas cuja prestação tanto pode ser feita pelo devedor como por terceiro (art.º 767º nº 1 do CC). Ou seja, em qualquer circunstância, as obrigações fungíveis sempre poderão ser objeto de execução específica, seja pelo próprio devedor, seja por terceiro, como resulta também do nº 1 do art.º 868º do CPC (se alguém estiver obrigado a prestar um facto em prazo certo e não cumprir, o credor pode requerer a prestação por outrem, se o facto for fungível). Concorde-se ou não, essa foi a opção do legislador. [7] Terá sido essa a razão de ser do estabelecimento da sanção pecuniária compulsória, isto é, a constatação de a tutela executiva ser insuficiente nos casos de condenações de qualquer tipo de obrigações. «É esta insuficiência e incapacidade da execução específica — meio importante de protecção os interesses do credor que não é, todavia, como sublinha Pinto Monteiro, «uma panaceia capaz de resolver todos os problemas» — para assegurar sempre a actuação da sentença de condenação no cumprimento, seja qual for o seu objeto, que importa mostrar, para melhor compreendermos a razão de ser e o escopo da consagração entre nós da sanção pecuniária compulsória — estimular o cumprimento voluntário e melhorar a tutela dos interesses do credor, a fim de atenuar o fosso existente entre a lei substantiva, reconhecedora do direito do credor ao cumprimento das obrigações, seja qual for o seu objeto, e a lei adjectiva ou processual, não raras vezes inidónea para garantir a efectividade da tutela de condenação, através da execução sub-rogatória em forma específica.» [8] No caso, a obrigação imposta ao Reu de realizar as obras integra uma prestação de facto fungível, na medida em que, se ele as não realizar, pode sempre a Autora solicitar ao Tribunal, em processo de execução, que as obras sejam efetuadas por um terceiro, sendo todos os encargos/despesas suportados pelo Condomínio. [9] Concluindo, tratando-se aqui de uma obrigação de prestação de facto fungível, estaria excluída da possibilidade de se impor a sanção pecuniária compulsória prevista no nº 1 do art.º 829º-A do CC. § 2º - Reage, porém, a Apelante considerando que não se teve em conta que o juízo acerca da infungibilidade tem sempre de ser apreciado em concreto e que, no caso, estamos perante uma infungibilidade legal, na medida em que o art.º 1436º nº 1 al. g) do CC impõe a realização dos atos conservatórios necessários à conservação e fruição das partes comuns do edifício à entidade administradora do condomínio. Sendo a regra a fungibilidade das obrigações (nº 1 do art.º 767º CC), o nº 2 do preceito refere que o credor não pode, todavia, ser constrangido a receber de terceiro a prestação, quando se tenha acordado expressamente em que esta deve ser feita pelo devedor, ou quando a substituição o prejudique. Daqui resulta que podem existir duas modalidades de infungibilidade: a infungibilidade natural e a infungibilidade convencional. Ou seja, não se contempla que a infungibilidade possa resultar diretamente da lei (infungibilidade legal). O que se extrai claramente do nº 2 do art.º 767º é o critério de que a infungibilidade deve ser perspetivada em concreto, ou seja, em função do interesse do credor e do seu eventual prejuízo com a substituição do devedor. Continuando com Calvão da Silva, «A questão da fungibilidade ou da infungibilidade da prestação resolve-se, assim, no aspecto prático, pela possibilidade ou impossibilidade de ter lugar o cumprimento por terceiro. Se, de acordo com o critério contido no art.º 767.º, o cumprimento por terceiro é admissível, a prestação é fungível; se, ao invés, o cumprimento por terceiro for de excluir, a prestação é infungível». [10] Na verdade, se se aceita que, por exemplo, possa não ser indiferente ao credor que a realização de uma cirurgia só possa ser executada por um determinado médico em concreto — perspetivada a sua competência técnica e a relação de confiança estabelecida (infungibilidade natural), ainda que não tenha sido convencionado expressamente (infungibilidade convencional) —, já o mesmo se não poderá dizer da realização de determinada obra. A satisfação do interesse do credor residirá na realização da obra. E, sendo certo que a pessoa do empreiteiro que a executa possa não ser indiferente, não é menos certo que não se olha propriamente à pessoa do empreiteiro, mas essencialmente à relação de confiança na competência técnica e sendo sempre o credor a proceder à sua escolha, como resulta do art.º 868º a 871º do CPC). O art.º 1436º nº 1 al. g) do CC não impõe ao Condomínio a exclusividade para, pessoalmente, realizar as obras necessárias aos espaços comuns. Ao contrário, resulta expressamente do art.º 1427º do CC que as reparações indispensáveis e urgentes nas partes comuns até podem ser levadas a efeito “por iniciativa de qualquer condómino”. Acresce que o art.º 1436º do CC dispõe sobre as funções do respetivo administrador (pessoa diferente do representado Condomínio, art.º 1437º CC). Aliás, não sendo o Condomínio um empreiteiro, a realização de obras que lhe foi cometida pela sentença sempre obrigaria à escolha de um qualquer empreiteiro. Concluindo, neste segmento não assiste razão à Apelante. 6. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC) ……………………………… ……………………………… ……………………………… III. DECISÃO 7. Pelo que fica exposto, no parcial provimento do recurso, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em revogar a sentença recorrida na parte atinente à indemnização pela privação do uso da fração, condenando-se agora o Réu Condomínio a pagar à Autora, a esse título, a quantia de € 340,00 (trezentos e quarenta euros), equivalente a dois meses por ano, devida desde 2020 (inclusive) e até ao ano de conclusão das obras. Em tudo o mais se mantém o decidido em 1ª instância. Custas do recurso a cargo do Réu e da Autora, na proporção de metade, atento o decaimento. Porto, 12 de setembro de 2024 Isabel Silva João Venade Carlos Portela _______________ [1] Acórdão do STJ, de 28.09.2011 (processo 2511/07.8TACSC.L2.S1, Relator OLIVEIRA MENDES), disponível em www.gde.mj.pt, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem. [2] Esta ressarcibilidade autónoma do dano de privação de uso de veículo tem vindo a ser o entendimento da maioria dos acórdãos do STJ, como se colhe, a título de exemplo, dos seguintes: acórdão de 03.05.2011 (processo 2618/08.06TBOVR.P1, Relator NUNO CAMEIRA), de 21.04.2010 (processo 17/07.4TBCBR.C1.S1, Relator GARCIA CALEJO), de 05.07.2007 (processo 07B1849, Relator SANTOS BERNARDINO), de 08.05.2013 (processo 3036/04.9TBVLG.P1.S1, Relator MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA), de 23.11.2011 (Processo 397-B/1998.L1.S1, Relator ALVES VELHO), de 15.11.2011 (processo 6472/06.2TBSTB.E1.S1) e de 16.03.2011 (processo 3922/07.2TBVCT.G1.S1), ambos do Relator MOREIRA ALVES). E, os mais recentes acórdãos dos Tribunais Superiores mostram que a jurisprudência se tem consolidado neste entendimento: do STJ, acórdão 28/09/2021 (processo 6250/18.6T8GMR.G1.S1, Relator OLIVEIRA ABREU), de 17/06/2021 (processo 879/17.7T8EVR.E1.S1, Relator: JOÃO CURA MARIANO) e de 25/10/2018 (processo 49/16.1T8FND.C1.S1, Relator: FÁTIMA GOMES). [3] Também no mesmo sentido, e em termos doutrinários, Abrantes Geraldes, “Temas da Responsabilidade Civil, Indemnização do Dano de Privação de Uso”, I vol., Almedina, pág. 39; Américo Marcelino, “Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil”, 8ª edição, Livraria Petrony, pág. 430. [4] Acórdão do STJ, de 21.01.2016 (processo 1021/11.3TBABT.E1.S1, Relator: Lopes do Rego). No mesmo sentido, e do mesmo STJ, acórdão de 29/09/2022, processo nº 2511/19.5T8CBR.C1.S1, Relator Ferreira Lopes. [5] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. II, Coimbra Editora, anotação 5ª ao art.º 829º-A, bem como Calvão da Silva, “Cumprimento …”, pág. 420. [6] Calvão da Silva, “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, 4ª edição, Almedina, pág. 397. [7] Sobre as críticas a esta opção legislativa podem ver-se Calvão da Silva, “Cumprimento …”, pág. 452, e Pinto Monteiro, “Cláusula Penal e Indemnização”, Almedina, 1990, pág. 127 e seguintes. [8] Calvão da Silva, “Cumprimento …”, pág. 356-357. [9] Sobre o procedimento, cf. acórdão da Relação de Coimbra, de 15/12/2020, processo nº 485/11.0TBSEI-A.C2. [10] Calvão da Silva, “Cumprimento …”, pág. 367. |