Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3271/19.5T8STS-H.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: INSOLVÊNCIA
AÇÃO DE SEPARAÇÃO OU DE RESTITUIÇÃO DE BENS
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
REJEIÇÃO DO RECURSO
Nº do Documento: RP202401163271/19.5T8STS-H.P1
Data do Acordão: 01/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O incumprimento do ónus previsto na alínea c) do nº 1 do art. 640º do Cód. de Proc. Civil [especificação da decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas] implica a rejeição da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, no tocante aos pontos factuais em que esse incumprimento se verifica.
II – Se o recorrente, relativamente a um depoimento testemunhal, se limita a proceder, na motivação do recurso, a um pequeno apontamento sobre o mesmo, sem dele indicar nenhuma passagem, nem transcrever qualquer excerto deste, nem tão-pouco fazer qualquer concreta referência à sua prestação em audiência (com indicação do dia da sua prestação e dos marcos horários do seu início e do seu termo), terá que se concluir que se mostra incumprido o ónus previsto no art. 640º, nº 2, al. a) do Cód. de Proc. Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 3271/19.5T8STS-H.P1
Comarca do Porto – Juízo do Comércio de Santo Tirso – Juiz 7
Apelação
Recorrente: AA
Recorridos: BB; Massa Insolvente de “A..., S.A.”
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadoras Anabela Dias da Silva e Maria Eiró

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
AA, por apenso ao processo principal de insolvência de “A..., S.A.”, veio intentar ação de restituição e separação de bens, sob a forma de processo comum, nos termos do art. 146.º, n.ºs 1 e 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas [doravante CIRE], contra os réus Massa Insolvente, Insolvente “A..., S.A.” e Credores.
Formula os seguintes pedidos:
a) Ser a apreensão de bens levada a cabo nos autos anulada por incorreta inserção de bem não pertencente à Massa Insolvente;
b) Serem as rés Massa Insolvente e “A...” condenadas na separação e restituição e a reconhecer a titularidade do direito de propriedade a favor do autor, do bem Fração Autónoma designada pela letra A no lote ..., sita na Urbanização ..., freguesia e concelho de Castro Marim, 10, Lado Nascente - Habitação - 2 pisos – Rés-do-Chão: Garagem, hall, cozinha, instalação sanitária, sala, 1º andar: quarto, biblioteca, 2 instalações sanitárias, sala, 3 sacadas e terraço de cobertura, descrito na Conservatória do Registo Predial de Castro Marim com o n.º ..., da mesma freguesia e inscrito na Matriz Predial Urbana sob o art. ......, adquirido até por usucapião.
Alega, em síntese, que adquiriu o prédio n.º ...... – o que se depreende tratar-se de lapso, pois corresponde ao n.º ...... -, por usucapião, tendo ficado na posse do imóvel, na sequência de contrato-promessa celebrado com a insolvente, acompanhado de traditio do imóvel.
Os réus Massa Insolvente e credor BB apresentaram contestação, na qual pugnaram pela improcedência da ação, deduzindo exceção de caso julgado e formularam também pedido de condenação do autor como litigante de má-fé, peticionando o réu BB uma indemnização no montante de 1.500,00€, acrescidos de IVA.
Invoca este último réu igualmente a simulação do alegado contrato-promessa.
Foi efetuada audiência prévia, na qual se proferiu despacho saneador, onde se desatendeu a exceção de caso julgado.
Fixou-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Realizou-se audiência de julgamento com observância do legal formalismo.
Por fim, foi proferida sentença, julgando a ação totalmente improcedente, por não provada, com a consequente absolvição dos réus do pedido.
O autor foi ainda condenado como litigante de má-fé, em multa e indemnização a fixar, após audição das partes para esse efeito.
Inconformado com o decidido, interpôs recurso o autor, tendo este finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
1º Foram incorrectamente julgados os seguintes pontos de facto constantes da sentença recorrida:
no artº 6, 10, 11, 12, 13, 14 dos factos dados como provados e na al. A), B), C), D) e E) dos factos não provados
2º Os concretos meios probatórios que impõe[m] decisão inversa:
a) O documento 1 e 2 da pi;
3º A usucapião é só uma forma de aquisição originária da propriedade.
4º E a posse (que lhe está subjacente) pode ser originária (inversão título de posse) ou derivada (sucessão e acessão na posse art.º 1255 e 1250 C.C., e constituto possessório – 1265 CC).
5º Salvo o devido respeito por melhor opinião, devia ter sido dado como provado o início da posse do autor, que sucedeu na do seu anterior proprietário e reconduziu à aquisição por usucapião do imóvel em questão [n]os autos.
6º No referido prédio, e na sequência do contrato promessa de compra e venda, o aqui autor passou a ocupar o imóvel, ainda que, nos períodos de férias estivais.
7º Ou seja detém pelo menos o imóvel por efeito contratual desde pelo menos 2016, sucedendo na posse do seu anterior proprietário.
8º Posse essa que foi exercida, de forma pacifica, de boa fé, ininterrupta e á vista de toda a gente e
9º O exercício do corpus, faz presumir o animus. Ac. STJ de 26.4.1994.
10º Beneficiando o autor assim da presunção de animus possidendi.
E,
11º Quem tem uma presunção a seu favor, está [sic]
12º Ao não se ter decidido assim ocorreu violação do disposto nas alíneas b), c) e d) do nº1 do artigo 615 do Código de Processo Civil.
Termos em que, deve o presente recurso merecer provimento e, consequentemente, deve ser reconhecida a errónea valoração da prova, sendo eliminados os factos de acordo com as presentes conclusões e, sempre ser dado provimento ao presente recurso com as legais consequências.
O réu BB apresentou contra-alegações, nas quais se pronunciou pela confirmação do decidido e pela condenação do recorrente como litigante de má-fé.
Formulou as seguintes conclusões:
A) Fenece a impugnação da alínea A) dos Factos Não Provados, que recusou a existência do contrato promessa que o Recorrente invocou ter celebrado com a Insolvente, com o fundamento de que tal documento não foi impugnado, quando o mesmo foi expressamente sindicado pelo aqui Recorrido e o Recorrente foi notificado para juntar o original aos autos a fim de ser aferida a sua autenticidade, factos que o Recorrente não pode ignorar.
B) Invocando o Recorrente que o depoimento da testemunha CC impunha resposta diferente do que a que foi consignada nos números 10 a 13 dos Factos Provados, cabia-lhe indicar concretamente quais as passagens daquele depoimento, que foi gravado, que justificavam outra decisão, ónus que, não tendo cumprido, deve determinar a imediata rejeição do recurso neste segmento, atento o disposto na alínea b) do n.º 1 e na alínea a) do n.º 2, ambas do art. 640º, do Cód. Proc. Civil.
C) Ainda que assim se não entenda, o que se admite sem conceder, resulta da motivação da Sentença que aqueles factos não resultaram provados apenas do depoimento daquela testemunha mas também das declarações de parte da Sra. Administradora de Insolvência e ainda da prova documental existente, que o Recorrente não sindica, pelo [que] sempre deve nesta parte o recurso improceder.
D) Tal como terá de improceder a impugnação que o Recorrente faz da decisão tomada em relação ao número 14 dos Factos Provados, que deu por assente a intenção do Recorrente, ao interpor a acção, de apenas protelar o andamento do processo de insolvência e impedir a liquidação do imóvel de que o Apelante se arroga possuidor, uma vez que, em abono de tal conclusão, concita a sentença recorrida vasto conjunto de factos dos quais se retira, à luz da experiência e da normalidade, aquela decisão.
E) Impugnando, ainda, o Recorrente todas [as] decisões tomadas em matéria de factos não provados, sem identificar um único meio probatório que, no seu entender, devesse determinar decisão diferente, deve o recurso ser nesta parte liminarmente rejeitado, à luz do disposto nas alíneas b) do n.º 1 e a) do n.º 2, ambas do art. 640º, do Cód. Proc. Civil.
F) É desprovida de sentido a aparente alegação de que o Recorrente terá adquirido por usucapião o imóvel objecto do pedido de separação e restituição por a sua posse ser derivada e contar para a prescrição aquisitiva o período de tempo em que o imóvel foi detido pela Insolvente.
G) Alegação que, de qualquer modo, assenta no pressuposto da efectiva existência do contrato promessa invocado no petitório pelo Recorrente, facto que foi, e bem, dado como não provado, pelo que não pode, ainda nesta parte, o recurso proceder.
H) Ao alegar falsamente que o contrato promessa que trouxe aos [autos] não havia sido impugnado pelo que não podia ser dado como não provado, quando não podia deixar de conhecer a impugnação do mesmo efectuada, altera o Recorrente a verdade dos factos, deduzindo oposição cuja falta de fundamento bem conhecia, com o que litiga de má-fé, à luz do disposto nas alíneas a) e b) do n.º 2 do art. 542º, do Cód. Proc. Civil.
I) Litigância de má-fé em que também incorre, atento o disposto na alínea d) do n.º 2 do art. 542º, do Cód. Proc. Civil, ao impugnar as decisões tomadas em matéria de facto nos números 10 a 13 dos Factos Provados e nas alíneas B), C), D) e E) sem o mínimo esforço de concretização dos meios probatórios em que assenta tal impugnação e ao defender a verificação de aquisição por usucapião do imóvel em causa nos autos com base em descabida interpretação do cômputo do tempo de posse que invoca, conduta com que denota apenas a intenção de, sem fundamento, protelar o trânsito em julgado da sentença impetrada.
J) Litigância de má-fé pela qual deve o Recorrente ser condenado em multa a fixar pelos Srs. Desembargadores com prudente arbítrio e em indemnização ao Recorrido, correspondente aos honorários devidos ao seu Mandatário pela preparação, elaboração e apresentação destas contra-alegações, que se liquidam em €600,00 (seiscentos euros).
A ré Massa Insolvente de “A..., S.A.” também apresentou contra-alegações no sentido da confirmação do decidido e da condenação do recorrente como litigante de má-fé.
Formulou as seguintes conclusões:
A) O presente recurso não pode ser nunca admitido como reanálise sobre a matéria probatória, porquanto o recorrente não cumpriu o disposto no art. 640º nº 1 alínea b) e nº 2 alínea a) do CPC indicando quais os meios probatórios constantes do processo ou o registo da gravação das testemunhas.
B) Em qualquer caso, e sobre o documento posto em causa, o incumprimento da junção do original do contrato promessa, não só não ultrapassa a impugnação feita do documento, como também, a inversão do ónus da prova, não permite validar tal documento.
C) Foram as declarações da testemunha CC em conjugação com as declarações de parte da Sra. Administradora de Insolvência que permitiram a prova feita nos pontos 6, 7 e 10 a 13 dos factos provados e a contra-prova dos factos não provados e que motivaram as conclusões adequadas do Tribunal em relação ao que constava dos autos.
D) Sobre a usucapião foi provado que o recorrente nunca teve a posse, o corpus ou o animus em relação à fração descrita sob o número ......, sendo certo que a atual alegação de usucapião é feita totalmente à revelia daquilo que o recorrente tinha alegado nos apensos D e E, conforme matéria de prova constante dos factos provados nos pontos 16 a 19.
E) Não havendo qualquer ato material de posse por parte do recorrente, mantém-se a sua postura de litigante de má fé, em que foi condenado já em primeira instância e em que deve ser igualmente condenado pela propositura do presente recurso, o qual, sem fundamento constitui mais outro ato dilatório em relação ao trânsito em julgado da douta sentença recorrida, continuando a alterar a verdade dos factos, sem qualquer fundamento sério e a protelar a resolução da presente ação e a liquidação da presente fração.
F) Deverá, por isso, ser necessariamente condenado em nova multa e indemnização à aqui recorrida que não se computa em valor inferior a €1.000,00, valor correspondente a todo o esforço e custo na dedução das presentes contra-alegações.
O recurso foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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As questões a decidir são as seguintes:
I – A impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto;
II – A aquisição da fração por usucapião;
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É a seguinte a factualidade dada como provada na sentença recorrida:
1. No processo principal de insolvência fora declarada a insolvência da sociedade A..., SA, tendo a Sra. Administradora da Insolvência procedido à apreensão da Fração autónoma designada pela letra A no lote ..., sita na Urbanização ..., freguesia e concelho de Castro Marim, descrito na Conservatória do Registo Predial de Castro Marim com o n.º ......, da mesma freguesia e Inscrito na Matriz Predial Urbana sob o art. .......
2. O Autor juntou na petição inicial cópia digitalizada de um documento denominado “Contrato Promessa de Compra e venda”, no qual consta como promitente vendedor a sociedade ora insolvente “A..., SA” e promitente comprador o aqui autor (Doc n.º 1 da PI, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido).
3. Consta da cláusula segunda de tal documento que “a primeira outorgante promete vender ao segundo outorgante o prédio descrito na CRP de Castro Marim sob o n.º ......, pelo preço de €460.000,000”.
4. A Insolvente declarou-se devedora do aqui Autor, por documento autêntico, lavrado junto do Cartório Notarial de DD, na Figueira da Foz, no qual a aqui insolvente, se confessa devedora ao aqui autor da quantia de €640.000,000, por força do incumprimento do contrato-promessa de imóveis celebrado com o aqui autor.
5. Por requerimento de 24.07.2020 (ref.ª 36157970) dos autos principais, CC veio alegar que tomou de arrendamento o aludido prédio por contrato de arrendamento para habitação, com opção de compra e preferência, celebrado com a insolvente em 2 de dezembro de 2014 e pagou as rendas respetivas, juntando contrato de arrendamento e alguns recibos de renda, designadamente do ano de 2019.
6. Todo o recheio da fração n.º ...... pertence ao arrendatário CC.
7. Após confirmar a ocupação da fração por CC, a Sra. Administradora de Insolvência apreendeu para os autos de insolvência a renda decorrente daquele contrato de arrendamento, não apreendendo o recheio daquela fração.
8. A fração n.º ...... fora registada em nome da insolvente pela Ap. ... de 2011/03/16, mediante compra a CC.
9. Sobre a fração n.º ...... encontram-se registados os seguintes ónus:
- hipoteca voluntária a favor da Banco 1..., SA (posteriormente transmitida e registada a favor da B..., SA) registada pela Ap. ... de 2008/09/02, montante máximo assegurado: €296.321,84, sendo sujeito passivo: CC;
- hipoteca voluntária a favor da Banco 1..., SA (posteriormente transmitida e registada a favor da B..., SA) registada pela Ap. ... de 2008/09/02, montante máximo assegurado: €65.849,43, sendo sujeito passivo: CC;
- hipoteca voluntária a favor de BB registada pela Ap. ... de 2013/05/24, montante máximo assegurado: €80.000,00, sendo sujeito passivo: a aqui insolvente;
- penhora registada pela Ap. ... de 2015/04/15, quantia exequenda €233.820,01, sujeito ativo: Banco 1..., SA;
- penhora registada pela Ap. ... de 2015/07/10, quantia exequenda €2.792,17, sujeito ativo: Fazenda Nacional;
- penhora registada pela Ap. ... de 2015/09/23, quantia exequenda €80.464,66, sujeito ativo: BB;
- penhora registada pela Ap. ... de 2018/03/08, quantia exequenda €17.621,75, sujeito ativo: Fazenda Nacional.
10. O Autor nunca ocupou a fração n.º ......, nunca ali passando férias ou festividades.
11. O Autor nunca teve a chave do imóvel, nunca tendo a sociedade insolvente entregue as chaves do imóvel ao autor, nunca lhe tendo entregue o imóvel para que este dele usufruísse.
12. O Autor nunca realizou quaisquer obras de conservação ou melhoramentos da fração, nem nela colocou bens móveis ou eletrodomésticos.
13. O autor nunca recebeu qualquer renda decorrente do arrendamento celebrado por CC e referente à fração A.
14. A presente ação fora intentada pelo autor com o propósito de tentar subtrair à massa insolvente e aos credores da insolvente a fração ... e, bem assim, evitar ou atrasar a liquidação da fração ... apreendida no processo de insolvência, criando obstáculos à liquidação e ao normal e célere andamento do processo de insolvência e apenso de liquidação.
15. O autor intentara a 16.07.2020 o apenso D contra os aqui réus Massa Insolvente, Insolvente e credores, formulando o seguinte pedido: a) Ser a apreensão de bens levada a cabo nos autos anulada por incorreta inserção de bem não pertencente à Massa Insolvente; b) Serem as RR. Massa Insolvente e A... condenadas a reconhecer a titularidade a favor da A., do bem Fração autónoma em causa nos autos.
16. O apenso D fora extinto por despacho de 15.12.2022, no qual se conclui:
indefere-se liminarmente a petição inicial apresentada, absolvendo-se os réus da instância.”, atenta a falta de pagamento de taxa de justiça devida pelo autor.
17. O autor intentou a ação de verificação ulterior de créditos (apenso E) contra os aqui réus Massa Insolvente, Insolvente e Credores a 06.11.2020, formulando o seguinte pedido: ser reconhecido ao Autor um crédito sobre a Insolvente no valor de €681.240,55;
Deve ainda tal crédito ser graduado como garantido por direito de retenção sobre o prédio urbano sito na ..., freguesia e concelho de Castro Marim, designado por lote ..., fracção A, inscrito na Conservatória do Registo Predial de Castro Marim sob o n.º ... e inscrito na matriz com o artigo ....
18. No apenso E, o ora autor invocava um crédito correspondente ao dobro do sinal alegadamente prestado no âmbito do contrato-promessa em causa nos presentes autos.
19. Este apenso E fora extinto por decisão proferida em audiência prévia (a 15.12.2022), ali se concluindo: “é manifesto que se encontra ultrapassado o prazo a que alude o art.146.º, n.º 2, CIRE, pelo que julgo a presente ação extemporânea, e em consequência absolvo os réus do pedido.”
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Os factos não provados são os seguintes:
A - O Autor celebrou contrato-promessa com a Insolvente em setembro de 2016, tendo como objeto a aquisição de imóvel propriedade descrito na CRP de Castro Marim sob o n.º ...... (ou ...) e inscrito na matriz sob o n.º ......, pelo preço de €460.000,000.
B - Como sinal e início de pagamento, o autor pagou à sociedade ora insolvente, o montante de €320.000,00, nos termos, datas e condições mencionadas na cláusula segunda do contrato-promessa.
C - Após a celebração do contrato-promessa, em setembro de 2016, o aqui Autor passou a ocupar a fração prometida comprar, ainda que nos períodos de férias estivais, tendo mesmo decorado e recheado o imóvel com vários bens móveis, zelando pela manutenção do prédio e efetuando, inclusive, manutenções e contratos de manutenção aos mais diversos equipamentos.
D - O aqui Autor empreendeu e pagou desde a data do contrato promessa celebrado (Setembro de 2016) e até ao passado verão, obras de conservação e melhoramento do imóvel, fruto da posse que então passou a deter, nomeadamente: pintou o interior do imóvel todo, colocou madeiras e rodapés, colocou móveis de cozinha, guarda-fatos, Pagou todos os eletrodomésticos de cozinha, tal como frigorifico, máquina de lavar louça, de lavar roupa, tv, micro-ondas, tudo despesas que ascendem a mais de €15.000,00.
E - Na sequência da celebração do contrato-promessa, o autor tem ocupado o prédio, ali vivendo por curtos períodos, ora dando-o de arrendamento, pagando as contribuições e despesas de manutenção, e isto tem ele feito por si e ante possuidores, durante mais de 20 anos, de boa fé, à vista de toda a gente, de forma ininterrupta, sem oposição de quem quer que seja, convicto de que não ofendia direito alheio e que exercia um verdadeiro direito próprio de proprietário.
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Passemos à apreciação do mérito do recurso.
I – A impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto
1. O autor/recorrente, no seu recurso, insurge-se, em primeiro lugar, contra a decisão factual da 1ª Instância, mais concretamente impugnando os nºs 6, 10, 11, 12, 13 e 14 da factualidade provada e também toda a factualidade dada como não provada sob as alíneas A), B), C), D) e E) – cfr. conclusão 1ª.
Na conclusão 2ª das suas alegações refere como meios probatórios que impõem decisão diversa, quanto aos factos impugnados, tão-só os documentos juntos com a petição inicial com os nºs 1 e 2.
Porém, na motivação do seu recurso o autor/recorrente, no que toca a meios probatórios, aludiu igualmente ao depoimento prestado pela testemunha CC e quanto a provas documentais referenciou apenas o documento nº 1 intitulado “Contrato Promessa de Compra e Venda”.
2. Estatui-se o seguinte no art. 640º do Cód. de Proc. Civil, no que concerne aos ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto:
«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
(…)»
Neste regime é possível distinguir-se dois tipos de ónus, tal como se entende no Acórdão do STJ de 29.10.2015 (proc. 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator Lopes do Rego, disponível in www.dgsi.pt.):
- “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes” e consta do transcrito n.º 1 do art.º 640.º; e
– “um ónus secundário – tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida – que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização das passagens da gravação relevantes”, previsto no n.º 2 do mesmo preceito.
O ónus primário refere-se à exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, conforme previsto nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do citado artigo 640.º, visa fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto e tem por função delimitar o objeto do recurso.
O ónus secundário consiste na exigência da indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo, e visa possibilitar um acesso aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida.
Conforme se afirma no Acórdão do STJ de 2.2.2022 (proc. 1786/17.9T8PVZ.P1.S1, relator Fernando Samões, disponível in www.dgsi.pt.), “os requisitos formais, impostos para a admissibilidade da impugnação da decisão de facto, têm em vista, no essencial, garantir uma adequada inteligibilidade do objecto e alcance teleológico da pretensão recursória, de forma a proporcionar o contraditório esclarecido da contraparte e a circunscrever o perímetro do exercício do poder de cognição pelo tribunal de recurso.”[1]
“Relativamente ao ónus primário, nem sequer é possível recorrer às alegações para suprir deficiências das conclusões, uma vez que são estas que enumeram as questões a decidir e delimitam o objecto do recurso, devendo, quanto à impugnação da decisão de facto, identificar os concretos pontos de facto impugnados e a decisão pretendida sobre os mesmos, bem como os concretos meios de prova que imponham tal decisão.”
“Daí que, quando falte a especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, deva ser rejeitado o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, o mesmo sucedendo quanto aos restantes dois requisitos, nomeadamente a falta de indicação da decisão pretendida sobre esses mesmos factos.”
3. ANTÓNIO ABRANTES GERALDES (in “Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., 2108, Almedina, págs. 165 e 166) sintetiza as obrigações que são impostas ao recorrente que impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto da seguinte forma:
“a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
d) O recorrente pode sugerir à Relação a renovação da produção de certos meios de prova, nos termos do art. 662.º, n.º 2, al. a), ou mesmo a produção de novos meios de prova nas situações referidas na al. b).(…);
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.
(...)”
Estas exigências “devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que, afinal, devem ser o contraponto dos esforços de todos quantos, durante décadas, reclamaram a atenuação do princípio da oralidade pura e a atribuição à Relação de efetivos poderes de sindicância da decisão da matéria de facto como instrumento de realização de justiça.”[2]
4. Regressando ao caso concreto, para além do teor das conclusões 1ª e 2ª acima transcritas, regista-se aqui, na íntegra, o que no corpo alegatório foi sustentado pelo autor/recorrente quanto à impugnação da decisão fáctica:
“O réu recorrente considera incorrectamente julgados os factos constantes no artº 6, 10º, 11, 12, 13, 14 dos factos dados como provados e na al A), B), C) D) e E) dos factos não provados.
Quanto ao recurso da matéria de facto, importa começar por analisar os documentos de fls… (Doc. 1) contrato promessa de compra e venda.
Este documento por não ser impugnado, devia ter sido dado como provado bem como todo seu teor.
- [Não] houve prova cabal para dar como provado o facto dado como provado no ponto 10, 11, 12, 13,
Muito menos se fez prova do facto dado como provado no ponto 14.
Com efeito,
Não nos podemos esquecer que foi o próprio autor que trouxe a juízo a única testemunha que depôs sobre estes factos: O Sr. CC. E, apesar [d]e este ter declarado que era ele e sua filha os arrendatários do mesmo, certo é que ele também declarou que conhecia o autor e sabia da existência deste contrato de promessa.
Assim, em homenagem ao princípio da plenitude da prova, o douto tribunal não pode atribuir força probatória a um meio de prova, e não lhe atribuir para outros.
Assim, as declarações do Sr. CC impunham decisão diversa destes factos.
Por outro lado,
Não existe qualquer meio de prova para sustentar a resposta positiva ao facto dado como provado no artigo 14 prova [sic]. Tão pouco o tribunal pode responder por suposições…Com efeito,
- o propósito ou a intenção com que o autor intentou esta acção, parte do domínio subjectivo do seu autor, e que a dar como provado terá que assentar em factos, acções que revelem objectivamente …o que não é o caso.
Por outro lado
Quanto aos factos dados como não provados, mormente os vertidos na al a) e b), salvo o devido respeito, a prova documental carreada para os autos impunha decisão diversa.”
Verifica-se, pois, que no respeitante aos factos não provados constantes das alíneas a) e b) o autor/recorrente se limitou a afirmar que a prova documental carreada para os autos impunha decisão diversa, sem que tenha especificado qual essa decisão.
E quanto aos factos não provados c), d) e e), tal como no tocante ao facto provado nº 6, o autor/recorrente apenas procede a uma impugnação genérica dos mesmos, considerando-os incorretamente julgados, também aqui sem especificar a decisão pretendida.
Neste contexto, uma vez que se mostra incumprido quanto a estes pontos factuais o ónus imposto pelo art. 640º, nº 1, al. c) do Cód. de Proc. Civil, impõe-se a rejeição da impugnação da matéria de facto.
5. Esta impugnação ficará assim circunscrita aos nºs 10, 11, 12, 13 e 14 da factualidade assente, que o autor/recorrente, face ao que resulta do corpo alegatório, pretende que sejam havidos como não provados.
A sua redação é a seguinte:
“10. O Autor nunca ocupou a fração n.º ......, nunca ali passando férias ou festividades.
11. O Autor nunca teve a chave do imóvel, nunca tendo a sociedade insolvente entregue as chaves do imóvel ao autor, nunca lhe tendo entregue o imóvel para que este dele usufruísse.
12. O Autor nunca realizou quaisquer obras de conservação ou melhoramentos da fração, nem nela colocou bens móveis ou eletrodomésticos.
13. O autor nunca recebeu qualquer renda decorrente do arrendamento celebrado por CC e referente à fração A.
14. A presente ação fora intentada pelo autor com o propósito de tentar subtrair à massa insolvente e aos credores da insolvente a fração ... e, bem assim, evitar ou atrasar a liquidação da fração ... apreendida no processo de insolvência, criando obstáculos à liquidação e ao normal e célere andamento do processo de insolvência e apenso de liquidação.”
Os meios probatórios indicados pelo autor/recorrente, no sentido do pretendido, são, conforme já referido atrás, o documento nº 1 junto com a petição inicial e o depoimento prestado pela testemunha CC, sendo que este se mostra mencionado apenas no corpo alegatório.
Tratando-se de depoimento gravado terá que se respeitar, quanto ao mesmo, ainda que num patamar de exigência pouco acentuado, o disposto no art. 640º, nº 2, al. a) do Cód. de Proc. Civil.
Ora, o que se verifica é que o autor/recorrente, nas suas alegações, apenas procedeu a um pequeno apontamento sobre o depoimento desta testemunha [apesar deste ter declarado que eram ele e sua filha os arrendatários do mesmo[3], certo é que ele também declarou que conhecia o autor e sabia da existência deste contrato-promessa]. Todavia, nenhuma passagem indicou desse depoimento, nem transcreveu qualquer excerto do mesmo.
Nem sequer fez qualquer concreta referência à sua prestação em audiência, indicando, com reporte à ata da audiência de julgamento o dia da sua prestação e os marcos horários do seu início e termo.
Ou seja, ignorou em absoluto a existência da alínea a) do nº 2 do art. 640º do Cód. de Proc. Civil, bastando-se, para o efeito, com uma singela alusão ao depoimento testemunhal que invocou.
Ao cabo e ao resto, pretendeu transferir para o tribunal de recurso a missão de localizar no depoimento por si indicado, como fundamento da sua impugnação fáctica, as passagens que porventura interessassem ao eventual sucesso do seu recurso.
Assim, por não ter sido cumprido o disposto no art. 640º, nº 2, al. a) do Cód. de Proc. Civil, não se procederá à audição do depoimento prestado pela testemunha CC.
6. Por conseguinte, o único meio probatório que será considerado no concernente à impugnação dos nºs 10 a 14 da factualidade assente é o documento junto com a petição inicial e que tem o título “Contrato Promessa de Compra e Venda”.
No que tange a este documento, a Mmª Juíza “a quo” escreveu o seguinte na sentença recorrida:
“Na petição inicial é junta cópia digitalizada de documento denominado “Contrato Promessa de Compra e venda”, no qual consta como promitente vendedor a sociedade ora insolvente “A..., SA” e promitente comprador o aqui autor (Doc n.º 1 da PI, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido). Este contrato-promessa refere o prédio n.º ..., sendo certo que a fração autónoma apreendida é o n.º ... (cfr. auto de apreensão corrigido e certidão permanente do imóvel), pressupondo-se que se terá tratado de lapso. Esse mesmo lapso verificou-se no primeiro auto de apreensão de bens desta fração, elaborado pela AI, tendo a AI posteriormente retificado o n.º da fração.
Este contrato-promessa fora impugnado pelos réus, tendo sido solicitada a junção aos autos do original do contrato-promessa, o que de resto já havia sido solicitado em outros apensos intentados pelo aqui autor (apensos D e E) e em que estava em causa o mesmo alegado “contrato-promessa”.
Em sede de audiência prévia, aquando do despacho sobre os requerimentos probatórios, fora o autor expressamente notificado para juntar aos autos o original do contrato promessa de compra e venda junto como Doc. 1 na P.I., ali se consignando que a falta de junção deste original será apreciada à luz do art.º 417.º, n.º 2, CPC e 344.º, n.º 2, CC.
Decorrido aquele prazo e até ao presente momento, o autor não juntou o original daquele documento, nem apresentou qualquer justificação válida para a sua não junção. Ademais, da prova oralmente produzida, considera o Tribunal que não fora feita prova suficiente e bastante da efetiva celebração do alegado contrato-promessa no dia 8 de Setembro de 2016, tendo o tribunal sérias dúvidas quanto à efetiva realização daquele contrato-promessa e (tendo sido celebrado) da efetiva data da sua celebração. Repare-se que o contrato-promessa não tem reconhecimento presencial de assinaturas, não se encontrando autenticado, pelo que não existem garantias que o mesmo fora celebrado e assinado na data que dele consta. Tendo em conta as regras do ónus da prova, o facto deste contrato-promessa ter sido impugnado, ponderando ainda a não junção do original do contrato-promessa sem ter sido apresentada qualquer justificação para a sua não junção, e ponderando essa ausência de junção do original à luz do art. 417.º, n.º 2, CPC e 344.º, n.º 2, CC, o Tribunal deu como não provada a celebração do contrato-promessa entre insolvente e autor em setembro de 2016.”
Ora, não vemos motivo para dissentir do que foi escrito pela Mmª Juíza “a quo” a propósito do documento invocado pelo autor/recorrente e, não podendo ser dada como provada a celebração, em setembro de 2016, de contrato-promessa entre a insolvente e o autor, também o mesmo não pode servir de meio probatório para afastar do elenco dos factos provados os seus nºs 10, 11, 12 e 13.
7. E quanto ao facto provado nº 14 novamente remetemos para a argumentação produzida pela Mmª Juíza “a quo” em sede de “motivação da matéria de facto”, onde escreveu o seguinte:
“Apesar de o autor ter protestado juntar prova documental do alegado pagamento do sinal e preço do imóvel, o certo é que não juntou qualquer prova documental do alegado pagamento. Assim, face à manifesta ausência de prova quanto a quaisquer pagamentos realizados pelo autor à aqui sociedade insolvente, no âmbito e sequência do alegado contrato-promessa, o tribunal deu como não provados tais factos.
Esta total ausência de prova documental, conjugado com a não junção do original do alegado contrato-promessa e ponderando ainda os demais apensos já intentados pelo autor, o facto de o autor ter alegado factos manifestamente falsos (alegou que passou a ocupar o imóvel, decorou e recheou o imóvel com bens móveis, realizou obras no imóvel, factos totalmente infirmados pela testemunha CC) conduzem-nos à convicção de que esta ação fora apenas intentada com o objetivo de protelar o processo de insolvência e a liquidação do imóvel apreendido fração A, tentando ainda subtrair da esfera patrimonial da insolvente e garantia dos credores esta fração.
(…)
Este documento (contrato de arrendamento), conjuntamente com o depoimento de CC e Administradora da Insolvência, também demonstram claramente que o autor deturpou a realidade dos factos, alegando factos falsos na petição inicial, apenas com o propósito de instaurar uma ação que sabia não ter fundamento, para assim atrasar a liquidação da fração autónoma. Repare-se que o Autor nunca teve qualquer posse da fração, nem lhe fora concedida qualquer traditio da fração, porquanto a insolvente já tinha dado a mesma fração de arrendamento a terceiros, com direito de preferência e opção de compra em 02 de Dezembro de 2014, ou seja, quase dois anos antes do alegado contrato promessa que é dito ter sido feito com o Autor e em 2019 o inquilino pagara rendas à sociedade insolvente. E foi por isso que a administradora de insolvência, após ter apreendido os móveis de tal fração, teve de requerer o cancelamento de tal apreensão, dado que o recheio da fração pertencia ao inquilino.
(…) verifica-se que na data da alegada outorga do contrato-promessa já aquela fração tinha diversos ónus e encargos registados, designadamente hipotecas e penhoras, demonstrando que a sociedade insolvente não se encontrava minimamente em condições de vender a fração livre de ónus e encargos, indiciando que a criação deste documento teve como propósito tentar subtrair esta fração do património da sociedade, fazendo com que a fração não respondesse pelas dívidas da sociedade ora insolvente, diminuindo a garantia patrimonial dos credores; ou por forma a criar artificialmente um crédito decorrente deste alegado contrato, correspondente ao dobro do alegado sinal prestado, quando não é junta qualquer prova documental do alegado pagamento de sinal. Se tivessem sido pagos à insolvente €320.000,00 através dos cinco cheques referidos pelo autor, nos anos de 2016 a 2018, então, teriam sido juntos aos autos cópias dos alegados cheques, cópias de extratos bancários do autor e nada disso fora junto, tudo levando a crer que não ocorreu qualquer pagamento, tratando-se de mais um facto alegado pelo autor e que não corresponde à verdade.
Também não é crível a atribuição daquele preço à fração e a celebração daquele contrato-promessa, tendo em conta os ónus e encargos já registados sobre o prédio e ainda o contrato de arrendamento que havia sido celebrado pela insolvente, com uma renda anual de €6.000,00 (cfr. cláusula quinta do contrato) e atenta a duração daquele contrato de arrendamento, que continha ainda a opção de compra.”
A Mmª Juíza “a quo”, em sede de motivação de facto, alude também à escritura pública de confissão de dívida de 1.3.2019, junta na petição inicial do apenso E), pela qual a sociedade insolvente se confessa devedora ao aqui autor da quantia de 640.000,00€, referindo que essa quantia corresponde ao dobro do sinal prestado no âmbito do contrato-promessa de imóveis celebrado com o autor.
Escreve o seguinte:
“Destaca-se que nesta escritura refere-se que este crédito decorre de incumprimento do contrato-promessa de imóveis. Ou seja, usa o plural, indiciando que não se trata apenas de uma fração autónoma, o que cria ainda mais contradições nesta versão inverosímil alegada pelo autor. A escritura de confissão de dívida não discrimina esses imóveis. Se ocorreu incumprimento do contrato-promessa e sendo esse incumprimento definitivo, pelo teor da escritura, então, não faz sentido o autor alegar que mantém interesse na aquisição da fração, ou que tem direito de retenção sobre a fração, como a dada altura alega na petição inicial. A estranheza desta escritura (que não discrimina os imóveis), juntamente com a contradição do autor alegar um contrato-promessa de apenas uma fração, o facto de o autor ter intentado o apenso D com vista a ser reconhecido o seu direito de propriedade sobre a fração, e ao mesmo tempo no apenso E invoca o incumprimento do contrato-promessa para vir pedir o dobro do sinal, e sobretudo as alegações de factos falsos na petição inicial referentes à alegada traditio e posse (corpus e animus) criam a convicção no julgador de que esta ação apenas fora intentada com o intuito de tentar subtrair dos credores esta fração ou evitar e atrasar a liquidação da fração neste processo de insolvência, criando obstáculos à liquidação e ao normal e célere andamento do processo de insolvência e apenso de liquidação.”
E no tocante à prova produzida oralmente em audiência escreve-se o seguinte na sentença recorrida:
“A Sra. Administradora da Insolvência, Dra. EE, prestou um depoimento coerente e credível, logo salientando que nunca viu o original deste alegado contrato-promessa. Descreveu as suas diligências tendentes à apreensão desta fração, realizadas com o auxílio do encarregado da venda, bem como o posterior conhecimento do contrato de arrendamento, tendo, então, dado sem efeito a apreensão dos bens móveis que se encontravam no interior da fração e voltado a entregar a fração ao arrendatário CC. Esclareceu os motivos pelos quais não aceita este contrato-promessa.
Do depoimento de CC decorreu de forma clara e evidente que ao autor não fora entregue em setembro de 2016 esta fração autónoma pela insolvente, não tendo o autor ocupado a fração desde então. Embora a testemunha tenha tentado fazer vingar, de certa forma, a versão do autor de que fora celebrado contrato-promessa desta fração A e que nessa sequência operou-se a traditio, a análise atenta deste depoimento, conjugada com a prova documental constante dos autos e atentando-se nas contradições existentes, não pode conduzir a outra convicção sobre os factos provados e não provados, senão aquela a que chegou o Tribunal e que se fez constar na fundamentação de facto.
Do início do seu depoimento pareceu decorrer que a celebração do contrato-promessa apenas ocorreu depois do PER, pois referiu que antes a A... esteve em PER.
Ora, o PER tivera início a 01.03.2019, ou seja data muito posterior à alegada celebração do contrato-promessa de setembro de 2016; curiosamente, precisamente a data da escritura de confissão de dívida ao aqui autor. No decurso do seu depoimento, foram vários os avanços e recuos e imprecisões quanto ao alegado contrato-promessa, eventual contacto que teve com o aqui autor e como tomou conhecimento deste alegado contrato-promessa, sendo imperceptível o sentido do seu depoimento, criando no espírito do julgador sérias dúvidas quanto à efectiva celebração de contrato-promessa entre autor e insolvente em setembro de 2016.
Esta testemunha confirmou que todo o recheio desta fração-A era seu, que a casa é habitada e usufruída por si e sua família, que as obras e decoração no seu interior foram apenas por si realizadas e que nunca pagou qualquer renda ao aqui autor. Confirmou que o autor nunca habitou a casa e que desde 2011 quem tem a chave da fração é a testemunha e sua filha. Fora, assim, o depoimento desta testemunha (conjugado com a demais prova) essencial para a formação da convicção do Tribunal quanto aos factos referentes à alegada traditio e posse do autor, bem como efetiva ocupação e manutenção do imóvel.”
Perante esta exaustiva e muito detalhada motivação da decisão fáctica efetuada pela 1ª Instância, que subscrevemos inteiramente, também nenhuma razão existe para afastar o nº 14 do elenco dos factos provados, o que significa a integral improcedência da impugnação factual da autora/recorrente.
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Em suma:
a) Rejeita-se a impugnação da matéria de facto, por inobservância do disposto no art. 640º, nº 1, al. c) do Cód. de Proc. Civil, quanto aos factos não provados sob as alíneas A), B), C), D) e E) e ao facto provado nº 6;
b) Rejeita-se a reapreciação da prova gravada no tocante ao depoimento da testemunha CC, por inobservância do disposto no art. 640º, nº 2, al. a) do Cód. de Proc. Civil;
c) Mantêm-se na factualidade provada os seus nºs 10, 11, 12, 13 e 14, sem qualquer alteração de redação.
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II – A aquisição da fração por usucapião
Na segunda parte do seu recurso, conforme resulta das conclusões 3ª a 11ª, o autor/recorrente sustenta ter adquirido a fração autónoma aqui em causa por usucapião, o que na sentença recorrida foi afastado pela seguinte forma:
“(…) descendo ao caso concreto, verifica-se que o autor não logrou minimamente demonstrar que adquiriu por usucapião a fração que reivindica nos autos.
Com efeito, o autor não logrou demonstrar quaisquer atos de uso e fruição da fração, faltando desde logo o corpus possessório, não estando também demonstrado qualquer animus possessório.
Repare-se que não ficaram provados os seguintes factos: Na sequência da celebração do contrato-promessa, o autor tem ocupado o prédio, ali vivendo por curtos períodos, ora dando-o de arrendamento, pagando as contribuições e despesas de manutenção, e isto tem ele feito por si e ante possuidores, durante mais de 20 anos, de boa fé, à vista de toda a gente, de forma ininterrupta, sem oposição de quem quer que seja, convicto de que não ofendia direito alheio e que exercia um verdadeiro direito próprio de proprietário.
Assim, face à factualidade provada, conclui-se que o autor não ilidiu [a] presunção de registo de que beneficia a insolvente e, posteriormente, a Massa Insolvente, pelo que a apreensão para a Massa Insolvente desta fração fora correta, não existindo qualquer facto ou irregularidade que importe a sua anulação. Face à ausência de prova dos factos que integram a usucapião ou outra causa de aquisição do direito de propriedade (designadamente aquisição derivada) deve ser julgada improcedente a ação, não existindo fundamento para determinar a restituição e separação desta fração A do acervo de bens apreendidos para a Massa Insolvente.”
O sucesso do recurso interposto pelo autor, com a prova da aquisição por usucapião da fração, sempre pressuporia a alteração da factualidade provada e não provada, alteração essa que, tal como se explanou em I, não foi efetuada.
Impõe-se, pois, sem necessidade de outros considerandos por desnecessários, a sua improcedência e a consequente confirmação da sentença recorrida.[4]
*
Nas suas contra-alegações, ambos os recorridos vieram pugnar por nova condenação do autor/recorrente por litigância de má-fé, agora em sede recursiva, pretensão que nos cabe também apreciar.
Sucede que em 1ª Instância essa condenação já ocorrera alicerçada, designadamente, no facto provado nº 14, com a seguinte fundamentação:
“(…) afigura-se-nos que o autor, uma vez que nunca obteve a chave do imóvel, nunca ocupou o imóvel, nunca se comportou como se tratasse do verdadeiro proprietário do imóvel, nunca ali pernoitou, nem nunca decorou ou remodelou a fração, não poderia deixar de ter pleno conhecimento e consciência da manifesta falta de fundamento da sua pretensão.
Ademais, ficara demonstrado que o autor alegou factos falsos na petição inicial, e que não poderia deixar de ter conhecimento de que esses factos não correspondiam à verdade, tendo deliberadamente deturpado a realidade, alterando a verdade dos factos essenciais à decisão da causa.
Com efeito, os factos alegados nos arts. 5.º a 7.º, 10.º a 12.º, 16.º a 18.º da petição inicial (os quais são suscetíveis de integrar o corpus e animus da posse invocada pelo autor) são falsos e não correspondem à verdade, tendo resultado provados factos contrários, tendo o Tribunal dado como provado o seguinte: O Autor nunca ocupou a fração n.º ......, nunca ali passando férias ou festividades. O Autor nunca teve a chave do imóvel, nunca tendo a sociedade insolvente entregue as chaves do imóvel ao autor, nunca lhe tendo entregue o imóvel para que este dele usufruísse. O Autor nunca realizou quaisquer obras de conservação ou melhoramentos da fração, nem nela colocou bens móveis ou eletrodomésticos. O autor nunca recebeu qualquer renda decorrente do arrendamento celebrado por CC.
A conduta do autor é, ainda, mais gravosa, dado que vem cria[n]do obstáculos ao processo de insolvência desde 2020, atentas as anteriores ações por si intentadas (apensos D e E).
A má fé do autor é ainda revelada pelo facto de em data anterior a esta ação (em que invoca a usucapião da fração e traditio na sequência de contrato-promessa), o autor ter invocado o incumprimento definitivo do contrato-promessa e peticionado um crédito decorrente desse incumprimento, o que era incompatível com a invocação de que afinal se assumia como verdadeiro proprietário do prédio, pois se se assume como promitente-comprador retentor, tem consciência que não é (nem pode ser) proprietário do prédio.
A manifesta falta de fundamento da pretensão do autor decorre também do facto de o alegado contrato-promessa ter sido celebrado em 2016 e em 2023 vem invocar que já adquiriu o prédio por usucapião. Tendo a posse do A. sido alegadamente constituída em setembro de 2016, já se vê que, não havendo (nem o A. invocando que haja) registo do título ou sequer da mera posse, não decorreram os 15 anos mínimos de que a lei, no art. 1296º, do Cód. Civil, faz depender a constituição da usucapião, e muito menos os 20 anos que o mesmo preceito refere a propósito da posse da má-fé.
Ora, assumindo-se o autor como promitente-comprador não pode pretender juntar à sua alegada posse, a posse da anterior proprietária (a insolvente), já que para se verificar a posse do promitente-comprador é necessário verificar-se uma inversão da posse.
Cumpre recordar que a presente ação de separação e restituição de bens é a segunda que o A. instaura no âmbito dos autos principais de insolvência tendo por objeto o mesmo imóvel, quase precisamente com os mesmos fundamentos.
Tendo a primeira ação, tramitada sob o Apenso D aos autos principais de insolvência, terminado com a absolvição dos Réus da instância, por falta de pagamento pelo A. da taxa de justiça devida, o que lhe deu o ensejo de vir propor esta nova ação, quase com os mesmos fundamentos.
Afigurando-se que o autor apenas pretende obstar à liquidação do bem cuja separação se requer, aproveitando-se o disposto no art. 160º, n.º 1, do CIRE.
Atento o supra exposto, dúvidas não existem que o Autor, ao interpor a presente ação, não podia ignorar a sua falta de fundamento, tão despropositada é a invocação de usucapião e tão evidente a falta de pressupostos legais para a peticionada restituição ou separação do bem em causa, designadamente no que toca ao decurso do prazo necessário para usucapião.
Conduta que, em termos de experiência comum, apenas pode ser justificada pelo intuito ilegal de evitar, sem fundamento, a venda do bem, opondo-se à ação da justiça no sentido de prover à satisfação dos direitos dos credores, que é o desiderato do processo de insolvência.
Na verdade, face ao conjunto da prova produzida e analisando toda a conduta processual do autor (também incluindo os anteriores apensos D e E intentados pelo autor), é possível concluir que a presente ação fora intentada pelo autor com o propósito de tentar subtrair à massa insolvente e aos credores da insolvente a fração ... e, bem assim, evitar ou atrasar a liquidação da fração ... apreendida no processo de insolvência, criando obstáculos à liquidação e ao normal e célere andamento do processo de insolvência e apenso de liquidação.”
Da decisão que condene por litigância de má-fé é sempre admissível recurso em um grau, independentemente do valor da causa e da sucumbência – cfr. art. 542º, nº 3 do Cód. de Proc. Civil.
Ora, daqui decorre que o autor tem sempre a faculdade de poder recorrer da sua condenação por litigância de má-fé, o que também reflexamente se verifica no presente caso, onde, pugnando este em via recursiva pela procedência da ação que instaurou, tal implicaria em caso de êxito, como efeito necessário, a eliminação daquela condenação.
Ou seja, a interposição de recurso, incidindo sobre a matéria factual em que assentou a condenação do autor como litigante de má-fé, trata-se de um direito que a este assiste e que se por ele é exercido não pode, a nosso ver, ser entendido como uma acrescida litigância de má-fé, merecedora de sancionamento autónomo.
O insucesso deste recurso, com a não alteração da decisão de facto e de direito proferida pela 1ª Instância, significa, assim, a manutenção da decisão recorrida também na parte em que nesta se condenara o autor/recorrente como litigante de má-fé, a qual, nesse segmento específico, não fora objeto de direta impugnação recursiva.
Como tal, não se justifica acolher a pretensão dos recorridos no sentido de nova condenação do autor como litigante de má-fé, uma vez que a sua atuação processual, neste âmbito, já se acha devidamente sancionada.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo autor AA e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas, pelo seu decaimento, a cargo do autor/recorrente.

Porto, 16.1.2024
Rodrigues Pires
Anabela Dias da Silva
Maria Eiró
__________________
[1] Cfr. Acórdãos do STJ, de 22/3/2018, proc. n.º 290/12.6TCFUN.L1.S1 (Tomé Gomes) e de 18/1/2022, processo n.º 243/18.0T8PFR.P1.S1 (Maria Clara Sottomayor), disponíveis in www.dgsi.pt.
[2] ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, ob. cit., pág. 169.
[3] Apartamento.
[4] Na conclusão 12ª o recorrente sustenta ainda ter ocorrido violação do disposto nas alíneas b), c) e d) do nº 1 do art. 615º do Cód. de Proc. Civil, onde se prevêem diversas nulidades de sentença. Porém, para além desta referência vaga e genérica, nada alegou de concreto quanto à verificação de tais nulidades, razão pela qual não há que proceder ao seu conhecimento, até porque não as podemos considerar como devidamente invocadas.