Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1175/16.2T8VLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA MIRANDA
Descritores: SEGURO DE VIDA
MÚTUO BANCÁRIO
INCAPACIDADES ABSOLUTAS E SUA QUANTIFICAÇÃO
Nº do Documento: RP202209131175/16.2T8VLG.P1
Data do Acordão: 09/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No contrato de seguro, ramo vida, funcionalmente associado a um contrato de mútuo bancário, para efeitos de responsabilização da seguradora, distingue-se, na hipótese de terem sido previstas como risco coberto no contrato de seguro, entre a incapacidade permanente parcial (IPP) e a incapacidade permanente absoluta do mutuário, sendo que esta última pode ser para o trabalho habitual (IPATH) ou para qualquer e todo trabalho (IPA).
II - Esta última, incapacidade absoluta (IPA), aplica-se aos casos em que se demonstra ter o mutuário ficado afectado com uma incapacidade irrecuperável para exercer qualquer actividade remunerada.
III - A cláusula contratual que exige a prova de uma incapacidade correspondente a uma percentagem igual ou superior a 70 % de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades só é aplicável quando o mutuário fica afectado com uma incapacidade parcial permanente e não quando está em causa uma incapacidade absoluta seja parcial (para o trabalho habitual) seja global, para todo e qualquer trabalho, situação igualmente prevista no contrato de seguro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1175/16.2T8VLG.P1

Relatora : Anabela Andrade Miranda
Adjunta : Lina Castro Baptista
Adjunta : Alexandra Pelayo
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO
AA, residente na Rua ..., ... .... em ..., Valongo, instaurou a presente ação declarativa comum contra “Banco 1...”, com sede na Rua ..., CP ..., em Lisboa, peticionando que seja reconhecida a celebração de um contrato com o Autor através do qual se obrigou a pagar as prestações do mútuo que este contraiu para aquisição de habitação própria permanente através da escritura junta aos autos no caso de advir a morte ou a incapacidade permanente superior a 70% ; a reconhecer que na data em que o A. sofreu o acidente de trabalho (11.10.2004) o referido contrato estava válido e em vigor; a reconhecer que, mercê do acidente de trabalho sofrido, o A. ficou com uma incapacidade parcial permanente superior a 70%; a pagar todas as prestações já vencidas até à presente data referentes ao mútuo que o A. contraiu para aquisição de habitação própria permanente, acrescido de juros legais contados desde a data do seu pagamento até efetivo pagamento, a liquidar em execução de sentença; e a pagar todas as prestações vincendas do aludido contrato de mútuo até ao seu final.
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O Réu defendeu-se invocando a ilegitimidade do A. para, desacompanhado da mulher, BB, também outorgante no contrato de mutuo em referência, demandar na presente ação; expôs os fundamentos de facto e de direito que justificam a sua recusa no acionamento da “Garantia de Pagamentos de Encargos” subscrita conjuntamente pelo A. e a sua referida esposa em 10.9.1998 e, assim, a improcedência da pretensão do mesmo.
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O Tribunal julgou procedente a invocada exceção de ilegitimidade do A., em razão do que convidou o mesmo a supri-la suscitando a intervenção principal provocada da sua mulher, BB, convite a que o mesmo acedeu.
A interveniente nos termos e para os efeitos do disposto no artº 319º, nºs 1 e 2, do C.P.C., declarou aderir integralmente e sem reservas à petição inicial apresentada pelo A., e subscreveu o requerimento probatório pelo mesmo ali formulado.
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Proferiu-se sentença que julgou a acção improcedente e absolveu o Réu do pedido.
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Inconformados com a sentença, o Autor e Interveniente interpuseram recurso formulando as seguintes
CONCLUSÕES
I. A Sentença recorrida errou ao decidir não se encontrar verificada a situação de risco constante do contrato celebrado, da qual pudesse resultar a responsabilização da Ré, aqui apelada.
II. A sentença recorrida está esvaziada de sustentação, quer de direito, quer de facto, bem assim como de qualquer motivação capaz de demonstrar em que se baseou o Mm.º Juiz do Tribunal a quo na (surpreendente) final decisão.
III. O Tribunal a quo errou ao ter dado como provados os factos mencionados nas alíneas BB) da matéria dada por provada, por apenas e tão só se ter estribado no relatório médico de forma acrítica e passiva, a ele aderindo, e sustentando-se nele para decidir contra a prova testemunhal produzida.
IV. O Tribunal a quo considerou erradamente não se encontrar verificada a situação de risco constante do contrato celebrado, absolvendo assim a Recorrida de todos os pedidos formulados, ou seja, que o recorrente não padece de um grau de invalidez igual ou superior a 70%, como contratualmente exigido.
V. Tal entendimento foi assumido pelo Tribunal a quo sem qualquer fundamentação jurídica, mormente com a total ausência de motivação e de anúncio das razões de facto e de direito que conduziram ao mesmo, para além do citado relatório pericial, nem, tão pouco, deu a entender ao recorrente o motivo pelo qual foi totalmente descartado o atestado de incapacidade multiuso.
VI. A douta sentença está ferida de patente e ostensiva nulidade por falta de fundamentação, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 615º do Cód. Proc. Civil, que prevê que “É nula a sentença: quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.”
VII. A decisão recorrida não explicita, nem imediata nem mediatamente, o entendimento que estará subjacente à improcedência da pretensão do Recorrente, sendo certo que o mesmo é dizer que o julgador não deu a conhecer na sentença em causa a subsunção jurídica e factual que terá sido levada a cabo, sendo, por isso, absolutamente impossível ao Recorrente conhecer e, eventualmente, questionar o processo cognitivo do julgador.
VIII. A sentença recorrida deveria ter decidido que o recorrente padece de um grau de incapacidade de 72%, como demonstrou com os documentos que juntou, mormente o atestado médico de incapacidade multiusos (documento 5 junto com a petição inicial), que foi emitido também por médico designado pelo ministério da saúde.
IX. Os meios de prova que implicariam a prolação de decisão em inverso sentido, e que aqui se deixam consignados nos termos e para os efeitos do preceituado pela alínea b) do n.º 1 e pelo n.º 2 do art. 640.º do Código de Processo Civil, são os depoimentos testemunhais cuja transcrição se verifica supra, bem como o atestado de incapacidade multiuso – documento n.º 5 junto com a PI - nos termos e para os efeitos do preceituado pela parte final da alínea a) do n.º 2 do referido artigo 640.º do Código de Processo Civil.
X. Ainda que no contrato celebrado esteja previsto que apenas releva para acionar a Garantia o processo de incapacidade a que corresponda uma percentagem igual ou superior a 70% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades, tal clausulado apenas pode ser visto como um mecanismo, no âmbito do procedimento interno da Recorrida, de prevenção e combate à fraude das Garantia de Pagamento de Encargos, que em nada obsta ao reconhecimento judicial da situação de invalidez, se verificada em juízo.
XI. A cláusula prevista na conclusão anterior consubstancia má-fé objetiva ao reservar exclusivamente para a Recorrida o direito exclusivo sobre a verificação da incapacidade do recorrente.
XII. As circunstâncias concretas e o ambiente negocial de um plano na modalidade mutualista individual de proteção designada por “Garantia de Pagamento de Encargos”, como garantia do reembolso de um empréstimo bancário para habitação própria, tal como é neste caso, aconselham, antes de mais, a neutralidade da apreciação da severa invalidez da Recorrida impõe também um juízo funcional sobre o tema e que tenha em conta a efetiva realidade da situação profissional e de ganho do recorrente.
XIII. Competia à recorrida contestar por exceção, com base em negar este status concreto de o recorrente não estar carecido em situação profissional e de ganho, e não o fez.
XIV. Deveria ter sido dado por provado que o recorrente está absolutamente incapaz de exercer a sua atividade profissional e, assim, obter o seu sustento e do seu agregado familiar.
XV. A cláusula vertida no artigo 22º do Capítulo I do Regulamento dos Benefícios do Banco 1..., interpretada no sentido de excluir radicalmente um Atestado Médico Multiusos, como prova de uma incapacidade da segurada de mais de 70%, adjudicando-a apenas a um resultado segundo a Tabela Nacional de Avaliação do Dano em Direito Civil, infringe também a boa-fé e a lei, nomeadamente o artigo 9.º n.º 1 do Código Civil.
XVI. A sentença recorrida deveria ter julgado a cláusula referida vertida no artigo 22º do Capítulo I do Regulamento dos Benefícios do Banco 1... nula.
XVII. A sentença desconsiderou um documento oficial e, por isso, documento autêntico (de alcance erga omnes), o qual, ao contrário do que defende a sentença recorrida, e desde logo, por exemplo, para efeitos tributários, logo comprovaria “invalidez para desempenho de actividade remunerada”.
XVIII. No que diz respeito à al. d) da cláusula 3.ª/3 posta em crise, o prazo de 180 dias consecutivos e precedentes da incapacidade absoluta da segurada, resultam da passagem do Atestado Médico Multiusos, contados, segundo a lei e o hábito institucional e processual respectivos (exige-se demora – que não é necessário alegar, por ser do conhecimento comum – na instrução do requerimento e uma junta médica de avaliação, nomeada – art.º 3.º/1/2/5 do DL 202/96, de 23/10).
XIX. A recusa da recorrida quanto ao pagamento da indenização/capital, prevista nas condições gerais e segundo as condições particulares (cobertura de invalidez total e permanente), infringe o plano mutualista individual, eliminadas as suas cláusulas nulas.
XX. As cláusulas que o recorrente arguiu de nulas, estão irremediavelmente feridas do vício em questão, e ao contrário do que decidiu o Tribunal a quo, por força dos art.ºs 12.º, 15.º e 16.º do RJCCG.
XXI. A sentença recorrida fez errada aplicação dos art.ºs 12.º, 15.º e 16.º do RJCCG e quanto ao obiter dictum de não ter a recorrente feito prova da invalidez exigível nos termos da cláusula 2.ª da apólice, não teve nem tem qualquer razão.
XXII. Termos em que merece, a douta sentença, ser reformada, em ordem à procedência do pedido.
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O Réu contra-alegou, concluindo da seguinte forma:
I. Recorreram os autores da douta sentença que julgou totalmente improcedente a acção intentada contra a Banco 1... (adiante Associação Mutualista), por considerar, que existiu uma incorrecta interpretação da matéria de facto e do direito aplicado, não lhes assistindo, com o devido respeito, qualquer razão, pois bem andou o Tribunal a quo no julgamento que fez da prova carreada aos autos, não merecendo a sua decisão qualquer reparo ou censura.
II. As conclusões do Tribunal a quo afiguram-se-nos rigorosas, decorrendo da prova produzida e em conformidade com a fundamentação vertida na douta decisão sobre a matéria de facto e de direito, decaindo inteiramente o teor das alegações dos autores, pelo que deverá a sentença proferida em primeira instância ser mantida por este Tribunal ad quem.
Ora,
III. Como se sabe, é da fixação da matéria de facto que depende a aplicação do direito determinante do mérito da causa e do resultado da acção, cabendo ao julgador fazer uma apreciação crítica e analítica dos meios de prova, essencialmente daqueles que estão sujeitos à sua livre apreciação, ante a impossibilidade de reconstituição natural da realidade - princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre, decorrente do disposto no artigo 607.º do CPC;
IV. Efectivamente, o que se pretende em sede de julgamento da matéria de facto é a reconstituição, tanto quanto possível, da realidade, com base no que foi retido por quem a observou e testemunhou, conjugado com os vários meios de prova sujeitos às regras da contraditoriedade e da oralidade, sendo esses elementos que atribuem ao Juiz a legitimidade para declarar quais os factos que julga provados e não provados, devendo especificar, por razões de sindicabilidade e de transparência, os fundamentos que concretamente se tenham revelado decisivos para formar a sua convicção (n.º 2., do artigo 653.º do CPC);
Assim,
V. Decorre das conclusões das doutas alegações de recurso, s.m.o., que a questão concreta que cumpre aqui suscitar é a de se o Tribunal a quo julgou bem, ou não, a factualidade dos autos e a solução de direito aplicada.
VI. Apreciando a douta sentença de que os autores recorrem, podemos expressamente encontrar as decisões tomadas pelo Tribunal a quo plasmadas de uma suficiente fundamentação e análise crítica quanto aos factos tidos como provados e não provados.
VII. Nas alegações de recurso a que ora se respondem, foram utilizados três argumentos que, s.m.o., não poderão ter acolhimento – tal como iremos infra demonstrar.
A - Da nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação
VIII. Desde logo, não nos parece concebível ter acolhimento que a douta sentença em crise deva ser nula por falta de fundamentação uma vez que, a mesma refere, em “B) Fundamentação de facto”, a justificação para todos os factos que deu como provados, de forma extensivamente descritiva, e específica – recorrendo não só a documentos – que enaltece –, como também aos próprios depoimentos prestados – os quais destaca;
IX.E quanto aos factos não provados, verificou-se, na mesma, que sobre aqueles não foi produzida prova bastante, motivo pelo qual não se pôde decidir em sentido contrário.
X. Destarte, e sendo a nulidade invocada com base no artigo 615.º/1/b) do CPC – conclusão VI –, observe-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03/03/2021, processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1 (disponível para consulta em www.dgsi.pt), - “II. Só a absoluta falta de fundamentação – e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação – integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil.”
XI. Com efeito, e atendendo ao detalhe que se vislumbra na sentença recorrida – e que não faz sentido aqui reproduzir –, consideramos que s.m.o., é antes a nulidade invocada que carece de fundamentação (e não o contrário).
B - Do erro na apreciação da matéria de facto
XII. Entende a recorrida que esta alegação se prende, directamente, com a primeiramente enunciada: a falta de fundamentação.
XIII. Não nos sendo possível concordar com aquela, também iremos de seguida esclarecer o motivo pelo qual também, esta, não merece acolhimento.
XIV.A fim de contextualizar a problemática em causa, designadamente quanto ao erro notório na apreciação da prova, atente-se ao sumarizado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10/07/2018, processo n.º 26/16.2GESRT.C1, também disponível para consulta em www.dgsi.pt (transcrito, supra);
XV. E também excerto supra transcrito do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11/07/2017, processo n.º 5527/16.0T8GMR.G1 (disponível in www.dgsi.pt);
XVI. Alegam os autores que o Tribunal a quo errou em dois momentos:
a. ao ter dado como provados os factos mencionados nas alíneas bb) da matéria dada por provada; e
b. por ter considerado que não se encontrava verificada a situação de risco constante do contrato celebrado.
Ora,
XVII. Quanto à alínea a., supra, referem os autores que a factualidade provada se deveu a “por apenas e tão são se ter estribado no relatório médico de forma acrítica e passiva, a ele aderindo, e sustentando-se nele para decidir contra a prova testemunhal produzida”.
XVIII. Contudo, tal não se verifica: tal como a douta sentença esclarece, o facto provado foi de tal forma julgado atendendo, não só ao relatório pericial médico elaborado em 8 de Abril de 2019 pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciencias Forenses – Delegacão do Norte do INML, CF, mas também aos “esclarecimentos prestados em 21 de maio de 2019, a fls. 434 a 435 vº dos autos, que fundamentado no resultado do exame médico do A. a que procedeu em 18 de fevereiro de 2012 nas suas instalações e no teor dos relatórios de exames em perícia de psiquiatria (a fls. 412 a 414) e de urologia (a fls. 324 a 328 vo), ambas pela mesma sua Delegacão Norte, e em avaliação dos impactos do acidente na funcionalidade e necessidades de reabilitacão (a fls. 337 a 339, pelo Centro de Reabilitacão Profissional de Gaia) e demais documentação constante dos autos e que lhe foi disponibilizada”.
XIX. Assim, não nos é possível considerar que o facto provado em causa foi alvo de uma ponderação acrítica e passiva, antes tendo sido o mesmo devidamente justificado e fundamentado, atendendo ao recolhido ao longo dos autos, sendo ainda de referir que, quando os autores invocam que a decisão foi tida em sentido diferente da prova testemunhal produzida, está apenas a dar relevo aos depoimentos que lhes são favoráveis e não, por exemplo, ao depoimento do Dr. Alberto Eloy Prata Cardoso, bem como às restantes provas periciais produzidas;
XX. Notando-se que, tal como já referido, o Tribunal aprecia livremente as provas, e atribui-lhe a valoração que considera merecedora, através da ponderação que efectua.
XXI. Relativamente à alínea b., (ponto XVI das presentes conclusões) e quanto a não se verificar a situação de risco constante do contrato celebrado, denote-se que o Tribunal a quo atendeu “para além de tudo quanto o A. e a interveniente BB esclareceram em julgamento, sobretudo teor dos documentos de fls. 64 vº (requerimento de ativacão da Garantia), 35 (Atestado Médico de Incapacidade Multiuso datado de 18.2.2011, que, porquanto afirmado pelo A. e reconhecido pelo R., o Tribunal aceita ter sido remetido pelo primeiro ao segundo a instruir o requerimento de ativacão da Garantia, mas cuja relevância probatória no que ao seu teor diz respeito se afirma estar fortemente comprometida pelo simples mas decisivo facto de tal documento não se encontrar assinado pelo médico que supostamente o elaborou ou por quem mais quer que seja), 36 a 39 e 69 a 70 vº (correspondencia trocada entre A. e R. com relacão à questão do acionamento da Garantia).” (destaque nosso)
XXII. Deste modo, mostra-se evidente o motivo pelo qual o accionamento do risco do contrato celebrado não pôde ser ter lugar: a incapacidade de que o autor padece– e que ficou provada –, é sobejamente inferior àquela que o acordo pressupõe para que o contrato em apreço possa ser accionado.
XXIII. Como tal, não existindo produção de prova inválida, considerando as regras da experiência comum, e não sendo demonstrado pelos autores que existe um facto que contraria toda a evidência, não nos parece plausível que as enunciadas pretensões dos autores, possam ser valoradas de forma diferente daquela que foram pelo Tribunal a quo.
C - Da nulidade das cláusulas no GPE, por força dos arts, 12º, 15º e 16º RJCCG
XXIV. Desde logo, deve a recorrida apontar que, questões novas suscitadas pelos autores apenas em sede de recurso, que não foram alegadas oportunamente, nem consideradas pelo Tribunal, nos termos do artigo 608.º, n.º 2 do CPC, não podem ser levadas em conta, estando, assim, vedada a sua apreciação ao Tribunal de recurso;
XXV. Sem prejuízo e à cautela, sempre se dirá que o contrato de Garantia de Pagamento de Encargos (GPE) – contrato em questão -, é, efectivamente, um contrato de adesão;
XXVI. Facto esse, que nos remete para o âmbito de aplicação do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, que instituiu o Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais (adiante, “RJCCG”), Cláusula essas (CCG) que surgiram por efeito da necessidade de rapidez e de normalização, impostas pelas modernas sociedades técnicas e industrializadas;
XXVII. Sendo desenvolvidas à sombra da liberdade contratual, uma vez que a adesão a um esquema negocial pré-estabelecido é um exercício de autonomia privada de cada cidadão.
XXVIII. Contudo, pelas características que as distinguem - leia-se, a desigualdade entre as partes contratantes e a tendencial complexidade dos clausulados -, surge a necessidade de legislação específica, tal como se encontra versado no preâmbulo do Decreto-Lei nº446/85, de 25 de outubro: “(…) a criação de instrumentos legislativos apropriados à matéria reconduz-se à observância dos imperativos constitucionais de combate aos abusos do poder económico e de defesa do consumidor.”;
XXIX. Encontrando-se, assim, traçado o espírito e o objectivo do RJCCG, que se desenvolve em torno da defesa do consumidor (i.e., daquele que adere a um contrato com cláusulas pré-negociais, destinado a pessoas indeterminadas, e que se caracteriza pela sua rigidez);
XXX. Contudo, esta defesa não é sinónimo de uma total desresponsabilização daquele, que actua de forma negligente, pois se assim fosse, as virtudes que se associam às CCG, principalmente a nível de tráfico jurídico, seriam anuladas pelo receio, paralisante do comércio jurídico, de que a qualquer cliente fosse permitido invocar a exclusão de cláusulas do contrato de adesão, através da mera alegação de desconhecimento das cláusulas, mesmo que tenha assinado uma declaração a assumir a tomada de conhecimento das mesmas (como ficou fundamentadamente provado que ocorreu no caso dos autos – facto b), considerado como provado e não impugnado pelos autores).
XXXI. Neste sentido, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 24 de Março de 2011, processo 1582/07.1TBAMT-B.P1.S1, disponível para consulta em www.dgsi.pt e transcrito, supra, sendo de destacar que “(…) o legislador não tratou o aderente como pessoa inábil e incapaz de adoptar os cuidados que são inerentes à celebração de um contrato e por isso lhe exigiu também um comportamento diligente tendo em vista o conhecimento real e efectivo das cláusulas que lhe estão a ser impostas.”
XXXII. Ora, não estando em causa, na relação controvertida, o conhecimento dos autores, da cláusula que prevê que “apenas releva para acionar a Garantia o processo de incapacidade a que corresponda uma percentagem igual ou superior a 70% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidade”, mas antes a sua boa/má-fé, devemos ter em consideração que:
XXXIII. Dos artigos 12.º, 15.º e 16.º do RGCCG – os invocados pelos recorrentes-, retira-se que as cláusulas proibidas são nulas, consubstanciando-se aquelas nas contrárias à boa-fé, e para as quais se exige a ponderação da confiança suscitada pelas partes, e no objectivo que se visa atingir negocialmente;
XXXIV. E que, paralelamente, nos termos do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09/09/2021, processo n.º 15426/17.2T8LSB.L1-2, disponível in www.dgsi.pt, “III - Na definição e concretização dessa invalidez há que atender ao que consta da apólice e às cláusulas das condições gerais, especiais e particulares, interpretando-as, tendo em atenção o disposto nos artigos 236.º a 238.º do CC e no art. 11.º, n.ºs 1 e 2, do RRCCG.”.
XXXV. Com efeito, vislumbrando-se a complexidade que engloba a avaliação médico-legal do dano corporal, parece-nos lógico adoptar da Tabela Nacional de Incapacidades também no âmbito do tipo de contratos em causa;
XXXVI. Reiterando-se o já apontado em sede de contestação, que para a percentagem atribuída no Atestado Médico de Incapacidade Multiuso de 18 de Fevereiro de 2011, não foi utilizada a Tabela Nacional de Incapacidades (TNI) em vigor em 2004 (que entrou em vigor em 1993 e que foi substituída, apenas, em 2007), ou seja, à data do acidente, mas sim, a TNI em vigor à data da emissão do referido Atestado;
XXXVII. E que foi por este motivo que à Recorrida era e é impossível atender ao pedido dos autores.
XXXVIII. Mais se mencionando que, o reconhecimento judicial da situação de invalidez do autor, verificada em juízo pelo Tribunal a quo, com base em toda a prova produzida - no qual se conclui pela fixação da incapacidade do autor em 36,16% -, difere daquela que é pretendida por aquele e que consta no Atestado Médico de Incapacidade Multiuso de 18/02/2011;
XXXIX. Não se percebendo, ainda, a invocação de má-fé objectiva “ao reservar exclusivamente para a Recorrida o direito exclusivo sobre a verificação da incapacidade do recorrente” uma vez que, o autor poderia ter recorrido ao mecanismo proposto e previsto no Regulamento de Benefícios, i.e., poderia o associado solicitar uma junta médica paritária para avaliação da situação – Docs. 7. e 8., juntos com a douta petição inicial -, o que não aconteceu, tendo antes preferido recorrer à via judicial;
XL. Não nos parecendo, assim, possível configurar nas cláusulas alegadas, por preenchimento e densificação das mesmas, um comportamento da Associação Mutualista, que consubstancie a violação dos ditames da boa-fé objectiva, uma vez que são evidentes quais as expectativas de confiança que se geraram nas partes aquando contratação – o GPE seria accionado em caso de invalidez superior a 70% –, e o objetivo negocial evidente – uma modalidade mutualista que cobre os riscos de morte e invalidez, nos termos acordados;
XLI. Ademais, volte-se a referir que, como nos parece lógico, não se pode pretender provar uma invalidez a fim de acionar o GPE, com base no Atestado Médico de Incapacidade Multiuso datado de 18/02/2011, quando este documento não se encontra assinado (nem pelo médico que supostamente o elaborou, nem por qualquer outra pessoa/entidade);
XLII. E que, se do dito acidente resultou a incapacidade total e permanente do autor para o desempenho da sua profissão à data do acidente (facto provado), não se averiguou a sua (in)capacidade para toda e qualquer actividade remunerada –antes pelo contrário;
XLIII. Motivos pelos quais, também esta pretensão não deve ter acolhimento, não sendo as cláusulas em causa nulas, tendo o Tribunal a quo decidido de forma correcta e devidamente fundamentada.
XLIV. Assim, face ao exposto, consideramos que as alegações de recurso dos autores não têm base de sustentação, motivo pelo qual não merecem provimento.
XLV. Devendo, em suma, manter-se inalterada a douta decisão do Tribunal a quo.
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Colhidos os Vistos, cumpre decidir.
II - Delimitação do Objecto do Recurso
As questões decidendas, delimitadas pelas conclusões do recurso, consistem em saber se a sentença é nula, se deve ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto, e na hipótese afirmativa, se o Réu está obrigado a proceder ao pagamento das prestações do mútuo em razão da invalidez do mutuário.
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Da Nulidade
Os Recorrentes invocaram a nulidade da sentença por não explicitar, em resumo, a subsunção jurídica e factual que sustenta a decisão.
As causas de nulidade da sentença estão elencadas no artigo 615.º, n.º 1 nas alíneas a) a e) do C.P.Civil.
A sentença, após identificar as partes, o objecto do litígio e enunciar as questões que cumpre solucionar, expõe os fundamentos, ou seja, discrimina os factos que considera provados e não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas por lei ou por regras da experiência (cfr. n.ºs 2 a 4 do art. 607.º do C.P.Civil).
Como se sabe, a fundamentação da decisão permite aos destinatários a compreensão do sentido da decisão e a reapreciação da causa, em caso de recurso.[1]
É nula a sentença quando nomeadamente não especifique os fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão—cfr. artigo 615.º, n.º 1, al.b) do C.P.Civil.
Tem sido entendido, de forma reiterada e unânime pela doutrina e jurisprudência, que este vício (falta de fundamentação) só existe no caso de se verificar uma absoluta e total falta de fundamentação, quer ao nível do quadro factual apurado quer no que respeita ao respectivo enquadramento legal.
Assim, a sentença que contenha uma deficiente, incompleta ou não convincente fundamentação[2] não enferma deste vício.
Trata-se, portanto, de um vício de natureza meramente formal (omissão total da discriminação dos factos e/ou das normas jurídicas aplicáveis) e não substancial.
É importante realçar que estamos perante vícios de natureza meramente formal, que não se confundem com a incorrecta análise ou valoração dos meios de prova que conduziram o juiz a decidir, a matéria de facto, num determinado sentido.
Os Recorrentes referem não entender o motivo pelo qual o tribunal a quo se baseou no relatório pericial e não no atestado multiusos por si junto aos autos para demonstrar o grau de incapacidade que afecta o Autor.
Ora, afigura-se-nos evidente que inexiste a nulidade apontada porquanto a sentença contém a fundamentação de facto e de direito justificadora da solução jurídica propugnada, o que é totalmente diferente com a discordância relativamente à valoração dos meios de prova.
Nesta parte, improcede o recurso.
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Da Modificabilidade da Decisão sobre a matéria de facto
Nos termos do artº. 662º. do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A possibilidade que o legislador conferiu ao Tribunal da Relação de alterar a matéria de facto não é absoluta pois tal só é admissível quando os meios de prova revisitados não deixem outra alternativa, ou seja, em situações que, manifestamente, apontam em sentido contrário ao decidido pelo tribunal a quo.
Se a decisão do julgador está devidamente fundamentada, segundo as regras da experiência e da lógica, não pode ser modificada, sob pena de inobservância do princípio da livre convicção.[3]
Como acima já tivemos oportunidade de aflorar, os Recorrentes pretendem a alteração dos factos descritos na alínea bb)) cujo teor se transcreve:
Teor do relatório pericial médico elaborado em 8 de abril de 2019 pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses – Delegação do Norte do INML, CF,IP, a fls. 418 a 424 vº dos autos, com os esclarecimentos prestados em 21 de maio de 2019, a fls. 434 a 435 vº dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, relativo ao exame realizado ao A. em 18 de fevereiro de 2019 na referida Delegação do Norte, e no qual, em sede de “DISCUSSÃO e CONCLUSÕES”, se refere que:
“(…)
2. A 11-10-2004 o examinando sofreu acidente de trabalho do qual resultou traumatismo da região lombar (lise ístmica L4-L5).
(…)
3. A situação clínica do examinado pode considerar-se estabilizada desde 15-01-2008 (data de fixação da incapacidade em junta médica do Tribunal de Trabalho), sendo que a partir da mesma é portador de uma incapacidade permanente.
4. A partir da data referida no ponto anterior, o examinando é portador de uma incapacidade de 36,16%, tendo em conta a Tabela Nacional de Acidentes de Trabalho (Anexo I, Decreto de Lei 352/2007):
Código da Tabela a que correspondem as sequelas
Coeficientes previstos na tabela
Coef.
Arbitrados
Soma Direta
Capacid. restante
Desvalorização arbitrada
III, 5.2.1,a) (por analogia, tendo em conta as limitações na marcha causadas pelas sequelas do traumatismo lombar)
0.2-0.5
0,30000
1
0,30000
X, grau I (tendo em conta a perícia de psiquiatria)
0.01-0.05
0,04000
0,70000
0,32800
VIII, 4.1 8 (por analogia, tendo em conta a perícia de urologia)
0.05-0.1
0,05000
0,67200
0,36160
36,16000 %
5. Tendo em conta o parecer realizado pelo Centro de Reabilitação Profissional ..., o examinado encontra-se com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habituais.
6. Tendo em conta o estado clínico do examinando, é de admitir que necessita de ajuda de terceira pessoa para a realização das atividades de vida diária, na forma de complemento na realização de certas atividades (vestir, despir e tomar banho, confeção de refeições, atividades domésticas).
(…)”
Resulta da leitura da mencionada alínea que nela foi reproduzida a parte relevante do relatório forense elaborado no âmbito do pedido solicitado pelo tribunal relativo à avaliação feita pelos peritos médicos do Instituto de Medicina Legal, organismo com competência para realizar este tipo de exame e avaliação do dano corporal, a fim de ser determinado o grau de incapacidade que afecta o Autor.
Por conseguinte, inexiste qualquer motivo para alterar esta alínea.
Questão diferente prende-se com a opção, na fixação do grau de incapacidade do Autor, entre o mencionado relatório forense e o atestado multiusos.
Neste particular, tem sido entendido, de forma reiterada e uniforme, que o juiz é livre de apreciar os meios de prova designadamente a prova pericial.
Porém, o juiz está adstrito ao preceituado no artigo 467.º, n.º 3 do C.P.Civil na medida em que determina a realização das perícias médico-legais pelos serviços médico-legais ou pelos peritos médicos contratados, nos termos previstos no diploma que as regulamenta.
Relativamente ao atestado multiusos, resulta do Dec.-Lei n.º 202/96 de 23.10, alterado pelos Dec.-Leis n.ºs 291/2009 de 12.10 e 1/2022 de 03.01, que foi estabelecido o regime de avaliação de incapacidade das pessoas com deficiência, tal como definido no art.º 2.º da Lei n.º 38/2004 de 18/08, para efeito de acesso às medidas e benefícios previstos na lei.
Na avaliação do grau de incapacidade de pessoa portadora de deficiência é observada a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, com especificidades: a avaliação deve obedecer às instruções gerais constantes do anexo I do diploma, não se aplicando as instruções gerais daquela Tabela-cfr. art.º 4.º, als. a) e b).
Por conseguinte, o atestado multiusos prossegue objectivos de natureza pública, tendo em vista concretizar medidas específicas de apoio à integração profissional e social da pessoa deficiente.
No sentido preconizado pelo Acórdão da Relação de Lisboa de 09/09/2021[4], que apreciou uma situação similar, não há dúvida de que o atestado multiusos, embora possa ter valor como documento, não é considerado, no âmbito de uma acção judicial, que requer a avaliação do dano através de uma perícia médico-legal, como prova bastante para determinar o grau de incapacidade do mutuário, passível de ser considerado como risco coberto pelo contrato de seguro, com observância dos princípios de processo civil mormente do princípio do contraditório.
Em resumo, a valoração dos meios de prova feita pelo tribunal não nos merece reparo, pelo que se mantém a decisão proferida sobre a matéria de facto.
*

III - FUNDAMENTAÇÃO
FACTOS PROVADOS
a) O A. AA é associado efetivo da Banco 1... desde dia 10 de setembro de 1998, data em que, conjuntamente com BB, também ela associada efetiva da referida Associação, subscreveu um Plano na modalidade mutualista individual de proteção designada por “Garantia de Pagamento de Encargos”, nos termos constantes dos documentos nºs 1, 2 e 3 juntos com a contestação, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
b) Aquando a subscrição do referido Plano “Garantia de Pagamento de Encargos” o A. foi devidamente esclarecido relativamente às respetivas condições e coberturas, tendo-lhe sido entregue cópia dos Estatutos e do excerto do Regulamento de Benefícios do Banco 1..., bem como cópia do Regulamento da modalidade subscrita;
c) Nos termos do artº 1º, nº 1, do Capítulo III, Secção VI, do “Regulamento dos Benefícios do Banco 1...”, a modalidade designada por Garantia do Pagamento de Encargos I destina-se, em caso de falecimento ou invalidez do subscritor, a substituí-lo no pagamento das prestações que se vencem até ao termo de um determinado contrato celebrado por prazo superior a oito anos, ou a proporcionar a entrega de uma determinada quantia aos beneficiários indicados;
d) Considerando-se estado de invalidez permanente, nos termos do artº 22º do Capítulo I, do referido Regulamento, “o processo de incapacidade a que corresponda uma percentagem igual ou superior a 70% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades, mas esta percentagem será corrigida, acrescentando-se-lhe o grau de invalidez que existia à data da subscrição”;
e) Ainda nos termos do mesmo Regulamento (cfr. o artº 4º da Secção VI do Capítulo III), “em caso de morte ou invalidez, o Banco 1... pode optar entre pagar integral e imediatamente o capital em dívida ou substituir-se ao devedor no pagamento das respetivas prestações”;
f) Por escritura pública outorgada em 14 de outubro de 1998, o A. e BB adquiriram uma fração autónoma designada pelas letras “AP”, correspondente a uma habitação no 4º andar esquerdo, com entrada pelo nº ....., do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., a qual se encontra descrita na Conservatória do Registo Predial de Valongo sob o nº ..., da freguesia ..., e inscrita na respetiva matriz predial sob o artigo ......;
g) Nessa oportunidade, entre o A. e BB e o Banco 1...”, foi ainda ajustado um empréstimo pelo último aos primeiros no valor global de 14.000.000$00 (catorze milhões de escudos), que estes se obrigaram a pagar ao mutuante em 360 (trezentas e sessenta) prestações mensais, nos termos das cláusulas constantes do documento complementar que faz parte da referida escritura, junto com a petição inicial como documento nº 1, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (contrato nº ...);
h) Acordando A. e R., em razão da subscrição do Plano de proteção designado por “Garantia de Pagamento de Encargos”, que, em caso de morte ou invalidez permanente, correspondente a uma percentagem igual ou superior a 70%, o R. garantia o pagamento das prestações que se vencessem no aludido contrato de mútuo celebrado;
i) O A. AA foi pintor de serralharia, exercendo essa sua atividade sob as ordens, orientação e direção da sua entidade patronal, a sociedade comercial denominada “E..., Lda.”, sediada na Travessa ..., ..., em ... – Maia;
j) No dia 11-10-2004, o A. sofreu um acidente de trabalho, sendo que, durante o seu horário de trabalho (pelas 16h), que estava ser por si prestado sob a orientação e direção da sua entidade patronal, quando pegava num painel em chapa foi acometido de forte dor nas costas;
k) Na sequência desse acidente, o A. veio a ser submetido a cirurgia à coluna lombar no Hospital ..., tendo tido complicações pós-cirúrgicas de caráter infecioso, que motivaram múltiplas cirurgias, tratamentos e internamentos;
l) Em 22 de maio de 2007, o A. foi observado por junta médica constituída no âmbito do processo nº 591/05.0TTMAI do Tribunal de Trabalho de Valongo, Secção Única, entretanto instaurado, que concluiu, por unanimidade, que “apresenta claramente instabilidade da coluna lombo-sagrada, com acentuado défice funcional (…). Mais declara que desde a data do acidente até à junta deve ser considerado em situação de ITA”, nessa sequência tendo o Tribunal determinado que “Atento o estado de saúde de sinistrado, que se encontra ainda afetado de uma situação de incapacidade total absoluta, como referem, por unanimidade, os senhores peritos médicos presentes nesta junta, dê conhecimento à companhia seguradora, enviando para tanto certidão desta ata, a fim desta pagar aos sinistrado as pensões devidas por tal situação de ITA bem como para proceder aos tratamentos e demais cuidados médicos que sejam necessários à sua situação”;
m) Novamente em 15 de janeiro de 2008 o A. foi observado por junta médica constituída no âmbito do mesmo processo do Tribunal de Trabalho por três peritos, tendo-lhe sido fixada uma incapacidade permanente parcial de 15%, majorada por fator de bonificação em 1,5%, o que resulta numa desvalorização arbitrada de 22,5%;
n) Em 21 de agosto de 2008, o A., alegando agravamento da sua situação clínica, requereu revisão do seu processo, em resultado do que foram efetuados exames complementares de diagnóstico e em 14 de dezembro de 2008 elaborado pelo INML novo relatório pericial, nos termos do documento junto em fotocópia a fls. 66 a 68 vº dos autos, cujo teor ora se dá por integralmente reproduzido, concluindo novamente pela fixação de uma incapacidade parcial permanente de 15%;
o) Do dito acidente, resultou a incapacidade total e permanente do A. para o desempenho da sua profissão à data do acidente;
p) Como consequência da vivência das limitações físicas de que passou a sofrer em razão de tal acidente, com incapacidade absoluta para o seu trabalho, o A. passou a sofrer perturbações de stress pós-traumático e de trastorno da adaptação com humor depressivo, e desencadeou um processo de reação depressiva prolongada;
q) De que não sofria antes do acidente;
r) E que atingiram um grau de irreversibilidade;
s) Em 18 de fevereiro de 2011 o A. requereu junto do Balcão de ... da Banco 1..., e na qualidade de beneficiário próprio, a ativação da Garantia por Invalidez da modalidade subscrita, por motivo de ocorrência do acidente a que se alude em j), instruindo esse seu requerimento com o documento (Atestado Médico de Incapacidade Multiuso) de que se mostra junta fotocópia a fls. 35 dos autos (documento nº 5 com a petição inicial), cujo teor se dá por integralmente reproduzido e do qual consta a menção da atribuição ao A. de um grau de incapacidade permanente global de 72%, de acordo com a TNI (Anexo I) aprovada pelo Dec.-Lei nº 352/2007, de 23 de outubro;
t) Nessa sequência, por carta registada com data de 29 de março de 2011, o R. solicitou ao A. a apresentação dos “Relatórios de Neurologia e Psiquiatria que serviram de base à atribuição da incapacidade pela Delegação de Saúde”, nos termos constantes do documento junto em fotocópia a fls. 69 dos autos (documento nº 8 com a contestação), cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
u) Fê-lo porquanto considerou insuficiente, para a emissão do parecer médico, a documentação clínica enviada pelo A., e uma vez que nos relatórios apresentados no âmbito do processo que correu termos no Tribunal de Trabalho de Valongo e a que se alude em l), não foi referida a existência de qualquer patologia psiquiátrica relacionada com o acidente;
v) Com data de 5 de maio de 2011, por carta registada remetida com aviso de receção, conforme documento de que a fls. 70 dos autos se mostra junta fotocópia e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, os Serviços Médicos do R., após análise da documentação entretanto enviada pelo A., e pelo facto de a mesma não se encontrar completa, solicitaram ao A. o envio da informação em falta;
w) Após o que, em 2 de junho de 2011, por os Serviços Médicos do R. considerarem necessária a observação presencial do associado nas instalações daqueles serviços, solicitaram ao A. a sua deslocação a Lisboa para que fosse observado por eles;
x) Subsequentemente ao exame presencial a que o A. foi então submetido em 16 de agosto de 2011 nos Serviços Médicos do R., este último remeteu-lhe a carta, datada de 25 do mesmo mês, de que a fls. 36 e 37 dos autos se junta fotocópia, e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, informando-o de que (sic.) «na sequência do exame presencial a que foi submetido nos Serviços Médicos do Banco 1..., em 16 do corrente mês, fomos recebedores do parecer clínico emitido, que conclui que:
“Com base na observação presencial efectuada e nos relatórios Médicos enviados pelo Associado, sou de parecer que a invalidez permanente que o afecta é inferior a 70%”;
y) E mais acrescentando que “Nestes termos e em face do que se encontra regulamentado nas Disposições Gerais do Regulamento de Benefícios (artº 4º nº 5) em vigor, que abaixo se transcreve, informamos V. Exa. que não é possível ao Banco 1..., assumir o pagamento de qualquer benefício por invalidez, mantendo-se em vigor a subscrição da modalidade associativa que lhe está afecta para a cobertura dos riscos de Morte e Invalidez Permanente, designada por Garantia de Pagamento de Encargos.
Caso não esteja de cordo com a decisão tomada, poderá com base nos nºs 9 a 11 do Artº 4º das Disposições Gerais do Regulamento de Benefícios, solicitar exame médico perante uma junta médica.”;
z) Em 25 de março de 2015, após o A. ter apresentado reclamação e nova documentação, o R. remeteu ao A. a carta de que a fls. 38 dos autos se mostra junta fotocópia, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, informando-o de que “Na sequência de nova documentação médica que nos foi remetida em 9 de janeiro do corrente ano (…) no sentido de ser reavaliada a sua incapacidade, informamos que após análise cuidada da mesma, mantemos a nossa decisão de não assumir o pagamento de qualquer benefício por invalidez, a qual se encontra suportada pelo parecer emitido pela Dra. CC (médica neurocirurgiã perita em dano corporal).”;
aa) Apesar de tanto na missiva a que se alude em x) e y), quanto na missiva a que se alude em z), o R. mais ter alertado o A. de que ao abrigo do previsto no Regulamento de Benefícios do Banco 1..., o associado pode solicitar uma junta medica paritária para avaliação da sua situação, a tal mecanismo o A. todavia não recorreu, antes intentando a presente ação;
bb) Teor do relatório pericial médico elaborado em 8 de abril de 2019 pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses – Delegação do Norte do INML, CF,IP, a fls. 418 a 424 vº dos autos, com os esclarecimentos prestados em 21 de maio de 2019, a fls. 434 a 435 vº dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, relativo ao exame realizado ao A. em 18 de fevereiro de 2019 na referida Delegação do Norte, e no qual, em sede de “DISCUSSÃO e CONCLUSÕES”, se refere que:
“(…)
2. A 11-10-2004 o examinando sofreu acidente de trabalho do qual resultou traumatismo da região lombar (lise ístmica L4-L5).
(…)
3. A situação clínica do examinado pode considerar-se estabilizada desde 15-01-2008 (data de fixação da incapacidade em junta médica do Tribunal de Trabalho), sendo que a partir da mesma é portador de uma incapacidade permanente.
4. A partir da data referida no ponto anterior, o examinando é portador de uma incapacidade de 36,16%, tendo em conta a Tabela Nacional de Acidentes de Trabalho (Anexo I, Decreto de Lei 352/2007):
Código da Tabela a que correspondem as sequelas
Coeficientes previstos na tabela
Coef.
Arbitrados
Soma Direta
Capacid. restante
Desvalorização arbitrada
III, 5.2.1,a) (por analogia, tendo em conta as limitações na marcha causadas pelas sequelas do traumatismo lombar)
0.2-0.5
0,30000
1
0,30000
X, grau I (tendo em conta a perícia de psiquiatria)
0.01-0.05
0,04000
0,70000
0,32800
VIII, 4.1 8 (por analogia, tendo em conta a perícia de urologia)
0.05-0.1
0,05000
0,67200
0,36160
36,16000 %
5. Tendo em conta o parecer realizado pelo Centro de Reabilitação Profissional ..., o examinado encontra-se com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habituais.
6. Tendo em conta o estado clínico do examinando, é de admitir que necessita de ajuda de terceira pessoa para a realização das atividades de vida diária, na forma de complemento na realização de certas atividades (vestir, despir e tomar banho, confeção de refeições, atividades domésticas).
(…)”
cc) O A. vem pagando pontualmente todas as prestações do mútuo contratado com o Banco 1...” e a que se alude em g);
dd) À data da comunicação do sinistro (18.2.2011) encontrava-se ainda em dívida ao Banco 1...”, referente ao contrato de mútuo em questão, a quantia de €51.979,79 (cinquenta e um mil novecentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos);
ee) No período de 18.2.2011 a 23.1.2020 os valores entregues pelo A. totalizavam já €32.208,47 (trinta e dois mil duzentos e oito euros e quarenta e sete cêntimos);
ff) Em 21.1.2020 a dívida ao Banco mutuante ascendia a € 27.143,45 (vinte e sete mil cento e quarenta e três euros e quarenta e cinco cêntimos);
*
Não se provaram quaisquer outros factos dentre os alegados com relevância para a decisão do mérito da causa, designadamente que:
- Em 14 de outubro de 1998 o A. celebrou com o R. um contrato de seguro, titulado por apólice que todavia nunca lhe foi entregue;
- Do teor do parecer clínico a que se alude sob a alínea x), o R. não deu conhecimento ao A. de nada mais para além do excerto que ali se transcreve.
*
IV - DIREITO
O Autor comprou uma fracção autónoma, para nela habitar, com recurso a um empréstimo concedido pela “Banco 1...”, obrigando-se a devolver essa quantia em 360 prestações mensais.
Para esse efeito, o Autor e a interveniente mulher subscreveram o plano de proteção designado por “Garantia de Pagamento de Encargos”, que, em caso de morte ou invalidez permanente, garantia o pagamento das prestações que se vencessem no aludido contrato de mútuo celebrado.
O Réu, apesar de não ser uma seguradora mas sim uma instituição de cariz mutualista, desempenha, segundo José Vasques[5], um papel em tudo semelhante ao das seguradoras.[6]
A questão principal que se suscita neste recurso consiste em saber se o Réu está obrigado, com base no contrato celebrado com o Autor, a pagar as prestações do contrato de mútuo em razão do estado de invalidez de que ficou afectado.
A subscrição de um contrato desta natureza, ramo vida, associado a um contrato de mútuo concedido pelo Réu para aquisição de habitação própria, destina-se a acautelar a hipótese de o mutuário perder, por invalidez total e irreversível, a sua capacidade de ganho e consequentemente, a sua habitação.
No designado Regulamento de Benefícios, está previsto o âmbito da Garantia de Pagamento de Encargos, a qual se destina, em caso de falecimento ou invalidez do subscritor, a substituí-lo no pagamento das prestações que se vencem até ao termo de um determinado contrato celebrado por prazo superior a 8 anos, ou a proporcionar a entrega de uma determinada quantia aos beneficiários indicados (cfr. art.º 1.º, n.º 1).
Assim, em caso de morte ou invalidez, o Banco 1... pode optar entre pagar integral e imediatamente o capital em dívida ou substituir-se ao devedor no pagamento das respectivas prestações (cfr. art.º 4.º).
No art.º 5.º da referida secção de Garantia de Pagamento de Encargos consta o seguinte:
1 - O risco de invalidez total e permanente pode ser coberto até aos 65 anos.
2 - O risco de invalidez absoluta e definitiva pode ser coberto até aos 70 anos.
3 - O risco de morte pode ser coberto até aos 80 anos.
Nas Disposições Gerais do mencionado Regulamento de Benefícios estabeleceu-se, no art.º 22.º, n.º 1, que para todos os efeitos considera-se estado de invalidez permanente o processo de incapacidade a que corresponde uma percentagem igual ou superior a 70 % de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades.
O legislador substituiu, através do Dec.-Lei n.º 352/2007 de 23,10, na altura a única Tabela Nacional de Incapacidades, específica do foro laboral, por duas tabelas respeitantes à avaliação do dano corporal por ter considerado que a utilização daquela, no âmbito do direito civil, conduzia a situações injustas.
Com efeito, no preâmbulo do mencionado diploma legal reconheceu-se que são diferentes os parâmetros de dano a avaliar consoante o domínio do direito em que essa avaliação se processa, face aos distintos princípios jurídicos que os caracterizam. Exemplificando que, no direito laboral, está em causa a avaliação da incapacidade de trabalho resultante de acidente de trabalho ou doença profissional que determina perda da capacidade de ganho, enquanto que no âmbito do direito civil, e face ao princípio da reparação integral do dano nele vigente, se deve valorizar percentualmente a incapacidade permanente em geral, isto é, a incapacidade para os actos e gestos correntes do dia-a-dia, assinalando depois e suplementarmente o seu relexo em termos da actividade profissional específica do examinado.
Como já se referiu, com o objectivo de ultrapassar as injustiças que se verificavam antes da publicação do mencionado diploma legal, o legislador optou, pela aplicação de duas tabelas de avaliação das incapacidades: uma destinada a proteger os trabalhadores no domínio particular da sua actividade como tal, isto é, no âmbito do direito laboral e outra direccionada para a reparação do dano em processo civil.
Atendendo à aludida finalidade do contrato de mútuo, concedido pelo Réu, para aquisição de habitação própria, consistente em prevenir o risco de o mutuário perder, por morte ou invalidez, a sua capacidade de ganho, afigura-se-nos que a utilização da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidente de Trabalho ou Doença Profissional é a que melhor se adequa à avaliação do dano com repercussão laboral.
Perante o acordado entre as partes, é indubitável que o Réu garantiu o pagamento das prestações advenientes do mútuo em caso de morte do mutuário ou de invalidez total e permanente (com um grau igual ou superior a 70%) bem como de invalidez absoluta e definitiva.
Ao remeter a avaliação da invalidez permanente do mutuário para a Tabela Nacional de Incapacidades, e ao assegurar o pagamento das prestações a que aquele se obrigou em caso de invalidez total e permanente ou absoluta e definitiva, o Réu acolheu as noções estabelecidas sobre esta temática na legislação laboral e que deverão corresponder à interpretação que um declaratário normal, na situação concreta, concluiria face à distinção entre dois estados de invalidez.
Assim, nos termos do art.º 19.º, n.º 3 da Lei n.º 98/2009 de 04.09 a incapacidade permanente pode ser parcial, absoluta para o trabalho habitual ou absoluta para todo e qualquer trabalho.
A determinação da incapacidade, nos termos do art.º 20.º do citado diploma legal, é efectuada com recurso à tabela nacional das incapacidades por acidentes de trabalho e doenças profissionais.
Na avaliação e graduação deve ter-se em conta que o grau de incapacidade resultante de acidente define-se, em todos os casos, por coeficientes expressos em percentagens e determinados em função da natureza e da gravidade da lesão, do estado geral do sinistrado, da sua idade e profissão, bem como da maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível e das demais circunstâncias que possam influir na sua capacidade de trabalho ou de ganho (cfr. art.º 21.º, n.º 1).
Mas quando se verifique disfunção total com incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho o grau de incapacidade é expresso pela unidade (cfr. art.º 21.º, n.º 2).
Portanto, aqui chegados importa distinguir entre a incapacidade permanente parcial (IPP) e a incapacidade permanente absoluta, que pode ser para o trabalho habitual (IPATH) ou para qualquer e todo trabalho (IPA).
Como se explica no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24/01/2018[7], quando tenha sido atribuída uma IPATH, não tem qualquer relevo prático o grau de desvalorização funcional que tenha sido efectivamente considerado para esse efeito. Primeiro porque o que releva, nesse caso, é que a sequela resultante do acidente de trabalho (independentemente do grau de desvalor que esteja em causa) tenha sido determinante da perda ou diminuição da função inerente ou imprescindível ao desempenho do posto de trabalho. Segundo, porque o prejuízo funcional efectivamente detectado (ainda que seja inferior à unidade) se diluiu na definição da natureza da incapacidade, passando a implicar, para todos os efeitos, uma incapacidade absoluta. (sublinhado nosso)
É importante esclarecer que a distinção entre a incapacidade permanente para o trabalho habitual e a incapacidade absoluta para todo e qualquer trabalho apenas releva para efeitos de quantificação do subsídio da situação de elevada incapacidade permanente (cfr. art.º 67.º, n.º 2 e 3) e da pensão (cfr. art.º 48.º, als. a) e b)).
A jurisprudência, em casos desta natureza, tem verificado, em algumas apólices de seguro, a previsão de duas situações de incapacidade permanente do mutuário ou de uma delas, concretamente a cobertura de invalidez total e permanente e outra mais grave designada por incapacidade absoluta e definitiva que correspondem grosso modo às definições consagradas na Lei dos Acidentes de Trabalho.[8]
Esta última, incapacidade absoluta (IPA), aplica-se nos casos em que se demonstra uma incapacidade irrecuperável para exercer qualquer actividade remunerada.
Neste sentido, concluiu-se no Acórdão do STJ, de 17/10/2019[9], que a previsão de invalidez absoluta e definitiva, constante de uma apólice de seguro, é susceptível de ser entendida por um declaratário normal como uma situação em que a pessoa afectada se encontra num estado que a deixa totalmente (completamente, sem restrição) incapaz para o resto da vida, de exercer a sua actividade, designadamente laboral, em termos de obtenção de meios de subsistência.
Acrescentando-se que a situação em que o segurado não pode continuar a desempenhar a actividade profissional anterior, mas pode desempenhar funções de natureza idêntica dentro da sua área de formação técnico profissional, desde que com uma menor intensidade e exigindo menor esforço físico, é conciliável com uma situação de incapacidade parcial.
Igual entendimento foi perfilhado no Acórdão desta Relação do Porto, de 15/12/2021.[10]
Por conseguinte, o disposto no art.º 22.º, n.º 1 das Condições Gerais que exige a demonstração de uma incapacidade correspondente a uma percentagem igual ou superior a 70 % de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades só é aplicável quando o mutuário fica afectado de uma incapacidade parcial permanente (IPP) e não quando está em causa uma incapacidade absoluta seja parcial (para o trabalho habitual) seja global, para todo e qualquer trabalho.
Cumpre agora analisar a situação clínica do Autor por forma a saber se ficou com uma incapacidade parcial permanente (hipótese em que o grau de incapacidade é igual ou superior a 70% para o Réu ser responsável) ou com uma incapacidade absoluta e definitiva.
No dia 11 de Outubro de 2004 o Autor foi vítima de um acidente quando se encontrava a trabalhar, que lhe causou traumatismo da região lombar, tendo sido sujeito a intervenções cirúrgicas.
Em 15 de Janeiro de 2008 no Tribunal de Trabalho foi-lhe atribuída uma IPP de 15% majorada por factor de bonificação de 1,5%, resultando uma IPP de 22,5%. Pediu revisão da avaliação com fundamento em agravamento da sua situação clínica, e após ter sido examinado em 10/12/2008 referiu ter dificuldade na marcha por dor lombar e nos membros inferiores, sintomas depressivos causados por esta situação, lombalgia persistente com irradiação para os membros inferiores. Apresentou-se com marcha claudicante com recurso a ajuda de canadianas.
Perante as sequelas apresentadas foi considerado com incapacidade permanente absoluta para a actividade profissional habitual, conclusão a que igualmente chegou o Centro de Reabilitação Profissional ..., como consta do Relatório de Avaliação do Dano Corporal em Direito Civil, solicitado pelo presente processo.
Neste último relatório os peritos médicos atribuíram ao Autor uma incapacidade parcial permanente de 36,16%, e declararam, face à avaliação do Centro de Reabilitação Profissional ..., que se encontra com incapacidade permanente absoluta para a actividade profissional habitual, admitindo que necessita de ajuda de terceira pessoa para realização das actividades da vida diária na forma de complemento na realização de certas actividades (vestir, despir, e tomar banho, confecção de refeições, actividades domésticas).
O Autor apresentou-se com marcha claudicante com recurso a canadianas, aparente diminuição da mobilidade da coluna lombar e da força muscular dos membros inferiores.
Queixou-se que anda sempre de canadianas na rua, tem muita dificuldade em subir e descer escadas, custa-lhe permanecer por períodos de tempo superiores a 10-15 minutos na posição ortostática e na posição sentado por períodos superiores a 30 minutos por dor na região lombar e falta de força nas pernas, não consegue realizar as tarefas diárias nem trabalhar desde o acidente com 28 anos de idade até à presente data, com 46 anos. Toma medicação e usa colete ortostático para diminuir as dores permanentes na região lombar, mesmo em repouso e gravadas com a marcha. Necessita da ajuda da esposa para quase todas as tarefas diárias, sendo apenas autónomo na alimentação, só dorme duas horas por noite por dor na região lombar, apenas consegue conduzir em pequenas distâncias por falta de força na perna esquerda.
Em resumo, desde a data em que foi vítima de um acidente de trabalho, com 28 anos de idade, que o Autor deixou de conseguir trabalhar, e após decorridos 18 anos, continua com dores permanentes na região lombar e falta de força nos membros, locomove-se com a ajuda de canadianas e de um colete, não consegue permanecer muito tempo sentado ou de pé, tem dificuldade em dormir, sofre de sintomas depressivos advenientes da sua situação clínica e necessita de ajuda de terceira pessoa para as tarefas básicas da sua vida como vestir, despir, tomar banho e confeccionar refeições.
Perante este quadro fáctico, podemos seguramente concluir que, para além do Autor se encontrar afectado com uma incapacidade absoluta para o trabalho habitual é manifesto que não conseguirá exercer qualquer outra actividade laboral com o mínimo de qualidade e de conforto a nível físico, sendo que o Centro de Reabilitação Profissional reconheceu que poderá experimentar significativas dificuldades no retorno ao trabalho.
Ora, o Réu comprometeu-se a substituir o Autor no pagamento das prestações do contrato de mútuo em caso de invalidez total e permanente, o que se verifica no presente caso, pelo que deverá ser condenado no pagamento das prestações vincendas até final.
Ao invés, no que tange ao pedido de devolução das prestações mensais pagas pelo Autor referentes ao contrato de mútuo, deve improceder uma vez que as obrigações emergentes dos contratos de seguro, apesar de funcionalmente associados aos mútuos bancários, são autónomas relativamente às prestações mensais que o Autor, na qualidade de mutuário, se obrigou a pagar ao mutuante, concessionário do crédito.
Assim, na esteira do que foi reconhecido sobre esta questão no referido Acórdão desta Relação[11], que acompanhamos, a maioria da jurisprudência entende que embora associados ou coligados os contratos de mútuo e de seguro do grupo vida, não deixam de estar sujeitos, cada um deles, às suas regras próprias e específicas e não ficam precludidas as obrigações próprias e especificidades de cada tipo de contrato.
Assim, o eventual incumprimento do contrato de seguro por parte da seguradora, ao não assumir a responsabilidade pelo pagamento do capital mutuado, ou o retardamento da respectiva prestação, não dispensa o mutuário da sua obrigação de continuar a proceder ao pagamento das prestações mensais a que ficou vinculado no contrato de mútuo.
Porém, a partir do reconhecimento dessa responsabilidade, seja por sua iniciativa ou por via judicial, a seguradora está obrigada a cumprir o contrato de mútuo, em substituição do mutuário, tal como se comprometeu.
Procedendo parcialmente o recurso pelos fundamentos aduzidos, fica prejudicada o conhecimento da questão da nulidade das cláusulas contratuais.
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V - DECISÃO

Pelo exposto, acordam as Juízas que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso e, consequentemente, condenam o Réu a pagar as prestações vincendas do contrato mútuo identificado nos autos até final.

Custas pelos Recorrentes e Recorrido, na proporção de 1/3 e 2/3 respectivamente.

Notifique.

Porto, 13/09/2022
Anabela Miranda
Lina Castro Baptista
Alexandro Pelayo
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[1] cfr. Freitas, José Lebre de, A Acção declarativa Comum, 3.ª edição, Coimbra Editora, pág. 332 e Varela, Antunes, ob. cit., pág. 689.
[2] cfr. Reis, Alberto dos, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 140, Varela, Antunes, e outros, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 687.
[3] cfr. neste sentido Ac. Rel. Porto, de 24/03/2014 in www.dgsi.pt.
[4] Disponível em www.dgsi.pt.
[5] Contrato de Seguro, Coimbra Editora, págs. 88 e 89.
[6] Sobre a temátiva v. ainda Ac.STJ de 10/01/2017 disponível em www.dgsi.pt.
[7] Disponível em www.dgsi.pt.
[8] Cfr. Ac. STJ de 10/02/2022 disponível em www.dgsi.pt.
[9] Disponível em www.dgsi.pt.
[10] Disponível em www.dgsi.pt.
[11] No mesmo sentido, v. Ac.Rel. Guimarães de 17/05/2018, consultável em www.dgsi.pt.