Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1167/22.2T8STS-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PROENÇA
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
AÇÕES PENDENTES
Nº do Documento: RP202501281167/22.2T8STS-D.P1
Data do Acordão: 01/28/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Não obstante na epígrafe do art. 85º do CIRE se mencionar “Efeitos sobre as acções pendentes”, os respectivos critérios são aplicáveis também às acções instauradas após a declaração de insolvência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1167/22.2T8STS-D.P1– Apelação

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Sumário:
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Por apenso aos autos de insolvência de pessoa singular em que foi declarada insolvente AA e veio a Massa Insolvente, representada pelo seu administrador, propor acção com processo comum contra a insolvente e contra BB, ambas com os sinais dos autos, alegando que o imóvel de que é comproprietária a insolvente foi dado de arrendamento à 2.a ré pelo período de 20 anos renováveis e mediante o pagamento de uma renda mensal de 140.00 €. Tal arrendamento esse que não se suspendeu com a declaração de insolvência da 1.ª ré, o que se tem mostrado entrave à realização da venda judicial desse bem, porquanto o interessado na aquisição desistiu da compra quando tomou conhecimento da existência do contrato de arrendamento. Tal contrato foi celebrado simuladamente com vista a "proteger" o único imóvel da 1.ª ré das consequências da venda judicial a que ambas sabiam estar sujeito, sem que tal correspondesse às suas vontades reais, para desse modo enganar os eventuais interessados na sua compra e diminuir o valor a ser obtido pela venda judicial, além de procurar garantir a possibilidade da sua ocupação por uma venda irrisória, em prejuízo dos credores. Invoca, assim, a nulidade do contrato de arrendamento por simulação, pedindo que seja declarado nulo o contrato de arrendamento celebrado entre as Rés, e, por força disso, inoponível à A., bem como aos demais terceiros de boa-fé, Mais peticiona a condenação da 1.ª ré na restituição das rendas que tenha recebido desde Julho de 2022 até à data da propositura, bem como as demais que se forem vencendo, acrescidas de juros de mora à taxa legal cível contabilizados desde a data de vencimento de cada uma das rendas até efectivo e integral pagamento, no montante global de € 1671,21. ao qual acrescem os demais juros vincendos até efectivo e integral pagamento. Subsidiariamente, para a hipótese de improcedência go pedido principal, pede que seja declarado ineficaz o contrato de arrendamento celebrado por falta de registo, nos termos do artigo 2.°. n.° 1, al. m) e artigo 5.° do Código do Resisto Predial e, por força disso, condenada a 1.ª ré restituição de rendas nos mesmos termos. Ainda para a hipótese de nenhum dos pedidos antecedentes proceder, deve o contrato de arrendamento celebrado entre as Rés ser resolvido, nos termos do n.° 4 do artigo 1083.°, por incumprimento de entrega das rendas à A. superior a 4 meses e, bem assim, condenada a 1." Ré à restituição das rendas auferidas desde a apreensão do imóvel até à data da propositura e das que se vierem a vencer, todas acrescidas dos respectivos juros de mora.
Em sede de despacho liminar, e ouvida previamente a autora, foi o tribunal julgado incompetente em razão da matéria para a acção, em consequência do que se indeferiu liminarmente a petição, com os fundamentos que se transcrevem:
È sabido que a apreciação da competência material dos tribunais afere-se em função do pedido e da causa de pedir expostos na petição inicial em confronto com as normas delimitadoras da competência.
E, a competência material dos juízos de comércio é aquela que for expressamente definida pela respectiva noema atributiva de competência (artigo 128.° da Lei n.° 62/2013, de 26.08), assumindo a competência dos juízos cíveis carácter residual (cfr.. por todos. Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 14-07-2020, processo n.° 3923/18.7T8STS-C).
Ora. e de acordo com o consagrado no artigo 128.° da Lei n.° 62/2013. de 26.08. "1 - Compete aos juízos de comércio preparar e julgar: a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização; b) As acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade; c) As acções relativas ao exercício de direitos sociais; d) As acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais; e) As acções de liquidação judicial de sociedades; f) As acções de dissolução de sociedade anónima europeia; g) As acções de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais; h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial: i) As acções de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras. 2 - Compete ainda aos juízos de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais. 3 - A competência a que se refere o n.° 1 abrange os respectivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões".
Atendendo à causa de pedir e pedidos formulados pela aqui autora, e que acima se descreveu, facilmente se conclui que este Juízo de Comércio não tem competência material para apreciar a validade do contrato de arrendamento, alegadamente celebrado antes do processo de insolvência, relativamente a um imóvel de que é comproprietária a insolvente dos autos principais e arrendatária uma terceira pessoa.
Por outro lado. e como também defendido na jurisprudência, incluindo no Acórdão supra referido, para efeito de atribuição dessa competência ao Juízo de Comércio nào basta que exista uma qualquer proximidade ou conexão entre o concreto litígio e alguma das açòes cuja apreciação foi atribuída àqueles Juízos. "Nào se pode ampliar por via jurisprudencial a competência dos juízos de comércio que o legislador avisadamente pretendeu circunscrever à que decorre do citado artigo 128.° da LOSJ" (sublinhado nosso).
Pelo que. a presente acção não se integra em qualquer das referidas no citado artigo 128.°. nem se trata de qualquer apenso do processo de insolvência ou outro legalmente previsto, como resulta evidente da causa de pedir e pedido.
Acresce que Também não poderá enquadrar-se na situação prevista no artigo 85.° do CIRE, até porque a presente acção deu entrada já muito após a declaração de insolvência nos autos principais e esse normativo tem o seu âmbito de aplicação limitado às "acções pendentes" à data dessa declaração, o que não é o caso (segundo o consagrado no artigo 85.° do CIRE. "1 - Declarada a insolvência, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as acções de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo. 2. ... 3 - O administrador da insolvência substitui o insolvente em todas as acções referidas nos números anteriores, independentemente da apensação ao processo de insolvência e do acordo da parte contrária"). De referir, ainda, que a situação também não se integra no artigo 89.° do CIRE, pois aqui, embora não se trate do pedido principal, está em causa dívida à massa insolvente e não uma dívida da massa insolvente (de acordo com o previsto no artigo 89.° "1 - Durante os três meses seguintes à data da declaração de insolvência, não podem ser propostas execuções para pagamento de dívidas da massa insolvente. 2 - As acções, incluindo as executivas, relativas às dívidas da massa insolvente correm por apenso ao processo de insolvência, com excepção das execuções por dívidas de natureza tributária").
Conclui-se, pois, que a presente acção não se integra em nenhuma das específicas previsões das normas sobre atribuição de competência material aos Juízos de Comércio, estando a competência para a sua preparação e julgamento atribuídos aos Juízos Cíveis, com a aludida competência residual.
Face a tudo o exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 96.°, al. a). 97.°. 99.°. 278.°. n.° 1 al. a), 576.°. n.° 2 e 577.°, al. a), do Código de Processo Civil, atendendo ao estado em que ainda se encontram os autos e a incompetência material constatada, indefiro liminarmente o requerimento inicial.
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Inconformada com o despacho, dele interpõe a autora recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
I - Por sentença proferida a 3 de Julho de 2024, no âmbito do processo 1167/22.2TBSTS-D que corre termos no Juiz 4 do Juízo de Comercio de Santo Tirso do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, o Tribunal a quo indeferiu liminarmente o requerimento inicial apresentado pela Recorrente com fundamento na incompetência material dos Juízos de Comércio para Conhecer de mérito a causa de pedir daquela acção.
II - Considerou o Tribunal a quo que a acção cuja causa de pedir se prende com a declaração de nulidade do contraio de arrendamento que onera o único bem apreendido a lavor da Massa Insolvente (aqui Recorrente e Autora na acção a apensar), intentada após a decolação de insolvência, não recai no âmbito de aplicação dos preceitos normativos que regulam a competência material dos Juízos de Comércio, nomeadamente o artigo 128.° da LOSJ e os artigos 85.° e 89.° do CIRE.
III - Em específico, exarou aquele douto Tribunal "Conclui-se, pois, que apresente acção não se integra em nenhuma das específicas previsões das normas sobre atribuição de competência material aos Juízos de Comércio, estando a competência para a sua preparação e julgamento atribuídos aos Juízos Cíveis, com a aludida competência residual.
Face a tudo o exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 96°., al. a), 97°., 99°., 278°., n. ° 1 al a), 576.°, n.° 2 e 577.°, al. a), do código de processo civil, atendendo ao estado em que ainda se encontram os autos e a incompetência material constatada, indefiro liminarmente o requerimento inicial.".
IV - Para tal, veiculou na sentença recorrida a posição que defende uma interpretação literal do artigo 85.°, no sentido de limitar o seu âmbito de aplicação às acções que se encontrem pendentes à data da declaração de insolvência, ou seja, considera como pressuposto para a apensação a anterioridade da acção a apensar face à declaração da insolvência.
IV - A Recorrente, como oportunamente expôs em sede de pronúncia ao despacho que dava conta da posição do Tribunal a quo quanto à apensação da acção, considera, tendo em conta uma interpretação sistemática do artigo 85°, apoiada no carácter universal do processo de insolvência e, bem assim, a posição jurisprudencial mais recente adoptada pelos Tribunais Superiores, ser da competência material por conexão do Juízo de Comércio, onde corre o respeito processo de insolvência, o julgamento da acção por si intentada (e não dos Juízos Cíveis).
V - Não se podendo, por isso, conformar com a douta sentença, pois, salvo melhor entendimento, esta parte de uma errada interpretação do direito - do artigo 85.° do ClRE - que culminou numa má aplicação do direito ao presente caso.
VI - Ao abrigo do n.° 1 do artigo 85° do ClRE, são três os pressupostos exigidos para a apensação de acções ao processo principal de insolvência, nomeadamente um primeiro quanto ao objecto da acção a apensar questões relativas a bens integrados na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa e, bem assim, todas as acções de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor -. a requisição de penação pelo Administrador da Insolvência e. por último, a apensação deverá justificar-se tendo em conta os fins do processo.
VII - Apesar de não colocar em causa os requisitos específicos exigidos pelo supramencionado artigo, o Tribunal a quo entendeu que, não obstante, esta disposição legal não leria aplicação pois "a presente acção deu entrada já muito após a declaração de insolvência nos autos principais e esse normativo tem o seu âmbito de aplicação limitados às "acções pendentes " à data dessa declaração (...)",
VIII - Entende a jurisprudência mais recente dos Tribunais Superiores, quanto a esta particular de saber se é ou não requisito de aplicação do artigo 85.° do CIRE a anterioridade da acção a apensar face à declaração de insolvência, que tal não é pressuposto para a determinação do âmbito de aplicação deste preceito normativo.
IX - na medida em que o carácter universal do processo de insolvência, ressalvado pelo artigo 1.° do ClRE, faz com que este processo atraia para si a resolução de todas as questões que possam influir na composição e no valor da massa insolvente, independentemente do ramo do direito a que digam respeito o que é confirmado pela intenção legislativa transposta no artigo 85.° do CIRE.
X - Nomeadamente, é esta a tese defendida nos Acórdãos do Tribunal de Lisboa datados de 19.03.2024 e de 13.04.2023, relatados respectivamente pelos Juízas Desembargadoras Fátima Reis Silva e Vera Antunes, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.05.2022, relatado pela Juíza Desembargadora Catarina Gonçalves, bem como no Acórdão do Tribunal de Justiça de 09.12.2021 relatado pelo Juiz Conselheiro Oliveira Abreu.
XI - Poupando em sede de conclusões a transcrição exaustiva do que nos supramencionados acórdãos fora exarado, note-se apenas o que é defendido pelo Supremo Tribunal de Justiça, " Nos termos do disposto no n° 1, do artigo 85° do ClRE declarada a insolvência, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as acções de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo. " Esta previsão compreende-se atenta a natureza universal do processo de insolvência (veja-se o n° 1, do artigo 1° do ClRE), natureza que para cumprir a finalidade do processo de insolvência requer que tudo quanto possa influir na composição da massa insolvente seja atraído para a órbita desse processo,
Atente-se que à luz deste preceito, a competência universal do processo de insolvência mantém-se mesmo quando sejam demandados terceiros, bastando que o resultado da acção em apreço possa influenciar o valor da massa.
E certo que a presente providência entrou em juízo em momento posterior à data da declaração da insolvência, e muito embora a epígrafe da norma contida no mencionado art° 85° se refira às acções pendentes, entendemos que tal não afasta por si a apensação nesta situação.
Deste modo, os fundamentos que justificam a apensação - referidos pelo Tribunal recorrido - existem quer a acção seja instaurada antes ou depois da declaração de insolvência." (sublinhado e negrito nossos)
XII - Esta é a posição, salvo melhor entendimento, que melhor salvaguarda e se adapta os fins do processo de insolvência.
XIII -- Assim sendo, não subjaz qualquer dúvida de que o Tribunal a quo mal andou ao decidir pelo indeferimento do requerimento inicial apresentado pela Recorrente por apenso ao processo de insolvência principal com fundamento único na falta de competência do Juízos de Comércio por se tratar de acção proposta em momento posterior ao da declaração de insolvência, negando a aplicação do artigo 85° ao presente caso.
XIV - - Inclusive, configura a decisão do Tribunal a quo uma efectiva ofensa a caso julgado material, colocando em crise a segurança e certeza jurídicas afectas às decisões judiciais.
XV - Acresce que, solvida a questão da aplicação do artigo 85.° do CIRE ás acções posteriores à declaração de insolvência, a acção que se pretende apensar cumpre os demais requisitos exigidos por aquela disposição normativa.
XVI - Pois que, uma vez que se trata de acção cuja causa de pedir se prende com a declaração de nulidade de contrato de arrendamento que onera o único bem apreendido a favor da Massa Insolvente, a título principal, e na qual, cumulativamente, se peticiona pela devolução das rendas auferidas pela Insolvente e não entregues àquela Massa, afigura-se-nos evidente que o pressuposto quanto ao objecto da acção encontra-se verificado (1.ª parle do n.º 1 do artigo 85.° do Cl RE).
XVII - Como se postula no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19.03.2024. em simples palavras, se acção proceder e, por consequência, o contrato de arrendamento declarado nulo. o imóvel ficará livre desse ónus, o que naturalmente modificará o conteúdo de um bem pertencente à Massa Insolvente, aqui Recorrente.
XVIII - No que concerne à conveniência da acção aos fins do processo. destinando-se o processo de insolvência, além do mais. à satisfação dos credores, o resultado da acção influirá necessariamente na liquidação do activo, na medida em que a venda de um imóvel onerado com um contrato de arrendamento de longa duração - no caso, 20 anos - e com renda baixa contratada 140.00 €, no caso - muito dificilmente será vendido, ao passo que um imóvel livre deste tipo de ónus será vendido a um preço justo com relativa facilidade, o que permitirá a satisfação - ainda que não integral - dos créditos reclamados pelos credores da insolvente.
XIX - Por último, tio que diz respeito à necessidade de o Sr. Administrador da Insolvência requerer a respectiva apensação ao processo principal, esta deduz-se quer pela própria acção que é proposta pela Massa Insolvente, como Autora e representada pelo Sr. Administrador da Insolvência, quer como pelo requerimento por este junto ao apenso D do processo de insolvência, no qual anui com a posição defendida quanto à competência por conexão dos Juízos de Comércio.
XX -Por tudo o quanto exposto, compele ao Juízo de Comércio territorialmente competente no caso. o Juízo de Comércio de Santo Tirso-conhecer e decidir de mérito sobre as questões de direito formuladas na petição inicial pela Recorrente submetida por apenso ao processo principal de insolvência, ao abrigo do disposto nos artigos 85°, n.° 1 do ClRE e 128.°, n.º 3 da LOSJ. pelo que a douta sentença recorrida deverá ser tida como revogada e ordenada a sua substituição por uma outra decisão judicial que reconheça, com base no exposto supra, a competência material por conexão- do Juízo de Comércio de Santo Tirso para conhecer de mérito o referido requerimento inicial, sob pena de se ferir irremediavelmente a segurança e a certeza jurídica inerentes ao caso julgado material formado pelos Acórdãos supracitados que já solveram questões idênticas à do objecto do presente recurso e veicularam a lese neste defendida.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art.ºs 5.º, 635.º n.º 3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), a única questão que decorre das conclusões formuladas pela recorrente e a decidir no presente recurso resume-se a saber se se verifica a competência material dos juízos de comércio para conhecer dos pedidos formulados.
Os factos a considerar são os que resultam do relatório supra, para que ora se remete.
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A competência em razão da matéria é um pressuposto processual, constituindo condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa, julgando da procedência ou improcedência do pedido formulado pelo autor. Representa a medida de jurisdição de cada tribunal para conhecer de determinado litígio e é aferida em função dos termos em que a acção é proposta, ou seja, em função da relação jurídica subjacente ao litígio, tal como o autor a configura, não importando para tal saber se, em substância, ao autor assiste ou não o direito que se arroga.
Como é sabido, o momento a atender para fixar a competência do Tribunal é o da propositura da acção, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei, conforme dispõe o artigo 38.º, nº 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.
No que especialmente concerne à competência dos juízos de comércio, dispõe o art. 128º da LOSJ que:
1 - Compete aos juízos de comércio preparar e julgar:
a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;
b) As acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c) As acções relativas ao exercício de direitos sociais;
d) As acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais;
e) As acções de liquidação judicial de sociedades;
f) As acções de dissolução de sociedade anónima europeia;
g) As acções de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;
h) As acções a que se refere o Código do Registo Comercial;
i) As acções de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras.
2 - Compete ainda aos juízos de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais.
3 - A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respectivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.
A decisão recorrida entendeu que a presente acção não se integra em qualquer das referidas no citado artigo 128.°, nem se trata de qualquer apenso do processo de insolvência ou outro legalmente previsto, como resulta evidente da causa de pedir e pedido. Também não poderá enquadrar-se na situação prevista no artigo 85.° do CIRE, até porque a presente acção deu entrada já muito após a declaração de insolvência nos autos principais e esse normativo tem o seu âmbito de aplicação limitado às "acções pendentes" à data dessa declaração, o que não é o caso”.
Prescreve com efeito, o art. 85º do CIRE, inserido no capítulo dos efeitos processuais da declaração da insolvência, que:
« 1 - Declarada a insolvência, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as acções de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo.
2 - O juiz requisita ao tribunal ou entidade competente a remessa, para efeitos de apensação aos autos da insolvência, de todos os processos nos quais se tenha efectuado qualquer acto de apreensão ou detenção de bens compreendidos na massa insolvente.
3 - O administrador da insolvência substitui o insolvente em todas as acções referidas nos números anteriores, independentemente da apensação ao processo de insolvência e do acordo da parte contrária.». E no mesmo sentido, entendeu-se no Ac. desta Relação do Porto de 14-07-2020 (Proc.º 3923/18.7T8STS-C.P1, in dgsi.pt) que considerando que a presente demanda não se integra em nenhuma das específicas previsões das normas sobre atribuição de competência material aos juízos de comércio (não se inserindo, outrossim, em qualquer das situações contempladas nas supra referidas normas do CIRE, designadamente, na previsão do art. 85º do CIRE, uma vez que a presente acção deu entrada já após a declaração de insolvência, sendo que esse normativo tem o seu âmbito de aplicação limitado às acções pendentes à data dessa declaração, o que não é o caso), ter-se-á, pois, de considerar que a competência para a sua preparação e julgamento se inscreve na esfera de competência residual atribuída ao Juízo Local Cível”.
Em sentido inverso, escreveu-se no Ac. da Relação de Lisboa de 19-03-2024 (Proc.º 3566/20.5T8FNC-H.L1, in dgsi.pt) “pese embora a epígrafe deste preceito seja “Efeitos sobre as ações pendentes”, os respectivos critérios são aplicáveis também às acções instauradas apenas após a declaração de insolvência. Na verdade, uma vez intentadas estão pendentes e os critérios aplicam-se-lhes. De acordo com o art. 85º nºs 1 e 2 podem/devem ser apensadas ao processo de insolvência:
- acções intentadas contra o devedor e/ou contra terceiros em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente e cujo resultado possa influenciar o valor da massa;
- acções de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor;
- acções nas quais se tenha efetuado qualquer ato de apreensão ou detenção de bens compreendido na massa insolvente.
Nos primeiros dois casos a apensação, no que toca a processos já pendentes, não é automática – é requerida apenas e necessariamente pelo Administrador de Insolvência e sempre com fundamento na conveniência para os fins do processo de insolvência. No último caso a apensação é oficiosa, como resulta da previsão legal de que o juiz requisita todos os processos em que se tenha efectuado qualquer ato de apreensão ou detenção de bens compreendidos na massa insolvente. A previsão do nº3 completa outras previsões do diploma e dá sentido ao funcionamento do sistema previsto – o Administrador da Insolvência substitui o insolvente em todas as acções referidas nos nºs 1 e 2 mesmo que a acção não seja apensa ao processo de insolvência e independentemente do acordo da parte contrária – o que se conjuga com o disposto 81º nº 4, onde se prevê que o Administrador de Insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de caracter patrimonial que interessem à insolvência e é corolário da privação das faculdades de administração e disposição do seu património por parte do insolvente. Como se escreveu noutro local (Efeitos Processuais da Declaração de Insolvência, Fátima Reis Silva, I Congresso de Direito da Insolvência, Coord. Catarina Serra, Almedina, 2013, pg. 256) nos casos do nº 1, o requerimento de apensação é exclusivamente de iniciativa do Administrador de Insolvência. O juiz a quem é efectuado o requerimento, controla os requisitos mas, verificados – e frisando-se que o juízo sobre a conveniência da apensação é do administrador e não do juiz – está vinculado a ordenar a apensação.” João Labareda e Carvalho Fernandes (Em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, 2015, pg. 427) referem, igualmente, que “Cabe ao juiz controlar a verificação dos requisitos, decidindo em conformidade o requerimento do administrador.” Assim sendo, verificados os requisitos e tratando-se de acção a propor, é também o administrador da insolvência que deve ponderar se aqueles se encontram preenchidos e, se a resposta for positiva, e sendo o caso de uma acção a propor por si em representação da massa, deve intentar a acção desde logo por apenso ao processo de insolvência, controlando o juiz se os requisitos estão verificados. Se estiverem, a acção está abrangida pelo efeito universal da insolvência, e deve ser processada por apenso ao processo respectivo. Se os requisitos não estiverem presentes, haverá, desde logo, que verificar a competência e razão da matéria, dado que a competência por conexão não se verificará, e extrair as consequências devidas”. Idêntico entendimentos foi sufragado pelo Ac. da Relação de Lisboa de 13-04-2021 (Proc.º 29624/13.4T2SNT-X.L1-1, in dgsi.pt)“
Como se vê, a interpretação do artigo 85.º CIRE acolhida pelo despacho recorrido baseou-se essencialmente num elemento literal constante da sua epígrafe - “Efeitos sobre as acções pendentes”. O elemento literal, também apelidado de gramatical, são as palavras em que a lei se exprime e constitui o ponto de partida do intérprete e o limite da interpretação. A letra da lei tem duas funções: a negativa (ou de exclusão) e positiva (ou de selecção). A primeira afasta qualquer interpretação que não tenha uma base de apoio na lei (teoria da alusão); a segunda privilegia, sucessivamente, de entre os vários significados possíveis, o técnico-jurídico, o especial e o fixado pelo uso geral da linguagem. Mas além do elemento literal, o intérprete tem de se socorrer algumas vezes dos elementos lógicos com os quais se tenta determinar o espírito da lei, a sua racionalidade ou a sua lógica. Estes elementos lógicos agrupam-se em três categorias: a) elemento histórico que atende à história da lei (trabalhos preparatórios, elementos do preâmbulo ou relatório da lei e occasio legis [circunstâncias sociais ou políticas e económicas em que a lei foi elaborada]; b) o elemento sistemático que indica que as leis se interpretam umas pelas outras porque a ordem jurídica forma um sistema e a norma deve ser tomada como parte de um todo, parte do sistema; c) elemento racional ou teleológico que leva a atender-se ao fim ou objectivo que a norma visa realizar, qual foi a sua razão de ser (ratio legis) (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 29-11-2011, Proc.º 0701/10, in dgsi.pt).
Afigura-se que tal elemento literal não é decisivo. A preocupação essencial do legislador no art.º 85.º CIRE foi a de, logo após a declaração de insolvência, regular sobre o destino das acções pendentes a essa data. Assim ao reportar-se apenas aos “Efeitos sobre as acções pendentes” terá dito menos que o que pretendia dizer, em vez de, de caso pensado, excluir as acções que fossem propostas em momento posterior. De resto, pouco sentido útil teria distinguir entre acções com o mesmo objecto e os mesmos fundamentos, todas cumprindo os critérios do art.º 85º. nºs 1 e 2 do CIRE, apenas porque umas foram propostas antes e outras posteriormente à declaração de insolvência.
Procede, assim, a apelação, declarando-se o Juízo de Comércio de Santo Tirso materialmente competente por conexão para os termos dos autos, revogando-se a decisão recorrida, que deve ser substituída por que determine o normal prosseguimento dos autos.

DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, em função do que revogam a decisão recorrida, devendo substituir-se por outra que ordene o prosseguimento normal dos autos.
Sem custas, por não serem devidas.

Porto, 28/1/2025
João Proença
Artur Dionísio Oliveira
Maria Eiró