Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1185/19.8T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA DIAS DA SILVA
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
NEGÓCIO JURÍDICO
ERRO-VÍCIO
DOLO
Nº do Documento: RP202203221185/19.8T8PVZ.P1
Data do Acordão: 03/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A concretização do dolo pressupõe um erro da parte do declarante, erro esse determinado intencionalmente por outrem; por isso, a vítima do dolo não só se engana (como no caso do erro) como, além disso, é enganada), deste modo podendo o dolo ser também ser designado como “erro qualificado”.
II - O erro que recaia sobre os motivos determinantes da vontade, quando reportado ao objecto do negócio, torna este anulável desde que o declaratário conheça, ou não deva ignorar, a essencialidade, para o declarante, do objecto sobre que haja incidido o erro, cfr. art.ºs 251.º e 247.º n.º2, do C.Civil.
III - A qualidade de um objecto se reporta a todos os factores determinantes do valor ou da utilização pretendida, sendo que se deve que uma qualidade é essencial quando se mostra decisiva para o negócio, conforme a finalidade económica ou jurídica deste.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação
Processo n.º 1185/19.8 T8PVZ.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 4
Recorrentes – AA e BB
Recorridos – CC e DD
Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntas – Desemb. Ana Lucinda Cabral
Desemb. Maria do Carmo Domingues

I CC e mulher, DD intentaram no Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim a presente acção declarativa de processo comum contra AA e mulher, BB, pedindo:
a) que se declare anulada a compra e venda celebrada entre os autores e os réus por escritura outorgada a 30.07.2018, exarada a fls. 51 a 52 do Livro de Escrituras Diversas n.º ... do Cartório Notarial da Dr.ª EE; e, consequentemente, que se ordene o cancelamento da inscrição de aquisição a favor dos autores, constante da AP ..... de 2018.07.30, desse prédio;
b) a condenação dos réus a restituir aos autores o montante de €67.500,27, correspondente aos €65.000,00 entregues a título de preço, acrescidos dos juros legais que se venceram desde a data da celebração da escritura, os quais se computam em €2.500,27,
e os vincendos até efectivo e integral pagamento, à taxa legal;
c) a condenação dos réus a pagar aos autores, a título de danos patrimoniais, o montante de €5.239,43, acrescido dos juros legais que se vencerem desde a citação e até efectivo e integral pagamento;
d) a condenação dos réus a pagar aos autores, a título de danos não patrimoniais, o montante de €5.000,00, acrescido dos juros legais que se vencerem desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Para tanto, alegaram em síntese que são emigrantes na Suíça e que decidiram adquirir um terreno na Póvoa de Varzim para aí construírem a sua casa e, mais tarde, regressarem definitivamente a Portugal e nela morarem. Por alturas do Natal de 2017, contactaram a imobiliária “D...” com vista a seleccionarem um terreno para o efeito. Informaram-na de que pretendiam adquirir um terreno para construção de uma moradia unifamiliar nos arredores da cidade da Póvoa de Varzim, com preferência para a zona de .... Alguns dias depois foram-lhes indicados pela imobiliária vários terrenos que correspondiam às características que procuravam. Após ponderarem, acabaram por escolher o prédio rústico que pertencia aos réus, sito na Rua ..., ..., em ..., com a área de 1.490,00 m2, denominado de “...”.
Depois de alguma negociação, autores e réus celebraram contrato promessa de compra e venda do referido prédio, elaborado pela indicada imobiliária e assinado por autores e réus nas suas instalações. Onde estabeleceram o preço de €65.000,00 para a aquisição desse prédio, o qual corresponde, sensivelmente, a €44,00/m2 que era (e é) o preço corrente do m2 de terreno para construção na zona onde se insere o prédio, sendo que o preço corrente do terreno para fins agrícolas naquela zona não ultrapassava (nem ultrapassa) os €10,00/m2.
Na data de celebração do contrato promessa os autores pagaram aos réus a quantia de €5.000,00 como sinal e princípio de pagamento.
Na sequência desse contrato promessa, quando os autores regressaram a Portugal foi realizada no dia 30.07.2018 a escritura de compra e venda, ocasião em que pagaram o imposto de selo que importou em €520,00 e o IMT, no valor de €3.250,00 e pagaram ao Cartório Notarial a conta referente á escritura, no valor de €210,00, bem como os emolumentos do registo de aquisição a seu favor, no valor de €240,00 e entregaram aos réus a quantia de €60.000,00 para pagamento do restante preço, o que fizeram mediante cheque visado, pagando para o efeito a quantia de €52,00.
Após a aquisição do imóvel, regressaram à Suíça e em Dezembro de 2018 remeteram para a Direcção Geral de Recursos da Defesa Nacional o pedido de parecer quanto à sua pretensão de construir uma habitação unifamiliar no terreno que haviam adquirido aos réus. Por ofício datado de 10.01.2019 do Director Geral de Recursos da Defesa Nacional, foi-lhes comunicada a recusa de emissão da licença solicitada.
Embora os autores tenham pendente na Câmara Municipal ... um pedido de informação prévia, sem a licença do Ministério da Defesa, obrigatória em virtude da servidão militar que serve a Estação ..., não é possível o licenciamento de qualquer construção no terreno em causa. É assim absolutamente impossível construir no terreno que os réus venderam aos autores, sendo que os autores o adquiriram exclusivamente para esse fim, o que os réus sabiam, tanto por lhes ter sido dito pela imobiliária, como pelos próprios autores nas reuniões que tiveram. Aliás, o preço acordado foi estabelecido com base no preço por m2 de um terreno para construção na zona, tendo os réus sempre referido aos autores que o terreno era apto para construção.
Os autores nunca adquiririam o prédio se soubessem que nele não podiam construir uma moradia.
Logo que receberam o ofício do Ministério da Defesa, os autores trataram de contactar os réus sobre esse assunto, tendo-lhes remetido uma carta que estes recepcionaram mas à qual não responderam.
Sabem agora os autores que os réus sabiam que sobre o prédio incidia uma servidão militar e que, como tal, o mesmo não estava livre de ónus e encargos aquando da venda e que, por força dessa servidão, o mesmo não era apto à construção.
Os réus induziram os autores em erro ao garantirem que o terreno tinha uma aptidão que sabiam não possuir, pelo que agiram com dolo.
O terreno em causa foi adquirido pelo réu marido por doação de sua mãe de 08.10.2015 e nele os réus pretendiam construir a sua moradia e um armazém para a actividade profissional do réu marido, pelo que este, tratou de apresentar um pedido de licença de obras de construção de edificação na Câmara Municipal ..., ao qual foi atribuído o número de processo 694/16. Nesse processo o réu pretendia proceder à construção de uma moradia e armazém, onde previa despender €271.743,53. Sucede que esse seu pedido foi objecto de uma informação pela técnica responsável, onde esta, além de outras questões processuais, refere que “está em falta a licença emitida pelo Ministério da Defesa Nacional (…) visto que o prédio se situa em área confinante com as instalações da Estação ... sujeita ao regime da servidão militar – ....
Ora, os réus requereram ao Ministério da Defesa a emissão dessa licença mas foram, tal como agora os autores, confrontados com a recusa da sua emissão. Donde, os réus tinham conhecimento de que o prédio que venderam era inapto para construir e que estava onerado com uma servidão militar.
Assiste assim aos autores o direito de peticionarem a anulação da venda, bem como a restituição do preço pago, com o qual os réus se locupletaram e, ainda, o direito de peticionar dos réus a indemnização por todos os prejuízos sofridos em virtude da celebração deste negócio, com escritura, impostos e registo do prédio despenderam a quantia total de €4.272,00. No pagamento dos honorários ao arquitecto despenderam a quantia de €861,00 e em taxas pelo pedido de informação prévia junto da Câmara Municipal ..., a quantia de €106,43.
Acresce que para adquirir o terreno em causa os autores investiram todas as suas economias e viram ruir o seu sonho de nele construir uma casa para nela viver nas férias e para onde regressar logo que pudessem deixar a vida de emigrantes. Os autores não têm meios para adquirir um outro terreno sem que os réus lhe devolvam o dinheiro que lhes pagaram pelo prédio em causa nos autos.
Para compensação do prejuízo que é a não concretização de um projecto de vida, reclamam a quantia indemnizatória de €5.000,00.
*
Pessoal e regularmente citados, os réus apresentaram contestação, pedindo a improcedência da acção.
Para tanto, impugnam, no essencial, os factos alegados pelos autores.
E mais alegam que nunca tiveram qualquer reunião ou contacto com os réus antes ou depois da celebração do contrato promessa ou mesmo antes da outorga da escritura definitiva. Acresce que a ré mulher não se deslocou à Imobiliária para outorgar o contrato promessa, pois o mesmo foi trazido pelo réu marido já assinado. Posteriormente, as partes só se encontraram na outorga da escritura definitiva.
Os réus, porque nunca contactaram com os autores, nunca souberam ou conheceram a que fim, os mesmos, destinavam o terreno que pretendiam comprar. O negócio foi unicamente conduzido pela imobiliária que inclusivamente negociou o preço do prédio rústico a vender.
Esse preço, de €65.000,00, é um valor muito inferior ao valor cobrado pelo m2 de terreno para construção na zona.
É falso que seja absolutamente impossível construir no terreno que venderam aos autores, pois nos termos do Plano de Urbanização da Póvoa de Varzim, esse prédio rústico “insere-se num conjunto urbano, de características habitacionais de moradias isoladas”.
Os autores solicitaram à Câmara Municipal um pedido de informação prévia sobre a viabilidade de construção no mesmo de uma edificação destinada a moradia unifamiliar, pedido esse que obteve informação desfavorável por incumprimento do Plano de Urbanização da Póvoa de Varzim, uma vez que a moradia que pretendiam construir não respeitava o índice mínimo de construção exigido para a zona.
É verdade que o prédio rústico se encontra em zona abrangida pela servidão militar da Estação ... – .... Contudo, nos termos do Decreto n.º 19/02, de 27 de Maio, art.º 2.º, é sempre possível a construção desde que o Ministério da Defesa Nacional assim o permita, como tem vindo acontecer nestes últimos anos.
Efectivamente, os réus solicitaram ao Ministério da Defesa Nacional licença para construção de uma moradia e de um armazém destinada ao exercício da actividade profissional do réu marido e para o efeito, apresentaram na Câmara Municipal ... um pedido de licença de construção, o qual obteve decisão desfavorável, pois não vinha acompanhado da respectiva licença do Ministério da Defesa Nacional. O réu marido solicitou essa licença mas viu a sua pretensão ser negada, apenas e tão só por causa do fim a que se destinava o armazém, tendo o Ministério da Defesa Nacional conhecimento de que o réu marido pretendia exercer a sua actividade profissional no armazém a construir, a qual implicava a construção de máquinas e manuseamento de equipamentos eléctricos, exigia saber quais os equipamentos que em concreto estavam em causa, notificando o réu marido para o efeito.
Os réus, quando celebraram o contrato de mediação imobiliária, deram conhecimento à imobiliária de todo o sucedido, ou seja, de que o prédio estava onerado com uma servidão militar e dos motivos pelos quais não tinham obtido licença para construir. Por esse motivo, os réus venderam o prédio pelo valor de €65.000,00, muito inferior ao valor de um prédio rústico com aquela dimensão e situado em zona urbanizável. Por sua vez, a imobiliária também comunicou aos autores a existência da servidão militar que sempre foi do conhecimento destes.
Mas, na eventualidade da imobiliária não ter informado devidamente os compradores, aqui autores, da existência do ónus, não pode ser assacada qualquer responsabilidade aos réus, tanto mais que estes também não foram devidamente informados pela imobiliária das pretensões dos autores quanto ao destino a dar ao prédio rústico. Acresce que, quando se mostraram interessados na aquisição do prédio rústico, os autores dirigiram-se à Câmara Municipal ... para confirmarem as informações que lhe foram prestadas pela imobiliária.
Por fim, peticionam a condenação dos autores como litigantes de má-fé.
*
Os autores apresentaram resposta, na qual pugnam pela improcedência do pedido de condenação como litigantes de má-fé.
*
Foi proferido despacho saneador, fixou-se o objecto do litígio e à enunciaram-se os temas da prova.
*
Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença de onde consta: “(…) Julgo a presente acção parcialmente procedente por provada e, em consequência:
a) declaro anulada a compra e venda celebrada entre os autores e os réus por escritura outorgada a 30 de Julho de 2018, exarada a fls. 51 a 52 do Livro de Escrituras Diversas nº ... do Cartório Notarial da Dr. EE; e, em consequência, determino o cancelamento da inscrição de aquisição do prédio descrito na CRP da Póvoa de Varzim sob o n.º ..... da freguesia ... a favor dos autores, constante da AP ..... de 2018.07.30;
b) condeno os réus a restituir aos autores o montante de €65.000,00, correspondente ao valor entregue a título de preço, acrescido de juros de mora calculados à taxa legal de juro civil desde a citação até efectivo e integral pagamento;
c) condeno os réus a pagar aos autores, a título de danos patrimoniais, o montante de €5.239,43, acrescido dos juros de mora calculados à taxa legal de juro civil desde a citação até efectivo e integral pagamento;
d) absolvo os réus do demais pedido contra eles formulado.
Custas pelos autores e pelos réus na proporção dos respectivos decaimentos, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam os réus.
Registe.
Notifique”.

Inconformados com a tal decisão, dela vieram os réus recorrer de apelação pedindo a sua revogação e substituição por outra que os absolva dos pedidos.
Os apelantes juntaram aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes conclusões:
Da nulidade da sentença
1- O Tribunal a quo não expõe quer o tipo de razões de facto que sustentem e/ou justifiquem, ou seja, que conduziram àquela mesma decisão, quer no que respeita aos factos provados ou aos factos não provados.
2- Segundo o art.º 205.º, n.º1 da CRP, as decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
3- A falta de fundamentação gera a nulidade do despacho (art.º 613.º, n.º 3, do Código de Processo Civil) ou da sentença (art.º 615.º n.º 1 b), do Código de Processo Civil)
4- Tratando-se da decisão sobre a matéria de facto, pode determinar-se em recurso a baixa do processo a fim de que o Tribunal da 1.ª instância a fundamente (art.º 662.º CPC).
Sem prescindir,
5- A sentença também é nula nos termos da alínea c), n.º1 do art.º 615.º do CPC, quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Da impugnação da matéria de facto
6- A inexistente fundamentação de facto quer quanto aos factos provados, quer não provados, espelha a falta de ponderação por parte do julgador do Tribunal de 1.ª Instância, pelo que, atenta a deficiência ocorrida deverá a decisão recorrida ser alterada.
Do erro na apreciação da matéria de facto
7- Foi dado como provado, respectivamente, nos pontos 1.38. e 1.43. que o réu marido-recorrente- sabia que os autores celebraram a escritura pública identificada em 1.23. no pressuposto de que o prédio objecto da mesma, identificado em 1.9., permitia a construção; e que o réu marido-recorrente- colocou o terreno identificado em 1.9. à venda como terreno para construção sabendo que sobre o mesmo incidia a servidão identificada em1. 35.
8- Contudo da prova produzida, deve ser dado como provado no ponto 1.38, que o réu marido-recorrente- não sabia que os autores celebraram a escritura pública identificada em 1.23. no pressuposto de que o prédio objecto da mesma, identificado em 1.9., permitia a construção;
9- Bem como, no ponto 1.43, que o réu marido-recorrente- colocou o terreno identificado em 1.9. à venda, sabendo que sobre o mesmo incidia a servidão identificada em 1.35.
10- Deve ainda ser dado como provado, o ponto 2.9., ou seja, que os réus não foram informados pela imobiliária das pretensões dos autores quanto ao destino a dar ao prédio rústico identificado em 1.9.
11- Por último, também deve ser dado como provado o ponto 2.10, nomeadamente que, os autores sabiam, de sempre, que o prédio rústico identificado em 1.9., embora estivesse situado em zona urbanizável, estava onerado com uma servidão militar, bem como que,
12- Também deve ser dado como provado o ponto 2.12, ou seja, que os autores, quando se mostraram interessados na aquisição do prédio rústico identificado em 1.9., dirigiram-se à Câmara Municipal ... para confirmarem as informações que lhe foram prestadas pela imobiliária.
Do direito
13- O Tribunal a quo julgou parcialmente procedente o pedido, pois julgou provados os requisitos do erro, nos termos dos art.ºs 251.º e 247.º do Código Civil.
14- Contudo, dos factos provados resulta evidente que não se encontram preenchidos os pressupostos do erro.
15- Pois os recorridos, a quem incumbia provar, não lograram fazer a prova.
16- A douta decisão recorrida viola, por erro de interpretação, de aplicação do direito e erro de determinação das normas aplicáveis, o preceituado no art.º 251.º do Código Civil.
17- O recorrente vendeu, por escritura pública, um prédio rústico (ponto 1.9).
18- O prédio em questão, porque é rústico, não comporta em si, a qualidade de terreno para construção.
19- O erro dos recorridos, que só se aceita por mera hipótese, não incide sobre o objecto do contrato.
20- O erro só será causa de anulação, se as partes tiverem reconhecido, por acordo, ainda que tácito, da essencialidade do motivo.
21- Não existindo acordo, pois tal não foi nem alegado, nem provado.
22- O negócio não pode ser anulado, nos termos do art.º 252.º, n.º1 do Código Civil.
23- A decisão recorrida viola, por erro de interpretação, de aplicação do direito e erro de determinação das normas aplicáveis, o preceituado no art.º 252.º, n.º1 do Código Civil.

Os autores/apelados juntaram aos autos as suas contra-alegações onde pugnam pela confirmação da decisão recorrida.

II – Da 1.ª instância chegam-nos assentes os seguintes factos:
1.1. Os autores são naturais do concelho da Póvoa de Varzim e emigrantes na Suíça, para onde emigraram há mais de uma década.
1.2. Onde trabalham e vivem.
1.3. Apenas visitando Portugal quando as suas férias o permitem.
1.3. Quando lograram amealhar algum dinheiro, decidiram adquirir um terreno no município da Póvoa de Varzim, para futuramente aí construírem a sua casa e, mais tarde, regressarem definitivamente a Portugal e nela morarem.
1.5. Em 2017, quando se encontravam de férias em Portugal, contactaram a imobiliária “D..., Ld.ª”, com vista a seleccionarem um terreno para adquirirem para o efeito referido em 1.4.
1.6. Informaram a imobiliária que pretendiam adquirir um terreno para construção nos arredores da cidade da Póvoa de Varzim, com preferência para a zona de ..., com vista a construírem uma moradia unifamiliar.
1.7. Na sequência dessa conversa, alguns dias depois, foram-lhes indicados vários terrenos que essa imobiliária tinha em carteira para venda e que correspondiam às características do que os autores procuravam.
1.8. Após ponderarem os vários terrenos que lhes foram apresentados, acabaram por escolher o terreno que pertencia aos réus, sito na Rua ..., ..., da União de Freguesias ..., do concelho da Póvoa de Varzim.
1.9. Trata-se do prédio rústico com a área de 1.490,00 m2, denominado de “...”, sito no Lugar ..., União de Freguesias ..., do concelho da Póvoa de Varzim, descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o n.º ..... de ..., e inscrito na respectiva matriz predial sob o n.º ......
1.10. Os autores gostaram do terreno, o qual tinha área suficiente para construir uma vivenda unifamiliar com a dimensão que pretendiam, para além de se situar na zona de ... por eles preferida para a construção da sua futura casa.
1.11. Mediante documento escrito denominado de “Contrato Promessa de Compra e Venda”, junto aos autos a fls.13 verso e ss., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, os réus declararam prometer-vender e os autores declararam prometer-comprar, o prédio identificado em 1.9.
1.12. O documento identificado em 1.11. foi elaborado pela imobiliária.
1.13. E assinado pelos autores e pelo réu marido nas suas instalações.
1.14. No denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda” ficou acordado que “A escritura pública de compra e venda da fracção terá lugar até ao dia 31 (…) de Julho de 2018”, altura em que os autores estariam de volta a Portugal no gozo das suas férias.
1.15. Autores e réus estabeleceram o preço de €65.000,00 para a aquisição do imóvel.
1.16. Esse preço corresponde, sensivelmente, a €44,00, o metro quadrado.
1.17. Esse preço, em 2018, enquadrava-se no preço médio do metro quadrado de terreno para construção na zona onde se insere o prédio.
1.18. Em 2018 o preço corrente de um terreno para fins agrícolas naquela zona não ultrapassava os €10,00 por m2.
1.19. Na data de celebração do “Contrato Promessa de Compra e Venda” os autores pagaram aos réus a quantia de €5.000,00, como sinal e princípio de pagamento, mediante a entrega a estes do cheque junto aos autos por cópia a fls. 16 verso.
1.20. No “Contrato Promessa de Compra e Venda” os réus declararam prometer vender aos autores o terreno identificado em 1.9. “livre de ónus ou encargos, e devoluto de pessoas e bens”.
1.21. Consta da cláusula 2.ª, ponto 3., do “Contrato Promessa de Compra e Venda” que os réus “ficam obrigados a limpar toda a vegetação que faz parte integrante do imóvel até à data da celebração da escritura de compra e venda.
1.22. Na sequência do “Contrato Promessa de Compra e Venda”, quando os autores regressaram a Portugal de férias, foi marcada a escritura de compra e venda do prédio nele identificado.
1.23. Mediante escritura pública realizada no Cartório Notarial da Dr.ª EE em 30 de Julho de 2018, exarada a fls. 51 a 52 do Livro de Escrituras Diversas n.º ... daquele Cartório, junta aos autos a fls. 17 e ss., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, o réu marido, com a declaração de consentimento da ré mulher, declarou vender aos autores, que declararam aceitar a venda, o prédio identificado em 9., “livre de ónus e encargos”.
1.24. Nesse mesmo dia, os autores pagaram o imposto de selo indispensável àquela escritura e que importou em €520,00.
1.25. E pagaram o IMT (imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis) referente à aquisição do imóvel, o qual importou no valor de €3.250,00.
1.26. Os autores pagaram ao Cartório Notarial a conta referente a essa escritura que importou em €210,00.
1.27. E pagaram ainda os obrigatórios emolumentos do registo de aquisição a seu favor, no valor de €240,00.
1.28. Na data da celebração da escritura os autores entregaram aos réus a quantia de €60.000,00, para pagamento do restante preço, através de cheque sacado sobre a sua conta na Banco ... e visado por esta.
1.29. Para a emissão do indicado cheque visado pagaram os autores à Banco ... a quantia de €52,00.
1.30. Após a celebração da escritura os autores, tendo terminado as suas férias, regressaram à Suíça.
1.31. Em Dezembro de 2018 os autores remeteram para a Direcção Geral de Recursos da Defesa Nacional o pedido de parecer quanto à sua pretensão de construir uma habitação unifamiliar no terreno identificado em 1.9.
1.32. Esse pedido foi instruído pelo Sr. Arquitecto FF.
1.33. Receberam em resposta o ofício datado de 10 de Janeiro de 2019 do Director Geral de Recursos da Defesa Nacional, o qual recusa a emissão da licença pelo Ministério da Defesa Nacional.
1.34. Embora os autores tenham pendente na Câmara Municipal ... um pedido de informação prévia (também instruído pelo Arquitecto FF), sem a licença do Ministério da Defesa não é possível o licenciamento de qualquer construção no terreno identificado em 1.9.
1.35. Sem a obrigatória licença do Ministério da Defesa Nacional, em virtude da servidão militar que serve a Estação ..., prevista no Decreto n.º 19/2002, de 27 de Maio, não é possível a construção no terreno identificado em 1.9., seja de uma moradia, seja do que for.
1.36. À data da celebração da escritura identificada em 1.9. e actualmente não é possível construir no terreno identificado em 1.9.
1.37. Os autores outorgaram a escritura pública identificada em 1.23. exclusivamente para construir no prédio objecto da mesma, identificado em 1.9., uma moradia.
1.38. O réu marido sabia que os autores celebraram a escritura pública identificada em 1.23. no pressuposto de que o prédio objecto da mesma, identificado em 1.9., permitia a construção.
1.39. Os autores nunca celebrariam a escritura pública identificada em 1.23. se soubessem que no prédio objecto da mesma, identificado em 1.9., não podiam construir uma moradia.
1.40. Logo que receberam o ofício do Ministério da Defesa, os autores trataram de contactar os réus sobre o assunto, tendo-lhes remetido a carta junta aos autos a fls. 27 verso a 28, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
1.41. Os réus, apesar de recepcionarem essa carta no dia 4 de Fevereiro de 2019, nenhuma resposta remeteram aos autores.
1.42. Os réus sabiam que sobre o prédio identificado em 1.9. incidia uma servidão militar e que, como tal, por um lado, não estava livre de ónus aquando da outorga da escritura pública identificada em 1.23. e, por outro lado, por força dessa servidão o prédio em causa não permitia a construção.
1.43. O réu marido colocou o terreno identificado em 1.9. à venda como terreno para construção sabendo que sobre o mesmo incidia a servidão identificada em 1.35.
1.44. Mediante “Documento Particular Doação” outorgado a 08.10.2015, autenticado, junto aos autos a fls. 29 e ss., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, GG declarou doar ao seu filho, o aqui réu marido, que declarou aceitar a doação, à qual atribuíram o valor de €350,00, o prédio identificado em 1.9.
1.45. No terreno identificado em 1.9. os réus pretendiam construir a sua moradia e um armazém para a actividade profissional do réu marido.
1.46. Em 12.09.2016 o réu marido tratou de alterar a sede da sua sociedade, a “M..., Unipessoal, Ld.ª, NIPC ..., para a morada do terreno (e sua futura moradia), a Rua ..., ..., em ....
1.47. De seguida, o réu marido tratou de apresentar um pedido de licença de obras de construção de edificação na Câmara Municipal ..., ao qual foi atribuído o número de processo 694/16.
1.48. Nesse processo pretendia o réu marido proceder à construção de uma moradia e armazém, onde previa despender €271.743,53.
1.49. Esse seu pedido foi objecto de uma informação pela técnica responsável, a Arquitecta HH, junta aos autos a fls. 37 verso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, onde esta, além de outras questões processuais, refere que “Está em falta a licença emitida pelo Ministério da Defesa Nacional (…) visto que o prédio se situa em área confinante com as instalações da Estação ... sujeita ao regime de servidão militar – ....
1.50. Notificado que foi dessa informação, o réu marido, primeiramente, em Dezembro de 2016, requereu lhe fosse prorrogado por 30 dias o prazo para apresentar os elementos em falta, o que lhe foi concedido.
1.51. Todavia, nenhum elemento mais juntou a esse processo.
1.52. Até que, em 21 de Agosto de 2018, requereu ao Presidente da Câmara Municipal o encerramento do processo “devido à venda do terreno em causa”.
1.53. Os réus requereram ao Ministério da Defesa a emissão da licença em falta, mas foram, tal como agora os autores, confrontados com a recusa por parte deste Ministério da emissão dessa licença.
1.54. O prédio identificado em 1.9. situa-se na ... da servidão militar identificada em 1.35.
1.55. Se os autores soubessem que o imóvel identificado em 1.9. estava onerado com uma servidão que proíbe aí quaisquer construções, nunca teriam outorgado a escritura identificada em 1.23.
1.56. No pagamento dos honorários ao arquitecto despenderam os autores a quantia de €861,00.
1.57. E em taxas pelo pedido de informação prévia junto da Câmara Municipal ... a quantia de €106,43.
1.58. Os autores, para adquirirem o terreno identificado em 1.9., investiram todas as suas economias.
1.59. Os autores viram o seu sonho identificado em 1.4. ruir.
1.60. Os autores emigraram para melhorar a sua vida mas não apreciam estar a viver longe da família e dos seus amigos.
1.61. Os autores pretendem regressar de vez a Portugal.
1.62. Os autores não tinham meios próprios para adquirir um outro terreno sem que os réus lhe devolvessem o dinheiro que lhes pagaram pelo prédio identificado em 1.9.
1.63. Se não tivessem outorgado a escritura identificada em 1.23., nesta altura os autores já poderiam ter uma casa em construção num outro local.
1.64. Os réus nunca tiveram qualquer reunião ou contactos com os autores antes ou depois da celebração do “Contrato Promessa de Compra e Venda”, ou mesmo antes da outorga da escritura definitiva.
1.65. A ré mulher não se deslocou à imobiliária para outorgar o “Contrato Promessa de Compra e Venda”, pois o mesmo foi trazido pelo réu marido já assinado por ela.
1.66. Posteriormente, as partes só se encontraram por ocasião da outorga da escritura definitiva.
1.67. O negócio foi conduzido pela imobiliária que inclusivamente negociou o preço do prédio identificado em 1.9.
1.68. Consta da cláusula 2.ª, ponto 2., do “Contrato Promessa de Compra e Venda” que “O prédio é vendido no estado físico e jurídico em que se encontra, o qual os Promitentes-Compradores declaram conhecer e ter visitado”.
1.69. O prédio rústico identificado em 1.9. localiza-se em área abrangida pelo Plano de Urbanização da Póvoa de Varzim.
1.70. O prédio rústico identificado em 1.9. insere-se num conjunto urbano, de características habitacionais de moradias isoladas.
1.71. Os autores solicitaram à Câmara Municipal um pedido de informação prévia sobre a viabilidade de construção de uma edificação destinada a moradia unifamiliar, composta por um piso acima do solo.
1.72. Pedido esse que obteve informação desfavorável, pela ausência do comprovativo do licenciamento junto do Ministério da Defesa Nacional e por incumprimento do Plano de Urbanização da Póvoa de Varzim, uma vez que não era feita a requalificação do perfil viário do arruamento contíguo e a moradia que os autores pretendiam construir não respeitava o índice mínimo de construção exigido para a zona.
1.73. Seria possível a construção no prédio identificado em 1.9. se o Ministério da Defesa Nacional emitisse a licença a que se alude em 1.53.
1.74. A sociedade “M..., Unipessoal, Ld.ª”, identificada em 1.46., tem o seguinte objecto social: “projecto e execução de máquinas e dispositivos à medida do cliente; actividades de engenharia e técnicas afins no projecto de máquinas industriais, dispositivos de montagem, inspecção; reparação e manutenção de máquinas e equipamentos, nomeadamente máquinas de corte, de montagem, de inspecção, de furar; instalação de máquinas e de equipamentos industriais, nomeadamente máquinas de corte, de montagem, de inspecção, de furar, laser; reparação e manutenção de outro equipamento, fabricação de máquinas-ferramentas, nomeadamente fresadoras, tornos, furadoras, serrotes, máquinas de laser; comércio por grosso de máquinas-ferramentas, nomeadamente CNC, tornos, serras de fitas, furadoras, máquinas de laser; comércio por grosso de outras máquinas e equipamentos; fabricação de outros produtos metálicos diversos, maquinação de peças metálicas, plásticas.
1.75. O Ministério da Defesa Nacional, por ofício datado de 08.11.2016, junto aos autos a fls. 78 verso, notificou o réu marido do seguinte: “No que concerne ao pedido de licenciamento do projecto de edificação de uma moradia unifamiliar e de um armazém, a levar a efeito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho da Póvoa de Varzim, informa-se que, após apreciação dos elementos constitutivos do projecto, a localização da futura edificação se encontra em área de servidão militar (…) devendo ser remetida a esta Direcção Geral, informação relativa aos equipamentos eléctricos que pretende instalar no local e no edifício em concreto.
1.76. O Ministério da Defesa Nacional, por ofício datado de 11.02.2017, junto aos autos a fls. 79, notificou o réu marido do seguinte: “No que concerne ao pedido de licenciamento do projecto de edificação de uma moradia unifamiliar e de um armazém, a levar a efeito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho da Póvoa de Varzim, após apreciação dos elementos de projecto e das características dos equipamentos eléctricos e maquinaria a instalar no local, informa-se que o projecto se encontra dentro da ... da servidão militar instituída pelo Decreto n.º 19/2002 de 27 de Maio. A construção requerida, utiliza equipamentos de forte ruído electromagnético e em conformidade com o n.º 1 e nº 5 da alínea c) do art.º 2.º do referido Decreto, não é emitida licença pela Defesa Nacional, atendendo ao facto de serem proibidas, sem licença da autoridade militar, construções de qualquer natureza, mesmo que enterradas ou subterrâneas e montagem de instalações eléctricas, máquinas e aparelhos eléctricos industriais ou comerciais, tais como motores, instrumentos eléctricos de cabeleireiro, tabuletas e anúncios luminosos de funcionamento intermitente, ascensores, aparelhos electroterápicos, grupos electrogéneos e outros aparelhos e instrumentos que possam produzir interferências nas recepções radiotelegráficas, radiotelefónicas e de radiolocalização da Estação ....
1.77. Pela Ap. ..... de 30.07.2018 foi inscrita a “Aquisição” do prédio identificado em 1.9. a favor dos autores por “Compra” ao réu marido.

Não se julgaram provados os seguintes factos:
2.1. Os réus sempre referiram aos autores que o terreno identificado em 1.9. era apto para construção.
2.2. O preço identificado em 1.15. é um valor muito inferior ao valor cobrado pelo metro quadrado de terreno para construção na zona.
2.3. Nestes últimos anos o Ministério da Defesa Nacional tem vindo a emitir licenças para construção na área abrangida pela servidão militar identificada em 1.35.
2.4. Nesta data existe a possibilidade do Ministério de Defesa Nacional conceder licença para construção no prédio identificado em 1.9.
2.5. O réu marido viu a sua pretensão a que se alude em 1.53. ser negada, apenas e tão só por causa do fim a que se destinava o armazém.
2.6. Os réus, quando celebraram contrato de mediação imobiliária com a “D...”, deram conhecimento à imobiliária de todo o sucedido, ou seja, de que o prédio identificado em 1.9. estava onerado com uma servidão militar e dos motivos pelos quais não tinham obtido licença para construir.
2.7. Por esse motivo, os réus venderam o prédio identificado em 1.9. pelo valor de €65.000,00, muito inferior ao valor de um prédio rústico com a dimensão daquele e situado em zona urbanizável.
2.8. Por sua vez, a imobiliária também comunicou aos autores a existência da servidão militar, que sempre foi do conhecimento destes.
2.9. Os réus não foram informados pela imobiliária das pretensões dos autores quanto ao destino a dar ao prédio rústico identificado em 1.9.
2.10. Os autores sabiam, de sempre, que o prédio rústico identificado em 1.9., embora estivesse situado em zona urbanizável, estava onerado com uma servidão militar.
2.11. Os autores têm residência em ..., a qual também está situada em zona onerada com servidão militar.
2.12. Os autores, quando se mostraram interessados na aquisição do prédio rústico identificado em 1.9., dirigiram-se à Câmara Municipal ... para confirmarem as informações que lhe foram prestadas pela imobiliária.

III – Como é sabido o objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
*
Ora, visto o teor das alegações dos réus/apelantes são questões a apreciar no presente recurso:
1.ª – Das alegadas nulidades da sentença recorrida.
2.ª – Da impugnação da decisão da matéria de facto.
3.ª – De Direito.
*
*
1.ªquestão – Das alegadas nulidade da sentença.
1.1. – Nulidade da al. b) do n.º1 do art.º 615.º do C.P.Civil.
Começam os réus/apelantes por defender que a sentença recorrida enferma de nulidade porque, no que respeita à decisão da matéria de facto não especifica os fundamentos porque julgou certa matéria provada e outra não provada.
Como é sabido, segundo a al. b) do n.º1 do art.º 615.º do C.P.Civil, aplicável aos despachos, “ex vi” do art.º 613.º, n.º3 do mesmo diploma, “é nula a sentença: quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão”. Sendo que o dever de fundamentação da decisão decorre, primordialmente, dos princípios consagrados nos art.ºs 205.º n.º 1 da C.R.Portuguesa, segundo o qual “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei” e 154.º n.º 1 do actual C.P.Civil que preceitua que “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”, compreendendo-se essa exigência, uma vez que as partes, destinatárias da decisão, com vista a aquilatarem da bondade ou não da mesma e a decidirem da sua eventual impugnação, precisam, antes de mais, de conhecer a sua base fáctico-jurídica.
A este propósito escreve Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. II, pág. 256 que “Por conseguinte, quer relativamente aos factos provados que quanto aos factos não provados, deve o tribunal justificar os motivo da sua decisão, declarando por que razão, sem perda da liberdade à, julgamento, garantida pela manutenção do princípio da livre apreciação das provas (…), deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certa conclusões dos peritos, achou satisfatória ou não a prova resultam de documentos particulares, etc.”.
Também Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, a pág. 386 escreve que “o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente”.
Assim entende-se que a motivação da decisão da matéria de facto passa por dois estádios próprios a que se refere o art.º 607.º n.º 4 do C.P.Civil: - exige-se que o julgador faça “o exame crítico das provas”, ou seja, que se debruce serena e prudentemente sobre as provas constantes do processo e sobre as produzidas em audiência de julgamento, as filtre no seu confronto intrínseco, que avalie a razão de ciência das testemunhas inquiridas, que as pondere à luz dos seus próprios conhecimentos e da experiência da vida, etc. e, - exige-se ainda que o julgador faça a “especificação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção” a que chegou, o que deve envolver também as razões ou motivos porque revelaram ou obtiveram credibilidade no seu espírito de julgador
Porém, conforme referem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, pág. 669, “para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa reportar só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”.
Por seu turno, ensina Alberto dos Reis, in “Código do Processo Civil Anotado”, vol. V, pág. 140, que: “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.”
É também é entendimento pacífico na nossa Jurisprudência, não pode, porém, confundir-se a falta absoluta de fundamentação com a fundamentação insuficiente, errada ou medíocre, sendo que só a falta absoluta de motivação constitui a causa de nulidade em apreço. Ou seja, a falta de fundamentos implica a total omissão de factos ou de direito. Este mesmo entendimento, segundo o qual a falta de fundamentação capaz de conduzir à anulação de uma decisão é apenas a absoluta falta de fundamentação e não quando esta seja diminuta ou deficiente, mostra-se unânime tanto na nossa doutrina como na jurisprudência. Ou seja, não é o laconismo da decisão que se censura mas a completa a ausência de fundamentação.
In casu”, vendo o teor da sentença recorrida, mormente a fundamentação da decisão da matéria de facto aí expressa, e que monta a oito páginas, onde se descreve pormenorizadamente quais os documentos analisados e interpretados e o que deles resultou provado e ainda o teor dos depoimentos pessoais prestados, a razão de ciência de cada depoente, o que se revelou ser do seu conhecimento pessoal e o que de relevante, plausível e convincente relataram, pelo é de tudo o assim expresso que manifestamente resultou a convicção do julgador que foi simultaneamente aí expressando, não obstante ser omissa quanto à motivação (a não ser pela oposição à fundamentação relativa à matéria de facto julgada provada) do complexo fáctico julgado não provado em 1.ª instância. O que, além de muito detalhado e longo, é perfeitamente compreensível por qualquer mediano cidadão.
Destarte, resta-nos concluir que inexiste a nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação da decisão da matéria de facto.
Improcedem as respectivas conclusões dos réus/apelantes.
*
1.2. – Nulidade da al. c) do n.º1 do art.º 615.º do C.P.Civil.
Mas continuam os réus/apelantes dizendo que a sentença recorrida é ainda nula porque da análise da sentença a quo, resulta evidente a ambiguidade ou obscuridade que a torna ininteligível, não permitindo aos seus destinatários seguir o raciocínio lógico da mesma, que conduz aquele desfecho.
Ora, preceitua-se na al. c) do n.º1 do art.º 615.º do C.P.Civil, que “é nula a sentença: quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
Esta nulidade – oposição entre os fundamentos e a decisão - só se verifica quando, segundo o Prof. Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 141, “…os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão mas a resultado oposto”. Ou dito de outra maneira, quando das premissas de facto e de direito que o julgador teve por apuradas, ele haja extraído uma conclusão oposta àquela que logicamente deveria ter extraído.
Tal nulidade refere-se, pois, a um vício estrutural da sentença, por contradição entre as suas premissas, de facto e de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria seguir um resultado diverso daquele que seguiu. É uma contradição de ordem formal, que se refere aos fundamentos estabelecidos e utilizados na sentença, e não aos que resultam do processo. Pelo que tal nulidade não abrange, o chamado, erro de julgamento, seja de facto, seja de direito, e designadamente a não conformidade da decisão com o direito substantivo, isto é com a subsunção dos factos à norma jurídica e, muito menos, com o erro na interpretação desta. É que, quando o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, poderemos, sim, estar perante um erro de julgamento. Nesse caso, o juiz fundamenta a decisão, mas decide mal, resolve as questões colocadas num certo sentido porque interpretou e/ou aplicou mal o direito, cfr. Lebre de Freitas, in “CPC Anotado”, vol. 2.º, pág. 670 e entre muitos outros, Ac. do STJ de 21.05.98, in CJ/STJ, Ano VI, Tomo 2, pág. 95.
Quanto à obscuridade ou ambiguidade que vem consagrada na parte final da al. c) do n.º 1 do art.º 615.º do C.P.Civil e, constitui uma alteração ao regime precedente, uma vez que a alínea c) do n.º1 do anterior art.º 668.º se ficava pela afirmação de ser nula a sentença quando: “Os fundamentos estejam em oposição com a decisão”. Esta alteração, dando relevo à obscuridade ou ambiguidade como causa típica de nulidade da decisão, liga-se directamente com “a exclusão de tais elementos viciadores como fundamento do pedido de esclarecimento da sentença, (art.º 669.º, n.º1, al. a) do CPC-95/96), no contexto da abolição da possibilidade da sua aclaração (art.ºs 616.º e 617.º), cfr. Paulo Ramos de Faria/Ana Luísa Loureiro, in “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil – Os Artigos da Reforma”, Vol. I, pág. 604 e, sendo certo que pode derivar não só da parte decisória, mas igualmente da fundamentação (incluindo, agora, nessa fundamentação, a decisão de facto), ela – a obscuridade ou a ambiguidade – “só é relevante quando gere ininteligibilidade, isto é, quando um declaratário normal não possa retirar da parte decisória (e só desta) um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar (...)”, cfr. José Lebre de Freitas, in “A Acção Declarativa Comum – À Luz do Código de Processo Civil de 2013”, pág. 334, nota 48-A.
Com efeito, importa ter presente que às decisões judiciais, como aos articulados, enquanto actos jurídicos, aplicam-se as regras regulamentadoras dos negócios jurídicos, cfr. art.º 295.º do C.Civil, nomeadamente as normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial, cfr. Acs. do STJ, in BMJ, 342-375 e 407-446. Nos art.ºs 236.º a 238.º do C.Civil, estabelecem-se critérios para o alcance ou sentido juridicamente decisivo da declaração negocial. Na interpretação dos contratos ou outros actos jurídicos, prevalecerá, em regra, a “vontade real do declarante”, sempre que for conhecida do declaratário, cfr. n.º 2 do art.º 236.º do C.Civil. Faltando esse conhecimento, vale o preceituado no n.º 1, daquele normativo, que consagra o critério (objectivista ou normativo) da impressão do destinatário, entendendo-se como declaratário normal uma pessoa razoável, isto é, medianamente instruída, diligente e sagaz, em face dos termos da declaração, cfr. Pires de Lima-Antunes Varela, in “Código Civil Anotado,”, pág. 207, Vaz Serra, in RLJ, 111.º/220 e 307, Mota Pinto, in “Teoria Geral”, pág. 624 e Acs. do STJ, in BMJ, 374-436, 406-629, 421-364 e 441-357, sendo que nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto, cfr. art.º 238.º n.º 1 do C.Civil. Pode, no entanto, valer esse sentido na situação a que alude o n.º 2, desse mesmo normativo.
Ora, do arrazoado das suas alegações recursórias verificamos que os réus/apelantes pretendem desviar-se do fulcro da questão. Pois o que está em causa, e foi tido correctamente em conta pelo Tribunal recorrido, não é o facto de autores/apelados e réus/apelantes terem ou não falado entre si e aqueles terem dito, ou não, a estes que pretendiam adquirir um terreno para construção de uma moradia, mas sim e tão só o facto de os réus/apelantes terem vendido aos autores/apelados aquele imóvel como estando “livre de ónus ou encargos” e na verdade bem sabiam que tal não correspondia à verdade, pois sobre o mesmo impendia um ónus importante, uma serventia militar – que impedia a construção no mesmo. Mas por outro lado, não se pode olvidar que os réus/apelantes tinham posto o dito terreno à venda na aludida imobiliária como sendo terreno para construção, logo não poderiam desconhecer, nem desconsiderar que quem se interessasse pela compra do mesmo o faria como sendo terreno para construção.
E nessa conformidade pode ler-se na decisão recorrida que: “(…) Celebraram então o “Contrato Promessa de Compra e Venda” junto aos autos a fls. 13 verso e ss., elaborado pela imobiliária, no qual os réus declararam prometer vender e os autores declararam prometer comprar, “livre de ónus ou encargos, e devoluto de pessoas e bens”, o referido prédio (saliente-se que apesar de esse contrato ter sido elaborado pela imobiliária os réus assinaram-no, tendo tido oportunidade de o ler, sendo que em ponto algum da respectiva contestação alegaram desconhecer o significado da expressão “livre de ónus”). (…) Foi estabelecido o preço de 65.000,00 € para a aquisição do prédio, o qual corresponde, sensivelmente, a 44,00 € o metro quadrado, preço que em 2018 se enquadrava no preço médio do metro quadrado de terreno para construção na zona onde se insere o prédio em causa nos autos. Já o preço corrente de um terreno para fins agrícolas naquela zona não ultrapassava, em 2018, os 10,00 € por m2. (…) Na sequência desse “Contrato Promessa de Compra e Venda”, quando os autores regressaram a Portugal de férias, foi marcada a escritura de compra e venda do prédio objecto do mesmo. E, mediante escritura pública celebrada a 30 de Julho de 2018, junta aos autos a fls. 17 e ss., o réu marido vendeu aos autores o prédio em causa nos autos “livre de ónus e encargos”. (…) À data da celebração da escritura pública acima identificada e actualmente não é possível construir no dito terreno. Provou-se que os autores compraram esse prédio exclusivamente para nele construírem uma moradia, sendo que nunca o teriam comprado se soubessem que o mesmo estava onerado co uma servidão militar que proíbe quaisquer construções e que nele não podiam construir a pretendida moradia. Provou-se igualmente que o réu marido sabia que os autores adquiriram o prédio no pressuposto de que o mesmo permitia a construção. Tenha-se presente que o réu marido colocou o terreno à venda como terreno para construção, recebendo por ele um preço em conformidade com essa característica. Os réus sabiam que sobre esse prédio incidia uma servidão militar e que, como tal, por um lado, não estava livre de ónus aquando da outorga da escritura pública de compra e venda (menção que permitiram que constasse dessa escritura - e que já constava do contrato promessa de compra e venda -, a qual, como do seu teor resulta, foi lida aos outorgantes, tendo os réus assistido a essa leitura e nada tendo dito); e, por outro lado, que por força dessa servidão o prédio não permitia a construção. É que, provou-se igualmente que nesse prédio os réus pretenderam construir a sua moradia e um armazém para a actividade profissional do réu marido. Para o efeito, este último apresentou um pedido de licença de obras de construção de edificação na Câmara Municipal ... (…)”.
Em suma, não obstante a imaginação argumentativa dos réus/apelantes, é manifesto que a sentença recorrida é plenamente inteligível para o mediano cidadão, pelo que também o é para os réus/apelantes.
Logo, não se verifica a apontada nulidade.
Improcedendo as conclusões dos réus/apelantes.
*
………………………………
………………………………
………………………………
*
Pelo que, por tudo o que se deixa consignado, considerando ainda o teor do despacho de fundamentação da decisão que recaiu sobre a matéria de facto, o teor dos documentos juntos aos autos, e o teor dos depoimentos prestados em julgamento, e como é sabido, devendo o Juiz apreciar livremente todas as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, cfr. art.º 607.º n.º5 do C.P.Civil, julgamos que a decisão proferida em 1.ª instância sobre os factos em apreço neste recurso deve manter-se inalterada, já que não se vislumbra que a mesma enferme de erro e, muito menos, erro grosseiro ou manifesto, não merecendo esta, por isso, qualquer censura.
Improcedem as respectivas conclusões dos réus/apelantes.
*
*
3.ªquestão – De Direito.
Desde já se adianta o nosso apoio ao decidido na sentença recorrida quando se considerou existir erro-vício (sobre o objecto do negócio), a afectar a validade do negócio (compra e venda do terreno em apreço) celebrado pelas partes.
Como resulta da p. inicial, a acção foi proposta com base em erro-vício gerador da anulabilidade do próprio contrato celebrado entre as partes, mais propriamente numa actuação de carácter doloso por banda do réu/apelante, com cobertura legal nos art.ºs 253.º e 254.º do C.Civil, mas depois mais se fala na anulação do negócio nos termos dos art.ºs 251.º do C.Civil, entre outros.
A 1.ª instância desconsiderou a questão da alegada actuação dolosa por parte do réu/apelante e veio a decidir pela anulabilidade do negócio por erro sobre o objecto do negócio, previsto no art.º 251.º do C.Civil.
Mas vejamos.

Ora, ao erro sobre os motivos determinantes da vontade, o chamado erro-vício, reportado ao objecto do negócio – o objecto foi o “prédio rústico com a área de 1.490,00 m2, denominado de “...”, sito no Lugar ..., União de Freguesias ..., do concelho da Póvoa de Varzim, descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o n.º ..... de ..., e inscrito na respectiva matriz predial sob o n.º .....” vendido pelo réu/apelante aos autores/apelados – se refere o art.º 251.º do C.Civil, e ao erro sobre os motivos não reportado à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio se refere o art.º 252.º do C.Civil, distinguindo nestes motivos (nos diversos da pessoa e do objecto) os de carácter geral, cfr. art.º 252.º, n.º1 do C.Civil e os referidos à base do negócio, cfr. art.º 252.º, n.º 2 do C.Civil, sendo que de ambas as disposições – da verificação dos respectivos facti species – decorrem as seguintes três situações de anulabilidade negocial:
i) no caso do art.º 251.º (erro quanto à pessoa ou ao objecto), “(…) desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro”, cfr. art.º 247.º do C.Civil, ex vi do disposto nos art.ºs 251.º;
ii) no caso do art.º 252.º, n.º 1 (erro respeitante a outros motivos), “(…)] se as partes houverem reconhecido, por acordo, a essencialidade do motivo, cfr. art.º 252.º, n.º 1 do C.Civil;
iii) no caso previsto no art.º 252.º, n.º 2 (erro respeitante a outros motivos reportados à base do negócio), bastando o conhecimento das partes, sem necessidade de acordo entre elas.
Segundo Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo I, pág. 834: “(…) a lei admite a relevância do erro da vontade quando recaia sobre a pessoa do destinatário ou sobre o objecto do negócio; reportando-se a outro elemento, terá de haver acordo quanto à essencialidade; referindo-se, todavia, à base do negócio, tal acordo é dispensado, bastando o conhecimento das partes”.
Quanto ao erro respeitante ao objecto – o tipo de erro que os autores/apelados chamaram à colação e que se reconduz ao art.º 251.º do C.Civil –, tem-se entendido abranger este, além da própria identidade existencial do objecto.
E segundo Menezes Cordeiro, in obra citada, pág. 825 “O erro relativo ao objecto tem sido prudente e correctamente alargado pela doutrina e pela jurisprudência. Não está em causa, apenas, a identidade do objecto, mas as suas qualidades e, particularmente o seu valor”.
Entre as “condições gerais de relevância do erro-vício como motivo de anulabilidade encontra-se a sua "essencialidade", no sentido de que só é relevante o erro essencial (determinante), isto é, aquele que levou o errante a concluir o negócio, em si mesmo e não apenas nos termos em que foi concluído”, cfr. Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, pág. 508. Assim, o erro só é essencial se, sem ele, se não celebraria qualquer negócio ou se celebraria um negócio com outro objecto ou de outro tipo ou com outra pessoa. O erro que recaia sobre os motivos determinantes da vontade, quando reportado ao objecto do negócio, torna este anulável desde que o declaratário conheça, ou não deva ignorar, a essencialidade, para o declarante, do objecto sobre que haja incidido o erro, cfr. art.ºs 251.º e 247.º n.º2, do C.Civil, sendo que “a qualidade de um objecto se reporta a todos os factores determinantes do valor ou da utilização pretendida”, como refere Manuel de Andrade, in “Teoria Geral”, vol. II, pág. 235 e 248. E uma qualidade é essencial quando se mostra decisiva para o negócio, conforme a finalidade económica ou jurídica deste.
A essencialidade do erro tem de ser analisada sob o aspecto subjectivo do errante e não sob qualquer outro e quer o simples erro que atinja os motivos determinantes da vontade, cfr. art.º 251.º do C.Civil, quer o dolo, cfr. art.º 254.º n.º1 do C.Civil, só geram anulabilidade do negócio quando forem essenciais para a formação da vontade da parte que o invoca.
A anulabilidade do negócio neste caso, conforme já se deixou acima consignado, resulta da remissão constante do art.º 251.º para o art.º 247.º, ambos do C.Civil, ou seja, da circunstância de o declaratário conhecer, ou dever conhecer, a essencialidade para o declarante do elemento sobre o qual recaiu o erro. Esta articulação entre essencialidade e conhecimento é caracterizada por Menezes Cordeiro nos seguintes termos: “A essencialidade permite excluir o erro indiferente e o erro incidental: no primeiro caso, o declarante concluiria o negócio tal como resultou, no final; no segundo, conclui-lo-ia igualmente, ainda que com algumas modificações. A medida de aferição da essencialidade é subjectiva: cada um determina, livremente, os factores que o possam levar a contratar ou a não contratar. O conhecimento da essencialidade do elemento, por parte do declaratário é, também, um dado subjectivo: ou conhece ou não conhece. Em regra, o conhecimento derivará duma comunicação expressa, nesse sentido: todavia, ele poderá advir do conjunto das circunstâncias que rodeiem o negócio”.
Em suma, para a procedência da anulação do negócio por erro sobre o objecto importa que se prove:
a) que o declarante ignore ou tenha uma falsa representação sobre alguma das qualidades da coisa sobre que versa o negócio,
b) que seja essencial para a celebração, de modo que, se o declarante conhecesse o elemento sobre que versa o erro, não teria concluído o negócio e,
c) que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade do elemento sobre que incide o erro para que o declarante concluísse o negócio.
Ora, comete dolo (o “deceptor” - autor do artifício, sugestão ou embuste) que sabe e quer que o enganado preste a declaração que de outro modo não prestaria. Ou seja, deve verificar-se, assim, um nexo de causalidade entre o dolo e a actuação do enganado (decepcionado). A concretização do dolo pressupõe um erro da parte do declarante, erro esse determinado intencionalmente por outrem; por isso, a vítima do dolo não só se engana (como no caso do erro) como, além disso, é enganada), deste modo podendo o dolo ser também ser designado como “erro qualificado”, cfr. Ac. do STJ de 13.05.2004, in www.dgsi.pt. O principal efeito do dolo é a anulabilidade do negócio, cfr. art.º 254.º n.º1 do C.Civil, mas, em regra, acrescerá teoricamente ainda a responsabilidade pré-negocial do autor do dolo (deceptor), por ter dado origem à invalidade, com o seu comportamento contrário às regras da boa-fé, desde os preliminares e até à conclusão do negócio, todavia, a culpa "in contrahendo" (salvo na medida em que seja causa de vício da declaração de vontade da contraparte ou provoque a celebração de negócio usurário) não releva autonomamente como fundamento da anulabilidade do negócio.
Entre as condições de relevância do dolo do declaratário como motivo de anulação exige a lei que se trate de um “dolus malus”, cfr. art.º 253.º n.º 2 do C.Civil que não de meras sugestões ou artifícios usuais considerados legítimos segundo as concepções dominantes no comércio jurídico, ou “dolus bónus”.
Finalmente dir-se-á ainda que o fundamento legal da obrigação de indemnização radica no facto de o dolo ser um acto ilícito e que a anulação por erro se projecta retroactivamente, como determinam os art.ºs 289.º, n.º 1 e 290.º, ambos do C.Civil, através da restituição recíproca do que houver sido prestado.
*
Mais se dirá ainda que os réus/apelantes pretendem artificialmente criar uma nova questão sobre o litígio em apreço, dizendo que “vendeu, por escritura pública, um prédio rústico e o prédio em questão, porque é rústico, não comporta em si, a qualidade de terreno para construção”.
Ora, como é sabido, a lei civil qualifica os prédios em rústicos e urbanos, presidindo à distinção um critério funcional, de modo que o prédio será rústico se se tratar de uma porção de solo, neste (solo) residindo a sua utilidade, enquanto que a denominação de urbano caberá às construções implantadas, “servindo o solo apenas de seu suporte físico ou logradouro”, cfr. Pais de Vasconcelos, in “Teoria Geral do Direito Civil”, pág. 220.
Como se referiu bem a propósito no Ac. do STJ de 14.10.2007, in www.dgsi.ptNão é, porém, a mera declaração do dono do prédio que determina a classificação deste, a sua natureza rústica ou urbana, nem opera, como num passe de mágica, a transformação da sua fisionomia”. Por outro lado, o terreno urbano ou terreno para construção é uma coisa que se define não só pela sua identidade física, mas principalmente pela sua aptidão juridicamente reconhecida, i.e., objecto de um direito de construir, nunca originário, mas sempre adquirido, por força da iniciativa da Administração Pública ou por licença desta perante a pretensão formulada pelo respectivo proprietário, nos limites topográficos e normativos dum plano de urbanização ou dum loteamento, ainda no referido Ac. do STJ citando referiu o Prof. Carlos Ferreira de Almeida, in “Direito Económico, pág. 431, já que a possibilidade de afectação de um terreno rústico a fim diferente depende de uma decisão administrativa, tomada em função dos interesses gerais da colectividade, de acordo com os planos de ordenamento do território.
E como resulta dos autos, face ao Regulamento do PDM da Póvoa de Varzim o terreno em apreço situava-se em área onde é permitida a construção, dentro de certa volumetria. Logo, em princípio, o terreno pode ser classificado porque situado em área onde é permitida a construção – como terreno para construção. Todavia a questão dos autos não se situa exactamente na classificação do terreno relativamente à sua implantação/localização em face do respectivo Regulamento do PDM, mas por sobre o mesmo impender uma servidão militar que, na prática, vem retirar-lhe a possibilidade de construção no mesmo.
*
Ora, “in casu” atento o complexo fáctico provado nos autos, temos por evidente que a actuação do réu/apelante andou muito próxima do “dolus malus”, todavia entende-se que não lograram os autores/apelados fazer prova segura e cabal dessa mesma realidade.
Assim, nenhuma censura nos merece a decisão recorrida quando considera, além do mais, que “(…) os autores, (…) pretendiam adquirir um terreno no município da Póvoa de Varzim para aí construírem a sua casa e, mais tarde, regressarem definitivamente a Portugal e nela morarem. (…) Após ponderarem os vários terrenos que lhes foram apresentados, acabaram por escolher o terreno em causa nos autos. Os autores gostaram desse terreno, o qual tinha área suficiente para construírem uma vivenda unifamiliar com a dimensão que pretendiam, para além de se situar na zona de ..., por eles preferida para a construção da sua futura casa. Celebraram então o “Contrato Promessa de Compra e Venda” junto aos autos a fls. 13 verso e ss., elaborado pela imobiliária, no qual os réus declararam prometer vender e os autores declararam prometer comprar, “livre de ónus ou encargos, e devoluto de pessoas e bens”, o referido prédio (saliente-se que apesar de esse contrato ter sido elaborado pela imobiliária os réus assinaram-no, tendo tido oportunidade de o ler, sendo que em ponto algum da respectiva contestação alegaram desconhecer o significado da expressão “livre de ónus”).
(…)
Foi estabelecido o preço de 65.000,00€ para a aquisição do prédio, o qual corresponde, sensivelmente, a 44,00€ o metro quadrado, preço que em 2018 se enquadrava no preço médio do metro quadrado de terreno para construção na zona onde se insere o prédio em causa nos autos. Já o preço corrente de um terreno para fins agrícolas naquela zona não ultrapassava, em 2018, os 10,00€ por m2.
(…)
E, mediante escritura pública celebrada a 30 de Julho de 2018, junta aos autos a fls. 17 e ss., o réu marido vendeu aos autores o prédio em causa nos autos “livre de ónus e encargos”.
(…)
Em Dezembro de 2018 os autores remeteram para a Direcção Geral de Recursos da Defesa Nacional o pedido de parecer quanto à sua pretensão de construir uma habitação unifamiliar no terreno que adquiriram ao réu, pedido esse que foi instruído pelo Arquitecto FF. Receberam em resposta o ofício datado de 10 de Janeiro de 2019 do Director Geral de Recursos da Defesa Nacional, o qual recusa a emissão da licença pelo Ministério da Defesa Nacional. E, embora os autores tenham pendente na Câmara Municipal ... um pedido de informação prévia (também instruído pelo Arquitecto FF), sem a licença do Ministério da Defesa não é possível o licenciamento de qualquer construção no terreno em causa.
(…)
Sem a obrigatória licença do Ministério da Defesa Nacional, em virtude da servidão militar que serve a Estação ..., prevista no Decreto nº 19/2002, de 27 de Maio, não é possível a construção no prédio adquirido ao réu (o qual se insere na ... da referida servidão), seja de uma moradia, seja do que for.
À data da celebração da escritura pública acima identificada e actualmente não é possível construir no dito terreno.
Provou-se que os autores compraram esse prédio exclusivamente para nele construírem uma moradia, sendo que nunca o teriam comprado se soubessem que o mesmo estava onerado co uma servidão militar que proíbe quaisquer construções e que nele não podiam construir a pretendida moradia.
Provou-se igualmente que o réu marido sabia que os autores adquiriram o prédio no pressuposto de que o mesmo permitia a construção. Tenha-se presente que o réu marido colocou o terreno à venda como terreno para construção, recebendo por ele um preço em conformidade com essa característica.
Os réus sabiam que sobre esse prédio incidia uma servidão militar e que, como tal, por um lado, não estava livre de ónus aquando da outorga da escritura pública de compra e venda (menção que permitiram que constasse dessa escritura - e que já constava do contrato promessa de compra e venda -, a qual, como do seu teor resulta, foi lida aos outorgantes, tendo os réus assistido a essa leitura e nada tendo dito); e, por outro lado, que por força dessa servidão o prédio não permitia a construção. É que, provou-se igualmente que nesse prédio os réus pretenderam construir a sua moradia e um armazém para a actividade profissional do réu marido. Para o efeito, este último apresentou um pedido de licença de obras de construção de edificação na Câmara Municipal .... Esse seu pedido foi objecto de uma informação pela técnica responsável, a Arquitecta HH, onde esta, além de outras questões processuais, refere que “Está em falta a licença emitida pelo Ministério da Defesa Nacional (…) visto que o prédio se situa em área confinante com as instalações da Estação ... sujeita ao regime de servidão militar – ....” Foi então requerida ao Ministério da Defesa a emissão da licença em falta, mas, tal como sucedeu depois com os autores, a emissão dessa licença foi recusada.
(…)
Posteriormente, o Ministério da Defesa Nacional, por ofício datado de 11.02.2017, junto aos autos a fls. 79, notificou-o do seguinte: “No que concerne ao pedido de licenciamento do projecto de edificação de uma moradia unifamiliar e de um armazém, a levar a efeito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho da Póvoa de Varzim, após apreciação dos elementos de projecto e das características dos equipamentos eléctricos e maquinaria a instalar no local, informa-se que o projecto se encontra dentro da ... da servidão militar instituída pelo Decreto nº 19/2002 de 27 de maio (…)”
(…).
Ora, perante toda a factualidade acima exposta, dúvidas não temos de que os autores lograram demonstrar que, efectivamente, laboraram em erro quanto ao objecto do negócio.
Adquiriram um prédio no pressuposto de que no mesmo era possível construir a moradia que pretendiam construir, o que constataram não ser possível, uma vez que o prédio está onerado com uma servidão militar que impede que nele se construa o que quer que seja. Acresce que a possibilidade de nele construírem a pretendida moradia era essencial para que se decidissem pela sua compra, pois caso contrário não se teriam decidido pela sua aquisição, essencialidade essa que era do conhecimento dos réus”.
Em suma, resulta provado dos autos que os autores/apelados decidiram adquirir o terreno em apreço nos autos para nele efectivamente construírem uma moradia para sua futura habitação. E só adquiriram esse mesmo terreno por estarem firmemente convencidos de que nele poderiam levar a efeito essa construção, sendo certo que se soubessem que nele não poderiam construir jamais o teriam adquirido. Finalmente os réus/apelantes conheciam ou, pelo menos, não deviam ou podiam ignorar que era essencial para os autores/apelantes poderem construir uma moradia no dito terreno.
Logo, tal como se decidiu em 1.ª instância, estão reunidos os pressupostos exigidos pelos art.ºs 251.º e 247.º do C.Civil, também “ex vi” do art.º 905.º do C.Civil, segundo o qual “Se o direito transmitido estiver sujeito a alguns ónus ou limitações que excedam os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, o contrato é anulável por erro ou dolo, desde que no caso se verifiquem os requisitos legais da anulabilidade”, logo, resta-nos confirmar a declaração de anulabilidade da escritura pública de compra e venda outorgada entre os autores/apelados e os réus/apelantes no dia 30.07.2018, tendo por objecto o prédio descrito na CRP da Povoa de Varzim sob o n.º ..... da freguesia ..., ordenando-se o cancelamento da inscrição de aquisição desse prédio a favor dos autores, com as demais consequências decididas em 1.ª instância.
Improcedem, assim as derradeiras conclusões dos réus/apelantes, havendo de se confirmar a decisão recorrida.

Sumário:
………………………………
………………………………
………………………………

IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos réus/apelantes.

Porto, 2022.03.22
Anabela Dias da Silva
Ana Lucinda Cabral
Maria do Carmo Domingues