Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
578/21.3KRPRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DEOLINDA DIONÍSIO
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
APLICAÇÃO DE MEDIDA DE COAÇÃO
PRESSUPOSTOS
PRAZO MÁXIMO DE DURAÇÃO
LEI APLICÁVEL
Nº do Documento: RP20230531579/21.3KRPRT-B.P1
Data do Acordão: 05/31/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – É pacífico que as medidas de coacção a aplicar em cada caso concreto, além de obedecerem ao princípio da legalidade, pelo que só podem ser impostas as que a lei prevê, também devem ser as necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
II – A possibilidade de imposição de medidas de coacção de duração temporal ilimitada não se compagina com os princípios e garantias constitucionais que regem nesta matéria.
III – É incontornável que a Lei n.º 112/2009, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas, se apresenta como lei especial face ao regime regra do Código de Processo Penal, diploma que, todavia, em caso de lacuna, lhe é subsidiariamente aplicável, por força da estatuição do seu artigo 3º.
IV – Porém, nada naquele diploma inculca que o legislador pretendeu atribuir às medidas de coacção urgentes aí previstas um prazo de extinção diverso daquele que rege as medidas coactivas previstas no Código de Processo Penal.
V – Assim sendo, quanto à matéria concreta da duração das medidas de coação aplicadas no âmbito dos crimes de violência domésticas, aplicar-se-ão as regras gerais estabelecidas no Código de Processo Penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO PENAL n.º 579/21.3KRPRT-B.P1
Secção Criminal
Conferência
[Urgente/Violência Doméstica]
Relatora: Maria Deolinda Dionísio
Adjuntos: Cláudia Rodrigues
Rodrigues da Cunha

Comarca: Porto
Tribunal: Porto/Juízo de Instrução Criminal-J1
Processo: Inquérito (Actos Jurisdicionais) n.º 579/21.3KRPRT
***
Arguido: AA
Recorrente: Ministério Público

Acordam os Juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO
1. No âmbito dos autos de inquérito n.º 579/21.3KRPRT, que corre termos nos Serviços do Ministério Público do Departamento de Investigação e Acção Penal Regional do Porto, após o interrogatório judicial a que alude o art. 141°, do Cód. Proc. Penal, levado a efeito no dia 03 de Agosto de 2021, foram aplicadas ao arguido AA, com os demais sinais dos autos, para além do Termo de Identidade e Residência que já prestara, as medidas de coacção de proibição de:
> Adquirir ou a qualquer título conservar arma de fogo ou armas brancas ou de outro tipo;
> Contactar a ofendida por qualquer meio e em qualquer lugar;
> Se aproximar do local de trabalho e/ou de ensino da vítima;
> Permanecer na área da residência da vítima e noutros locais onde a mesma se encontrar,
com fiscalização da proibição de contactar a ofendida e de permanecer na área da residência desta através de meios técnicos de controlo à distância, com fundamento na existência de fortes indícios da prática de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punível pelo art. 152º, nº 1, als. a) e b), 2, 4, 5, do Cód. Penal (na redacção anterior à entrada em vigor da Lei 44/2018) e de 1 (um) crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelos arts. 2º, 3º e 86º, n.º 1, al. c) da Lei 5/2006, de 23/02, e do perigo de continuação da actividade criminosa, ao abrigo do disposto nos arts. 191º a 193º, 195º, 196º, 200º, n.º 1, als. a), d) e e), e 204º, al. c), todos do Código de Processo Penal, 31º, n.º 1, als. c) e d), 35º e 36º, da Lei n.º 112/2009, de 16/09 e arts. 1º, al. e) e 26º a 28º, todos da Lei n.º 33/2010, de 02/09.
2. Por requerimento datado de 13/07/2022 o arguido veio aos autos solicitar a revogação das medidas de coacção com base no decurso do seu prazo máximo.
3. O Ministério Público opôs-se mas a pretensão do arguido veio a ser deferida, por despacho proferido pelo M.mo Juiz de Instrução Criminal (doravante JIC), a 24/10/2022.
4. Inconformado com o decidido, o Ministério Público interpôs recurso cuja motivação finaliza com as seguintes conclusões: (transcrição sem destaques/sublinhados)
1. Aplicadas ao arguido as medidas de coacção previstas pelos artigos 31º, 35º e 36º, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, o Tribunal de Instrução Criminal entendeu que as mesmas se encontram extintas pelo decurso do prazo, reportando-se ao regime geral do Código de Processo Penal.
2. Sobre esta questão, o Venerando Tribunal da Relação do Porto já se havia pronunciado no sentido de que: «A medida de coacção urgente deferida ao MP com invocação designadamente dos arts. 31º e 35 da Lei nº 112/2009 - designadamente a aplicada nos autos e em causa — mantém-se até ao trânsito em julgado de decisão condenatória ou até decisão absolutória, apenas se extinguindo nos casos do art 214°, do CPP, ou por via de despacho judicial que a revogue (c/r. als. a) e b) do art. 212º do CPP).
Resulta do disposto nos arts. 31º n.º 1, als. c) e d) e 35º e seu n.º 5 desta Lei que: - O prazo de duração máxima previsto no art. 215º n.º 2, ex vi do art. 218º n.º 2, não é aplicável aos autos; como dispõe o aludido art 35º nº 5 da Lei 112/2009, "à revogação, alteração e extinção das medidas de afastamento fiscalizadas por meios técnicos de controlo à distância aplicam-se as regras previstas nos artigos 55º a 57º do Código Penal e nos artigos 212º e 282º do Código de Processo Penal.
Por via desta norma especial encontra-se a nosso ver excluída a aplicação do n.º 2 do art. 218º, do CPP que prevê as remissões para o art. 200º, do CPP e quanto a prazos, os estabelecidos nos arts. 215º e 216º, do mesmo diploma legal».
3. Quando no artigo 31º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, se prevê: "1 - Após a constituição de arguido pelo crime de violência doméstica, o juiz pondera, no prazo máximo de 48 horas, a aplicação, com respeito pelos pressupostos gerais e específicos de aplicação das medidas de coação previstas no Código de Processo Penal, de medida ou medidas...", a Lei reporta-se a pressupostos, ou seja, aos requisitos que se têm que verificar e que legitimam o Tribunal a aplicar medidas de coacção, que nada têm que ver com os prazos de duração das medidas de coacção.
4. Estando em causa a prática de crimes de violência doméstica e sendo manifesto o perigo de continuação da actividade criminosa, a aplicação de medidas de coacção é legitimada não só pelas normas do Código de Processo Penal, mas, em concreto e especialmente, pela Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, nomeadamente, no presente caso, pelos seus artigos 31º, n.º 1, alíneas c) e d), 35º e 36º.
5. Tal Lei assume a qualidade de Lei especial, face ao carácter geral das normas previstas no Código de Processo Penal.
6. Se este último prevê prazos de extinção das medidas de coacção, o certo é que tal não sucede na mencionada Lei.
7. Ainda que os direitos fundamentais da vítima comportem igual valor perante os direitos do arguido, afigura-se imprescindível proceder à compressão destes últimos, atento, no caso, o perigo de continuação da actividade criminosa, para salvaguardar os direitos da vítima.
8. Assim, não prevendo a Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro (Lei essa especial) prazos de duração para as medidas de coacção, apenas se poderá considerar que os prazos previstos no artigo 218º, do Código de Processo Penal, não têm, nesse quadrante, aplicação.
9. E tanto assim é que se o artigo 31º, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, salienta, expressamente, que o juiz pondera a aplicação de medidas de coacção com respeito pelos pressupostos, gerais e específicos de aplicação das medidas de coacção previstas no Código de Processo Penal, em tal norma legal não é feita qualquer referência a prazos de duração de tais medidas.
10. A omissão à referência a tais prazos de duração por parte do Legislador, na mencionada Lei, não foi inadvertida, mas sim, com o propósito de afastar os mesmos quando se mostra indiciado o crime de violência doméstica, de forma a conferir a devida e necessária protecção às vítimas desse ilícito penal.
11. Não há motivos para concluir que o Legislador não se exprimiu devidamente a tal propósito. Se o mesmo pretendia sujeitar as medidas de coacção indicadas no artigo 31º da mencionada Lei a tais prazos de duração, tê-lo-ia feito expressamente, como cuidou de fazer com os pressupostos da aplicação de tais medidas.
12. O Tribunal “a quo” ao fazê-lo, está a desvirtuar o regime especial que foi consagrado com a criação de tal Lei.
13. A mesma estabelece ainda que «O Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas» (sublinhado e negrito nossos) e, desde logo, o artigo 3º, alínea b), determina, como finalidades do mesmo, «Consagrar os direitos das vítimas, assegurando a sua protecção célere e eficaz».
14. Estamos igualmente em crer que o Legislador não previu as medidas de coacção no artigo 31º sem o propósito - para nós, manifesto - de criar um quadro legal especial, atentas as especiais necessidades de protecção da vítima, quando está em causa o fenómeno da violência doméstica.
15. Caso fosse esse o seu entendimento, então não faria qualquer sentido o Legislador ter consignado o que consignou no artigo 31º, em que são repetidas medidas de coacção já previstas no Código de Processo Penal.
16. Se se presume que o arguido é inocente, a verdade é que foram carreados para os autos vários elementos de prova que, no dia 3 de Agosto de 2021, legitimaram o Tribunal "a quo" a pugnar pela existência de indícios suficientes da prática do crime de violência doméstica e pela existência de um efectivo perigo de continuação da actividade criminosa.
17. Ora, tais pressupostos mantêm-se integralmente, justificando a manutenção do estatuto coactivo a que o arguido estava sujeito.
18. No dia 7 de Março de 2022, os autos foram conclusos ao Tribunal “a quo” que determinou que fosse notificado o Ilustre Mandatário do arguido para, em prazo que concedeu, viesse aos autos esclarecer os incumprimentos das medidas de coacção que tinham sido assinados (cfr. despacho com a referência n.º 434131795).
19. Questionamos, então, por que motivo o Tribunal "a quo" o fez, quando, segundo o seu entendimento, nessa altura (as medidas de coacção foram aplicadas no dia 3 de Agosto de 2021, pelo que já se teriam extinto no dia 3 de Fevereiro de 2022), já tinha decorrido O prazo previsto no artigo 218º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
20. Atendendo a tudo o exposto, consideramos que só com as medidas de coacção aplicadas no dia 3 de Agosto de 2021, é que pode considerar salvaguardadas, de forma adequada e suficiente, as exigências cautelares que o caso reclama, sendo proporcional à gravidade do crime indiciado e às sanções que previsivelmente poderão vir a ser aplicadas ao arguido.
21. Ao sufragar o entendimento plasmado na decisão recorrida, o Tribunal de Instrução Criminal violou a Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, nomeadamente, os seus artigos 3.º, alínea b), 31º e 35º, n.º 5.
5. Admitido o recurso, por despacho datado de 29/11/2022, respondeu o arguido sufragando a sua improcedência e a confirmação do decidido, com os fundamentos que resumiu nas conclusões que se transcrevem:
A. As medidas de coação aplicadas ao Arguido ao abrigo da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, estão sujeitas aos prazos estipulados nos artigos 200º e 218º, ambos do CPP, por força do artigo 3º do CPP (neste, veja-se o recentíssimo Acórdão proferido por este insigne Tribunal da Relação do Porto, datado de 16-11-2022, no âmbito do processo n.º 983/21.7BAAVR-A.P1 (disponível em www.dgsi.pt).
B. Entendimento em sentido diverso é permitir que as medidas de coação - enquanto medida coativa e restritiva da liberdade - perdurem no tempo de forma perpetua e indetermináveis de modo contrário à génese da respetiva criação, bem assim, em clara violação do princípio da certeza e segurança jurídica e da proteção da confiança, bem assim da presunção, de inocência, previstos nos artigos 2.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa.
C. A decisão judicial recorrida é o reflexo da boa aplicação e interpretação da Lei, não merecendo qualquer reparo, alteração ou modificação, razão pela qual, deverá o recurso apresentado pelo Recorrente Ministério Público, ser julgado totalmente improcedente, para todos os devidos e legais efeitos.
6. O M.mo JIC determinou os actos que deviam instruir o apenso de recurso e ordenou a subida dos autos a este Tribunal ad quem.
7. Nesta instância, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu visto.
8. Realizado exame preliminar e colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência que decorreu com observância do formalismo legal, nada obstando à decisão.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
1. Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [v., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Tomo III, 2ª ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, BMJ n.º 458, pág. 98].
Assim, no caso sub iudicio, a questão suscitada é apenas a de saber se as medidas de coacção aplicadas com apelo à Lei n.º 112/2009, de 16/09, estão sujeitas aos prazos de duração máxima previstos no Código de Processo Penal.
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2. O teor do despacho recorrido é o seguinte: (transcrição)
«O M. Público, em apreciação do requerimento da defesa do arguido AA (ref.ª 32832276, de 14.VII), manifestou o entendimento segundo o qual “…não prevendo a Lei N.º 112/2009, de 16 de Setembro (Lei essa especial) prazos de duração para as medidas de coacção, apenas se poderá considerar que os prazos previstos no artigo 218.º, do Código de Processo Penal, não têm, nesse quadrante, aplicação.”.
O art.º 31.º da Lei N.º 112/2009, de 16.IX, quando entrega ao juiz de instrução criminal a aplicação de medidas coactivas a arguido detido por se encontrar indiciado da prática de crime de violência doméstica, refere que aquele o faz “…com respeito pelos pressupostos gerais e específicos de aplicação das medidas de coação previstas no Código de Processo Penal…”.
Por isso, não se acompanha o M. Público quando sustenta que as medidas coactivas aplicadas a arguidos indiciados por crime de violência doméstica não estejam sujeitas aos prazos máximos de duração previstos no C. Pr. Penal.
Na verdade, tratando-se de medidas que cerceiam direitos e liberdades de qualquer cidadão, qualquer restrição desses direitos e liberdades é excepcional e, quando seja necessário comprimi-los, deverão sê-lo na medida do estritamente necessário.
Ora o entendimento sufragado pelo M. Público – ao permitir o indefinido prolongamento das medidas coactivas que tenham sido impostas a qualquer arguido indiciado da prática de crime de violência doméstica – constitui uma flagrante e intolerável limitação dos direitos dele (que, recorde-se, se presume inocente…), entendimento o que não pode ser acolhido pelo juiz de instrução criminal, enquanto “juiz das garantias”.
Por conseguinte, considerando que já decorreu o prazo máximo de duração das medidas de coacção impostas ao arguido pelo despacho judicial de 03.AGO.21 – ref.ª 427297952 - (de proibição de adquirir ou a qualquer título conservar arma de fogo ou armas brancas ou de outro tipo; de contactar a ofendida por qualquer meio e em qualquer lugar; de proibição de se aproximar do local de trabalho e/ou de ensino da vítima; de proibição de permanecer na área da residência da vítima e noutros locais onde a mesma se encontrar), nos termos dos art.ºs 200.º, n.º 1 e 218.º, n.º 3, ambos do C. Pr. Penal, se declara a sua extinção.
Notifique e, após trânsito, comunique-se à DGRSP.».
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3. Apreciação
3.1 Das medidas de coacção
As medidas de coacção, enquanto meios processuais de limitação/privação da liberdade, actividade e direitos pessoais, têm por função acautelar a eficácia do procedimento penal, quer no que respeita ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias[1].
Por outro lado, sendo a regra fundamental a da liberdade, constitucionalmente e legalmente tutelada – arts. 27º, da Const. Rep. Portuguesa e 191º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal[2] - a aplicação das medidas de coacção só é admissível nos estritos termos previamente estatuídos na lei.
Nesta conformidade, foram não só submetidas ao princípio da legalidade – apenas podem ser impostas as medidas de coacção previstas na lei –, mas também aos da necessidade, da adequação e da proporcionalidade [v. arts. 191.º e 193.º, do Cód. Proc. Penal].
Consequentemente, as medidas de coacção a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
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3.2 Da Lei n.º 112/2009, de 16/09
Sufraga o Digno recorrente que as medidas de coacção aplicadas ao arguido não estão sujeitas aos prazos de extinção previstos no Código de Processo Penal, por terem a sua génese no regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas, estabelecido na Lei n.º 112/2009, de 16/09, que consubstancia uma lei especial face ao carácter geral das normas naquele previstas e que não prevê prazo para a extinção das medidas de coacção que consagra, justificando-se a compressão dos direitos do arguido pelo perigo de continuação da actividade criminosa e salvaguarda da vítima, convocando em abono da sua tese a previsão dos arts. 3º, al. b), 31º e 35º, da citada Lei.
O teor dos normativos em questão é o seguinte:
Artigo 3.º
Finalidades
A presente lei estabelece um conjunto de medidas que têm por fim:
(…)
b) Consagrar os direitos das vítimas, assegurando a sua proteção célere e eficaz;
Artigo 31.º
Medidas de coação urgentes
1 - Após a constituição de arguido pelo crime de violência doméstica, o juiz pondera, no prazo máximo de 48 horas, a aplicação, com respeito pelos pressupostos gerais e específicos de aplicação das medidas de coação previstas no Código de Processo Penal, de medida ou medidas de entre as seguintes:
a) Não adquirir, não usar ou entregar, de forma imediata, armas ou outros objetos e utensílios que detiver, capazes de facilitar a continuação da atividade criminosa;
b) Sujeitar, mediante consentimento prévio, a frequência de programa para arguidos em crimes no contexto da violência doméstica;
c) Não permanecer nem se aproximar da residência onde o crime tenha sido cometido, onde habite a vítima ou que seja casa de morada da família, impondo ao arguido a obrigação de a abandonar;
d) Não contactar com a vítima, com determinadas pessoas ou frequentar certos lugares ou certos meios, bem como não contactar, aproximar-se ou visitar animais de companhia da vítima ou da família;
e) Restringir o exercício de responsabilidades parentais, da tutela, do exercício de medidas relativas a maior acompanhado, da administração de bens ou da emissão de títulos de crédito.
2 - O disposto nas alíneas c) e d) do número anterior mantém a sua relevância mesmo nos casos em que a vítima tenha abandonado a residência em razão da prática ou de ameaça séria do cometimento do crime de violência doméstica.
3 - As medidas previstas neste artigo são sempre cumuláveis com qualquer outra medida de coação prevista no Código de Processo Penal.
4 - As medidas de coação que impliquem a restrição de contacto entre progenitores ou entre estes e os seus descendentes são imediatamente comunicadas pelo tribunal ao Ministério Público junto do tribunal competente, para efeitos de instauração, com caráter de urgência, do respetivo processo de regulação ou alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais e/ou da providência tutelar cível entendida adequada.
Artigo 35.º
Meios técnicos de controlo à distância
1 - O tribunal, com vista à aplicação das medidas e penas previstas nos artigos 52.º e 152.º do Código Penal, no artigo 281.º do Código de Processo Penal e no artigo 31.º da presente lei, deve, sempre que tal se mostre imprescindível para a proteção da vítima, determinar que o cumprimento daquelas medidas seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
2 - O controlo à distância é efetuado, no respeito pela dignidade pessoal do arguido, por monitorização telemática posicional, ou outra tecnologia idónea, de acordo com os sistemas tecnológicos adequados.
3 - O controlo à distância cabe aos serviços de reinserção social e é executado em estreita articulação com os serviços de apoio à vítima, sem prejuízo do uso dos sistemas complementares de teleassistência referidos no n.º 6 do artigo 20.º
4 - Para efeitos do disposto no n.º 1, o juiz solicita prévia informação aos serviços encarregados do controlo à distância sobre a situação pessoal, familiar, laboral e social do arguido ou do agente.
5 - À revogação, alteração e extinção das medidas de afastamento fiscalizadas por meios técnicos de controlo à distância aplicam-se as regras previstas nos artigos 55.º a 57.º do Código Penal e nos artigos 212.º e 282.º do Código de Processo Penal.
Salvo o devido respeito por entendimento diverso, não vislumbramos a interferência do primeiro normativo citado na questão controvertida.
Com efeito, a implementação de medidas de protecção rápida e eficiente das vítimas relaciona-se com a estatuição de medidas de coacção urgentes, submetidas a prazos e condições diversas dos contemplados na lei geral, assentes na intenção do legislador de obrigar à ponderação da sua aplicação em momento processual prematuro, em nada contribuindo para a resolução da questão dos eventuais limites das medidas de coacção, podendo até argumentar-se que, a celeridade e eficácia da determinada protecção, bem como a natureza urgente do processo, inculcam tal delimitação como forma de obviar a tramitações processuais muito prolongadas no tempo, essas sim, nada positivas para a vítima.
Do mesmo modo, a circunstância das medidas de coacção previstas no citado art. 31º corresponderem, no essencial, a uma especificação das já constantes no art. 200º, do Cód. Proc. Penal, tem na sua génese a diversidade das condições de aplicação, sendo mais ampla e célere no regime especialmente criado para o efeito e, daí, a razão da duplicação.
Finalmente, o art. 35º, da Lei n.º 112/2009, regula unicamente a matéria relativa às medidas de coacção que podem ser complementadas com a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância quando tal seja imprescindível à protecção da vítima, remetendo para normas do Código Penal e de Processo Penal, sendo certo que apenas uma delas – o art. 212º, deste último diploma – tem aplicação in casu, mas em sede de revogação das medidas aplicadas, o que deixa incólume a questão do limite temporal das medidas contempladas na lei para efeitos de protecção das vítimas de violência doméstica.
Assim, o que resta é simples.
É incontornável que a Lei n.º 112/2009 se apresenta como lei especial face ao regime regra do Código de Processo Penal, diploma que, todavia, em caso de lacuna, lhe é subsidiariamente aplicável, por força da estatuição do seu art. 3º.
Consequentemente, importa apenas determinar se o legislador estabeleceu em matéria de crimes de violência doméstica um sistema de medidas de coacção de duração incerta ou antes nada previu a tal propósito e são aplicáveis os preceitos que regem as demais medidas de coacção.
O Digno recorrente sufraga que o legislador não previu prazos de extinção das medidas em causa intencionalmente, por considerar que a protecção da vítima justificava tal compressão dos direitos do arguido, mas o Tribunal a quo contrapôs que permitir o indefinido prolongamento das medidas coactivas que tenham sido impostas a qualquer arguido indiciado da prática de crime de violência doméstica – constitui uma flagrante e intolerável limitação dos direitos dele (que, recorde-se, se presume inocente…).
Recorde-se que a Constituição da República Portuguesa, consagrou o princípio da igualdade dispondo no seu art. 13º, n.º 1, que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”.
Sendo uma das traves mestras do Estado de direito democrático, este princípio traduz-se numa ideia geral de proibição de arbítrio e discriminação mas é consensual o entendimento de que não veda à lei a adopção de medidas que estabeleçam distinções. Proíbe sim a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional[3].
Por seu turno, dispõe o art. 18º, n.º 2, do mesmo diploma legal, que “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”, daí resultando a imposição de submissão das medidas de coacção aos princípios da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade consagrados no art. 191º e segs. do Cód. Proc. Penal.
Ora, pese embora o desiderato de protecção da vítima que sustenta a Lei n.º 112/2009, nenhum dos seus preceitos permite a conclusão de que o legislador quis eliminar os direitos do arguido.
É que, a seguir-se a tese do Digno recorrente, os arguidos indiciados pela prática do crime de violência doméstica sujeitos a medidas de coacção com base em tal diploma legal ficariam sujeitos ao arbítrio do funcionamento dos serviços de cada Tribunal e Magistrado titular do seu processo relativamente ao período temporal de vigência das mesmas, sem direito a sindicar a respectiva duração, com as inerentes desigualdades daí decorrentes, sem qualquer fundamento razoável de suporte, não podendo restar dúvidas que a sujeição, sem limite temporal, do arguido a medida restritiva dos seus direitos violaria as garantias constitucionais do processo penal e em nada protegeria a vítima já que potenciaria demoras e atrasos processuais quando o que se pretende é celeridade e eficácia dos procedimentos.
Depois, como já anteriormente explicitado, o n.º 5, do art. 35º, reporta-se apenas às medidas fiscalizadas por meios técnicos de controlo à distância e não contempla quaisquer causas de extinção, designadamente as previstas no art. 214º, do Cód. Proc. Penal (v.g. arquivamento do inquérito, prolação de despacho de não pronúncia ou de despacho que rejeite a acusação e publicitação de sentença absolutória), nada contribuindo para a solução da questão em apreço.
Assim, na esteira do Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 16/11/2022, proferido no recurso penal n.º 983/21.7PBAVR-A.P1 (relator Moreira Ramos), e que a aqui relatora subscreveu como 1ª adjunta, “…cremos que o ponto de partida desta discussão há-de radicar na letra da lei, pois que, como é sabido, e decorre do preceituado no artigo 9º do Código Civil, não poderá sustentar-se interpretação que não tenha um mínimo de assento na lei, ou, nas palavras de Ferrara, “A interpretação literal é o primeiro estádio da interpretação. Efectivamente, o texto da lei forma o substracto de que deve partir e em que deve repousar o intérprete. Uma vez que a lei está expressa em palavras, o intérprete há-de começar por extrair o significado verbal que delas resulta, segundo a sua natural conexão e as regras gramaticais.
(…) No tocante ao texto legal, teremos de atentar na lei nº112/2009, de 16/09, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas, a qual prevê, no nº 5 do seu artigo 35º que “À revogação, alteração e extinção das medidas de afastamento fiscalizadas por meios técnicos de controlo à distância aplicam-se as regras previstas nos artigos 55.º a 57.º do Código Penal e nos artigos 212.º e 282.º do Código de Processo Penal”.
Porém, embora se trate inequivocamente de uma lei especial, o que se constata é que este normativo, que cuida expressamente da matéria atinente à revogação, alteração e extinção das medidas de afastamento aqui em apreço, e afora a remissão para aqueles dois preceitos do Código Penal, já que aqui em nada interferentes, remete depois para aqueles dois normativos do Código de Processo Penal, sendo que o artigo 282º trata apenas da matéria atinente à suspensão provisória do processo, logo, sem contender com a questão que ora nos ocupa, e o artigo 212º regula apenas em matéria de revogação e substituição das medidas, de coacção, logicamente, mas já nada prevê relativamente à extinção de tais medidas, pelo que a alusão naquele nº 5 do sobredito artigo 35º também à extinção só poderá reportar-se a extinção prevista no artigo 57º do Código Penal, o único que tal prevê, constituindo aquela falta de previsão o cerne da questão aqui em apreço.
…. entendemos que existe aqui uma clara omissão relativamente aos prazos de extinção das medidas em questão, devendo, pois, inferir-se que, se o legislador remeteu apenas para parte do regime constante do Código de Processo Penal, e partindo do princípio de que “…o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”, conforme decorre do nº 3 do artigo 9º do Código Civil que nesta matéria impera, tal significa que o mesmo, deliberadamente, deixou de fora o tratamento da matéria atinente aos prazos para a extinção das medidas de coacção.»
Em sentido idêntico, pode ler-se no Acórdão deste mesmo Tribunal, de 04/01/2023, Proc. n.º 11/22.5PIPRT-B.P1 (relator William Gilman)[4], entre o mais, o seguinte:
“…a lei processual penal sujeita a aplicação das medidas de coação a um conjunto de princípios – os princípios da legalidade, necessidade, adequação, proporcionalidade, subsidiariedade da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação e precaridade.
E como ensina Maria João Antunes, «Do princípio da precaridade enquanto princípio fundado em exigências processuais de natureza estritamente cautelar resulta também, em interseção com o princípio da proporcionalidade, a exigência no sentido de ser estabelecido um prazo máximo de duração das medidas de coação, findo o qual estas se extinguem.
(...) Ora, percorrendo a Lei 112/2009, não encontramos disposição legal que afaste expressamente o regime do prazo máximo de duração das medidas de coação previsto nos artigos 218º, n.º 2 e 215º, n.º 2 do CPP, ou sequer das suas causas de extinção previstas no artigo 214º do mesmo diploma legal.
Esta omissão de regulamentação da Lei 112/2009, seja pela ausência de norma que regulamente especialmente tais matérias, seja pela não consagração de disposição legal que afaste expressamente a aplicação do regime geral do CPP, leva a ponderar a possibilidade de que a intenção do legislador terá sido a de deixar a regulamentação de tais matérias para a lei geral, ou seja para o CPP, só que sem que tal intenção tivesse obtido escritura na letra da lei.
(…) Cremos, pois, tratar-se de uma lacuna legislativa, a integrar de acordo com o disposto o artigo 3º do CPP.”.
Resumindo e concluindo:
A possibilidade de imposição de medidas de coacção de duração temporal ilimitada não se compagina com os princípios e garantias constitucionais que regem nesta matéria.
Nada na Lei n.º 112/2009 inculca que o legislador pretendeu atribuir às medidas de coacção urgentes aí previstas um prazo de extinção diverso daquele que rege as medidas coactivas previstas no Código de Processo Penal e que, na falta de regulamentação própria, lhe é aplicável por força do art. 3º, deste último diploma legal.
Neste conspecto, nenhuma razão assiste ao recorrente tendo que improceder a sua pretensão.
***
III – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto negar provimento ao recurso do Ministério Público e manter nos precisos termos a decisão recorrida.
Sem tributação atenta a isenção do recorrente e não serem devidas pelo arguido - arts. 522º e 513º, n.º 1, a contrario, do Cód. Proc. Penal.
Notifique.
*
[Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º, n.º 2, do CPP[5]]

Porto, 31 de Maio de 2023
Maria Deolinda Dionísio
Cláudia Rodrigues
José António Rodrigues da Cunha
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[1] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 254.
[2] Consagrou-se no n.º 1 deste preceito: “A liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei”.
[3] Neste sentido, entre muitos outros, v. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 379/2021, Proc. n.º 213/20, 2ª Secção, de 27/05/2021.
[4] Cfr., também, Ac. desta RP de 22/02/2023, Proc. n.º 189/20.2GEGDM-A.P1 (relator Pires Salpico), in dgsi.pt.
[5] O texto do presente acórdão não observa as regras do acordo ortográfico – excepto nas transcrições que mantêm a grafia do original – por opção pessoal da relatora.