Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | FERNANDO VILARES FERREIRA | ||
Descritores: | TRANSIÇÃO PARA O NOVO RAU OPOSIÇÃO À RENOVAÇÃO CONTRATO FORMA DAS COMUNICAÇÕES TUTELA CASA DA MORADA DE FAMÍLIA ABUSO DE DIREITO CONTAGEM DO PRAZO ARRENDAMENTO URBANO | ||
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Nº do Documento: | RP202202087957/19.6T8PRT.P1 | ||
Data do Acordão: | 02/08/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I – Nos termos do art. 12.º, n.º 1, do NRAU, constituindo o local arrendado casa de morada de família, as comunicações respeitantes a atualização de renda e transição para o NRAU por iniciativa do senhorio, devem ser dirigidas a ambos os cônjuges. II – A referida comunicação tem de ser dirigida separadamente aos cônjuges (“a cada um”), não bastando uma única comunicação dirigida a ambos, determinando a inobservância da comunicação nos referidos termos a respetiva ineficácia, ainda que no âmbito da aplicação do cit. art. 12.º, n.º 1, na redação conferida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto. III – Ocorrendo a inobservância do dito formalismo da comunicação, o cônjuge a quem não foi dirigida comunicação autónoma, ainda que se comprove que teve pleno conhecimento da mesma, pode opor ao senhorio a respetiva ineficácia, sem prejuízo das situações de abuso de direito que possam ocorrer. IV – Na linha romano-germânica do nosso atual Direito, o abuso de direito reconduz-se à boa-fé, mediante a consideração dos seguintes grandes tipos de atos abusivos: (1) venire contra factum proprium; (2) inalegabilidades formais; (3) suppressio; (4) tu quoque; (5) desequilíbrio no exercício. V – O venire contra factum proprium exprime o exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente, e pressupõe necessariamente um investimento de confiança por parte do confiante, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma atividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa atividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara. VI – A suppressio exprime o subinstituto pelo qual a pessoa que, podendo exercer uma posição jurídica, não o faça durante período de tempo significativo, em termos que levem outrem a acreditar legitimamente em que ela não mais será exercida e, depois, sem justificação, a exerça, provocando danos. VI – A oposição do arrendatário à transição do contrato de arrendamento para o regime do NRAU por iniciativa do senhorio, mediante invocação e comprovação de que o RABC do seu agregado familiar é inferior a cinco RMNA, implica que o contrato só fica submetido ao NRAU mediante acordo entre as partes ou, na falta deste, no prazo previsto no art. 35.º, n.º 1, do NRAU. VII – Findo o prazo transitório previsto no art. 35.º, n.º 1, do NRAU, a submissão do contrato ao regime do NRAU depende de promoção do senhorio em tal sentido, aplicando-se, com as necessárias adaptações o disposto nos artigos 30.º e seguintes, sendo que então o senhorio não poderá invocar as circunstâncias previstas nas alíneas do n.º 4 do artigo 31.º e, no silêncio ou na falta de acordo das partes acerca do tipo ou da duração do contrato, este considera-se celebrado com prazo certo, pelo período previsto no artigo 35.º, n.º 6, al. b). VIII – Por força do princípio geral contido no artigo 297.º n.º 2 do CCivil, o prazo transitório de cinco anos estabelecido no art. 35.º n.º 1 do NRAU, na redação dada pela Lei 31/2012, de 14 de agosto, que se encontrava em curso quando da entrada em vigor da Lei n.º 43/2017, de 14 de junho, ficou sujeito ao novo prazo de oito anos, computando-se todo o tempo decorrido desde o seu momento inicial. IX – Aquela regra de sucessão de leis em matéria de prazos aplica-se de igual modo à alteração da redação do art. 35.º, n.º 1, do NRAU, por via da entrada em vigor da Lei n.º 2/2020, de 31 de março, que aumentou para 10 anos o mencionado prazo transitório. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | PROCESSO N.º 7957/19.6T8PRT.P1 [Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Local Cível ... – Juiz ...] Relator: Fernando Vilares Ferreira Adjunta: Maria Eiró Adjunto: João Proença SUMÁRIO: .............................................................................. ....................................... ACORDAM os Juízes do Tribunal da Relação do Porto: AA intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra BB e CC.I. RELATÓRIO 1. Alegou, em síntese, que assume a posição de senhorio - e os RR. a de arrendatários - num contrato de arrendamento habitacional com prazo certo celebrado em 27.11.1987. Pediu que se declare cessado tal contrato, por oposição à renovação (e/ou denúncia imotivada), considerando, para o efeito, que o mesmo passou a estar sujeito ao NRAU por força de comunicação remetida aos RR. Subsidiariamente, pediu que se declare cessado o contrato com base em denúncia, dada a necessidade de habitação pelo próprio. E, em qualquer caso, que sejam os RR. condenados a despejar imediatamente o locado, entregando-lho livre de pessoas e bens. 2. Os Réus contestaram, desde logo por exceção, sustentando a não transição do contrato para o NRAU, uma vez que a respetiva comunicação, estando em causa casa de morada de família, não foi dirigida a cada um dos Réus, sendo, por isso, ineficaz; ainda que assim não se entenda, defendem que tal contrato só transitará para o NRAU em 2023, atento o disposto no art. 35.º, n.º 1, do NRAU, na redação introduzida pela Lei 42/2017, de 14/6; o contrato não cessou por oposição à renovação (nem por denúncia imotivada); o A. é proprietário de diversos fogos habitacionais, não tendo necessidade do locado para sua habitação, inexistindo, assim, motivo para a invocada denúncia; concluíram pela improcedência da ação.3. Respondeu o A., alegando que a R. mulher teve conhecimento da carta de comunicação da intenção de transição do contrato para o NRAU, pelo que, ainda que se considere que as formalidades legais não foram cumpridas, a invocação dessa preterição fará incorrer os RR. em abuso de direito; mais invocou a inconstitucionalidade da ampliação do período transitório imposto pela Lei 42/2017.4. Teve lugar a audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido despacho saneador, que julgou válida e regular a instância, e foi dispensada a indicação do objeto do litígio, assim como a seleção dos temas de prova.5. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte DISPOSITIVO:[Pelo exposto, julgo a presente ação improcedente e, em consequência, absolvo os RR. BB e CC dos pedidos formulados pelo A. AA. * Porque integralmente vencido, as custas ficam a cargo do A. (art. 527º, nºs. 1 e 2, do CPC).]6. Inconformado, o Autor interpôs o presente recurso de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo, versando matéria de facto e de direito.Com o requerimento de interposição do recurso, a Apelante apresentou alegações, formulando as seguintes CONCLUSÕES: II - A Douta Sentença Recorrida deu como provado que:[I – O Autor não se pode conformar com a Douta Sentença proferida. 11 – A R. CC teve conhecimento da comunicação de 26-3-2013 referida em 5) e diligenciou pela obtenção dos documentos integrantes da resposta remetida pelo R. BB ao A. em 18-4-2013, referida em 6). Sucede que, III - Na fundamentação, pode ler-se na Douta Sentença que: “Portanto, não é possível afirmar, face à escassez da matéria fáctica demonstrada, que a R. CC tenha tido conhecimento cabal quer das circunstâncias que rodearam essa comunicação, quer do seu teor integral, quer das consequências jurídicas dela decorrentes.” Face ao exposto, IV - A Douta Sentença recorrida é nula, uma vez que existe uma clara oposição e contradição entre os fundamentos da Decisão de Direito e a Decisão sobre a matéria de facto (artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do C.P.C.). Sem prescindir, caso assim não se entenda, V- Resultou demonstrado à saciedade que a Ré mulher teve pleno conhecimento de todo o teor da comunicação referida em 5) dos factos provados, que também lhe foi dirigida pelo Réu, tendo sido a mesma a tratar de tudo o necessário para a resposta à mesma. VI – Tal conhecimento é demonstrado não só pela prova documental que prova que a Ré mulher contribuiu para as respostas às cartas do Autor, mas também pelas declarações de parte desta e do Réu marido, conforme Passagens das Declarações de parte prestadas em audiência de julgamento pelo Réu BB (cfr. Acta de 10/05/2021, depoimento com 15 m e 30 segundos) que declara que a Ré mulher foi quem tratou da documentação para resposta e Passagens das Declarações de parte prestadas em audiência de julgamento pela Ré CC (cfr. Acta de 10/05/2021, depoimento com 13 m e 07 segundos) supra transcritas e aqui dadas por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais. Na verdade, VII – A Ré mulher declarou em audiência de julgamento que o Réu marido lhe mostrou a carta e que foi a mesma que se dirigiu à associação dos inquilinos a fim de ser elaborada resposta à mesma, conforme transcrições: ([00:00:59] Juiz: Foi o marido que recebeu. A senhora dona CC teve conhecimento dessa carta, o seu marido mostrou-lha? [00:01:10] CC: CONHECIMENTO PORQUE O MEU MARIDO ME MOSTROU, SIM. [00:01:21] Juiz: Nessa sequência, também já está aqui dado como provado, a senhora dona CC e o seu marido, o senhor BB, terão respondido a essa carta. Chegaram a enviar umas declarações de rendimentos das Finanças, recorda-se? [00:01:35] CC: Sim. [00:01:51] Juiz: Muito bem. Também já está aqui junto, ou seja, as cartas já estão aqui. Estou a informá-la, está bem? Foi o senhor doutor que juntou. E depois, a senhora doutora, nessa sequência, também juntou. Posteriormente… Ah, outra questão. Estas cartas que a senhora dona CC e o seu marido mandaram foi através da Associação de Inquilinos do Porto. [00:02:20] CC: Sim, sim. [00:02:22] Juiz: A senhora deslocou-se lá? [00:02:22] CC: Sim. [00:02:22]Juiz: Foi? Para ver…[00:02:23] CC: Sim. [00:02:23] Juiz:…como é que havia de agir, é isso? [00:02:24] CC: Todas as cartas que tem…[00:02:26] Juiz: Foi por intermédio dessa associação, não é? [00:02:28] CC: Sim.[00:02:28]Juiz: De o aconselhar (impercetível)? [00:02:29] CC: Sim. [00:03:29] Juiz: E recorda-se… Sabe se a Associação de Inquilinos mandou uma carta ao senhor AA dando conta disso? [00:03:36] CC: Ahhh… Sim. [00:05:25] CC: …da primeira carta que recebemos que foi dos cinco anos e que transitou para oito anos, que foi o que a minha advogada me… Posto isto, VIII - É claro que a Ré mulher teve completo conhecimento do teor da carta, diligenciou para obter a documentação necessária para resposta à mesma e até se dirigiu à Associação de Inquilinos para que a mesma elaborasse resposta, tendo afirmado que respondeu à mesma, tudo sendo tratado pela Ilustre Mandatária dos Réus em sua representação. IX – Salvo o devido respeito, fundamentar-se que a Ré mulher não conhecia o teor da carta porque não respondeu à mesma (a mesma declara que respondeu) ou que não há abuso de direito porque a mesma Ré mulher eventualmente não conheceu a resposta do Réu marido não faz qualquer sentido. X – A Ré mulher teve conhecimento do teor da carta que lhe foi dirigida em seu nome, só não tendo respondido diretamente porque assim o decidiu fazer, por uma questão estratégica, sendo a resposta elaborada pela Ilustre Mandatária de ambos os Réus. XI - Salvo o devido respeito, o facto de a Ré mulher não ter respondido à mesma carta não pode estribar a prova de que a mesma desconhecia o seu teor, mas apenas a prova de que a mesma decidiu não responder à mesma guiada por uma estratégia de tentar anular a transição para o NRAU do contrato de arrendamento em causa nos autos, deixando crer um desconhecimento por parte da Ré mulher que ela própria acaba por dizer em audiência que não existia. XII - Temos assim que resultou provado que: 11 – A R. CC teve conhecimento da comunicação de 26-3-2013 E TODO O SEU TEOR referida em 5) e diligenciou pela obtenção dos documentos integrantes da resposta remetida pelo R. BB ao A. em 18-4-2013, referida em 6). XIII - Matéria alegada pelo Recorrente e que deve ser acrescentada aos factos provados (“e todo o seu teor”), no caso de não ser decretada a nulidade da Douta Sentença recorrida. XIV - Resultando demonstrado que a Ré mulher teve conhecimento da carta para transição para o NRAU, talqualmente lhe tivesse sido enviada a missiva apenas a si dirigida, a invocação da alegada formalidade de envio de duas cartas separadas a fim de anular a transição para o NRAU viola os mais elementares princípios da boa fé. XV - Até porque a carta enviada e que a Ré mulher teve pleno conhecimento foi enviada também em seu nome e não só do Réu marido (ponto 5 dos factos provados). Pelo que, XVI - Se lhe foi dirigida e a mesma teve conhecimento da mesma, só não respondeu porque não o quis fazer por uma questão estratégica, não se percebendo que a fundamentação para a improcedência do abuso de direito seja o facto de eventualmente a Ré mulher não ter tido conhecimento da resposta do marido, o que como se vê das declarações da mesma, nem sequer é verdade. XVII - Estabelece o art. 334º do Código Civil, sob a epígrafe “abuso do direito”, que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. XVIII - Subsumindo-nos ao caso concreto, ficou demonstrado que a Ré mulher teve total conhecimento do teor da carta, que também lhe foi dirigida, contendo o seu nome no destinatário, em nada tendo sido prejudicada nos seus direitos, pelo que vir agora invocar a nulidade da passagem para o NRAU pelo não cumprimento de uma formalidade (envio de duas cartas a cada um dos cônjuges e não uma dirigida a ambos), que supostamente lhe tirou a oportunidade de se pronunciar, enquadra-se no artigo 334.º do Código Civil. Na verdade, XIX - Como defende a Douta Sentença recorrida o objetivo da norma em causa foi totalmente preenchido, uma vez que a carta que o Autor dirigiu a ambos os cônjuges chegou ao conhecimento de ambos. XX - A Ré mulher ao alegar que não teve conhecimento da carta ou que não foi cumprido o formalismo legal, viola os princípios da boa fé uma vez que o seu direito em nada foi prejudicado não existindo motivo material para que a missiva seja nula. Termos, em que, XXI - Tendo a Ré mulher tido conhecimento da carta par a transição do NRAU, que também lhe foi dirigida a si, estando cumprido o escopo da lei, ou seja, que ambos os cônjuges tenham conhecimento do pedido de transição, vir alegar a falta de formalismo do envio de duas cartas autónomas viola, além do mais, o princípio da boa fé, além de outros. Em conclusão, XXII - A EXCEÇÃO DE ABUSO DE DIREITO DEVE SER JULGADA PROCEDENTE, CONSIDERANDO-SE QUE O CONTRATO DE ARRENDAMENTO EM CAUSA NOS AUTOS TRANSITOU PARA O NRAU. Sem prescindir, caso assim não se entenda, XXIII - Mesmo que não houvesse um claro abuso de direito por parte dos Réus, verifica-se dos autos que a carta para transição para o NRAU foi dirigida a ambos os cônjuges, como a Lei impõe. Pelo que, XXIV - O Autor cumpriu o formalismo legal, não existindo motivo para que não se considere que o contrato de arrendamento transitou para o NRAU, até porque a lei não estipula que seja obrigatório o envio de duas cartas distintas, para duas pessoas que vivem na mesma casa, sendo a interpretação que o Tribunal “a quo” faz da lei errada. Aqui chegados, XXV - Dúvidas não restam que o contrato em causa nos autos transitou para o NRAU, passando a ter um prazo certo de cinco anos, com início a 1 de junho de 2013. Sucede que, XXVI - Alegando uma posterior redação do artigo 35.º, n.º 1, da Lei n.º 31/2012, que alongou o prazo transitório para oito anos e que entrou em vigor em data posterior, os Réus recusaram-se a entregar o imóvel, sendo que no modesto entendimento do Recorrente tal prazo de oito anos já decorreu no decurso da ação. Sem prescindir, XXVII - A aplicação retroativa de qualquer lei, inclusive outras entretanto publicadas, que tenham alongado o prazo transitório inicial de cinco anos, para contrato cujo prazo já estava em curso, sempre seria inconstitucional por violar direitos fundamentais, princípio da proporcionalidade e da certeza jurídica (art.º 18.º da C.R.P, entre outros). Pelo que, XXIX - Dúvidas não restam, que o prazo de cinco anos e eventuais prazos transitórios anteriores já decorreram. Em conclusão, XXX - O contrato de arrendamento “sub judice” já se extingiu por decurso do tempo, devendo a ação ser julgada provada e procedente. XXXI - Decidindo, como decidiu, a Douta Sentença recorrida, além do mais, violou o disposto nos artigos 607.º do C.P.C., no artigo 334.º do Código Civil artigos 12.º, n.º 1, e 10.º, n.º 2, al. a), do NRAU. * Finalizou, pedindo a revogação da sentença recorrida e, consequentemente, a condenação dos Réus no pedido,7. Contra-alegaram os Réus, pugnando pela improcedência do recurso e consequente manutenção da decisão recorrida.II. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de questões nelas não incluídas, salvo se forem de conhecimento oficioso (cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1.ª parte, e 639.º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPCivil)).OBJETO DO RECURSO Assim, partindo das conclusões da alegação do Apelante, são as seguintes as questões estruturais submetidas à nossa apreciação: a) Da nulidade da sentença recorrida, por contradição entre os fundamentos e a decisão; b) Do erro de julgamento em matéria de facto; c) Do erro de julgamento em matéria de direito, em especial quanto ao abuso de direito. III. Nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPCivil, a sentença é nula quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão”, o mesmo é dizer quando a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. “Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente”[1].FUNDAMENTAÇÃO 1. Nulidade da sentença decorrente de oposição entre os fundamentos e a decisão Defende o Apelante que tendo a decisão recorrida julgado provada a factualidade descrita sob o respetivo ponto 11) – “A R. CC teve conhecimento da comunicação de 26-3-2013 referida em 5) e diligenciou pela obtenção dos documentos integrantes da resposta remetida pelo R. BB ao A. em 18-4-2013, referida em 6)” –, não podia ter concluído como concluiu em sede de aplicação do direito aos factos, no seguinte segmento: “Portanto, não é possível afirmar, face à escassez da matéria fáctica demonstrada, que a R. CC tenha tido conhecimento cabal quer das circunstâncias que rodearam essa comunicação, quer do seu teor integral, quer das consequências jurídicas dela decorrentes”. Não vislumbramos qualquer contradição, o que se evidencia claramente se citarmos integralmente o raciocínio expendido no âmbito da fundamentação de direito em torno da dita factualidade, assim: [No caso em apreço, só foi enviada uma carta, ainda que dirigida a ambos os cônjuges – cfr. “facto provado” nº 5. Assim, a comunicação aos RR. da transição do contrato para o NRAU será ineficaz, nos termos previstos no mencionado art. 12º, nº 1, parte final. Não se diga, neste ponto, que os RR., ao invocarem a ineficácia dessa comunicação, agem em abuso de direito, nos termos do art. 334º do CC. É verdade que ficou demonstrado que a R. CC teve conhecimento dessa carta datada de 26-3-2013 e que diligenciou pela obtenção dos documentos integrantes da resposta remetida pelo R. BB ao A. em 18-4-2013. Contudo, desta factualidade não é possível inferir que a referida R. CC tivesse tido conhecimento dos concretos termos da resposta fornecida. Note-se que as comunicações subsequentes à mencionada carta de 26-3-2013 foram remetidas exclusivamente pelo R. BB (ou pela “Associação de Inquilinos e dos Condóminos do Norte de Portugal” em representação exclusiva deste último). Portanto, não é possível afirmar, face à escassez da matéria fáctica demonstrada, que a R. CC tenha tido conhecimento cabal quer das circunstâncias que rodearam essa comunicação, quer do seu teor integral, quer das consequências jurídicas dela decorrentes. Mais: também não se pode concluir, em consequência, que aquela Ré tenha tido oportunidade de contribuir para a defesa dos interesses do casal, sendo que, como referido, o único interlocutor do A. nas comunicações subsequentes foi o R. BB.] Ou seja, em sede de fundamentação de direito, a sentença sob recurso reafirma expressamente o facto julgado provado e descrito sob o respetivo 11) – “que a Ré CC teve conhecimento da carta do Autor, de 26.3.2013”. Mas é claro que de tal factualidade não decorre necessariamente que a mesma Ré tivesse de conhecer a resposta que foi dirigida à dita carta, e especialmente nas concretas circunstâncias em que tal resposta ocorreu. E foi apenas isto que se deixou sublinhado e explicitado na sentença recorrida. Sem ponta de contradição, reiteramos. Em boa verdade, a invocação do vício de nulidade parece ter na sua base mero equívoco do Apelante, ao considerar que o segmento da sentença que citou se referia a desconhecimento da Ré CC acerca da carta do Autor, datada de 26.3.2013. Não. A sentença, no segmento da fundamentação de direito em questão, refere-se antes ao desconhecimento da Ré CC acerca dos concretos termos da resposta à dita carta do Autor. Improcede, assim, a invocada nulidade da sentença recorrida com fundamento em oposição entre os fundamentos e a decisão. 1. Dos factos tidos por relevantes para a decisão da causa, o Tribunal de que vem o recurso julgou provados os seguintes:OS FACTOS 1.1. Factos provados 1 – O A. é proprietário, desde 24.7.2006, do prédio sito à Rua ..., Freguesia..., Porto, inscrito na matriz sob o art. ...5 e descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº ...16. 2 – No dia 27.11.1987, os então proprietários do prédio deram de arrendamento aos RR., através do documento de fls. 8, o Andar... do referido prédio, destinando-se o mesmo à habitação destes últimos. 3 – Acordaram as partes, na cláusula 1.ª desse contrato, que o mesmo era celebrado “pelo prazo de 1 ano, a começar no dia 1.12.1987 e a terminar em 30.11.1988, considerando-se prorrogado por sucessivos períodos iguais, e nas mesmas condições enquanto, por qualquer das partes, não for denunciado com a antecipação legal”. 4 – Convencionaram as partes a renda mensal de 14.000$00, que, fruto das atualizações legais, ascende atualmente a 208,42 €, a ser paga no primeiro dia útil do mês anterior a que disser respeito. 5 – Por carta registada de 26.3.2013, constante de fls. 9, dirigida a ambos os Réus, o A. comunicou-lhes a intenção de que “o referido contrato transite para o NRAU” e que o mesmo “passe a ser do tipo prazo certo, com a duração de 5 anos”, mais propondo que a renda “passe para 300 € mensais”: 6 – O R. BB respondeu ao A., por carta de 18.4.2013, constante de fls. 9-verso, informando que “tenho rendimentos inferiores a 5 RMNAS”, conforme comprovativo de pedido de certidão à “Autoridade Tributária” junto a tal carta, mais se tendo oposto à transição do contrato para o NRAU, bem como à alteração do prazo para cinco anos e ao valor da renda proposta. 7 – Em 26.12.2013, a “Autoridade Tributária” emitiu a declaração de fls. 30-verso, da qual consta que o valor do Rendimento Anual Bruto Corrigido do agregado familiar do R. BB, composto por si, pela R. CC e por DD, no ano fiscal de 2012, foi de 25.476,06 €, “inferior a 5 Retribuições Mínimas Nacionais Anuais”. 8 – O R. BB remeteu tal certidão ao A. em 27.12.2013. 9 – Por carta registada de 26.3.2018, constante de fls. 10-verso, dirigida a ambos os Réus, o A. comunicou-lhes que considerava o contrato celebrado por 5 anos, com início em junho de 2013, mais informando que “no dia 31 de maio do corrente ano, data em que o prazo do contrato de arrendamento termina, devem entregar o apartamento (…)”. 10 – A “Associação de inquilinos e dos Condóminos do Norte de Portugal”, em representação do R. BB, remeteu ao A. as cartas de fls. 32-verso e 34, datadas de 30.4.2018 e 18.6.2018, alegando que a mencionada comunicação de 26.3.2013 era ineficaz, dado que não havia sido cumprido o disposto nos arts. 12.º, 9.º e 10.º do NRAU, e, bem assim, que “o período transitório ainda não cessou”, mais rejeitando a entrega do locado. 11 – A R. CC teve conhecimento da comunicação de 26.3.2013 referida em 5) e diligenciou pela obtenção dos documentos integrantes da resposta remetida pelo R. BB ao A. em 18.4.2013, referida em 6). 12 – O prédio referido em 1) é composto por Andar..., dois andares e águas furtadas. 13 – Tal prédio, além do locado, é composto por mais três apartamentos, afetos a alojamento local, sendo que o situado no Andar... tem um quarto e apresenta pelo menos 40 m2 de área e os outros dois têm dois quartos, com pelo menos 70 m2 de área cada um. 14 – O A. é proprietário de um prédio sito na Travessa ..., Freguesia..., Porto, descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº ...12 e inscrito na matriz sob o art. ...03. 15 – Tal prédio é composto por dois apartamentos, encontrando-se um deles arrendado e outro afeto a alojamento local. 16 – Os RR contraíram casamento entre si em 17.12.1983, sem convenção antenupcial. 17 – Os RR. residem no locado, ininterruptamente, desde a celebração do contrato em 27.11.1987. 1.2. Factos não provados O Tribunal a quo considerou inexistirem factos não provados com relevância para a decisão da causa.1.3. Apreciação da impugnação da matéria de facto Segundo dispõe o art. 662.º, n.º 1 do CPCivil, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos dados como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.1.3.1. No caso que nos ocupa, o Recorrente questiona tão só a factualidade nos termos em que se mostra descrita sob o ponto 11) do elenco dos factos provados – “A R. CC teve conhecimento da comunicação de 26.3.2013 referida em 5) e diligenciou pela obtenção dos documentos integrantes da resposta remetida pelo R. BB ao A. em 18.4.2013, referida em 6) –, manifestando entendimento que, em face dos meios de prova que indica, se justifica que se tenha por provado que: “A R. CC teve conhecimento da comunicação de 26-3-2013 E TODO O SEU TEOR referida em 5) e diligenciou pela obtenção dos documentos integrantes da resposta remetida pelo R. BB ao A. em 18-4-2013, referida em 6)”. Ou seja, o Apelante apenas pretende que se introduza na redação do facto em questão o segmento “E TODO O SEU TEOR”. Não vemos necessidade de o fazer. Ao afirmar-se que “A R. CC teve conhecimento da comunicação de 26.3.2013 referida em 5)”, e que neste ponto consta que [“o A. comunicou-lhes a intenção de que “o referido contrato transite para o NRAU” e que o mesmo “passe a ser do tipo prazo certo, com a duração de 5 anos”, mais propondo que a renda “passe para 300 € mensais”], é evidente que se está a dizer que a Ré CC teve conhecimento de todo o teor da dita comunicação de 26.03.2013. Acrescentar à redação do ponto 11) o que o Apelante pretende não passaria de um preciosismo redundante, e como tal inútil, no contexto em que a matéria em questão se insere. Estamos apenas perante nova manifestação de um mesmo equívoco: o que deixámos assinalado ao entendimento do Apelante a propósito do tratamento que dispensámos à questão da nulidade formal da decisão recorrida. Concluímos pela total improcedência do recurso em matéria de facto, pelo que mantemos inalterada a corresponde decisão prolatada pelo Tribunal a quo. 2. Decorrendo inequivocamente da factualidade julgada provada a existência de um contrato de arrendamento para fins habitacionais, celebrado em 27 de novembro de 1987, ou seja, antes da vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15 de outubro, a controvérsia fundamental suscitada pelas partes gira em torno de saber se o contrato passou a reger-se pelo Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, na sequência de comunicação efetuada aos RR. em 26.3.2013, ao abrigo do disposto no art. 30. º daquele último diploma.OS FACTOS E O DIREITO 2.1. A aplicação do NRAU ao contrato em apreço constitui, pois, pressuposto essencial da pretensão do Autor de fazer cessar a vigência daquele, por oposição à renovação do mesmo, comunicada aos Réus em 26.03.2018. Com a aprovação do NRAU, introduziram-se profundas alterações no regime de arrendamento urbano, visando “alcançar objetivos considerados essenciais ao saudável desenvolvimento do mercado habitacional português, através da previsão de regras que, simultaneamente, promovam o mercado de arrendamento para habitação, serviços e comércio, facilitem a mobilidade dos cidadãos, criem condições atrativas para o investimento privado no sector imobiliário, devolvendo confiança aos agentes económicos, promovam a reabilitação urbana, a modernização do comércio, a qualidade habitacional e uma racional alocação de recursos públicos e privados”[2]. Nos termos do art. 59.º, n.º 1, da cit. Lei n.º 6/2006, o NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias relativas aos contratos mais antigos (celebrados durante a vigência do RAU, ou antes deste), previstas nos arts. 26.º a 58.º. A Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, sofreu já diversas alterações, devendo ter-se em atenção, à partida, as normas em apreço na redação vigente à data dos factos. Para além do cit. art. 30.º, com interesse para a decisão apresentam-se os normativos dos arts. 9.º, n.º 1, 10.º, n.ºs 1 e 2, a), 12.º, n.º 1, 31.º e 35.º, n.º 1, do mesmo diploma legal. À data de 26.03.2013, os citados normativos dispunham assim: Art. 9.º: “1 – Salvo disposição da lei em contrário, as comunicações legalmente exigíveis entre as partes relativas a cessação do contrato de arrendamento, atualização da renda e obras são realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de receção”.Art. 10.º: “1 - A comunicação prevista no n.º 1 do artigo anterior considera-se realizada ainda que:a) A carta seja devolvida por o destinatário se ter recusado a recebê-la ou não a ter levantado no prazo previsto no regulamento dos serviços postais; b) O aviso de receção tenha sido assinado por pessoa diferente do destinatário. 2- O disposto no número anterior não se aplica às cartas que: a)Constituam iniciativa do senhorio para a transição para o NRAU e atualização da renda, nos termos dos artigos 30.º e 50.º”. Art. 12.º: “1 - Se o local arrendado constituir casa de morada de família, as comunicações previstas no n.º 2 do artigo 10.º devem ser dirigidas a cada um dos cônjuges”.Art. 30.º: “A transição para o NRAU e a atualização da renda dependem de iniciativa do senhorio, que deve comunicar a sua intenção ao arrendatário, indicando:a) O valor da renda, o tipo e a duração do contrato propostos; b) O valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38.º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), constante da caderneta predial urbana; c) Cópia da caderneta predial urbana”. Art. 31.º: “1 - O prazo para a resposta do arrendatário é de 30 dias a contar da receção da comunicação prevista no artigo anterior.2 - Quando termine em dias diferentes o prazo de vários sujeitos, a resposta pode ser oferecida até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar. 3 - O arrendatário, na sua resposta, pode: a) Aceitar o valor da renda proposto pelo senhorio; b) Opor-se ao valor da renda proposto pelo senhorio, propondo um novo valor, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 33.º; c) Em qualquer dos casos previstos nas alíneas anteriores, pronunciar-se quanto ao tipo e à duração do contrato propostos pelo senhorio; d) Denunciar o contrato de arrendamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 34.º. 4 - Se for caso disso, o arrendatário deve ainda, na sua resposta, invocar, isolada ou cumulativamente, as seguintes circunstâncias: a) Rendimento anual bruto corrigido (RABC) do seu agregado familiar inferior a cinco retribuições mínimas nacionais anuais (RMNA), nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 35.º e 36.º; b) Idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 36.º. 5 - As circunstâncias previstas nas alíneas do número anterior só podem ser invocadas quando o arrendatário tenha no locado a sua residência permanente ou quando a falta de residência permanente for devida a caso de força maior ou doença. 6 - A falta de resposta do arrendatário vale como aceitação da renda, bem como do tipo e da duração do contrato propostos pelo senhorio, ficando o contrato submetido ao NRAU a partir do 1.º dia do 2.º mês seguinte ao do termo do prazo previsto nos n.os 1 e 2. 7 - Caso o arrendatário aceite o valor da renda proposto pelo senhorio, o contrato fica submetido ao NRAU a partir do 1.º dia do 2.º mês seguinte ao da receção da resposta: a) De acordo com o tipo e a duração acordados; b) No silêncio ou na falta de acordo das partes acerca do tipo ou da duração do contrato, este considera-se celebrado com prazo certo, pelo período de cinco anos. 8 - O RABC é definido em diploma próprio”. Artigo 35.º: “1 - Caso o arrendatário invoque e comprove que o RABC do seu agregado familiar é inferior a cinco RMNA, o contrato só fica submetido ao NRAU mediante acordo entre as partes ou, na falta deste, no prazo de cinco anos a contar da receção, pelo senhorio, da resposta do arrendatário nos termos da alínea a) do n.º 4 do artigo 31.º.(…)”. Transitando o contrato para o NRAU, passa a ser-lhe aplicável o regime dos contratos com prazo certo, que admitem oposição à renovação pelo senhorio (arts. 1095.º a 1097.º do CCivil). 2.2. No que diz respeito à comunicação do Autor, dando conta da sua intenção de fazer transitar o contrato para o regime jurídico do NRAU, importa desde logo ter presente a factualidade julgada provada e descrita sob o ponto 5): [Por carta registada de 26.3.2013, constante de fls. 9, dirigida a ambos os Réus, o A. comunicou-lhes a intenção de que “o referido contrato transite para o NRAU” e que o mesmo “passe a ser do tipo prazo certo, com a duração de 5 anos”, mais propondo que a renda “passe para 300 € mensais”].Sendo incontroverso que o locado em questão constitui casa de morada de família, impunha-se ao Autor, por força do comando do cit. art. 12.º, o envio de duas cartas, separadamente, a cada um dos cônjuges Réus. Porém, o Autor não observou o formalismo legal, tendo remetido uma única carta dirigida a ambos os cônjuges. Como se deixou notado no Ac. da RL de 05.05.2020[3], “não tem dúvidas a doutrina em sustentar que a comunicação tem de ser dirigida separadamente, individualizadamente aos cônjuges (“a cada um”), não bastando uma única comunicação dirigida a ambos (ver autores referidos na sentença recorrida [5]), determinando a inobservância da comunicação nos referidos termos a ineficácia da comunicação [6], o que, aliás, veio a ser expressamente consagrado com a alteração introduzida ao referido art. 12.º pela Lei nº 43/2017, de 14.6. Na jurisprudência vão no mesmo sentido o Ac. da RG de 4.10.2017 referido na sentença recorrida [7], e o Ac. da RP de 10.7.2019, P.568/18.5T8VLG.P1 (José Igreja Matos), em www.dgsi.pt. Em ambos os acórdãos se refere que o texto da lei (“a cada um”) é inequívoco [8]”. Não podemos, pois, acolher a tese do Apelante quando a dado passo parece concluir que a lei não estipula a obrigatoriedade do envio de duas cartas distintas, para duas pessoas que vivem na mesma casa, na situação dada como provada. Tendo por base a atuação do Autor, a sentença recorrida considerou ineficaz a dita comunicação única de 26.03.2013, para efeitos de transição do contrato para o regime do NRAU. É certo que ao invés do que parece ter sido considerado pela sentença recorrida, o cit. art. 12.º, n.º 1, na redação dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, não previa expressamente a sanção de “ineficácia” para a comunicação efetuada em violação do determinado. Ainda assim, temos por certo que a inobservância do formalismo legal conduz, inevitavelmente, à ineficácia da comunicação, por padecer “de um vício essencial, estrutural, quanto a um dos requisitos (formais) constitutivos de que a lei faz depender a respetiva eficácia”[4]. Como se deixou bem evidenciado no voto de vencido exarado no cit. Ac. da RL de 05.05.2020, subscrito por LUÍS FILIPE SOUSA, “existe no nosso ordenamento jurídico uma tutela transversal reforçada da casa de morada de família, de que são exemplos os Artigos 10.º da Lei n.º 83/2019, de 3.9, 1793.º do Código Civil, 629.º, n.º 3, al. a), 751.º, n.º 4 e 864. º do Código de Processo Civil, bem como Artigo 5.º da Lei n.º 7/2001, de 1.5. Em conformidade, as normas que impõem determinados formalismos na prática de atos que podem bulir com a casa de morada de família – de que são precisamente exemplo os Artigos 9º, nº1, 10º, n.º 2 e 12º, nº 1 da Lei nº 6/2006, de 17.2 – devem ser objeto de uma interpretação estrita, sendo que aqui ressalta a observância da forma acrescida como meio de tutela de um direito essencial. Se o senhorio não cumpriu a forma exigida por lei, sibi imputet”. 2.3. A sentença impugnada refutou a existência de abuso de direito por parte dos Réus, não obstante reconhecer que “a R. CC teve conhecimento dessa carta datada de 26-3-2013 e que diligenciou pela obtenção dos documentos integrantes da resposta remetida pelo R. BB ao A. em 18-4-2013”.É com tal entendimento que o Autor/Recorrente não se conforma verdadeiramente, defendendo que o conhecimento integral da comunicação de 26.3.2013 por parte da co-Ré CC, à qual não respondeu apenas porque não quis, justifica inteiramente a procedência da exceção de abuso de direito que oportunamente invocou, por violação desde logo do princípio da boa fé. Vejamos. Ilegítimo é “o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito” (art. 334.º do CCivil). Para MENEZES CORDEIRO, “o abuso de direito exprime o exercício inadmissível de posições jurídicas, isto é, a atuação formalmente concorde com as normas, mas substantivamente contrária aos valores fundamentais da ordem jurídica” (…) uma posição jurídica atuada em termos axiologicamente inadmissíveis”[5]. Seguindo os ensinamentos do mesmo autor[6], “os limites da boa fé são os derivados dos valores fundamentais do sistema, sendo concretizados através dos princípios da tutela da confiança e da primazia da materialidade subjacente”. A tutela da confiança pressupõe “a pessoa colocada numa situação de crença legítima, devidamente justificada no plano social e pessoal, em termos que o levem a desenvolver uma atividade significativa que não possa, sem dano, ser revertida”; já “a primazia da materialidade subjacente recorda que o Direito visa efetivar soluções substanciais, em detrimento de meras conformações formais com os seus comandos”. A consideração do “fim social ou económico” implica interpretar a norma que conceda o direito; caso esta tenha um sentido funcional, a sua ultrapassagem dá azo a uma situação estranha ao direito considerado, o que não é, tecnicamente, um abuso: apenas uma violação das normas que restrinjam o exercício ou lhes cometam funções” Na linha romano-germânica do nosso atual Direito, o abuso de direito reconduz-se à boa-fé, mediante a consideração dos seguintes grandes tipos de atos abusivos: “(1) venire contra factum proprium; (2) inalegabilidades formais; (3) suppressio; (4) tu quoque; (5) desequilíbrio no exercício”. Concordamos com o entendimento assumido pelo Exmo. Juiz de Direito na decisão sob recurso, no sentido de que a existir abuso de direito, o mesmo reconduzir-se-ia à modalidade de venire contra factum proprium ou de suppressio. Socorrendo-nos novamente do professado por MENEZES CORDEIRO[7], o venire contra factum proprium “exprime o exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente”; enquanto que a suppressio “exprime o subinstituto pelo qual a pessoa que, podendo exercer uma posição jurídica, não o faça durante período de tempo significativo, em termos que levem outrem a acreditar legitimamente em que ela não mais será exercida e, depois, sem justificação, a exerça, provocando danos”. Também nós acompanhamos o entendimento jurisprudencial de que se dá conta no voto de vencido consignado no cit. Acórdão da RL de 05.05.2020, no sentido de que a modalidade de venire contra factum proprium pressupõe necessariamente [um investimento de confiança por parte do confiante, traduzido «no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma atividade na base do “factum proprium”, de tal modo que a destruição dessa atividade (pelo“venire”) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.1.2007, Borges Soeiro, 06A4571). Indicando a necessidade de tal requisito, vejam-se, ainda, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11.12.2012, Fernandes do Vale, 116/07 e de 25.11.2014, Gabriel Catarino, 3220/07)]. Ora, no caso dos autos, da matéria de facto julgada provada não decorre de modo algum que o senhorio, com base na confiança, tenha tomado concretas disposições patrimoniais, o que desde logo afasta a possibilidade de darmos por preenchidos todos os requisitos do venire contra factum proprium. Acresce a circunstância de o co-Réu BB sempre se ter oposto à transferência do contrato de arrendamento em questão para o regime do NRAU, conforme pretendido pelo Autor: logo num primeiro momento quando, em 18.04.2013, respondeu à carta de 26.03.2013, informando que tinha “rendimentos inferiores a 5 RMNAS”, e que não aceitava a alteração do prazo para cinco anos e o valor da renda proposta; e num segundo momento, quando, representado pela “Associação de inquilinos e dos Condóminos do Norte de Portugal”, remeteu ao A. as cartas de fls. 32-verso e 34, datadas de 30.4.2018 e 18.6.2018, alegando que a mencionada comunicação de 26.3.2013 era ineficaz, dado que não havia sido cumprido o disposto nos arts. 12.º, 9.º e 10.º do NRAU, e ainda que o período transitório ainda não tinha cessado. Tal conduta do Réu BB afigura-se-nos objetivamente adequada a impedir o Autor de acreditar legitimamente que os Réus jamais exerceriam o direito de invocar a dita ineficácia da comunicação de 26.03.2013, designadamente por via de exceção nesta ação judicial, o que afasta a possibilidade de considerar verificado abuso de direito na submodalidade de suppressio. Impõe-se-nos, pois, que concluamos como o faz a sentença recorrida, ou seja: a invocação pelos Réus da ineficácia da comunicação prevista no art. 12.º, n.º 1, do NRAU, configura o exercício normal do seu direito - e não o seu exercício abusivo, do que decorre forçosamente a não subordinação do contrato de arrendamento em discussão ao regime do NRAU, e consequentemente a não cessação da vigência do mesmo nos termos pretendidos pelo Autor/Apelante. Sendo aplicáveis, in casu, as regras dos contratos de duração indeterminada, ou seja, as previstas nos arts. 1099.º do Civil, o contrato não poderá cessar por oposição à renovação do senhorio, dado que esta é uma faculdade reservada aos contratos com prazo certo (cfr. arts. 1095.º e 1097.º do CCivil). Improcede, pois, o recurso, com a consequente manutenção da decisão recorrida. 2.4. A conclusão a que chegámos prejudica o conhecimento de outras questões que, à luz da factualidade julgada provada e do direito aplicável, sempre impediria a cessação do contrato nos termos pretendidos pelo Apelante.Com efeito, ainda que fosse de concluir pela eficácia da dita comunicação promovida pelo Autor em 26 de março de 2013, sempre haveria que levar em consideração os termos da oposição deduzida pelo co-Réu BB, conforme descrito sob os pontos 6), 7) e 8) do elenco dos factos julgados provados, o que justificaria à partida a aplicação do preceituado nos arts. 31.º, n.º 4, al. a) e 35.º, n.ºs 1 e 6, do NRAU, na redação conferida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, e consequente necessidade de o Autor, enquanto senhorio, passados cinco anos desde a data de receção da comunicação do Réu de 18.04.2013, “promover” novamente “a transição do contrato para o NRAU, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos arts. 30.º e segs., com as seguintes especificidades: a) O arrendatário não pode invocar as circunstâncias previstas nas alíneas do n.º 4 do artigo 31.º; b) No silêncio ou na falta de acordo das partes acerca do tipo ou da duração do contrato, este considera-se celebrado com prazo certo, pelo período de dois anos”. Ora, o Autor, passados cinco anos da receção da carta do Réu de 18.04.2013, não promoveu novamente a transição do contrato para o NRAU, nos termos das citadas disposições legais. Limitou-se apenas, por carta de 26 de março de 2018 (justamente 5 anos desde a sua primeira carta), a comunicar aos Réus que considerava o contrato celebrado pelo período de cinco anos com início de vigência em 1 de junho de 2013. Tal entendimento do Autor é destituído de fundamento legal. E também por isso não poderia nunca o contrato considerar-se abrangido pela aplicação do regime do NRAU, e muito menos submetido a um prazo de cinco anos com início em 1 de junho de 2013. E em todo o caso sempre seria de considerar a problemática da sucessão de leis no tempo, com referência à alteração da redação do art. 35.º, n.º 1, do NRAU, em especial quanto à duração do prazo transitório aí previsto. Com efeito, prevendo o cit. normativo, na redação da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, o prazo transitório de 5 anos, tal prazo veio a ser alargado para 8 anos, por efeito da entrada em vigor da Lei n.º 43/2017, de 14 de junho, e depois para 10 anos, por via da entrada em vigor da Lei n.º 2/2020, de 31 de março. Embora não haja necessidade de tratarmos especialmente desta temática no caso dos autos, não nos custa dar a conhecer às partes que comungamos inteiramente do entendimento assumido no Ac. desta Relação do Porto, de 08.10.2019[8], assim sintetizado: [I - Relativamente e visando os contratos de arrendamento celebrados antes da entrada em vigor da Lei 6/2006 de 27.2, veio a ser publicada em 14 de Agosto de 2012 a Lei 31/2012, com o objetivo da dinamização do mercado do arrendamento, a qual aprovou, entre outras, uma medida que tinha em vista a alteração do regime transitório daqueles contratos, reforçando a negociação entre as partes e facilitando a transição dos referidos contratos para o novo regime (o NRAU). II - As alterações introduzidas pela Lei 31/2012 de 14.8. na Lei 6/2006 visaram, entre outros fins, estabelecer um regime especial de atualização de rendas antigas – designadamente as anteriores a 1990 -, ao abrigo do qual o senhorio poderia atualizar o valor da renda através de um processo de negociação com o inquilino, permitindo porém, aos arrendatários em comprovada situação de carência económica, um período temporário de cinco anos, durante o qual se mantinha a renda anterior. III - A Lei 43/2017 de 14.6, veio operar um retrocesso dessa reforma então em curso, estabelecendo uma dilação do período do “congelamento das rendas”, estendendo aquele prazo de cinco anos inicialmente previsto, para o prazo de oito anos (art. 35º nº 1 e 36º nº 6 do NRAU). IV - Por força do princípio geral contido no artigo 297º nº 2 do Código Civil, os prazos de cinco anos fixados no art. 35º nº 1 do NRAU, na redação dada pela Lei 31/2012 que se encontravam em curso aquando da entrada em vigor da nova lei (Lei 43/2017 de 14.6, com inicio de vigência no dia 15 de Junho de 2017), ficam sujeitos ao novo prazo de oito anos, computando-se porém na sua contagem todo o tempo decorrido desde o seu momento inicial. V - No caso em apreço, só decorridos os oito anos, (considerando-se na contagem o tempo decorrido desde o dia da resposta da arrendatária feita ao abrigo dos arts. 30º e ss do NRAU), o senhorio poderá, (na falta de acordo) promover a transição do contrato de arrendamento para o NRAU, não podendo o arrendatário voltar a invocar a situação dos seus rendimentos (art. 35º nº 6 do NRAU)]. 2.5. Tendo dado causa às custas deste recurso, o Apelante constitui-se na obrigação de pagamento das mesmas (arts. 527.º, nºs 1 e 2 do CPCivil, e 1.º do RCProcessuais).IV. Pelos fundamentos expostos, julgamos improcedente o recurso, tanto em matéria de facto como em matéria de direito, e, em consequência, decidimos:DECISÃO a) Manter a decisão recorrida. b) Condenar o Apelante no pagamento das custas do recurso. *** Fernando Vilares FerreiraTribunal da Relação do Porto, 8 de fevereiro de 2022 Os Juízes Desembargadores, Maria Eiró João Proença _____________ [1] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES / PAULO PIMENTA / LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2.ª edição, Almedina, 2020, p. 763. [2] Cf. Exposição de Motivos da Proposta de Lei do Arrendamento Urbano. [3] Relatado por CRISTINA COELHO no proc. n.º 16510/18.0T8SNT.L1-7, acessível em www.dgsi.pt. [4] Cf. Ac. da RL, cit. [5] Código Civil Comentado, I – Parte Geral, Almedina, 2020, p. 926. [6] Idem, pp. 931 e ss. [7] Idem. [8] Relatado por ALEXANDRA PELAYO no processo 403/18.4T8VLG.P1, acessível em www.dgsi.pt. |