Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0210849
Nº Convencional: JTRP00035896
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: JUSTIFICAÇÃO DA FALTA
PROCESSO PENAL
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
Nº do Documento: RP200302120210849
Data do Acordão: 02/12/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 2 J CR PORTO
Processo no Tribunal Recorrido: 289/00
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: .
Decisão: .
Área Temática: .
Legislação Nacional: CPP98 ART117.
Sumário: Se, no requerimento em que se pede a justificação da falta da arguida à audiência de julgamento, com fundamento em doença, não se indica o local onde aquela pode ser encontrada, não deve a falta ser justificada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam , em conferência , na Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

Ana...... foi devidamente notificada para comparecer no -º Juízo Criminal da Comarca do....., em 6 de Março de 2002 , pelas 9h15m , a fim de participar na audiência de julgamento a realizar no processo comum n.º../.., em que é arguida.
Por requerimento remetido ao -º Juízo Criminal da Comarca do....., em 5 de Março de 2002, via fax, o Ex.mo Advogado da arguida Ana..... veio comunicar que, por um amigo desta, acaba de lhe ser entregue um atestado médico confirmando que a mesma se encontra doente, pelo que não lhe vai ser possível comparecer na audiência de discussão e julgamento designada para as 9h30m do dia 6 de Março, sendo que segundo o mesmo documento clínico é previsível que a incapacidade da arguida se mantenha por um prazo não inferior a 3 dias. Assim, nos termos do art. 117.º do Código de Processo Penal requer que se considere justificada a falta da arguida a essa audiência de julgamento.
Para prova do alegado juntou o atestado médico cuja cópia consta agora de folhas 53 dos autos.

No dia 6 de Março de 2002 , pelas 9h15m, aberta a audiência de julgamento , não estando presente nomeadamente a arguida , foi dada a palavra à Digna Magistrada do Ministério Público que promoveu o adiamento da audiência com fundamento na falta daquela .
Logo de seguida o Ex.mo Juiz do -.º Juízo Criminal da Comarca do..... proferiu o seguinte despacho:
«Do fax que agora nos foi apresentado não consta onde a arguida se encontra, nem, desde quando se verifica a alegada impossibilidade, pelo que o requerimento não satisfaz os requisitos exigidos pelo disposto no art. 117º do C.P.P. Face ao exposto, vai indeferida a requerida justificação e a arguida condenada no pagamento da soma de 3 Ucs. (...) ». Mais ordenou que a arguida comparecesse, sob detenção, à nova audiência de julgamento.

Inconformada com o despacho, na parte em que não lhe justificou a falta, condenando-a no pagamento de 3 Ucs, e ordenou a passagem de mandados de detenção, a arguida Ana..... interpôs recurso para este Tribunal da Relação, apresentando as seguintes conclusões:
1.º O douto arresto apreciando é passível de censura, por haver incorrido em violação não somente do direito adjectivo vigente,
2.º Porquanto se mostram, quanto ao direito adjectivo, violados os n.ºs. 1, 2, 3 e 4 do Art. 117.º do Código de Processo Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 59/98, de 29-08.
3.º Bem assim como os princípios gerais do direito, globalmente considerada a mens legislatoris do nosso ordenamento jurídico-penal, nomeadamente,
4.º O princípio basilar do nosso ius puniendi, ou seja o princípio do in dúbio pro reo. Assim,
5.º A mesma douta decisão em crise, violou, frontalmente o disposto no Art. 117.ºdo Código de Processo Penal,
6.º. Ignorando o espírito da lei,
7.º. Fazendo ponto fulcral daquele preceito a indicação do local onde a arguida se encontrava no momento da audiência - facto que o clínico que a examinara no dia imediatamente anterior não podia saber e, consequentemente fazer constar do atestado -.
8.º Transformando esta questão efectivamente menor, na base central e essencial do problema e o fundamento do indeferimento prolatado.
Mais, e sem prescindir,
9.º Constando dos autos a situação económica da arguida, aplicou uma sanção económica assaz elevada para as diminutas ou até inexistentes posses económicas da mesma arguida. Assim,
10.º Inexistindo nos autos qualquer indício sequer de que se estava perante uma justificação falsa, de que a arguida pretendia abusivamente faltar ao cumprimento de um dever,
11.º - Ainda que a notificação para a audiência entregue à arguida tenha omitido a sanção em que incorreria em caso de falta (Cfr. Doc. N.º 13). Bem assim como de que
12.º A arguida não se encontraria na residência constante nos autos, local onde antes e depois da mesma audiência foi prontamente encontrada, sempre que procurada – fls 254 e 269.
13.º A decisão tomada violou efectivamente tanto o espírito da Lei como a letra do invocado Art. 117.º do CPP, como o princípio basilar do direito punitivo português - o princípio "in dubio pro reo. Tal como o facto de que
14.º A arguida, atenta a invocada, atestada e não infirmada situação de doença, se encontraria em estado de necessidade desculpante, excluidor de culpa. Sendo, assim,
15.º O despacho em crise é ipso facto censurável à luz do direito adjectivo, tout court, como à luz da doutrina e jurisprudência.
Deste modo,
16.º. Houve, no caso em apreço, erro notório na aplicação do direito adjectivo, termos em que,
17. Deve considerar-se como justificada a falta dada pela arguida, e por via disso,
18.º Tendo em linha de conta tudo quanto foi atrás invocado e aqui se dá por integralmente reproduzido,
19.º Deve o despacho em causa ser censurado e, ipso facto, substituído por um outro que considere justificada a falta dada pela arguida, com as legais consequências, e sempre e de qualquer forma
20.º Revogue a decisão de passar mandados de detenção para comparência da arguida por desnecessários e injustificados, bem como,
21.º Suspenda a multa aplicada, atenta a precária situação económica da mesma arguida.

Por requerimento de 15 de Abril de 2002 , a arguida , fazendo referência ao despacho de folhas 285, restringiu o objecto do recurso à sanção pecuniária aplicada .

O Ex.mo Juiz manteve a decisão recorrida, quanto à sanção pecuniária aplicada , nos seus precisos termos (Cfr. folhas 132) .

Nesta Relação o Ex.mo Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do provimento do recurso, uma vez que consta do atestado o momento a partir do qual se verifica a alegada impossibilidade de comparência e, por outro lado, o principio da direcção, da adequação penal e da cooperação, impunha que o Tribunal, tivesse interpelado o mandatário da faltosa sobre o local onde a arguida podia ser encontrada.
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Colhidos os vistos cumpre decidir.
O objecto do recurso consiste em saber se o tribunal devia ter justificado a falta da arguida à audiência de julgamento a que não compareceu, apesar de notificada para tal e se, de todo o modo, sempre a multa aplicada, que tem como de montante exagerado, lhe deve ser suspensa.
O art. 117.º do Código de Processo Penal, que regula a justificação da falta de comparecimento , dispõe na parte aqui em causa:
«1. Considera-se justificada a falta motivada por facto não imputável ao faltoso que o impeça de comparecer no acto processual para que foi convocado ou notificado.
2. A impossibilidade de comparecimento deve ser comunicada com cinco dias de antecedência, se for previsível, e no dia e hora designados para a prática do acto, se for imprevisível. Da comunicação consta, sob pena de não justificação da falta , a indicação do respectivo motivo , do local onde o faltoso pode ser encontrado e da duração previsível do impedimento. (...)
4. Se for alegada doença, o faltoso apresenta atestado médico especificando a impossibilidade ou grave inconveniência no comparecimento e o tempo provável de duração do impedimento. A autoridade judiciária pode ordenar o comparecimento do médico que subscreveu o atestado e fazer verificar por outro médico a veracidade da alegação da doença.».
Por sua vez o art. 116.º, n.º 1 do mesmo Código, pune os faltosos nos seguintes termos:
«Em caso de falta injustificada de comparecimento de pessoa regularmente convocada ou notificada, no dia, hora e local designados, o juiz condena o faltoso ao pagamento de uma soma entre duas e dez Ucs.».
A interpretação ou determinação do exacto sentido e alcance do art. 117.º do Código de Processo Penal, como de qualquer outra norma, deve ter em consideração entre outros meios de auxilio, os elementos literal, lógico, sistemático e histórico.
A interpretação deve atender necessariamente ao elemento literal ou gramatical da norma. Assim o diz o art.9.º, n.º2 do Código Civil ao referir que «Não pode ... ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso».
A interpretação não pode ficar, porém, apenas pela letra da lei. Para além desta, deve o interprete socorrer-se do elemento lógico ou racional, isto é, de todas os potencialidades de transmissão de pensamento que a frase legal encerra, atendendo-se para o efeito, nomeadamente, ao argumento por maioria de razão, ao argumento “a contrario sensu” e às relações entre meio e fins.
O elemento sistemático, isto é a colocação da norma em certo capitulo ou lugar da lei pode também dar um subsidio para descobrir o que naquela se pretende transmitir.
Outro elemento de determinação do sentido da norma é a evolução que lhe deu origem, a sua história, as circunstâncias da sociedade que justificam o seu aparecimento com o conteúdo que tem. O elemento histórico, de que fala também o art.9.º, n.º1 do Código Civil, percebe-se frequentemente da consulta de trabalhos preparatórios e dos preâmbulos e relatórios das leis.
Comparando o regime de justificação da falta de comparecimento na primitiva redacção do art.117.º do Código de Processo Penal, com a actual redacção da mesma norma, introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, verifica-se, desde logo, que foi antecipado o momento de justificação da falta - pois anteriormente a justificação podia ser requerida até cinco dias após a falta (n.º2) - e que hoje existe um estreito e rigoroso controlo dos elementos de prova da impossibilidade de comparecimento.
Assim, da letra da actual lei consta a exigência de que da comunicação da impossibilidade de comparecimento conste, “sob pena de não justificação da falta”, a indicação do respectivo motivo, do local onde o faltoso pode ser encontrado e da duração previsível do impedimento.
Qual a razão de tal exigência?
A razão dessa exigência, quando está em causa uma alegada doença, consta do n.º4 do art. 117.º do C.P.P.. Ela visa possibilitar, à autoridade judiciária, ordenar o comparecimento do médico que subscreveu o atestado médico e fazer verificar por outro médico a veracidade da alegação da doença.
A alteração legislativa da norma em causa pela Lei n.º 59/98, resultou do reconhecimento de que um dos principais estrangulamentos na praxis dos nossos tribunais, responsável pela frustração de uma justiça tempestiva, era a regra da obrigatoriedade da presença do arguido na audiência de julgamento, que não vinha sendo assegurada pelo regime das faltas. – Cfr. Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII.
Reconhecendo que o regime de faltas é um ponto de estrangulamento que tem contribuído para a morosidade da justiça penal, o Cons. Maia Gonçalves defende que «...devem os julgadores, em obediência aos comandos legais, ser exigentes quanto à justificação das faltas que, como é consabido, têm constituído um dos maiores entraves ao regular andamentos dos processos.» - Cfr. “Código de Processo Penal anotado”, 9ª ed., pág. 299 e 300.
No presente caso, a arguida Ana..... foi notificada para a audiência de julgamento designada para o dia 6 de Março de 2002.
Como já referimos do requerimento remetido via fax ao -º Juízo Criminal da Comarca do....., em 5 de Março de 2002, o Ex.mo Advogado da arguida Ana..... pediu que se considere justificada a falta da arguida a essa audiência de julgamento, comunicando que, por um amigo desta, acaba de lhe ser entregue um atestado médico confirmando que a mesma se encontra doente, pelo que não lhe vai ser possível comparecer na audiência de discussão e julgamento designada para as 9h30m do dia 6 de Março .
Do atestado médico, datado de 5 de Março de 2002, que junta, consta apenas que a arguida se encontra doente e impossibilitada de comparecer no Tribunal do ..... (-º Juízo), no período previsível de 3 dias – Cfr. Folhas 53.
Ou seja, não consta do requerimento de justificação da falta da arguida - nem do atestado médico, que apenas tem de especificar a impossibilidade ou grave inconveniência no comparecimento e o tempo provável de duração do impedimento - onde a faltosa pode ser encontrada.
O Ex.mo advogado da arguida, que apresentou o requerimento, sabe que a lei exige a comunicação ao Tribunal de tal elemento e não se diga que essa falta de comunicação é uma questão menor – como a arguida diz -, pois a actual lei diz claramente que a comunicação em causa deve ser feita “sob pena de não justificação da falta”.
Por outro lado, quem tem de, atempadamente, fornecer as provas e os elementos para permitir ao tribunal julgar justificada a falta de comparecimento é a arguida faltosa.
Assim, salvo o devido respeito, não se nos afigura que aberta a audiência e antes de se decidir pela não justificação da falta tivesse o Tribunal de interpelar o Ex.mo mandatário da faltosa, quando o mesmo também não compareceu à audiência de julgamento (Cfr. acta de folhas 57 destes autos de recurso) ou que tivesse de procurar a arguida na residência desta – como esta parece querer dizer ao referir que nada tendo sido dito em contrário era de concluir que a mesma se encontraria na sua residência.
Aliás, se esta presunção era natural para a arguida, fica por entender a razão pela qual a mesma não foi assumida no requerimento apresentado pelo Ex.mo mandatário da arguida quando esta lhe fez chegar por um amigo o atestado médico.
Refere a arguida/recorrente que atenta a invocada, atestada e não infirmada situação de doença, se encontraria em estado de necessidade desculpante.
O atestado médico não é um documento autêntico ou autenticado, mas um documento particular, a apreciar livremente pelo Tribunal, nos termos do art.127.º do Código de Processo Penal, e a arguida ao não fazer a comunicação em causa obstou, obviamente, a que a sua alegada doença pudesse ser infirmada. Tal omissão sua não é posta pela lei a beneficio da faltosa e, a existência do alegado estado de necessidade desculpante, ficou por demonstrar.
A arguida alega ainda, nas conclusões de motivação do recurso, que na sua notificação para a audiência de julgamento (doc.13, constante de folhas 112) não consta a sanção em que incorreria em caso de falta.
A arguida daí não retira, porém, a conclusão de existência de qualquer nulidade ou irregularidade que afecte o despacho recorrido, nem indica que norma legal foi violada. Também, a existir qualquer pretensa invalidade da notificação para audiência de julgamento – que não reconhecemos – teria de ser arguida oportunamente.
Quanto a esta parte, diremos ainda que nenhum dos acórdãos referidos na motivação do recurso, como jurisprudência que lhe seria favorável, aborda em concreto a questão de que estamos a conhecer, realçando-se que todos eles conhecem de despachos recorridos de justificação de faltas de comparecimento proferidos no âmbito da primitiva redacção do art. 117.º do Código de Processo Penal.
Pelo exposto concluímos que a não justificação da falta da arguida, com o fundamento ora exposto, está de acordo com a letra e o espírito da lei e não viola qualquer principio geral do direito, nomeadamente o “in dubio pro reo”.
Razão já não tem o Tribunal recorrido para não justificar a falta com o fundamento de que, do requerimento da arguida, não consta “...desde quando se verifica a alegada impossibilidade...”, pois da interpretação do atestado médico tem de concluir-se que é desde a data do mesmo atestado que o médico afirma que a arguida está doente e impossibilitada de comparecer na audiência, previsivelmente por três dias.
Refere ainda a arguida/recorrente que a sanção económica que lhe foi aplicada é assaz elevada para as suas diminutas ou até inexistentes posses económicas, devendo ser-lhe suspensa a multa aplicada.
Não resulta destes autos de recurso que os documentos sobre a sua situação económica que foram juntos com a motivação do recurso estivessem já no processo comum quando foi proferido o despacho recorrido. Tendo a arguida com a sua falta de comparecimento à audiência de julgamento provocado o adiamento desta, face aos limites da sanção pecuniária previstos pelo art.116.º, n.º1 do Código de Processo Penal é razoável e adequada a sanção de pagamento de 3 Ucs aplicada à arguida/recorrente pelo Tribunal recorrido .
Tal sanção não pode ser suspensa na sua execução por a lei não prever tal possibilidade.
Terá a arguida de pagar voluntariamente ou suportar o pagamento da sanção se para tal tiver meios económicos.
Decisão:
Neste termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, consequentemente, em confirmar pelos fundamentos expostos, a douta decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 2 Ucs.
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Porto, 12 de Fevereiro de 2003
Orlando Manuel Jorge Gonçalves
António Joaquim da Costa Mortágua
José Henriques Marques Salgueiro