Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
567/22.2T8GDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DUARTE TEIXEIRA
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RP20240111567/22.2T8GDM.P1
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE.
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O instituto do enriquecimento sem causa, na modalidade enriquecimento por virtude de causa que deixou de existir, pressupõe que o enriquecimento seja aferido pelo momento em que essa causa cessou.
II - Se o Autor usou 17.500,00 euros para sinalizar a compra da casa comum do casal e este viveu nessa habitação durante 27 anos em economia comum, não se pode concluir que a Ré se enriqueceu nessa mesma quantia, tendo em conta o lapso de tempo decorrido, a natural repartição de despesas do casal e os rendimentos auferidos por esta.
III - As dívidas contraídas na actividade comercial realizada com o conhecimento do outro cônjuge assumem natureza comum, mesmo que o resultado venha a ser desfavorável.
IV - Mas só podem ser indemnizadas, no quadro do enriquecimento sem causa, as quantias efectivamente liquidadas e/ou utilizadas nessa actividade comercial, cujo montante cabe ao Autor demonstrar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 567/22.2T8GDM.P1


SUMÁRIO:
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1. Relatório
O autor AA instaurou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra a ré, sua ex-mulher, BB, sustentando em suma que detém sobre a ré um conjunto de quatro créditos que descreve e que correspondem a dívidas da responsabilidade do extinto casal e que foram exclusivamente pagas pelo autor, pelo que pede a condenação da ré no pagamento de metade dos referidos valores, a que corresponde o valor global de 17.310,33€.
A ré contestou e deduziu contestação pedindo a condenação do autor ou subsidiariamente, a respectiva compensação – a reconhecer o direito de crédito por quantias que a mesma alega ter liquidado com valores próprios e que são da exclusiva responsabilidade do autor, no valor global de 12.250,00€.
Foi saneada e instruída a causa e após julgamento proferida sentença que decidiu julgar integralmente improcedentes quer a acção quer a reconvenção.
Inconformado veio o autor interpor recurso, o qual foi admitido como de apelação, sobe imediatamente, nos próprios autos e tem efeito meramente devolutivo, tudo nos termos do disposto nos artigos 629.º n.º 1, 631.º, 638.º n.ºs 1 e 7, 644.º n.º 1, 645.º n.º 1 a) e 647.º n.º 1 todos do Código de Processo Civil.

2.1. O apelante formulou as seguintes conclusões
1. Vem o presente Recurso interposto da Sentença que julgou improcedente a ação de processo comum intentada pelo Autor, aqui Recorrente, dado que a matéria de facto julgada como provada e não provada deveria ser alterado por existiram meios de prova no processo que importariam uma decisão diversa.
2. Ao abrigo do disposto no art. 640º do CPC pretende o Recorrente que o Venerando Tribunal da Relação do Porto altere a decisão da matéria de facto para Não Provado os factos 23 e 24, e julgar como provado os factos 27. , 28. , 29. 30., 31., 32. e 33.
3. O Recorrente juntou documentos que sustentam a sua alegação, designadamente, - documento 1 junto com a petição inicial: acta da tentativa de conciliação e sentença de divórcio de 21/03/2019; - documento 2 junto com a petição inicial: extracto de remunerações de AA; - documento 3 junto com a petição inicial: certidão do registo comercial da sociedade A...; - documento 4 junto com a petição inicial: transferência de 13/11/2011, no valor de 5.000,00, de CC para A...; - documento 5 junto com a petição inicial: transferências bancárias de 15/06/2019, 16/08/2019, 23/04/2020, 8/08/2020, no valor de 2.500,00€ cada uma, da conta n.º ...30 para CC; - documento 6 junto com a petição inicial: declaração de confissão de dívida mediante a qual AA declara, por si e na qualidade de sócio gerente da sociedade A..., que deve à sociedade B.... a quantia de 12.871,42€ referente ao fornecimento de artigos de ourivesaria; - documento 7 junto com a petição inicial: demonstração de liquidação de IRS e SMS; - documento 9 junto em 17/01/2023: comprovativos de depósitos, extracto manuscrito e extractos bancários, para prova dos factos alegados e que devem ser julgados como provados.
4. O Recorrente, na sua Alegação, identificou as concretas passagens que considera mais relevantes. Por isso, o facto 23 deve ser julgado provado porque o dissolvido casal sabia que ambos recebiam os proventos da empresa e, de comum acordo, decidiram pagar as dívidas da sociedade após o encerramento desta. Aliás, a Recorrida fazia a transferência bancária e teve participação na empresa a título de contabilidade. Já que, nas suas declarações, assumiu uma postura crítica em relação a um cliente da empresa.
5. Por isso, a Recorrida sabia que era devedora perante o Recorrente, dado que foram feitos pagamentos a terceiros na constância do casamento.
6. O FACTO 24 deve ser alterado para Facto Não provado, dado que é notório que os rendimentos da empresa eram partilhados, como resulta do documento 9 junto em 17/01/2023: comprovativos de depósitos, extracto manuscrito e extractos bancários, bem como das declarações de AMBAS as partes já citadas.
7. Este facto deve ser alterado para Não provado, dado que a atividade comercial do Recorrente era a sua única fonte de rendimentos que partilhava com a Recorrida. Esta, por seu turno, bem sabia que estava obrigada a proceder às dívidas que emergissem da sociedade e, por isso, foi usado património pessoal para liquidar dívidas que são consideradas comuns.
8. Deverá ser alterado para provado o alegado os factos 27 e 28, de acordo com o doc. 4 e 5 junto com a pi de 17/1/2023. E também de acordo com as declarações de parte, já citadas.
9. O recorrente juntou aos autos os comprovativos das transferências bancárias efetuadas a favor do Sr. CC, o qual fez um empréstimo ao casal, já que o Recorrente e a Recorrida partilhavam receitas e despesas.
10. Ouvida em declarações de parte a Recorrida confessou que o Recorrente lhe entregava dinheiro para a vida doméstica.
11. E, nunca o poderia negar, dado que o Recorrente juntou aos autos o doc. 9 donde constam vários extratos bancários, cujas transferências, mostram-se identificadas nas Alegações.
12. Em declarações de parte, o Recorrente até referiu que tinha feito um acordo entre todos os cunhados para que a dívida fosse paga com subsídios de Natal e de férias do Recorrente.
13. Os factos alegados de 29 a 31 devem ser alterados para Provados, de acordo com o doc. 6 da pi e de acordo com as declarações de parte de AMBOS atrás citadas.
14. Os factos alegados de 29 a 31 devem ser alterados para Provados, de acordo com o doc. 6 da pi e de acordo com as declarações de parte de AMBOS atrás citadas.
15. Ao não decidir como propugnado, no que se refere à dívida alegada em A (sinal), o Tribunal violou o disposto no art. 1722 a) do C.C.
16. O dinheiro do sinal é um bem próprio do A., como alegado na pi., como tal crédito não foi pago anteriormente este crédito é exigível, nos regimes da comunhão de bens, ao abrigo do disposto no art.º 1691º n.º 1 a) e art. 1697.º, n.º 1, do CCiv., ou supletivamente, ao abrigo do instituto de enriquecimento sem causa.
17. Não se aplica o instituto de abuso do direito porque o Recorrente está a exercer legitimamente um direito que a lei lhe confere
18. No que se refere às dívidas aludidas em B e C. (fornecedor e irmão da Recorrida), o Tribunal violou o disposto o art.º 1691º n.º 1 c) e/ou d) do art. 1697.º, n.º 1, do CCiv. Se assim não for entendido e supletivamente, facto é que a R. enriqueceu à custa do A., sem causa justificativa, ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa, previsto no art. 473º C.C.
19. Por fim, no que se refere à dívida C. o Tribunal deveria ter condenado a Recorrida a pagar ao Recorrente a referida quantia, R. enriqueceu à custa do A., sem causa justificativa, ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa, previsto no art. 473º C.C.
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2.2. A parte contrária não contra-alegou
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3. Questões a decidir
1. apreciar os fundamentos do recurso sobre a matéria de facto
2. verificar depois, os fundamentos jurídicos da pretensão do apelante haja ou não alteração da matéria de facto.
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4. Recurso sobre a matéria de facto
Pretende o apelante que sejam alterados os seguintes factos:
1. altere a decisão da matéria de facto para Não Provado os factos 23 e 24, e julgar como provado os factos 27. , 28. , 29. 30., 31., 32. e 33.

1. O facto nº 23 é “E criou a convicção na ré de que o não o iria fazer, muito menos, volvidos 3 (três) anos sobre a partilha e do divórcio”.
Sobre esta realidade o autor no seu depoimento é claro, usou a quantia de 17500 euros que os seus pais lhe deram para adquirir a casa comum do casal. Mas, depois da venda desta diz que:” pagaram o resto ao banco e dividiram o restante (voluntariamente) em duas partes”. Ou seja, o momento natural para exigir a devolução dessa quantia, ainda que várias dezenas de anos depois, seria o do recebimento do preço da venda e nessa data nada foi referido ou exigido.
O depoimento da ré é também claro, “pensou que estava tudo resolvido”. A restante prova testemunhal (incluindo o depoimento da filha do casal Sra. DD) é inócuo nesta questão. E, a referida prova documental reforça até este juízo probatório, pois, se na acta do divórcio que dissolveu o casamento e partilhou os bens, o autor teve o cuidado de regular até o destino dos seus animais e companhia, é natural presumir que a divisão do produto da venda dessa conta ponderou e atendeu a esse alegado enriquecimento da ré.
Logo, nenhum meio de prova permite por em causa a racionalidade probatória efectuada pelo tribunal recorrido.

2. O facto nº 24 é “Quando contraiu o empréstimo concedido pelo irmão da ré - CC - e junto do fornecedor - “B... Lda” o autor agiu na qualidade de sócio-gerente da sociedade comercial “A... e Ourivesaria Unipessoal Lda” e no âmbito da atividade comercial por esta prosseguida, destinando-se tais verbas à tesouraria da empresa e ao seu giro comercial.
O pedido de não comprovação desta realidade claudica com base no próprio depoimento do autor e documentos por si juntos. Na verdade, este alega na petição essa realidade (arts.33 a 5 da pi), e a mesma resulta do documento nº4. Logo, é clara a comprovação desse facto e a improcedência desta parte do recurso.
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Pretende ainda a inclusão como provados dos seguintes factos considerados não provados.
27. Logo após o divórcio do autor e da ré, isto é, após março de 2019, o Sr. CC pediu ao autor a restituição dos dez mil euros.
28. Para o respectivo pagamento, o autor fez quatro transferências bancárias para a conta que o Sr. CC indicou, no montante de €2.500,00, cada, em 15/8/2019, 16/8/2019, 29/4/2020, 8/8/2020 – cfr. documento 5 junto com a petição inicial e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido.
Quanto a esta realidade, para além do já provado, sabemos apenas que foram juntos comprovativos da transferência desse valor para uma conta cujo titular é um denominado EE. Para além do depoimento do Autor, mais nenhuma testemunha consegue comprovar esse empréstimo, nomeadamente a Sra. DD filha do casal.
Mas, a Sra FF admite que ela e o seu marido efectuaram um empréstimo no valor de 15 mil euros, mas através da empresa do seu marido. Diga-se aliás, que essa testemunha afirma que a Ré foi para a Suíça trabalhar e quando voltou lhe pagou 4.000 euros para pagar essa dívida e que lhe disse “fui para a Suíça trabalhar para pagar esse dinheiro porque me sentia mal”, mas ficou tudo liquidado. Logo essa dívida não corresponde à alegada pelo autor. Note-se aliás que a Sra. BB confirma a existência de um empréstimo da sua mãe ao casal, mas que o montante foi pago pela sua irmã, logo não se trata dessa dívida.
Por fim, o Sr. CC, depôs e confirmou o empréstimo na época da troika, dizendo que tudo foi efectuado à revelia da Ré. Mais confirma que posteriormente esse empréstimo foi pago, sendo que não sabe se o foi apenas com meios monetários do Autor ou com dinheiro do casal, pois, na data já teriam vendido a habitação comum. Acresce que essa testemunha confirma que na mesma data em que emprestou essa quantia, o casal pediu emprestado aos seus pais a quantia de 5 mil euros, que a ré veio a pagar posteriormente.
Logo, ter-se-á de considerar demonstrada essa realidade nos precisos termos da única testemunha que a confirma.
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4. (Dívida alegada pelo autor sob a alínea c) – Metade do valor liquidado e a liquidar pelo autor referente a uma dívida a um fornecedor da sociedade comercial A... Unipessoal Lda., por materiais fornecidos, no valor de 10.571,42€, do qual o autor já liquidou 5.000,00€.)
29. A primeira prestação da dívida mencionada em 18. foi paga em 11/7/2017.
30. Quem procedia ao pagamento das mesmas era a ré a partir de homebanking no seu local de trabalho para o IBAN ...68, a debitar da conta comum do casal, o que fez ao longo de 15 prestações, no montante de €1.500,00, até 11/10/2018.
31. O autor pagou, desde Outubro de 2018, essas prestações com fundos seus.

Nesta matéria a própria filha das partes confirma o funcionamento da empresa, e que, quando esta funcionava, as contas da casa eram suportadas pelos dois e que, por fim, a ré chegou a pagar contas da empresa quando foi trabalhar para a Suíça. Esta testemunha confirma que essa actividade era discutida e foi aceite e apoiada pela Ré que chegou a pedir empréstimos para ajudar a empresa.
Conjugando este depoimento com os documentos referidos é de facto seguro afirmar a comprovação destes factos. Tanto mais que foi junta uma declaração de divida cuja autenticidade foi reconhecida por um advogado, da qual resulta a constituição dessa dívida.
Acresce que a testemunha FF confirma que foi contraída outra dívida, a outra entidade, que foi integralmente liquidada até pela ré que foi trabalhar para a Suíça.
Mas, note-se que o autor não juntou aos autos qualquer prova de que esses pagamentos foram efectuados desde 2018. Desde logo, o facto nº 31 é manifestamente erróneo, pois desde Outubro de 2018 até à instauração da acção decorreram apenas 41 meses, pelo que as prestações seriam apenas de 4.100 euros. Depois, o tribunal não sabe, por inexistir comprovativo se existiu um correspondente empobrecimento do autor e seu montante.
O autor pede apenas as prestações posteriores a 2018 “as quais têm vindo a ser pagas apenas pelo A”. Ora, nenhum documento ou testemunha comprova efetivamente esses pagamentos.
Logo, como esse acordo de pagamento já se encontra provado (facto nº 16), mais nenhum facto pode ser considerado demonstrado.
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5. (Dívida alegada pelo autor sob a alínea d) – 900,00€ de perda do reembolso fiscal a que o autor teria direito caso a ré tivesse apresentado o IRS referente ao ano de 2018 conjuntamente com o autor e não isoladamente como fez, e 160,33€ que teve de pagar por esse mesmo motivo.)
32. Se o autor tivesse apresentado o IRS conjuntamente com o autor teria um reembolso de cerca de € 900,00 – cfr. documento 7 junto com a petição inicial e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido.
33. No entanto, como o IRS foi apresentado separadamente o autor pagou €160,33.
Como veremos, a comprovação desta realidade é manifestamente irrelevante para a decisão deste segmento do pedido. Ao que acresce que não está demonstrada, por qualquer meio da prova, a relação de causalidade entre a omissão da ré e o dano concreto, já que nem sequer resulta do documento junto que o valor liquidado a título de IRS tenha de facto derivado da apresentação separada da declaração de IRS. Nessa medida foi a ré quem juntou essa declaração de IRS, da qual juntamente com liquidação não podemos retirar essa factualidade.
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5. Motivação de facto
1. O autor e a ré contraíram casamento católico em 23 de Agosto de 1992, no regime da comunhão de adquiridos – cfr. documento 1 junto com a petição inicial e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido.
2. O casal separou-se de facto a 20 de Novembro de 2018, em virtude de a R. ter passado a residir com a sua mãe.
3. Correu termos o Processo n.º 4737/19.2T8PR, no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Família e Menores do Porto - Juiz 1, tendo o autor requerido divórcio litigioso, o qual foi convertido em divórcio por mútuo consentimento, por sentença de 21-03-2019, já transitada.
6. Em data indeterminada de 1989, autor e ré decidiriam casar e comprar casa.
7. Foi celebrado contrato promessa de compra e venda do imóvel que autor e ré decidiram comprar e foi prestado o sinal equivalente a 17.500,00€ com o dinheiro do autor
8. O casal passou a habitar o imóvel após o casamento, ou seja, a partir de 23/8/1992.
9. O casal recorreu ao empréstimo junto da Banco 1..., S.A. para pagamento do remanescente do preço do imóvel e assim conseguiram adquirir o referido prédio.
4. Não correu termos processo de inventário.
5. O imóvel que fora pertença comum do casal foi vendido a terceiros e o produto da venda recebido pelos ex-cônjuges na proporção de metade, à data de 30/1/2019.
10. Autor e ré passaram a residir no imóvel, sito na Tv. ...., em ..., já na qualidade de casados, em Agosto de 1992, mas adquiriam-no no estado de solteiros.
11. Este imóvel foi casa de morada de família até à data em que o venderam e adquiriram outro imóvel, ao fim de cerca de seis anos, uma moradia sita na Rua ..., ..., Gondomar, onde residiram até à separação de facto, imóvel este que foi vendido antes do divórcio, tendo autor e ré dividido o produto da venda a meias.
12. A 29/4/2011, o autor constituiu uma sociedade comercial que se dedicava à atividade comercial do comércio por grosso de joalharia e ourivesaria.
13. A dita ourivesaria tinha a designação de A... Unipessoal, Lda, sita Rua ..., Freguesia: Gondomar (...), NIF ...90, e esteve em funcionamento entre 29/4/2011 e 31/10/2013 – cfr. documentos 2 e 3 juntos com a petição inicial e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido.
14. A referida sociedade tinha o autor como único sócio e gerente, e foi constituída pelo autor no estado de casado na comunhão de adquiridos com a ré.
15. O irmão da ré, CC emprestou a quantia de €10.000,00 (dez mil euros), para o autor investir na dita sociedade, designadamente, para a aquisição de matéria-prima e outros bens para que a sociedade tivesse maior rentabilidade - cfr. documento 4 junto com a petição inicial e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido.
15.a.- O autor fez quatro transferências bancárias para a conta do Sr. CC no montante de €2.500,00, cada, em 15/8/2019, 16/8/2019, 29/4/2020, 8/8/2020 – cfr. documento 5 junto com a petição inicial e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido.[1]
16. A empresa A... adquiriu peças de ourivesaria ao fornecedor “B...” – cfr. documento 6 junto com a petição inicial e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido.
17. Tal dívida não foi paga pela A... Unipessoal, Lda, ao fornecedor B....
18. O autor obrigou-se a pagar a dívida de €12.071,42, por si e na qualidade de legal representante da sociedade A..., em 128 prestações, mensais, no valor de €100,00, cada, pagável ao dia 7 de cada mês.
20. Após a venda do imóvel do casal e a distribuição do seu produto por autor e ré, em momento algum o autor comunicou ou alertou a ré da sua vontade de ser ressarcido do que quer que fosse, concretamente, do sinal para a aquisição do primeiro imóvel do casal.
21. Tendo o autor permitido que a ré ficasse na posse da sua quota-parte na venda.
22. O autor, até à citação para a presente acção, não manifestou em momento algum, intenção de reclamar junto da ré a quantia referente ao sinal prestado.
23. E criou a convicção na ré de que o não o iria fazer, muito menos, volvidos 3 (três) anos sobre a partilha e do divórcio.
24. Quando contraiu o empréstimo concedido pelo irmão da ré - CC - e junto do fornecedor - “B... Lda” o autor agiu na qualidade de sócio-gerente da sociedade comercial “A... e Ourivesaria Unipessoal Lda” e no âmbito da atividade comercial por esta prosseguida, destinando-se tais verbas à tesouraria da empresa e ao seu giro comercial.
25. A ré, no ano de 2013, auferiu uma indemnização laboral no valor de €16.635,56 por despedimento por extinção de posto de trabalho resultante do encerramento definitivo da empresa/entidade patronal -C... Lda. – cfr. documentos 4 e 5 juntos com a contestação/reconvenção e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido.
26. Valor auferido em processo falimentar daquela entidade e para qual a ré laborou entre 1988-2012 – cfr. documento 6 junto com a contestação/reconvenção e cujo0 teor aqui se considera integralmente reproduzido.
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6. Motivação Jurídica
A causa de pedir desta acção funda-se no instituto do enriquecimento sem causa.
Este, previsto no art. 473º, nº1, do CC exige três pressupostos básicos[2]:
a) o enriquecimento de alguém (o devedor da obrigação de restituição);
b) causalmente correspondente ao empobrecimento de outrem (o respetivo credor);
c) e a falta de causa justificativa desse enriquecimento.
O enriquecimento traduz-se em valorização ou vantagem de carácter patrimonial, que pode ser obtida por diversos meios, como aumento do activo, diminuição do passivo, poupança de despesas e outros.
O empobrecimento consiste na situação inversa e no correspondente sacrifício de ordem patrimonial. O nexo causal, por sua vez, que resulta da fórmula legal "à custa de outrem", significa que entre o enriquecimento e o empobrecimento deve existir uma certa conexão ou correspondência, de tal modo que o primeiro tenha sido obtido directa e imediatamente do segundo, derivando a vantagem e o sacrifício do mesmo facto.
Exige-se ainda que o enriquecimento não tenha "causa justificativa".
A lei não dá a noção de causa do enriquecimento, limitando-se o nº.2 do cit. art. 473º a estabelecer que a obrigação de restituição, com este fundamento, "tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou", enumeração essa que não tem carácter taxativo e deverá servir de orientação para o enquadramento de outros casos ao princípio geral do nº.1.
Com base nessa orientação, poderá dizer-se que "o enriquecimento é injusto porque, segundo a ordenação substancial dos bens aprovada pelo Direito, ele deve pertencer a outro", e que se trata "de um puro problema de interpretação e integração da lei, tendente a fixar a correcta ordenação dos bens à luz do Direito vigente"[3], ou de "saber se o ordenamento jurídico considera ou não justificado o enriquecimento e se portanto acha ou não legítimo que o beneficiado o conserve", cumprindo "ver em cada hipótese, no âmbito do instituto jurídico aplicável, se o enriquecimento corresponde à vontade profunda da lei".[4]
Acresce que existem três situações especiais de enriquecimento sem causa:
a) condictio in debiti (repetição do indevido),
b) condictio ob causam finitam (enriquecimento por virtude de causa que deixou de existir) e;
c) condictio ob causam datorum (enriquecimento derivado da falta de resultado previsto.

2. Do caso concreto
a) quanto à quantia de 900 euros resultante da perda do reembolso fiscal
Quanto a esta quantia é manifesto que nenhum enriquecimento ocorreu na esfera da Ré.
Basta dizer que esta não se enriqueceu com qualquer quantia, pelo que nada pode devolver. Em segundo lugar se dúvidas houvesse parece que o acto da ré nunca pode ser considerado ilícito, já que correspondia à realidade da data e que inexiste qualquer relação causal entre essa omissão e o eventual empobrecimento do autor. Este, sempre teria decorrido das regras tributárias do Estado Português e não da conduta da ré. Acresce que, se era assim tão importante o recebimento dessa quantia, o autor sempre poderia ter contraído casamento com outra pessoa nesse ano fiscal.
Improcede, pois, totalmente este pedido.

b) quanto à quantia de 17500 euros entregue para aquisição da casa comum do casal.
Estamos, perante a modalidade de enriquecimento por virtude de causa que deixou de existir, pois, a entrega dessa quantia terá sido feita tendo em vista o matrimónio com a ré que, várias dezenas de anos depois, terminou.
Desde logo, poderíamos discutir se a ruptura de um casamento (e fruição de uma casa) após 29 anos pode ser considerada a ausência de causa da entrega dessa quantia.
Cremos, com o devido respeito que não.
Desde logo, a ruptura do casamento neste caso não pode ser considerada ilícita, pois, conforme resulta dos factos, não existiu qualquer parte culpada. Logo, a separação é licita e a cessação da causa não constitui, neste caso, qualquer forma de comportamento ilícito, mas o mero exercício, em comum acordo com o réu, de um direito da ré (art. 406º, do CC).
Acresce que, dos factos provados resulta que a entrega dessa quantia visou a aquisição comum de uma habitação por causa do matrimónio contraído (6,7,8 e 9 dos factos provados).
A entrega dessa quantia, no valor de 17500 euros (facto provado) foi efectuada em 1989 e o matrimónio cessou em 2019.
Ou seja, A e R fruíram essa casa em comum durante 27 anos (de 1992 a 2019), sem que no momento da venda da casa se tenha sequer aludido a essa entrega anterior.
Ora, o eventual enriquecimento da ré sempre teria de ser aferido não na data da entrega da quantia, mas no momento em que cessou a causa justificativa, isto é o matrimónio.[5]
E, cabe ao autor, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do CC o ónus de alegação e prova dos correspondentes factos que integram esse requisito.
In casu, o Autor nunca alegou (e por isso demonstrou) que decorridos quase 30 anos o montante real do enriquecimento da ré fosse metade de 17.500 euros.
Basta dizer que dividindo esse valor pelo período que decorreu o casamento vemos que representa a quantia mensal de 27 euros (17500/2/27 anos/12 meses).
É evidente, pois, que numa vida de casal em comum, na qual foram (presumidamente) suportadas despesas correntes, nomeadamente várias prestações de crédito imobiliário, não se pode considerar demonstrado qual o efectivo enriquecimento da ré, devido pela entrega desse montante, no momento da dissolução do matrimónio.
Acresce que a Ré auferiu uma quantia relevante a título de indemnização laboral que terá sido usada pelo casal para pagamento das suas despesas comuns. E que, quando a A e R venderam o imóvel, agiram demonstrando a inexistência de qualquer enriquecimento sem causa da ré, já que liquidaram a divida comum e dividiram a quantia restante em partes iguais.
Sem necessidade, pois, da aplicação do instituto do abuso de direito, improcedem estas conclusões, por inexistência de prova de qualquer enriquecimento da ré na data da dissolução do matrimónio.
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C e d)) Das dividas derivadas da actividade da sociedade comercial A... Unipessoal Lda: metade do valor de 10.000,00€ (5.000.00€)); e metade do valor liquidado e a liquidar pelo autor referente a uma dívida a um fornecedor da sociedade comercial A... Unipessoal Lda., por materiais fornecidos, no valor de 10.571,42€, do qual o autor já liquidou 5.000,00€.
Estamos perante um problema relativo a dívidas contraídas no decurso da actividade comercial de um dos ex-cônjuges.
Como é evidente, o enriquecimento sem causa pode ser provocado pelo simples não pagamento de uma dívida que diminuindo o passivo aumenta na mesma medida o património.
Por isso, é necessário, antes demais determinar se essas dívidas podem ser qualificadas como comuns e, se por isso, metade do seu pagamento onerava o património da apelada.
A regra geral, vigente entre nós, é que qualquer cônjuge tem legitimidade para contrair dívidas e que estas “responsabilizam ambos os cônjuges”, nos casos previstos no art. 1691º, do CC.
Esta norma dispõe: “1. São da responsabilidade de ambos os cônjuges:
a) As dívidas contraídas, antes ou depois da celebração do casamento, pelos dois cônjuges, ou por um deles com o consentimento do outro;
b) As dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges, antes ou depois da celebração do casamento, para ocorrer aos encargos normais da vida familiar;
c) As dívidas contraídas na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração;
d) As dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal ou se vigorar entre os cônjuges o regime de separação de bens;
Ora, teremos logo de notar que nunca a ré alegou que não tenha autorizado essas despesas ou que desconhecesse os actos de comércio praticados pelo Autor.
Acresce que a expressão "dividas contraídas... em proveito comum do casal”, tem sido entendida pacificamente na nossa doutrina e jurisprudência[6] com o sentido de não ser necessário que das dividas advenha num beneficio efectivo para os cônjuges, bastando a simples expectativa ou possibilidade dele e que resulta da constituição da própria divida, ou seja, directamente desta.
Sendo consensual que “O proveito comum do casal, no sentido do n.º 2 do art. 1691.º do Código Civil, deve aferir-se pelo fim visado pelo cônjuge que contraiu a dívida”.[7]
Ou seja, a responsabilização da ré deriva da sua participação numa sociedade com um escopo lucrativo comum, pelo que deve ser responsabilizada na medida e se a dívida produziu um enriquecimento (efectivo ou esperado) desse património.
Deste modo, teremos de concluir que a dívida em causa é comum, por derivar da prática de actos de comércio que potencialmente visaram aumentar o património comum do casal.
Mas, dos factos não resulta qualquer empobrecimento do autor.
Nesta matéria o autor alegava que “foram pagas desde Outubro de 2018 até à presente data”. E nada provou, sendo que o ónus desse empobrecimento efectivo caia-lhe a ele.
Do mesmo modo, está também comprovado a transferência de uma quantia de dez mil euros, para o irmão da ré, por conta da quantia de dez mil euros que recebeu deste.
Mas, também aqui não está demonstrado que tenha sido essa a medida do empobrecimento do autor, pois, note-se que este admite ter pelo menos, recebido a quantia de 5000 euros para aplicar na sua actividade comercial dos pais da ré, pelo menos a título de doação (cfr. art. 7 da resposta onde consta “no que tange à alegada quantia de €5.000,00, tratou-se de uma doação da Sra. GG”).
Acresce que, também sabemos a finalidade do empréstimo (facto nº 15), mas daí não resulta que essa quantia tenha sido efectiva e integralmente aplicada no giro comercial dessa sociedade, mas apenas que se destinava a isso.
Logo quanto a estes pedidos, não se logrou provar o efectivo empobrecimento do autor ou a concreta medida deste.
Por isso terão de improceder estas conclusões.
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Aqui chegados, não é necessário apreciar sequer a aplicação do instituto do abuso de direito que, aliás, só foi invocado para a restituição da quantia de 17.500,00 euros.
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6. Deliberação
Pelo exposto, este tribunal colectivo delibera, julgar a presente apelação improcedente por provada e, por via disso, confirma a decisão recorrida, por diferentes motivos.
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Custas a cargo do apelante porque decaiu inteiramente.
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Porto em 11.1.24
Paulo Teixeira
Carlos Portela
Ana Luísa Loureiro
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[1] Facto aditado por efeito do recurso.
[2] Ac do STJ de 4.7.19, nº 2048/15.1T8STS.P1.S1 (Oliveira Abreu).
[3] A. Varela, Das Obrigações em Geral, I, pag. 474.
[4] I. Galvão Teles, Direito das Obrigações, pág. 186.
[5] Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, Almedina, 2ª edição, pág. 395.
[6] Cfr. Ferrer Correia, in Lições de Direito Comercial, pág. 168; Pereira Coelho in Curso Direito de Família, 2.º, 71; e Antunes Varela in Direito de Família, pág. 328, e Rute Pedro, in “Código Civil Anotado”, Vol. II, Almedina, pág. 583. (arestos infra citados).
[7] AC do STJ de 25.5.23, 1575/17.0T8PRT.P1.S2 (NUNO PINTO OLIVEIRA).