Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1209/21.9T8PVZ-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: NULIDADE POR EXCESSO DE PRONÚNCIA
RECURSO
EXTEMPORANEIDADE
Nº do Documento: RP202401111209/21.9T8PVZ-C.P1
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: ATENDIDA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Tendo sido expressamente indeferido o recurso interposto da decisão de 4.07.2022, o conhecimento quer do seu objeto, quer da sua extemporaneidade, como questão prévia suscitada pela apelada, estava vedado, em sede recursiva, a esta Relação, cabendo à recorrente, em caso de não conformação com a decisão do tribunal a quo, usar do meio processual próprio – a reclamação prevista no artigo 643.º do Código de Processo Civil -, para, como o fez, reagir contra tal decisão de indeferimento.
II - Assim, estando a esta Relação vedado pronunciar-se sobre o recurso interposto da decisão de 4.07.2022, ao fazê-lo no acórdão de 9.02.2023, concluindo, em sede de apreciação de questão prévia suscitada pela apelada, pela sua extemporaneidade, cometeu a nulidade tipificada no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil (excesso de pronúncia).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1209/21.9T8PVZ-C.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 6

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO.
Na sequência do recurso de apelação interposto pela Ré A..., Lda, foi nestes autos proferido acórdão com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência:
A- Não se admite a apelação na parte em que se impugna a decisão interlocutória proferida em 4.7.2022;
B- Quanto à decisão proferida no dia 31.1.2022, admite-se a redução dos pedidos reconvencionais 1. e 3. que passam a ter a seguinte redação:
«1. Declarado e a autora condenada a reconhecer a existência, a validade, a eficácia e a subsistência, desde dezembro de 2008 de contrato de arrendamento dos espaços e ou frações, designadas pelas letras “O” e “P” na planta junta com a petição inicial como documento nº 4.
3. Condenada a autora a respeitar o contrato de arrendamento de 1., e a abster-se da prática de qualquer ato que perturbe os direitos da ré, inerentes a esse contrato.»
C- Quanto à decisão proferida no despacho saneador, de 3.11.2022, nega-se a admissão dos pedidos reconvencionais 2. e 4., confirmando-se aquela decisão.
As custas da apelação são da responsabilidade de ambas as partes, na proporção de 2/3 para a R. recorrente e 1/3 para a A. recorrida (art.º 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil)”.
Notificado às partes o referido acórdão, veio a Ré A..., Lda, arguir a sua nulidade, convocando, para o efeito, o disposto no artigo 615º, n.º 1, d) do Código de Processo Civil.
Alega, para tanto, a Ré que a 4.01.2023 o tribunal de primeira instância não admitiu o recurso por si interposto da decisão proferida a 4.07.2002, por o considerar intempestivo, tendo a mesma apresentado reclamação, a 19.01.2023, nos termos do artigo 643.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, a qual foi remetida ao Tribunal da Relação do Porto no dia 9 de Fevereiro de 2023.
Por este circunstancialismo, alega a Ré que o acórdão proferido nestes autos a 9.02.2023 não podia conhecer de tal questão e proferir a decisão constante da alínea A) do respectivo dispositivo.
Na sequência de tal requerimento de arguição de nulidade do acórdão, proferiu o então relator o seguinte despacho:
Pelo recurso, visou-se a impugnação de três decisões, proferidas em três datas diferentes.
A 1ª instância rejeitou uma daquelas impugnações (relativa à decisão de 4 de julho de 2022).
A subida do recurso em separado prejudicou a nossa perceção relativamente à apresentação pela apelante de reclamação nos termos do art.º 643º, nº 1, do Código de Processo Civil, da decisão da 1ª instância, quanto à negação parcial da admissão do recurso.
Para conhecer da nulidade parcial do acórdão, por excesso de pronúncia, invocada no requerimento de 23.2.2023, importa conhecer previamente o estado em que se encontra o apenso de reclamação (apenso D), pendente nesta Relação, designadamente se a reclamação já foi decidida e em que sentido, com trânsito em julgado.
Assim, solicite informação e faça-a constar dos presentes autos, abrindo conclusão”.
Foi junta certidão da decisão singular proferida no apenso D), que indeferiu a reclamação apresentada, mantendo o indeferimento do recurso, por extemporaneidade, assim como acórdão proferido, em conferência, no mesmo apenso, que julgou improcedente a reclamação, e manteve o indeferimento do recurso, por intempestividade.
Por decisão de 22.05.2023, proferida no apenso D), foi admitido o recurso interposto pela reclamante e ordenada a subida dos autos ao Tribunal Constitucional.
Pelo na altura relator nos presentes autos foi proferida a seguinte decisão a 27.04.2023:
“A..., LDA., recorrente neste processo, em que é recorrida a B..., S.A., veio invocar a nulidade do acórdão da Relação, por excesso de pronúncia, ao abrigo do art.º 615º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil, na parte em que rejeitou o recurso relativamente à decisão de 4.7.2022, por extemporaneidade, alegando que pende neste mesmo tribunal de recurso uma reclamação por si apresentada ao abrigo do art.º 643º, nº 1, do mesmo código, da decisão da 1ª instância que rejeitou, nessa parte, a apelação.
A parte contrária nada disse.
Proferimos então, com data de 23.3.2023, o seguinte despacho:
«Pelo recurso, visou-se a impugnação de três decisões, proferidas em três datas diferentes.
A 1ª instância rejeitou uma daquelas impugnações (relativa à decisão de 4 de julho de 2022).
A subida do recurso em separado prejudicou a nossa perceção relativamente à apresentação pela apelante de reclamação nos termos do art.º 643º, nº 1, do Código de Processo Civil, da decisão da 1ª instância, quanto à negação parcial da admissão do recurso.
Para conhecer da nulidade parcial do acórdão, por excesso de pronúncia, invocada no requerimento de 23.2.2023, importa conhecer previamente o estado em que se encontra o apenso de reclamação (apenso D), pendente nesta Relação, designadamente se a reclamação já foi decidida e em que sentido, com trânsito em julgado.
Assim, solicite informação e faça-a constar dos presentes autos, abrindo conclusão.»
Aquela informação foi prestada pela junção de um despacho e de um acórdão.
Pelo despacho, proferido em 28 de fevereiro de 2022, decidiu a Ex.ma Relatora indeferir aquela reclamação; pelo acórdão, proferido no dia 20 de abril de 2023, foi deliberado em conferência, na sequência de nova reclamação da recorrente, julgá-la improcedente, mantendo-se o indeferimento do recurso, por intempestividade.
Com efeito, por ter sido já decidida no lugar próprio --- em sede de reclamação, ao abrigo do art.º 643º do Código de Processo Civil --- e em sentido semelhante a questão da extemporaneidade do recurso relativamente à decisão de 4.7.2022, temos como prejudicado o conhecimento da nulidade do acórdão que aqui é invocada pela recorrente.
Sem custas”.
Notificada desta decisão, veio a Ré reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo 652.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, invocando os seguintes argumentos:
1ª- Pela decisão do despacho, proferido no dia 23 de Março de 2023, a decisão da nulidade do acórdão de 9 de Fevereiro de 2023, arguida pela reclamante no dia 23 de Fevereiro de 2023, ficou vinculada ao trânsito em julgado da decisão no apenso D da reclamação, pendente no Tribunal desta Relação do Porto, nos termos previstos no artigo 620º do Código de Processo Civil.
2ª- No dia 27 de Abril de 2023, foi proferida a decisão do despacho reclamado, apesar de pela informação do dia 24 de Abril de 2023 constar que a decisão singular, datada de 28 de Fevereiro de 2022, e a decisão do acórdão, datado de 20 de Abril de 2023, ainda não transitaram em julgado, pelo que a mesma foi extemporânea.
3ª- È pela distribuição da reclamação, prevista no artigo 643º do Código de Processo Civil, e na 5ª espécie do artigo 214º do Código de Processo Civil, que fica determinada a competência exclusiva para decidir a questão, colocada na reclamação.
4ª- A reclamação do despacho proferido no dia 4 de Janeiro de 2023 pelo tribunal da primeira instância, que por intempestividade não tinha admitido o recurso interposto pela reclamante da decisão do seu despacho de 4 de Julho de 2022, foi apresentada no dia 19 de Janeiro de 2023, e distribuída, no dia 10 de Fevereiro de 2023, à 3ª Secção do Tribunal desta Relação do Porto com o nº 1209/21.9T8PVZ-D.P1, e aos respectivos Juízes Desembargadores, Drª Isabel Silva, como Relatora, e aos Desembargadores, Drs. João Maria Espinho Venade e Paulo Duarte Mesquita Teixeira, respectivamente, como 1º e 2º Adjuntos, a quem ficou determinada a competência exclusiva para apreciar e decidir a questão colocada pela reclamante na respectiva reclamação de 19 de Janeiro de 2023.
5ª- A lógica da decisão do despacho de 23 de Março de 2023 e a que se auto – vinculou a decisão da questão sobre a questão da nulidade, arguida no dia 23 de Fevereiro de 2023 pela reclamante do acórdão, proferido no dia 9 de Fevereiro de 2023, impunha à decisão do despacho reclamado, que concluísse que não tinha competência para decidir a questão, colocada pela reclamante na respectiva reclamação de 19 de Janeiro de 2023.
6ª- Não podem subsistir duas decisões judiciais sobre a mesma questão; in casu a decisão A do acórdão de 9 de Fevereiro de 2023, proferido nestes autos, e a decisão do acórdão de 20 de Abril de 2023, proferida no apenso D daquela reclamação, e é esta que tem de subsistir, uma vez transitada em julgado, por ser o competente da reclamação do respectivo apenso D, naquele processo nº 1209/21.9T8PVZ-D.P1.
7ª- A decisão: « temos como prejudicado o conhecimento da nulidade do acórdão que aqui é invocada pela recorrente» do despacho reclamado é errada e constitui insubsistente argumento para não decidir a questão da arguida nulidade do acórdão de 9 de Fevereiro de 2023 e manter a sua decisão A.
8ª- Essa decisão violou o disposto no artigo 620º do Código de Processo Civil, por referência à decisão do despacho de 23 de Fevereiro de 2023, o disposto nos nºs 3 e 4 do artigo 643º e no artigo 214º, ambos do Código de Processo Civil, por referência à respectiva reclamação, apresentada no dia 19 de Janeiro de 2023, relativa à questão da intempestividade do recurso interposto da decisão despacho de 4 de Janeiro de 2023 do tribunal da primeira instância.
9ª- Em consequência, impõe-se que essa decisão do despacho reclamado seja revogada e substituída por decisão que determine o conhecimento da questão da nulidade do acórdão de 9 de Fevereiro de 2023, arguida pela reclamante no dia 23 de Fevereiro de 2023, e que dela conheça e que a decida.
Com que se aplicará, correctamente, o direito devido”.
Respondeu a recorrida e, sustentando que “Foi já decidido por Acórdão proferido no âmbito do apenso D a questão da extemporaneidade do recurso relativamente à Decisão do Tribunal da Primeira Instância de 4.7.2022”, conclui que “Não existe motivo para ser proferido novo Acórdão sobre a mesma questão”.
Após vistos, cumpre decidir.

II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Os factos/incidências processuais com relevância para o conhecimento do objecto da reclamação são os descritos no relatório introdutório.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Tendo sido arguida nulidade – parcial – do acórdão proferido nestes autos quanto ao segmento que decidiu que “Não se admite a apelação na parte em que se impugna a decisão interlocutória proferida em 4.7.2022” – alínea A) do respectivo dispositivo -, importa equacionar se, com a decisão proferida no apenso D (reclamação) ficou prejudicado o conhecimento do invocado vício, tal como sustentou o então relator nestes autos, e cujo entendimento verteu no despacho de 27.04.2023, ou, ao invés, como contrapõe a apelante, tal não obsta ao conhecimento da nulidade arguida, devendo a mesma ser apreciada.
Refere o despacho em causa que “...por ter sido já decidida no lugar próprio --- em sede de reclamação, ao abrigo do art.º 643º do Código de Processo Civil --- e em sentido semelhante a questão da extemporaneidade do recurso relativamente à decisão de 4.7.2022, temos como prejudicado o conhecimento da nulidade do acórdão que aqui é invocada pela recorrente”.
Porém, na data em que este despacho foi proferido as decisões (singular e acórdão constantes do apenso D – reclamação) ainda não se haviam consolidado de forma definitiva, tanto assim que viria a ser interposto recurso deste último para o Tribunal Constitucional, o qual foi admitido por decisão de 22.05.2023.
De resto, no despacho de 23.03.2023 determinou-se: “Para conhecer da nulidade parcial do acórdão, por excesso de pronúncia, invocada no requerimento de 23.2.2023, importa conhecer previamente o estado em que se encontra o apenso de reclamação (apenso D), pendente nesta Relação, designadamente se a reclamação já foi decidida e em que sentido, com trânsito em julgado”, constando da certidão extraída do apenso D, então pendente nesta mesma Secção, que a decisão singular de 28.02.2023 e o acórdão de 20.04.2023 ainda não haviam transitado em julgado.
Ora, se no despacho de 23.03.2023 o conhecimento da arguida nulidade do acórdão ficou dependente da decisão que houvesse já sido proferida, com trânsito em julgado, no apenso da reclamação, a decisão de 27.04.2023 apenas teve em consideração as decisões proferidas no referido apenso, sem atender à circunstância de nenhuma delas haver ainda transitado em julgado.
Neste contexto, não se pode considerar que as decisões proferidas no aludido apenso de reclamação (apenso D) possam prejudicar o conhecimento da nulidade do acórdão, no que concerne ao segmento decisório constante da alínea A) do respectivo dispositivo.
Como tal, impõe-se conhecer do vício invocado.
2. Proferida decisão judicial, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. É o que resulta do artigo 613.º do Código de Processo Civil que, nessa parte, reproduz o que já dispunha o n.º 1 do artigo 666.º do anterior diploma, qualquer um deles aplicável às decisões da segunda instância, quer por força do artigo 666.º, n.º 1 do novo Código de Processo Civil, quer por força do disposto no artigo 716.º, n.º 1 da pretérita lei processual civil.
O único desvio a esse princípio consagra-o o n.º 2 do referido artigo 666.º do antigo Código de Processo Civil, permitindo ao juiz rectificar erros materiais, suprir nulidades, esclarecer dúvidas existentes na sentença e reformá-la, ou o n.º 2 do artigo 613.º do actual diploma que, não obstante, e ao contrário do anterior, suprimiu a faculdade de “esclarecer dúvidas existentes na sentença”.
Segundo o n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil:
“É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido”.
Tal como o n.º 1 do artigo 668.º do anterior diploma, também o n.º 1 do artigo 615.º do actual Código de Processo Civil contém uma enumeração taxativa das causas de nulidade da sentença[1], nelas não se inserindo o designado erro de julgamento, que apenas pode ser atacado por via de recurso, quando o mesmo for legalmente admissível[2].
O artigo 615º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil correlaciona-se com o estatuído no n.º 2 do artigo 608.º do mesmo diploma legal, onde se determina que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
O vício tipificado na primeira parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º ocorre quando haja falta de apreciação de questão que o tribunal devesse conhecer, cuja resolução não tenha ficado prejudicada por solução dada a outras.
Há decisão “ultra petitum” sempre que o julgador não confina o julgamento da questão controvertida ao pedido formulado pelo autor/requerente/recorrente ou ao pedido reconvencional deduzido pelo réu e conhece, fora dos casos em que tal lhe é permitido “ex officio”, questão não submetida à sua apreciação.
Por conseguinte, a nulidade da sentença/acórdão com fundamento no excesso de pronúncia só ocorre quando o julgador conhece para além do que lhe era consentido conhecer, apreciando questão que, não sendo de conhecimento oficioso, as partes não submeteram ao seu escrutínio. Por força do princípio da disponibilidade objectiva, verifica-se um tal excesso sempre que o juiz utiliza, como fundamento da decisão, matéria não alegada, quando o seu conhecimento lhe estava vedado, ou absolve num pedido não formulado.
Exige-se, com efeito, uma correspondência entre a pronúncia e a pretensão – a sentença não pode decidir para além do que compreende o pedido, nos termos em que o demandante o formula. Este princípio é válido quer para o conhecimento excessivo em termos quantitativos, quer em relação a condenação em diverso objeto – excesso qualitativo[3].
Como esclarecia Anselmo de Castro, ainda no âmbito da aplicação da pretérita lei adjectiva[4], «o vício relaciona-se com o dispositivo do art.° 660.°, n.° 2.° e por ele se tem de integrar. A primeira modalidade tem a limitação aí constante quanto às decisões que devam considerar-se prejudicadas pela solução dada a outras; a segunda reporta-se àquelas questões de que o tribunal não pode conhecer oficiosamente e que não tenham sido suscitadas pelas partes, como nesse preceito se dispõe.
A palavra questões deve ser tomada aqui em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir (melhor, à fundabilidade ou infundabilidade dumas e doutras) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem. Esta causa de nulidade completa e integra, assim, de certo modo, a da nulidade por falta de fundamentação. Não basta à regularidade da sentença a fundamentação própria que contiver; importa que trate e aprecie a “fundamentação jurídica dada pelas partes. Quer-se que o contraditório propiciado às partes sobre os aspectos jurídicos da causa não deixe de encontrar a devida expressão e resposta na decisão”.
Como precisa o acórdão aqui proferido a 9.02.2023, “...a 28.11.2022, a R. A..., Lda. interpôs recurso de apelação de três decisões interlocutórias[1]:
1. Da decisão proferida no dia 31 de janeiro de 2022 que indeferiu o requerimento da recorrente do dia 22 de novembro de 2021, em que se pediu a alteração dos pedidos reconvencionais 1. e 3. primitivamente formulados;
2. Do despacho de 4 de julho de 2022 que admitiu o requerimento da A. de 14 de março de 2022 e o convolou para incidente de liquidação (onde defende que não devem se admitidos determinados factos ali alegados)
3. Da decisão, proferida no despacho saneador de 3 de novembro de 2022, que não admitiu os pedidos reconvencionais 2. e 4. (visando a sua admissão”.
Essa é também a constatação do despacho de 4.01.2023, da primeira instância, quando refere: “a análise das alegações de recurso permite concluir que, na realidade, a Ré/reconvinte pretende recorrer de três distintas decisões, a saber:
- A decisão proferida no despacho saneador que não admitiu os pedidos reconvencionais formulados sob os pontos 2 e 4 da contestação/reconvenção;
- A decisão, proferida em 31 de Janeiro de 2022 que julgou improcedente o requerimento da reconvinda designado de redução do pedido reconvencional;
- A decisão de 4 de Julho de 2022 que admitiu o articulado da Autora com a natureza de incidente de liquidação do pedido genérico inicialmente formulado na petição inicial”.
Porque a recorrida haja pugnado, por distintas razões, pela inadmissibilidade dos recursos em causa, no mesmo despacho foram concretamente apreciados os pressupostos da admissibilidade dos mesmos, vindo a ser proferida decisão nos seguintes termos:
“Pelo exposto, decide-se:
- Indeferir, por intempestivo, o recurso da Ré da decisão de 4 de Julho último, que admitiu o articulado de liquidação do pedido genérico apresentado pela Autora;
- Admitir, por estarem em tempo, tratarem-se de decisões recorríveis os recursos interpostos pela Ré do despacho saneador na parte em que não admitiu os pedidos reconvencionais mencionados nos pontos 2 e 4 da contestação reconvenção e do despacho de 31 d Janeiro de 2022 que indeferiu o requerimento da mesma Ré/reconvinte para alteração dos seus pedidos reconvencionais”.
O acórdão proferido nestes autos identificou assim as questões recursivas a apreciar “...pela seguinte ordem da sua apreciação:
1. Quanto à decisão proferida no dia 31.1.2022, se deve ser admitida a alteração dos pedidos reconvencionais 1. e 3. primitivamente formulados pela R.;
2. Quanto à decisão de 4.7.2022, se não devem ser admitidos determinados factos constantes do requerimento da A. de 14.3.2022 que o tribunal convolou para incidente de liquidação;
3. Quanto à decisão proferida no despacho saneador, de 3.11.2022, se devem ser admitidos os pedidos reconvencionais 2. e 4.”.
E apreciando as questões prévias suscitadas pela recorrida nas suas contra-alegações, veio a conhecer da questão da extemporaneidade do recurso interposto da decisão de 4.07.2022, decidindo rejeitar “a impugnação da decisão proferida no dia 4 de julho de 2022, por ser extemporânea”.
Tendo sido expressamente indeferido o recurso interposto da decisão de 4 de Julho de 2022, o conhecimento quer do seu objecto, quer da sua extemporaneidade, como questão prévia suscitada pela apelada, estava vedado, em sede recursiva, a esta Relação, cabendo à recorrente, em caso de não conformação com a decisão do tribunal a quo, usar do meio processual próprio – a reclamação prevista no artigo 643.º do Código de Processo Civil -, para, como o fez, reagir contra tal decisão de indeferimento.
Assim, estando a esta Relação vedado pronunciar-se sobre o recurso interposto da decisão de 4.07.2022, ao fazê-lo no acórdão de 9.02.2023, concluindo, em sede de apreciação de questão prévia suscitada pela apelada, pela sua extemporaneidade, cometeu a nulidade tipificada no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil (excesso de pronúncia).
*
Pelo exposto, deferindo a arguida nulidade do acórdão proferido nestes autos a 9.02.2023, acordam, em conferência, os juízes desta Relação em anular a decisão dele constante relativa à extemporaneidade do recurso interposto da decisão de 4.07.2022, bem como o segmento decisório da alínea A) do respectivo dispositivo.
Sem custas.
Notifique.

Porto, 11.01.2024
[Acórdão elaborado pela 1.ª signatária com recurso a meios informáticos]
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
João Venade
__________________
[1] Cf. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil anotado”, vol. V, pág. 137.
[2] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 686.
[3] cfr. Ac. do STJ de 28.09.2006, p.º 06A2464, www.dgsi.pt.
[4] “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. III, pág. 142.