Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1535/23.2T8STS-G.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PROENÇA
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
ADMINISTRAÇÃO DE UMA SOCIEDADE
INSOLVÊNCIA QUALIFICADA DE CULPOSA
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP202410221535/23.2T8STS-G.P1
Data do Acordão: 10/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A equiparação dos administradores de direito aos administradores de facto nos n.º 2 e 3 deste art.º 186.º do CIRE não visa isentar de responsabilidade os gerentes de direito que não exerçam as funções de facto, mas, ao invés, estender a responsabilidade legal aos actos praticados ou omitidos pelos administradores de facto.
II - A responsabilização dos gerentes afectados pela qualificação da insolvência como culposa a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos não é automática, encontrando-se limitada pelo princípio da proporcionalidade
III - No entanto, não resultando da factualidade provada que parte dos prejuízos suportados pelos credores sempre se verificariam, independentemente da actuação dos afectados, não faz sentido limitá-los aquém do montante dos créditos não satisfeitos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n. 1535/23.2T8STS-G.P1– Apelação

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Sumário:
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Em incidente de qualificação da insolvência de “A..., Unipessoal, Lda., foi emitido parecer pelo Administrador da Insolvência propondo a qualificação da insolvência como culposa, com fundamento nas alíneas a) e f), do n.º 2, do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), com a afectação de AA e BB, respectivamente, gerente de direito e de facto da sociedade insolvente.
Os requeridos deduziram separadamente oposição, em resumo concretizando os termos do exercício da gerência de facto apenas pelo requerido e da intervenção da requerida na sociedade insolvente somente como gerente de direito. Discordam do preenchimento das alíneas a) e f) do nº 2 artº 186º do CIRE e concluem pela improcedência do pedido.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, que julgou procedente, por provado, o incidente da qualificação e em consequência:
a) Qualificou como culposa a insolvência da sociedade A..., Unipessoal, Lda.;
b) Declarar afetados pela insolvência como culposa AA e BB;
c) Decretou a inibição de AA para administrar patrimónios de terceiros, por um período de 2 [dois] anos e 3 [três] meses;
d) Decretou a inibição de BB para administrar patrimónios de terceiros, por um período de 3 [três] anos;
f) Fixou a AA a sanção de inibição para o exercício do comércio e para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa em 2 [dois] anos e 3 [três] meses;
g) Fixou a BB a sanção de inibição para o exercício do comércio e para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa em 3 [três] anos;
h) Determinou a perda de quaisquer créditos dos Requeridos AA e BB sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, condenando-o na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;
i) Condenou AA e BB a indemnizarem os credores da devedora declarada insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respectivos patrimónios.
Inconformado com o assim decidido, interpôs o requerido BB recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
A) O Recorrente não se pode conformar em ter sido condenado a indemnizar "os credores da devedora declarada insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respectivos patrimónios".
B)Com efeito, a responsabilização não pode ser automática, conforme bem resulta do Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.12.2023, relativo ao processo n° 3146/20.T8VFX-BL1.S1 e pesquisável em www.dgsi.pt o qual dispõe que "O art. 189° n. 2 al. e) do CIRE, conjugado com o n.4 deste artigo, não prevê uma responsabilização automática dos sujeitos afectados pela qualificação da insolvência culposa determinante do pagamento da totalidade dos créditos reconhecidos para serem pagos pela (insuficiente) massa insolvente. Tal norma não estabelece uma responsabilidade contratual sucedânea desses sujeitos pelas dívidas da insolvente.
C)Trata-se, antes, de uma responsabilidade extracontratual, a apurar na medida da verificação dos respectivos pressupostos gerais, cujo montante tem como limite máximo o valor dos créditos graduados. "
D)Face ao exposto, tem o Recorrente de ser absolvido da condenação a que foi sujeito no ponto i da sentença ora recorrida, por violação do disposto no artigo 189 n° 2 al. e) do CIRE.
Interpôs igualmente a requerida AA recurso de apelação, concluindo nos seguintes termos:
DA MATÉRIA DE FACTO:
A)A Recorrente não pode aceitar o teor do ponto bj) dado como provado, do qual resulta "Da contabilidade da insolvente resulta a existência de vários pagamentos respeitantes a despesas em nome da sociedade, realizados através da correspondente conta bancária, com recurso a cartão de débito em nome da Requerida/gerente AA, bem como transferências bancárias de contas da sociedade também ordenadas pela própria."
B)Com efeito, não existe nestes autos qualquer documento, qualquer prova, qualquer depoimento, no sentido de que a Recorrente alguma vez tenha dado, ela própria, qualquer ordem de pagamento e/ou de transferência bancária.
C)Considera a Recorrente que não foram devidamente valorados os depoimentos prestados pelas testemunhas o que configura assim erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa.
D)Assim, analisando o depoimento da testemunha CC, gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, realizado a 10/01/2024 (com início às 00:21:48 e fim às 00:52:42), que se passa a transcrever parcialmente: Advogada
Vossa excelência consente. [00:40:00] Olhe, senhor doutor, sem prejuízo daquilo que nos acabou a dizer que nunca a viu lá, não a viu a ter nenhum ato de gestão, a verdade é que encontram-se junto aos autos aqui documentos que comprovam pagamentos realizados por cartão de debito e mesmo operações de transferências de dinheiro realizadas por homebanking, isto em nome da D. AA. Portanto, estamos a falar de um cartão de débito em nome da D. AA e estamos a falar de uma conta bancária em nome da D. AA onde houve operações de homebanking. A pergunta que eu lhe faço é esta, que cartão era este? Conhece este cartão de débito? E que eventuais transferências eram estas? Quem é que as fazia, se é que alguém as fazia, se era o seu pai... O que é isto? [00:41:00] Como é que nos aprecem estes documentos contabilísticos aqui?
CC - Era de conhecimento comum na empresa que a AA era, de facto, a dona da empresa. A accionista apesar de não ser a pessoa que mandava, era, de facto, a accionista. E, portanto, várias vezes nos foi pedido até eu fui ao longo do tempo alguma vez ter com a AA a casa para que ela pudesse assinar um papel porque era necessário para isto e para aqueloutro.
Advogada
E eu pergunto-lhe assinava consciente do que estava a assinar? Ela lia? CC
Não.
(■■)
Advogada
Portanto, assinava de cruz.
CC
Assinava de cruz. Assinava mesmo.
CC
Isto aconteceu várias vezes. E, portanto, relativamente à conta havia até um cartão que nós utilizávamos para algumas despesas comuns que era para o cartão da empresa e que tinha o nome da AA porque era a dona da empresa que tinha de ser passado o cartão em nome dela.
Advogada
E alguma vez a D. AA utilizou esse cartão?
CC
Não.
Advogada
Portanto, esse cartão era utilizado por quem?
CC
Estava disponível na secretária da secretária. Da empresa. Portanto, no backoffice da empresa que era originalmente a DD e depois passou a ser o EE.
G)Advogada
E também a pergunta que lhe faço é alguma vez viu alguém a fazer operações, nomeadamente, transferências através de homebanking dessa conta?
CC
Muitas vezes.
Advogada
Era corrente fazerem isso?
CC
Diariamente. Diária...
H) No mesmo sentido depôs EE, gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, realizado a 14/02/2024 (com início às 00:15:48 a 00:35:00) que se passa a transcrever parcialmente:
Advogada
Olhe, foram juntos aqui aos autos uma série de documentos, uns têm a ver, por exemplo, com pagamentos que foram feitos com cartão de crédito e transferências bancárias que foram feitas em nome da D. AA.
Eu pergunto-lhe, a D. AA movimentava as contas bancárias da sociedade? Fazia pagamentos? Usava o cartão de crédito da sociedade? O senhor sabe alguma coisa disto?
EE
Não, ela não fazia nada, era tudo movimentado pelo Senhor BB [00:22:00] ou por nós funcionários.
l)Advogada
Então conte lá, como é que vocês movimentavam?
EE
E assim nós tínhamos as contas do banco, vou-lhe dar o exemplo do Banco 1... que automaticamente em todas as transferências aparece a assinatura de quem é o titular da conta que é da A..., mas o sócio- gerente é que é titular, aparece automaticamente o nome dela.
Advogada
E quem é que fazia esses movimentos da conta, então?
EE
Éramos nós com ordens do Senhor BB.
3)Advogada
E vocês iam faziam a transferência no homebanking, é assim?
EE
Sim exactamente. E fazíamos os pagamentos.
Advogada
Alguma vez deram conhecimento à D. AA destes movimentos?
EE
Não. Tudo o que era tratado com a D. AA era ele que falava com ela, nós nunca falávamos com ela. Ela era só a pessoa que assinava e a sócia-gerente porque todos os assuntos que nós tínhamos para tratar da empresa eram falados com ele. [00:23:00]
K)Em consequência destes depoimentos os quais comprovam, aliás, os documentos juntos a esta lide, parece à Recorrente evidente que o teor da alínea bj) da matéria provada deve ser alterado para:
bj) dado como provado que "Da contabilidade da insolvente resulta a existência de vários pagamentos respeitantes a despesas em nome da sociedade, realizados através da correspondente conta bancária, com recurso a cartão de débito em nome da Requerida/gerente AA, bem como transferências bancárias, através de "netbanking" de contas da sociedade. "
L) e dado como provado o facto indevidamente considerado como não provado na Douta Sentença ora recorrida, do qual resulta que:
1- A Requerida AA nunca realizou qualquer pagamento ou dado ordem para ser realizada alguma transferência bancária.
DA MATÉRIA DE DIREITO:
M) A Recorrente limitou-se a ser uma mera gerente de facto da sociedade insolvente.
N) O que acaba por ser confirmado pelo Tribunal recorrido ao dispor que "não obstante se ter dado como demonstrado que o Requerido BB era quem actuava, em nome e no interesse da sociedade insolvente, junto de fornecedores, clientes e trabalhadores, o certo é que ficou demonstrado que das reclamações apresentadas pelos credores Banco 2..., S.A., Banco 3..., Banco 4..., S.A. e Banco 5..., S.A., constam documentos assinados pela gerente AA que, em representação da sociedade insolvente, assumiu obrigações de onde derivaram os créditos reconhecidos na lista de créditos reconhecidos. "
O) É evidente que, sendo a Recorrente a única gerente de direito da sociedade, teria de ser ela a assinar todos os seus documentos oficiais necessários, não se podendo daqui extrair qualquer acto de gestão de facto.
P) É ainda referido que "foram contabilizados empréstimos da sócia à sociedade, empréstimos da sociedade à sócia e diversos pagamentos efectuados pela própria por conta da sociedade e vice-versa sendo que, no início do exercício de 2022, o saldo era credor em €2.481,33, demostrando a existência de uma dívida da referida importância da sociedade à sócia. Acresce que, demonstrou-se, que esta situação se inverteu no decurso do exercício de 2022 e 2023, pois, em maio de 2023, a conta em causa regista um saldo devedor de €46.638,75, sem qualquer justificação para o efeito. "
Q) Também neste ponto, não se pode extrair qualquer ato de gestão de facto por parte da Recorrente, pois dele não resulta que tenha sido esta a efectuar directamente estas transferências ou a ter dado as instruções para que as mesmas fossem efectuadas.
R) Da mesma Douta Sentença ora recorrida é ainda referido que "Derivou demonstrado, ainda, que, em Dezembro de 2022, foi realizada uma transferência da conta bancária da Requerida/gerente AA para conta bancária da sociedade insolvente dos montantes de €10.000,00 e €9.900,00. Por outro lado, provou-se que, no mesmo mês, foi realizada uma transferência da conta bancária da sociedade para a conta bancária da Requerida/gerente AA de €1.600,00 e €2.000,00.
S) Este parágrafo reforça a anterior conclusão, ou seja, que o facto de terem sido efectuadas transferências de contas bancárias de que a Recorrente é titular não significa que tenha sido esta a dar as ordens e as instruções respectivas.
T) O que ficou unicamente provado foi a existência de vários pagamentos efectuados através de conta bancária da Recorrente.
U) Em consequência do exposto, torna-se evidente que não se encontra preenchido o disposto no n° 1 do artigo 186° do CIRE que dispõe que "A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. ".
V) E não se encontra preenchido pelo facto da actuação da Recorrente nos factos imputados na Sentença recorrida para fundamentar a insolvência culposa não resultar, da sua parte, qualquer actuação dolosa ou com culpa grave.
W) Com efeito, a Recorrente ao acreditar, ao confiar, que o seu ex-marido estaria a efectuar uma gestão criteriosa da sociedade insolvente poderemos estar, quanto muito, perante uma situação de negligência leve ou seja, perante o comportamento de uma pessoa minimamente diligente, que confiou em alguém que lhe era próximo e que não tinha qualquer razão para duvidar.
X) Desta forma, não estando "in casu" preenchido o predito artigo 186° n° 1 do CIRE, também não podem ter aplicabilidade nenhuma das alíneas do n° 2 do mesmo preceito legal.
FINALMENTE E POR MERA CAUTELA:
Y) Caso o entendimento supra enunciado não seja julgado procedente, o que unicamente por mera cautela e dever de patrocínio se admite, a verdade é que também se não pode conformar a Recorrente em ter sido condenada a indemnizar "os credores da devedora declarada insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respectivos patrimónios."
Z) Com efeito, a responsabilização não pode ser automática, conforme bem resulta do Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.12.2023, relativo ao processo n° 3146/20.T8VFX-B.L1.S1 e pesquisável em www.dgsi.pt o qual dispõe que "O art. 189° n. 2 al. e) do CIRE, conjugado com o n. 4 deste artigo, não prevê uma responsabilização automática dos sujeitos afectados pela qualificação da insolvência culposa determinante do pagamento da totalidade dos créditos reconhecidos para serem pagos pela (insuficiente) massa insolvente. Tal norma não estabelece uma responsabilidade contratual sucedânea desses sujeitos pelas dívidas da insolvente. Trata-se, antes, de uma responsabilidade extracontratual, a apurar na medida da verificação dos respectivos pressupostos gerais, cujo montante tem como limite máximo o valor dos créditos graduados."
A.A.) Face ao exposto, tem a Recorrente de ser absolvida da condenação a que foi sujeita no ponto i da sentença ora recorrida.
A.B.) O Tribunal recorrido violou na Douta Sentença ora recorrido, o disposto no artigo 186° n° 1 e 189° n° 2 do CIRE.
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O Ministério Público apresentou contra–alegações, sustentando a improcedência dos recursos.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
As questões a resolver na presente apelação consistem em
a) reapreciação da a prova com vista à alteração da matéria de facto nos termos propugnados pela recorrente AA;
b) Se a insolvência pode ser qualificada como culposa relativamente à mesma recorrente;
c) Se é a decisão recorrida deveria ter limitado os montantes em que condenou os recorrentes a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente.
***
A 1.ª instância julgou provados e não provados os seguintes factos:
A) Factos provados:
a) A sociedade A..., Unipessoal, Lda., pessoa coletiva nº ..., com sede na Rua ..., ..., ... Maia, o seguinte objecto social: "Actividades de importação, exportação, comércio e distribuição por grosso e a retalho de combustíveis líquidos e gasosos, óleos e massas lubrificantes; produtos químicos e acessórios industriais, gestão e promoção de empreendimento turísticos, turismo rural, turismo de habitação; actividade de angariação e mediação imobiliária, compra, venda e arrendamento de bens imóveis, revenda dos imóveis adquiridos; promoção imobiliária; compra e venda de automóveis e seus acessórios; actividades de consultoria (não jurídica) e apoio aos negócios."
b) Pela AP. ... foi constituída a A..., Unipessoal, Lda., apresentando um capital social de €10.000,00, constituído por uma quota, naquele valor, da titularidade de AA, assumindo esta as funções de gerente.
c) Pela AP. ... foi registado um aumento de capital em €90.000,00, passando o capital social de €100.000,00, constituído por uma quota, naquele valor, da titularidade de AA - tudo cfr. certidão de matrícula junta aos autos principais, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
d) A sociedade B..., Unipessoal, Lda., pessoa colectiva nº ..., com sede na Rua ..., ..., ... - Maia, tem o seguinte objecto social: "Comércio a retalho de combustível para veículos a motor. Manutenção e reparação de veículos automóveis, comércio a retalho de combustíveis para uso doméstico. Comércio por grosso de combustíveis líquidos, sólidos, gasosos e produtos derivados. Compra e venda, importação e exportação de produtos petrolíferos. Compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim. Gestão de propriedades. Compra, venda e restauro de antiguidades. Assessoria e gestão de negócios. Actividades turísticas e recreativas. Gestão, compra e venda de participações sociais. "
e) Pela AP. ... foi constituída a sociedade B..., Lda., apresentando um capital social de € 20.000,00, constituído por uma quota, no valor de €10.000,00, da titularidade de FF, e por outra quota, no valor de €10.000,00, da titularidade de CC, assumindo ambos as funções de gerente.
f) Pela AP. ... foi registada a cessação de funções de gerente por FF, a qual foi recusada pela AP. ....
g) Pela Ap. AP. ... foi registada a cessação de funções de gerente por CC.
h) Pela AP. ... foi registada a designação como gerente de FF.
i) Pelas AP. ... e ... foram registadas alterações do contrato de sociedade quanto à sede e estrutura da gerência.
j) Pela AP. ... foi registada a alteração do contrato de sociedade para
sociedade unipessoal por quotas - tudo cfr. certidão de matrícula junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
k) A sociedade C..., Lda., pessoa colectiva nº ..., com sede na Rua ..., ..., ... - Maia, tem o seguinte objecto social: "Comércio e distribuição de combustíveis, lubrificantes e gás, comércio e distribuição de acessórios para automóveis e industriais, compra e venda de imóveis, gestão dos mesmos, assessoria e gestão de negócios. "
l) Pela AP. ... foi constituída a sociedade C..., Lda., apresentando um capital social de € 200.000,00, constituído por uma quota, no valor de €98.000,00, da titularidade de FF, e por outra quota, no valor de €4.000,00, da titularidade de CC, assumindo ambos as funções de gerente.
m) Pela AP. ... foi registada a cessação de funções de gerente por CC.
n) Pela AP. ... foi registada a cessação de funções de gerente por FF.
o) Pela AP. ... foi registada a alteração do contrato de sociedade quanto à sede e estrutura da gerência.
p) Pela AP. ... foi registada a sentença de declaração de insolvência.
q) Pela AP. ... foi registada a decisão de encerramento do processo de insolvência.
r) Pela AP. ... foi registado o regresso à actividade baseado na homologação de plano de insolvência.
s) Pela AP. ... foi registada a alteração do contrato de sociedade quanto à sede.
t) Pela AP. ... foi registada a designação de gerente por EE.
u) Pela AP. ... foi registada a cessação de funções de gerente por EE.
v) Pela AP. ... foi registada a designação como gerente de BB - tudo cfr. certidão de matrícula junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
w) FF, nascido aos ../../1975, encontra-se registado como sendo filho de BB e de GG - tudo cfr. certidão de nascimento junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
x) CC, nascido aos ../../1976, encontra-se registado como sendo filho de BB e de GG - tudo cfr. certidão de nascimento junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
y) O(A) Exm(a) Sr(a) Administrador(a) da Insolvência apresentou a lista de créditos a que se refere o artº 129º do CIRE, da qual decorre que foram reclamados e relacionados créditos, a título de capital e juros, num total de € 514.657,55 - tudo cfr. lista junta ao apenso de reclamação e créditos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
z) O(A) Exm(a) Sr(a) Administrador(a) da Insolvência apresentou o relatório previsto no artº 155º do CIRE, o qual não foi objecto de impugnação por parte da insolvente ou dos credores e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
aa) O contabilista certificado da insolvente informou o(a) Exm(a) Sr(a) Administrador(a) da Insolvência que o balancete disponibilizado, relativo ao exercício de 2023, tinha carácter provisório, porquanto ainda não tinham sido efectuados os lançamentos contabilísticos referentes aos movimentos de tesouraria.
ab) Com base nos elementos disponibilizados ao(à) Exm(a) Sr(a) Administrador(a) da Insolvência, à data da elaboração do relatório descrito em z), a insolvente apresentou o seguinte mapa de Demonstração dos Resultados por Naturezas dos exercícios de 2020 a 2022:

ac) A insolvente, entre 2020 e 2022, apresentou os seguintes rendimentos:

ad) No exercício de 2022, registou-se um aumento significativo do custo das mercadorias vendidas, com diminuição da margem bruta.
ae) Os gastos de financiamento quase duplicaram o valor suportado no exercício anterior, resultante não só do aumento das taxas de juro, mas também de um substancial incremento do recurso a passivo remunerado.
af) Os factos descritos em ad) a ae), no exercício de 2022, tiveram um impacto substancial nos resultados líquidos, tendo a sociedade registado resultados líquidos negativos de €41.170,08.
ag) A insolvente, nos anos de 2020 a 2022, apresentou o seguinte balanço financeiro:


ah) Do descrito em ag), resulta que a insolvente manteve sempre capitais próprios positivos de €237.603,45, em 2020, €234.487,78, em 2021, e €193.317,70, em 2022.
al) Não obstante o crescimento do passivo no exercício de 2022, o valor do activo foi sempre superior ao valor do passivo, não evidenciando a estrutura financeira debilidades que a levassem a uma situação de insolvência.
aj) Como decorre do descrito em ag), o saldo da rubrica "outros activos correntes" apresenta, a 31 de Dezembro de 2022, o valor de €442.267,91, tendo o contabilista certificado informado que é composto pelo saldo devedor da conta 22 - Fornecedores e saldo devedor da conta 27 - Outras contas a receber e a pagar.
ak) A conta 22 regista as operações contabilísticas com os fornecedores de bens e prestadores de serviços (todos designados de «fornecedores») por contrapartida das contas 31 - Compras e 62 - Fornecimentos e serviços externos, com excepção dos destinados aos investimentos da entidade, registados na conta 271 - Fornecedores de investimentos (contrapartida das contas da Classe 4).
al) O saldo da conta 22 apresenta um saldo devedor anómalo tendo em conta que é movimentada a crédito pelo registo das facturas emitidas provenientes de fornecedores e a débito pelo lançamento dos correspondentes pagamentos ou de notas de crédito.
am) Do balancete analítico reportado a 31 de Dezembro de 2022, resulta a existência de contas de fornecedores com saldos devedores expressivos os quais não se encontram justificados com o lançamento de facturas, tais como se discrimina seguidamente:
- ... - Conta Corrente - C..., Lda., €84.538,26;
- ... - Conta Corrente - B..., Lda., €145.280,96;
- ... - Facturas em Recepção e Conferência-C..., Lda., €65.699,00;
- ... - Facturas em Recepção e Conferência-B..., Lda., €9.851,00.
an) Para além do descrito em am), da conta de 278 - Devedores diversos, o item ..., relativo à sociedade B..., Lda., apresenta o saldo de €75.000,00.
ao) A sociedade C..., Lda., interpôs contra a sociedade B..., Lda., a acção executiva registada sob o n.º 5340/18.0T8MAI, do Juízo de Execução da Maia -Juiz 2, no valor de € 88.603,78, cujo processo foi extinto por inexistência de bens em 18-02-2019, passando a constar na Lista Pública de Execuções, a partir de 18/03/2019 -cfr. informação junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
ap) Em 29 de agosto de 2023, o contabilista certificado remeteu ao(à) Exm(a) Sr(a) Administrador(a) da Insolvência, o balancete analítico devidamente reconciliado e actualizado com os movimentos de tesouraria - cfr. documento junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
aq) Da análise do balancete mencionado em ap), verifica-se que o saldo devedor anómalo da conta 22 se mantém, sendo que as contas descritas em am) apresentam em maio de 2023 os seguintes saldos:
- ... - Conta Corrente - C..., Lda., €200.426,41;
- ... - Conta Corrente - B..., Lda., €116.053,63;
- ... - Facturas em Recepção e Conferência - C..., Lda., €15.420,90;
- ... - Facturas em Recepção e Conferência - B..., Lda., €0,00. ar) Mantém-se o saldo devedor de € 75.000,00 da conta ... - B..., Lda. Compra de Créditos.
as) Do mencionado em aq) e ar), resulta que a insolvente realizou pagamentos aos fornecedores C..., Lda., e B..., Lda., quer através de transferência bancária, quer através de confirming, que não se encontram suportados e justificados por transacções comerciais.
at) Foram realizados pagamentos em valor superior ao das faturas emitidas por estas entidades, respectivamente de €215.847,31 e €116.053,63, os quais ocorreram maioritariamente nos exercícios de 2022 e 2023.
au) Verifica-se que se encontram contabilizados diversos movimentos atípicos nas referidas contas correntes de fornecedores com a denominação de "recebimentos de fornecedores", "Dev. Fornecedores" ou outras, sem qualquer justificação para o sucedido.
av) A insolvente utilizava as suas contas de confirming para financiar as sociedades C..., Lda., e B..., Lda., simulando débitos de fornecimentos que nunca aconteceram.
aw) Na contabilidade da insolvente era registada uma dívida e, logo que se mostrasse oportuno para os referidos fornecedores, eram restituídas essas mesmas importâncias e saldadas as contas.
ax) Os plafonds de confirming contratados pela sociedade insolvente não eram utilizados de forma correta e criteriosa, mas tão só em prol das sociedades C..., Lda., e B..., Lda..
ay) As sociedades C..., Lda., e B..., Lda., à medida das suas necessidades de tesouraria, serviam-se da insolvente para obter o financiamento necessário ao desenvolvimento da respectiva actividade comercial, descapitalizando-a e aumentando as suas responsabilidades bancárias.
az) No que concerne à conta ... - B..., Lda. - Compra de Créditos, cujo saldo ascende a €75.000,00, do extracto reportado a maio de 2023, resulta que a origem do saldo remonta a Dezembro de 2015, desconhecendo-se a sua causa e proveniência.
u) Da análise do balancete analítico, verifica-se a existência da conta ... "Accionistas/sócios - Outras Operações Passivas - Restantes Accionistas sócios - AA", com o saldo devedor de €46.638,75.
v) Da análise ao extracto da conta mencionada ba), resulta que eram contabilizados empréstimos da sócia à sociedade, empréstimos da sociedade à sócia e diversos pagamentos efectuados pela própria por conta da sociedade e vice-versa sendo que, no início do exercício de 2022, o saldo era credor em €2.481,33, demostrando a existência de uma dívida da referida importância da sociedade à sócia.
w) A situação descrita em bb) inverteu-se no decurso do exercício de 2022 e 2023, pois, em Maio de 2023, a conta em causa regista um saldo devedor de €46.638,75, sem qualquer justificação para o efeito.
x) A insolvente transferiu um montante superior a €375.000,00, em benefício de sociedades terceiras, nas quais BB detêm interesse directo, frustrando o pagamento aos credores da sociedade, maioritariamente entidades bancárias.
y) Com o descrito em bd), a A..., Unipessoal, Lda., agravou a situação de insolvência, através da contínua transferência de diversas quantias monetárias, não documentadas como gastos, descapitalizando a sociedade e aumentando o endividamento à banca, com recurso a operações de confirming para a sua concretização.
z) O montante retirado da sociedade a favor de terceiros permitiria o pagamento de mais de 70% dos créditos reconhecidos e descritos em y).
aa) O Requerido BB era quem dava instruções aos trabalhadores.
bh) Em Dezembro de 2022, foi realizada uma transferência da conta bancária da Requerida/gerente AA para conta bancária da sociedade insolvente dos montantes de €10.000,00 e €9.900,00.
bi) No mesmo mês, foi realizada uma transferência da conta bancária da sociedade para a conta bancária da Requerida/gerente AA de €1.600,00 e €2.000,00.
bj) Da contabilidade da insolvente resulta a existência de vários pagamentos respeitantes a despesas em nome da sociedade, realizados através da correspondente conta bancária, com recurso a cartão de débito em nome da Requerida/gerente AA (alterado por esta Relação, conforme fundamentação infra).
bk) Através de contacto telefónico, o Requerido BB foi informado que poderia consultar o acervo documental no escritório do Administrador da Insolvência, o que até à data, nunca veio a ser solicitado.
(mais se provou)
bl) O Requerido BB era quem actuava, em nome e no interesse da sociedade insolvente, junto de fornecedores e de clientes.
bm) Das reclamações apresentadas pelos credores Banco 2..., S.A., Banco 3..., Banco 4..., S.A. e Banco 5..., S.A., constam documentos assinados pela Requerida AA que, em representação da sociedade insolvente, assumiu obrigações de onde derivaram os créditos reconhecidos na lista mencionada em y).
bn) Dos documentos descritos em bm), existem documentos outorgados pela Requerida AA que foram objecto de "termo de autenticação" e "reconhecimento da sua assinatura - cfr. documentos juntos aos autos com o requerimento com ref 45923824, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
B) FACTOS NÃO PROVADOS
1- A Requerida AA nunca haja realizado qualquer pagamento ou dado ordem para ser realizada alguma transferência bancária.
2- O(A) Exm(a) Sr(a) Administrador(a) da Insolvência nunca tenha analisado o ano de 2023.
3- O Requerido BB não tenha acedido à contabilidade da insolvente por a mesma se encontrar na posse do(a) Exm(a) Sr(a) Administrador(a) da Insolvência.
A restante matéria de facto alegada não tem qualquer relevância para a decisão da causa, nomeadamente por constar da mesma conceitos jurídicos, conclusivos ou repetidos.
***
A recorrente AA manifesta discordância com o julgamento da matéria de facto constante dos pontos bj) da matéria de facto julgada provada, e inversamente, 1) da matéria julgada não provada, que sustenta não poder o primeiro ser considerado provado nesses precisos termos e o segundo inverter-se para provado, transitando para a factualidade considerada provada. A decisão sobre matéria de facto pode ser alterada pela Relação, nos termos do art. 662º, n.º 1 CPC quando, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, como foi o caso nos autos, “(…) os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. A recorrente cumpre suficientemente os pressupostos de ordem formal exigidos pelo n.º 1.º art. 640º do CPC, tendo transcrito excertos dos depoimentos das testemunhas CC e EE, em que se baseia, referenciado os mesmos mediante a indicação do tempo de gravação. Em conformidade, a Relação reaprecia a prova, tendo para tal ouvido o registo fonográfico da prova produzida. A Mma. Juíza baseou a sua convicção quanto à prova do segmento ora impugnado do ponto bj) com base no relatório e do parecer de qualificação do Administrador da Insolvência, confirmados pelas suas declarações, concluindo que face às transferências de valores, empréstimos e pagamentos espelhados na contabilidade em nome da Requerida AA, também a esta terão de ser imputados actos de gestão. Ora, sendo certo que os pagamentos realizados com recurso a cartão de débito em nome da recorrente se encontram perfeitamente documentados, já não há prova directa de que as transferências bancárias de contas da sociedade hajam também sido ordenadas por si, Trata-se de transferências realizadas através de sistema “homebanking“ que podem ser efectuadas por qualquer pessoa que possua os códigos necessários, sendo que segundo o depoimento das testemunhas CC e EE isso era feito pelo requerido BB e pelos funcionários sem necessidade de intervenção da recorrente. Vai, assim, alterado o ponto bj) sob impugnação, eliminando-se o segmento “bem como transferências bancárias de contas da sociedade também ordenadas pela própria”, fazendo-se no local próprio a alteração. Já quanto à inversão para provado da versão oposta constante do ponto 1) julgado não provado, aceita-se que a prova produzida tão pouco se mostra suficiente para garantir a sua realidade. Com efeito, a ´testemunha CC afirma que “Era de conhecimento comum na empresa que a AA era, de facto, a dona da empresa. A accionista apesar de não ser a pessoa que mandava, era, de facto, a acionista”. Ou seja, a recorrente participava do capital da sociedade, era gerente de direito, não se presumindo que se alheasse dos seus negócios e pagamentos de relevo efectuados pelo gerente de facto e não prestasse a sua concordância. Vai assim confirmada a não prova do ponto 1) julgado não provado.
Em sede de aplicação do direito aos factos que resultam demonstrados, a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita (artigo 185º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas -CIRE). A insolvência fortuita delimita-se pela negativa relativamente à culposa, verificando-se sempre que a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (artigo 186º, 1, do CIRE). Tem-se aqui em vista o comportamento do devedor na produção ou agravamento do estado de insolvência, procurando averiguar-se se existe um nexo de causalidade adequada entre os factos por aquele cometidos ou omitidos e a situação de insolvência ou o seu agravamento, bem como um nexo de imputação dessa situação à conduta do devedor, estabelecido a título de dolo (directo, necessário ou eventual) ou de culpa grave. Culpa esta que pode assumir a modalidade de negligência consciente, quando o agente prevê como possível a produção do resultado, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação e não toma as providências necessárias para o evitar, ou de negligência inconsciente, que ocorre nas situações em que o agente, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não chega sequer a conceber a possibilidade do facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação, se usasse da diligência devida (cfr. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, I, 3ª ed., págs. 459 a 463).
A culpa afere-se em abstracto, apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º, 2, do CCivil). Exige-se, porém, a culpa grave (ou culpa grosseira). Antunes Varela distingue entre culpa lata (grave ou grosseira), leve e levíssima. Segundo este autor, “A culpa lata (a que mais frequentemente se chama grave) consiste em não fazer o que faz a generalidade das pessoas, em não observar os cuidados que todos, em princípio, adoptam. A culpa leve seria a omissão da diligência normal (podendo o padrão de normalidade ser dado em termos subjectivos, concretos, ou em termos objectivos, abstractos). A culpa levíssima seria a omissão dos cuidados especiais que só as pessoas muito prudentes e escrupulosas observam” (cfr. Das Obrigações em Geral, Almedina, 9ª ed., pag. 598).
É a esta luz que terá que interpretar-se o mencionado nº 1 do art. 186º do CIRE. De acordo com tal normativo são, assim, requisitos da insolvência culposa:
1) o facto inerente à actuação, por acção ou omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência;
2) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave);
3) e o nexo causal entre aquela actuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
O mesmo artigo estabelece presunções com vista à qualificação da insolvência como culposa de um conjunto de circunstâncias e comportamentos elencados taxativamente nos n.ºs 2 e 3. O n.º 2 (aplicável, com as necessárias adaptações, às pessoas singulares por força do n.º 4) concretiza as situações em que a insolvência de pessoa colectiva há-de ser considerada culposa, de tal sorte que, apurada factualidade subsumível a qualquer das circunstâncias ali tipificadas, se presume juris et de jure que a insolvência é culposa, tal como resulta da expressão “considera-se sempre” (cfr., neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, “Quid Juris”, 2009, pág. 610; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Direito da Insolvência, 2.ª edição, pág. 272, e Raposo Subtil e outros ali citados). No n.º 3 estabelecem-se duas presunções juris tantum, ilidíveis mediante prova em contrário, relacionadas com o incumprimento do dever dos administradores, de direito ou de facto, de requerer a declaração de insolvência (alínea a) e da obrigação de elaboração das contas anuais, no prazo legal, sua fiscalização e depósito na conservatória do registo comercial (alínea b). Verificado algum destes factos, praticados pelo devedor, o juiz terá que decidir necessariamente no sentido da qualificação da insolvência como culposa, visto que ali está estabelecida uma presunção juris et de jure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo, por conseguinte a produção de prova em contrário.
As situações de presunção juris et de jure estão enunciadas no mencionado n.º 2, para o que ao caso vertente importa, nos seguintes termos:
“2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
(…)
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto.
A sentença apelada, face à factualidade julgada provada, entendeu verificados, quanto à hipótese vertente, os fundamentos enunciados nas transcritas alínea a) e f) do n.º 2 Com efeito, dúvidas não restam de que resultou demonstrada a retirada de montante superior a €375.000,00 da titularidade da sociedade insolvente e do alcance da actuação dos credores, com prejuízo para estes e para a satisfação dos seus créditos, o que os recorrentes não colocam em crise.
A questão a que ora importa responder é a de saber quem deve considerar-se afectado pela qualificação da insolvência com tais fundamentos. A recorrente AA, no pressuposto de que era uma mera gerente de facto da sociedade insolvente, sem que se demonstre a prática de actos de gestão de facto por parte da Recorrente, que acreditava e confiava que o seu ex-marido estaria a efectuar uma gestão criteriosa da sociedade insolvente, não preenche os pressupostos fixados no nº. 1 do artigo 186º do CIRE. Ora, tal posição não se afigura defensável, como a douta sentença recorrida muito bem explica:
Assim, para além de não ter resultado provado que a gestora de direito, AA, nenhum ato de gestão praticou na insolvente, mormente pagamento em nome desta, também tem sido entendido na jurisprudência que quem detém a qualidade de gerente ou administrador de direito deve ser abrangido pela qualificação da insolvência como culposa, ainda que a gerência de facto seja exercida por terceiro.
Com efeito, tem sido defendido que foi o próprio legislador quem quis - ao criar o instituto da insolvência culposa - responsabilizar os devedores e gestores/administradores, no pressuposto de que, quem assume determinadas funções, deve estar à altura de poder responder, em toda a linha. E, a previsão do artº 186º, nºs 1 e 2, CIRE não visou excluir os gestores de direito, que o não sejam de facto, mas, inversamente, estender a qualificação a actos praticados por gestores de facto e que a ignorância e o alheamento dos destinos da sociedade constituem, por si só, uma violação dos deveres gerais que se impõem ao gerente ou administrador da insolvente (previstos no artº 64º, nº 1, Código das Sociedades Comerciais). O gerente ou administrador de uma sociedade tem o especial dever de cuidado, de vigilância e de controle que, por inerência legal, lhe incumbem.
Pelo que, numa situação como a presente, em que a referida Requerida AA detém a qualidade de gestora única da insolvente, caso se conclua pela qualificação da insolvência como culposa, é manifesto que esta tem de a abranger, ainda que a gestão de facto fosse exercida por terceiro, pois a finalidade da lei, como se disse, foi alargar a responsabilização, incluindo quer os gerentes ou administradores de facto, quer os de direito, nos casos em que as funções não estão reunidas na mesma pessoa, e não restringi-la aos gerentes ou administradores de facto, com exclusão dos gerentes ou administradores de direito.
A este propósito a jurisprudência tem sido, pois, unânime em considerar que a qualidade de gerente ou administrador de direito permite-lhe acompanhar a vida da sociedade, inteirar-se do modo como é exercida a gerência ou administração, zelar pelo cumprimento dos deveres legais.
Por conseguinte, por via desta previsão, a qualificação abrange quer os gestores/administradores de direito (ou seja, os gestores/administradores legalmente designados constantes do contrato de sociedade e do registo comercial) e os gestores/administradores de facto (entendidos estes como as pessoas que praticam actos de gestão/administração sem que se encontrem legalmente nomeados como titulares do cargo que exercem).
O espírito da lei foi no sentido de alargar as consequências da qualificação da insolvência ao gestor/administrador de facto, sem excluir as consequências ao gestor/administrador de direito (veja-se, entre outros, os acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-12-2019 e 26-09-2022; os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 12-10-2023 e 26-10-2023, disponíveis em www.dgsi.pt).
Destarte, a questão suscitada sobre a Requerida AA de ser, ou não, apenas gestora de direito, face à prova produzida, não releva.
O que vale por dizer que nada altera à afectação da recorrente a demonstração de que no período relevante teria sido apenas gerente de direito que não exerceu as funções de facto. A jurisprudência vem invariavelmente entendendo que a equiparação dos administradores de direito aos administradores de facto nos n.º 2 e 3 deste art.º 186.º do CIRE não visa isentar de responsabilidade os gerentes de direito que não exerçam as funções de facto, mas, ao invés, estender a responsabilidade legal aos actos praticados ou omitidos pelos administradores de facto. A tal respeito, escreveu-se no Ac. desta Relação e Secção de 26-11-2019 (Proc.º 524/14.2TYVNG-B.P1, Rel. Des. Lina Baptista, in www.dgsi.pt) “Tratando-se, ainda assim, de uma sociedade por quotas, os poderes, os deveres e os direitos atribuídos a este sócio único serão paralelamente os mesmos que pertencem aos sócios de todas as sociedades desta espécie, designadamente os poderes de administração e representação da sociedade nos termos previstos nos art.º 259.º do CSC. Obviamente que também aqui, tal como realça Ricardo Costa, o círculo autónomo de competências dos gerentes abrange todos os actos que, se violarem a lei, os estatutos ou o dever de diligência a que estão vinculados, afectam o cumprimento das suas funções de administração e podem ser fonte de responsabilidade. Perante estas considerações, podemos – desde já – concluir pela absoluta irrelevância jurídica da tese apresentada pela Recorrida nas suas contra-alegações, no sentido de que só “deu o seu nome para a constituição da empresa” e de que “ignorava por completo a realidade e andamento da B…, por confiar, plenamente, nos seus progenitores.” Tendo a Recorrida assumido a qualidade de sócia única da sociedade em causa estava obrigada a estes deveres de cuidado, designadamente a um dever de controlo ou vigilância organizativo-funcional e a todos os deveres legais específicos, designadamente provendo para que a sociedade mantivesse uma contabilidade organizada, pagasse as contribuições e impostos devidos e apresentando a empresa à insolvência se se verificassem os pressupostos legais para o efeito. A circunstância apurada de que a sociedade insolvente era uma empresa familiar cuja gerência de direito foi atribuída a D…, professora, estando à frente do negócio a sua mãe G… e o marido desta, sendo a G… quem geria de facto o negócio, dava ordens, contactava com os fornecedores e procedia às vendas, às compras e aos respectivos pagamentos, não tem a virtualidade de isentar a Recorrida do cumprimento destes deveres de cuidado. Como se sabe, ocorre com alguma frequência existirem indivíduos que desempenham as funções intrínsecas à qualidade de administradores ou gerentes sem para tal estarem habilitados. Tratam-se genericamente de pessoas que, sem título bastante, exercem na prática, de forma não subordinada e duradoura, funções próprias da administração/gerência. No entanto, apesar de comum, é uma situação ilegal nas sociedades por quotas, já que o art.º 252.º, n.º 5 e 6, do CSC prescreve que os gerentes não se podem fazer representar no exercício do seu cargo, excepto para a prática de determinados actos ou categorias de actos. Apenas os administradores legalmente instituídos podem agir em nome e por conta da sociedade, produzindo efeitos jurídicos que se projectem na esfera jurídica desta. Não obstante este carácter genericamente ilegal, o ordenamento jurídico português institui várias consequências jurídicas à correspondente situação de facto, numa perspectiva funcional, designadamente no art.º 186.º do CIRE. No entanto, a equiparação dos administradores de direito aos administradores de facto nos n.º 2 e 3 deste art.º 186.º do CIRE não visa isentar de responsabilidade os gerentes de direito que não exerçam as funções de facto, mas, ao invés, estender a responsabilidade legal aos actos praticados pelos administradores de facto”. Ainda no mesmo sentido, podem ver-se os Acs. desta R. P. de 06-09-2021, proc. n.º 908/12.0TYVNG-A.P1, bem como os citados pela douta decisão recorrida, da R.C. de 11-12-2012, proc. n.º 3945/08.6TBLRA-E.C1, da R.C. de 21-01-2014, proc. n.º 174/12.8TJCBR-C1, da R.C. de 14-04-2015, proc. n.º 1830/10.0TBFIG-Q.C1, todos in www.dgsi.pt. Irrecusável se tornando, pelo exposto, a afectação dos dois recorrentes pela qualificação da insolvência.
Sustentam ainda os recorrentes que não poderia o tribunal recorrido condená-los a indemnizar "os credores da devedora declarada insolvente considerando as forças dos respectivos patrimónios", porquanto a responsabilização não pode ser automática, tendo natureza extracontratual, a apurar na medida da verificação dos respectivos pressupostos gerais, cujo montante tem como limite máximo o valor dos créditos graduados. Com efeito, conforme dispõe a alínea e) do n.º 2 do art.º 189.º do CIRE, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve condenar as pessoas afectadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respectivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afectados. Exigindo, porém, o n.º 4 do mesmo art.º que ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efectuar em liquidação de sentença. Como se escreveu nos acórdãos desta Relação do Porto de 15-01-2019, proc. n.º 273/14.1T8VNG-A.P2 (Rel Des. Márcia Portela) e de 29-06-2017, aí citado (proc. 2603/15.0T8STS-A.P1, Rel Des. Filipe Caroço, ambos in www.dgsi.pt), “Visa a norma dissuadir o agente da prática de condutas dolosas ou gravemente culposas susceptíveis de criar ou agravar a situação de insolvência nas condições referidas no art.º 186º. É uma indemnização com uma evidente componente sancionatória. Numa simples interpretação literal, parece que o afectado pela qualificação fica obrigado a indemnizar os credores do insolvente pela totalidade do valor dos créditos que a massa insolvente, por insuficiência, não possa satisfazer, contanto que no património do afectado existam bens suficientes para o efeito; ou seja, responde pelos créditos graduados e reconhecidos na medida em que a massa insolvente seja insuficiente para os cobrir, tendo como limite o esvaziamento do seu próprio património. Não nos parece que assim possa ser interpretada a norma, desde logo pela violação do princípio constitucional e penal da proporcionalidade e da proibição do excesso. Teríamos então, por hipótese, a possibilidade de um gerente afectado pela qualificação a responder com toda a sua massa patrimonial, com todos os seus bens, por créditos sobre uma sociedade insolvente que podem atingir milhões de euros, apenas por se ter apropriado de um bem a ela pertencente no valor de cinco ou seis mil euros, dentro dos 3 anos que precederam o início do processo de insolvência. Sanção brutal e inaceitável, por ser desproporcional ao prejuízo causado, e inconstitucional. Na verdade, decorre do princípio do Estado de direito democrático conexionado com os direitos fundamentais, o princípio da proibição do excesso ou princípio da proporcionalidade em sentido amplo, que constitui, na realidade, um princípio de controlo a respeito da medida tomada pela autoridade pública - seja a autoridade administrativa, seja a autoridade judicial - no sentido de saber da sua conformidade aos princípios subconstitutivos da proibição do excesso, como sejam: (i) o princípio da conformidade ou adequação de meios; (ii) o princípio da exigibilidade ou da necessidade; (iii) o princípio da proporcionalidade em sentido estrito. De modo prático, pelo princípio da conformidade ou da adequação controla-se a relação de adequação medida/fim. Pelo princípio da proporcionalidade em sentido estrito ou princípio da "justa medida" cuida-se de saber e avaliar, mediante um juízo de ponderação, se o meio utilizado é ou não proporcionado em relação ao fim. Saber se, no sopeso entre as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim ou fins, ocorre um equilíbrio ou, ao invés, são "desmedidas" (excessivas) as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim ou fins. O princípio da exigibilidade ou da necessidade (também conhecido pelo princípio da menor ingerência possível) coloca a tónica na ideia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível, exigindo-se, por isso, de quem toma a medida, a prova de que, para a obtenção de determinados fins não é possível adoptar outro meio menos oneroso para o cidadão. A liberdade com que devemos interpretar e aplicar as regras de direito leva-nos a esclarecer o sentido daquela norma, numa interpretação constitucional, conforme aos citados princípios (art.º 5º, nº 3, do Código de Processo Civil)”.
Daqui resulta que a proporcionalidade para determinar o valor da indemnização não tem a ver com a concreta situação económica dos responsáveis, mas antes com a medida em que a actuação do gerente afectado tenha dado causa a uma concreta diminuição do valor dos bens da massa insolvente, por ser-lhe alheia a dissipação do remanescente do património da sociedade insolvente, justificando-se ver nessa medida limitada a sua responsabilidade. A indemnização a suportar deve aproximar-se do montante dos danos causados pelo comportamento do afectado que conduziu à qualificação da insolvência, correspondendo o prejuízo dos credores ao valor dos seus créditos contra a empresa insolvente. A responsabilização dos gerentes compreende-se, conforme sublinha Luís Menezes Leitão, (“Direito da Insolvência”, Junho de 2018, 8ª edição, página 292)“(...) devido à culpa do devedor, e dos seus administradores de direito e de facto, em relação à frustração dos créditos que a insolvência provoca nos credores, o que constitui fundamento de responsabilidade civil, nos termos gerais (artigo 483º do Código Civil)”.
A obrigação de indemnização visa a remoção do dano imputado ao respectivo sujeito (artº 562 do Código Civil). E em matéria de cálculo da indemnização em dinheiro, rege o n.º2 do art. 566º do C. Civil, que consagra a teoria da diferença, segundo a qual, o montante da indemnização se deve medir pela "diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos".
Neste enquadramento, não tinha o tribunal recorrido que levar a cabo quaisquer diligências no sentido de indagar da capacidade económica e financeira dos recorrentes, que não é aqui critério relevante. E não resultando da factualidade provada que parte dos prejuízos suportados pelos credores sempre se verificariam, independentemente da actuação dos recorrentes, não faz sentido limitá-los aquém do montante dos créditos não satisfeitos.
Nenhum reparo merece, pelo exposto, a douta sentença recorrida, que ora se impõe confirmar.

Decisão.
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedentes as apelações, em função do que confirmam a sentença recorrida.
Custas em ambas as instâncias pelos apelantes.

Porto, 22/10/2024
João Proença
Rodrigues Pires
Artur Dionísio Oliveira