Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1285/23.0T8PVZ-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: REVELIA
PLURALIDADE DE RÉUS
PRINCÍPIO DA CONCENTRAÇÃO DA DEFESA NA CONTESTAÇÃO
ARTICULADO SUPERVENIENTE
Nº do Documento: RP202411111285/23.0T8PVZ-A.P1
Data do Acordão: 11/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Em caso de pluralidade de réus, basta que um deles conteste para que, e relativamente aos factos que o mesmo impugnar, os factos articulados pelo autor não possam considerar-se como confessados/provados, mesmo em relação aos Réus que nenhuma contestação deduziram [artigos 567.º e 568.º al. a) do CPCivil].
II - A referida exceção não apaga, contudo, globalmente o efeito da revelia, pois que, apenas se afasta relativamente aos factos que o contestante em causa tiver impugnado, sendo que, a todos os demais se aplicará o disposto no artigo 574.º, nº 2 do CPCivil, ou seja, os que não hajam sido impugnados são dados como assentes, além de que também está fora da sua estatuição a possibilidade de a parte revel servir-se dos factos alegados pela contestante para outros fins processuais e, concretamente, para deduzir exceções.
III - Portanto, todos os meios de defesa, impugnações e exceções, que o réu tenha contra a pretensão formulada pelo autor devem, em princípio, ser deduzidos na contestação (cf. artigo 572.º nº 1 do CPCivil), sendo que, este principio é excecionado nos casos de defesa diferida a que se refere o n.º 2 do mesmo inciso.
IV - Se o réu não contestante tiver conhecimento de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor pode, nas mesmas condições do réu contestante, apresentar articulado superveniente (cf. artigo 572.º, nº 3 do CPCivil).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1285/23.0T8PVZ-A.P1

Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim-J2



Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º- Adjunto: Des. Drª Teresa Sena Fonseca
2º- Adjunto: Des. Dr. Carlos Gil




Sumário
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I - RELATÓRIO

A...-Companhia de Seguros, S.A., com sede em Lisboa, no Largo ..., intentou contra B..., Lda., com sede social na Rua ..., AA, residente na Praceta ..., ... e C...–Companhia de Seguros, S.A., com sede social na Avenida ..., Lisboa, pedindo a condenação dos Réus a pagar-lhe a quantia de 70.484,00 €, acrescida de juros de mora à taxa legal contados desde a citação até total e efetivo pagamento nos termos e pelos fundamentos que constam da petição inicial.
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Devidamente citados todos os Réus, apenas o fizeram o Réu AA e a Ré C...–Companhia de Seguros, S.A..
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Em 16/05/2024 a Ré B..., Lda., apresentou nos autos um requerimento composto de 16 págs. Onde, além do mais, veio invocar a autoridade de caso julgado.
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Sobre tal requerimento veio a recair o seguinte despacho:
“O requerimento apresentado pela Ré B..., Lda., em 16-05-2024, com a refª 48932593, no qual, em síntese, é invocada “a figura da autoridade do caso julgado”, consubstancia uma contestação (art.º 571.º, n.º 1 e art.º 573.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
A apresentação de tal contestação é extemporânea (art.º 569.º, n.º 1 do Código de Processo Civil), não sendo processualmente admissível.
Assim, determina-se o desentranhamento do requerimento apresentado pela Ré B..., Lda., em 16-05-2024, com a refª 48932593.
Condena-se a Ré B..., Lda. a pagar as custas do incidente, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC (art.º 527.º do Código de Processo Civil e art.º 7.º, n.º 4 do Regulamento das Custas Processuais)”.
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Não se conformando com o assim decidido veio a Ré interpor o presente recurso formulando as seguintes conclusões:
1.ª Nos termos do disposto na al. a) do art.º 568º do CPC, não se verifica o efeito cominatório do art.º 567º, n.º 1, do mesmo corpo de leis, quando, havendo vários réus, algum deles contestar, relativamente aos factos que o contestante impugnar, dizendo-se, nesta hipótese, que é a que se coloca nos autos, que a revelia é relativa e, portanto, inoperante.
2.ª A situação jurídico-processual do réu revel no caso de contestação do corréu mantém-se incólume, subsistindo todos os seus poderes processuais, aplicando-se indistintamente o mencionado art.º 568º, a), do CPC a todas as situações de pluralidade de réus (arts. 32º, 33º e 36º do CPC), sendo certo que a exceção que a mesma comporta não é prejudicada por circunstâncias processuais supervenientes (desistência superveniente do autor relativamente ao réu contestante, posterior confissão de factos pelo corréu contestante mesmo quando por si anteriormente impugnados, confissão do pedido, transação ou absolvição da instância).
3.ª Em face da inoperância da revelia, o réu revel “é notificado para os atos processuais, nos termos do art.º 247º ou do art.º 249.º-1” e “é admitido a requerer os meios de prova que não tenham de ser necessariamente requeridos na contestação (art.º 572.º-d), como é o caso dos documentos (art.º 423º, nºs 2 e 3), da apresentação de coisas móveis ou imóveis (art.º 416.º-1) ou das declarações de parte (art.º 466º-1), a intervir, em contraditório, nos atos em que se produza prova arrolada pela contraparte ou pelo seu comparte (cf. o art.º 415º-2 e o n.º 1 da anotação ao art.º 415º) […] e a produzir alegações, quer de facto, quer de direito (art.º 604º-3-e)” – Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, vol. II, 2017, pg. 545.
4.ª Os factos alegados pela co-ré C... nos arts. 61 a 73 da contestação, bem como os documentos aí referidos, aproveitam à Ré Recorrente, nomeadamente na parte em que é invocada a sentença proferida pelo Tribunal do Trabalho de ... e o despacho de arquivamento do processo-crime pelo DIAP ..., com as consequências jurídicas implicadas nessas decisões finais, a primeira transitada em julgado.
5.ª Sem embargo da revelia, mantendo a recorrente todos os poderes processuais, tem a faculdade de deduzir exceções dilatórias e perentórias, mormente as de conhecimento oficioso, com base na matéria de facto alegada pela corré C....
6.ª Com efeito, o princípio da concentração dos meios de defesa na contestação é excecionado nos casos de defesa diferida previstos no n.º 2 do art.º 573º do CPC, entre os quais se encontram os meios de defesa de que o tribunal pode conhecer oficiosamente, que abrangem a impugnação de direito (arts. 5.º, n.º 3 e 608.º do CPC), as exceções dilatórias (art.º 578º do CPC) e a maioria das exceções perentórias (art.º 578.º do CPC)–cf. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, vol. II, 2017, pg. 566; Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, vol. II., 2022, pg. 150.
7.ª A essa luz, quando um dos réus é revel e o outro tenha alegado um facto em que se possa basear uma exceção perentória, o efeito desse facto é conhecido oficiosamente pelo tribunal mesmo em relação ao réu revel–nesse sentido Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, vol. II, 2017, pg. 587.
8.ª Sendo as questões de direito de conhecimento oficioso (art.º 5.º, n.º 3, do CPC), como é o caso da exceção de caso julgado, não preclude à Ré Recorrente, seja ela revel ou não, a possibilidade de a invocar a todo o tempo, fundada nos factos introduzidos pela corré C... na sua contestação.
9.ª A arguição da exceção de caso julgado não se traduz numa contestação extemporânea, e, como tal, inadmissível; enquanto exceção dilatória (art.º 577.º, al. i), do CPC), deve ser oficiosamente conhecida pelo tribunal (art.º 578.º do CPC) e, se for o caso, submetida à realização de diligências destinadas a confirmar, ou a infirmar, a sua existência.
10.ª Desdobrando-se a contestação, à semelhança do que sucede com a petição inicial, em introito, narração e conclusão (art.º 572.º do CPC), resulta claramente da leitura do requerimento apresentado pela Ré com a refª Citius 48932593 que não se está perante uma contestação, no sentido estrito do articulado de defesa previsto na Secção I do Capítulo III do CPC.
11.ª Nesse requerimento, a Ré Recorrente limitou-se, apenas, com base nos factos alegados pela corré C..., a arguir a exceção de caso julgado, que, sendo do conhecimento oficioso, podia ser arguida a todo o tempo, designadamente depois da contestação, ao abrigo do disposto no n.º 2, parte final, do art.º 573.º do CPC.
12.ª Consequentemente, não tem arrimo legal o desentranhamento do requerimento de 16-5-2024 (refª Citius 48932593) decretado pelo tribunal a quo: a exceção de caso julgado pode ser deduzida depois da contestação, cumprindo ao tribunal a quo dela conhecer mesmo que não tivesse sido invocada, por se tratar de questão submetida ao conhecimento oficioso.
13.ª O despacho recorrido violou as disposições legais supra enunciadas.
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Devidamente notificado contra-alegou a Autora concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
No seguimento destas é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se o requerimento apresentado pela apelante não contestante, em 16/05/2024 cai ou não dentro da factie species dos artigos 568.º, al. d) e 573.º, nº 2 do CPCivil.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A dinâmica factual a ter em consideração para a resolução da questão supra enunciada é a que resulta do relatório supra e que aqui se dá integralmente por reproduzida.
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III. O DIREITO
a)- saber se o requerimento apresentado pela apelante não contestante, em 16/05/2024, cai ou não dentro da factie species dos artigos 568.º, al. d) e 573.º, nº 2 do CPCivil.
Consultando o histórico processual dele resulta que:
-O Tribunal recorrido emitiu carta de citação da apelante para contestar a presente ação em 25/08/2023, com referência 451184798, tendo tal ato ocorrido em 29/08/2023;
- O prazo de 30 dias que a Ré dispunha para apresentar a contestação nos autos, mesmo após o 3º dia do seu término, precludiu em 03/10/2023;
- Nem nesse dia, nem nos dias posteriores a apelante apresentou qualquer contestação, requerimento ou sequer tomou posição no processo;
- Só passados mais de 6 meses, a apelante veio requerer a junção aos autos da procuração forense;
- E, só volvidos 2 meses sobre tal junção é que apelante apresentou o requerimento objeto do presente recurso e cujo desentranhamento foi ordenado pelo tribunal recorrido nos termos e pelos fundamentos que constam do despacho supratranscrito.
Do que se acaba de expor, dúvidas não existem de que a apelante esteve, num primeiro momento, numa situação de revelia absoluta, não contestou, nem deu qualquer sinal nos autos, tendo mais tarde constituído mandatário e apresentado o requerimento, cuja decisão que sobre ele recaiu, é agora objeto de recurso.
Efetivamente, nos termos do preceituado nos artigos 566.º e 567.º, nº 1 do CPCivil, se o réu, investido pela citação, no ónus de contestar, não deduzir qualquer defesa dentro do prazo legal, incorrerá em situação de revelia a qual, por via de regra, produz efeito probatório “considera[ndo]-se confessados os factos articulados pelo autor”.
Este comportamento omissivo do réu provoca pois o que tem sido denominado de confissão tácita, ficta ou presumida[1], a qual fica adquirida definitivamente no processo (com eficácia juris et de jure), não podendo este vir posteriormente negar os factos relativamente aos quais se manteve em total silêncio ou inércia.
E para desencadear essa consequência ou efeito probatório a lei adjetiva basta-se com a realização regular do ato de citação do réu e com a ausência de contestação.
No entanto, nem sempre o aludido efeito cominatório[2] resultante da revelia se produz, já que o art.º 568.º do CPCivil prevê, com cariz excecional, algumas limitações à enunciada regra, relevando, no que ao caso interessa, a situação prevista na sua alínea a), onde se dispõe que “[N]ão se aplica o disposto no artigo anterior quando, havendo vários réus, algum deles contestar, relativamente aos factos que o contestante impugnar”.
Portanto, de acordo com o transcrito inciso, havendo corréus, quando um deles conteste a ação, os factos por ele impugnados não podem ser considerados confessados em relação aos seus corréus revéis.
E compreende-se que assim seja, pretendendo-se com essa solução legal evitar uma eventual discrepância no julgamento da matéria de facto, obstando-se, por essa via, a que os factos articulados pelo autor sejam, no mesmo processo, considerados confessados quanto a uns réus e impugnados quanto a outros.[3]
Acontece que, esta previsão significa que o réu não contestante beneficia da contestação do corréu, mas apenas quanto aos factos que este tenha impugnado, valendo a previsão quer para o litisconsórcio necessário, quer para o litisconsórcio voluntário.
Como se evidencia do requerimento apresentado pela apelante todo ele orbita na invocação da exceção da autoridade de caso julgado.
Sustenta a recorrente que os factos alegados pela corré C..., Lda. nos arts. 61º a 73º da sua contestação, bem como os documentos aí referidos, lhe aproveitam, nomeadamente na parte em que é invocada a sentença proferida pelo Tribunal do Trabalho de ... e o despacho de arquivamento do processo-crime pelo DIAP ..., com as consequências jurídicas implicadas nessas decisões finais, a primeira transitada em julgado.
Salvo o devido respeito, quer-nos parecer existir algum equívoco por parte da apelante.
Como já supra se referiu a exceção a que se refere a al. a) do citado artigo 568.º do CPCivil quer apenas significar que a apelante não contestante beneficia da contestação da Ré C..., Lda. apenas quanto aos factos que esta tenha impugnado, ou seja, que em relação a esses (aos impugnados pela citada Ré) não se verifica o efeito cominatório semipleno nos moldes suprarreferidos, isto é, a confissão ficta dos mesmos.
Ora, nos citados artigos da contestação a Ré C..., Ldª limita-se, quase na íntegra, a fazer uma descrição dos factos que foram dados como provados no processo que correu seus termos sob o n.º 2327/17.3T8MAI, pelo Tribunal do Trabalho de ...–Juiz 1., ou seja, aí a referida Ré nada impugna por referência ao articulado na petição inicial, aliás, em retas contas, apenas nos artigos 76º a 78º a referida Ré impugna os artigos 18º, 19, 21º, 29º e 14 da petição e, portanto, só a estes se aplicaria referida exceção.
Bom, mas obtempera a apelante que, sem embargo da revelia, mantém todos os poderes processuais e, concretamente, a faculdade de deduzir exceções dilatórias e perentórias, mormente as de conhecimento oficioso, com base na matéria de facto alegada pela corré C..., Lda., mais alegando que os factos alegados por esta corré nos arts. 61º a 73º da contestação, bem como os documentos aí referidos, lhe aproveitam, nomeadamente na parte em que é invocada a sentença proferida pelo Tribunal do Trabalho de ... e o despacho de arquivamento do processo-crime pelo DIAP ..., com as consequências jurídicas implicadas nessas decisões finais, a primeira transitada em julgado.
Mas, salvo o devido respeito, a apelante confunde novamente coisas distintas.
Na verdade, uma coisa é ela poder beneficiar da contestação da corré C..., Lda. nos termos que acima se deixaram expostos, isto é, relativamente aos factos impugnados pela referida contestante, outra coisa é, com base em factos alegados pela referida Ré, poder invocar exceções dilatórias ou perentórias ou mesmo beneficiar das exceções invocadas por aquela.
Com efeito, a defesa por exceção deduzida pelo único réu contestante não aproveita ao réu que não contestou[4], pois não se trata de factos articulados pelo autor impugnados especificamente pelo contestante, ou seja, está-se fora do âmbito da exceção da al. a) do citado artigo 568.º.
Neste sentido afirmam também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa[5], “(…) importa notar que este benefício concedido aos réus revéis se circunscreve à matéria impugnada pelo réu contestante. Por isso, os factos da petição inicial que não hajam sido efetivamente impugnados consideram-se confessados em relação a todos os réus (al. a) e art. 574.º, nº 2). Por outro lado, exceções eventualmente deduzidas pelo réu contestante, sobremaneira as de caráter inoficioso, apenas a este aproveitam” (negrito e sublinhados nossos).
É verdade que nas situações de revelia inoperante, o réu revel “é notificado para os atos processuais, nos termos do art.º 247.º ou do art.º 249.º-1” e “é admitido a requerer os meios de prova que não tenham de ser necessariamente requeridos na contestação (art.º 572.º-d), como é o caso dos documentos (art.º 423.º, nºs 2 e 3), da apresentação de coisas móveis ou imóveis (art.º 416.º-1) ou das declarações de parte (art.º 466.º-1), a intervir, em contraditório, nos atos em que se produza prova arrolada pela contraparte ou pelo seu comparte (cf. o art.º 415.º-2 e o n.º 1 da anotação ao art.º 415.º) […] e a produzir alegações, quer de facto, quer de direito (art.º 604.º-3-e)”.[6]
Todavia, no caso em apreço, e ao contrário do que parece pressupor a apelante, não se verifica, em relação a si, uma situação de revelia inoperante.
Com efeito, não é pelo simples facto de a Ré C..., Lda. ter contestado, assim como o Réu AA, que se verifica uma situação de revelia inoperante em relação à apelante, ou seja, que se apaga globalmente o efeito da revelia a ela concernente, pois que, apenas se afasta, como sobejamente já nos referimos, relativamente aos factos que aqueles contestantes tiverem impugnado, sendo que, a todos os demais se aplicará o disposto no artigo 574.º, nº 2 do CPCivil, ou seja, os que não hajam sido impugnados são dados como assentes, pelo que a eficácia da norma excecionante acaba por se limitar aos factos de interesse para o réu revel e para o réu contestante, dado não ser relevante, fora duma relação formal de representação, a impugnação de factos que, por só respeitarem ao revel, o réu contestante não tem interesse em contradizer.[7]
A questão, porém, que se pode colocar é esta outra:
Poderá o réu em situação de revelia operante apresentar articulado superveniente?
Preceitua o artigo 573.º do CPCivil sob a epígrafe “Oportunidade de dedução da defesa
1 - Toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado.
2 - Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.
Corolário do princípio da concentração é a preclusão. O réu tem o ónus de, na contestação, impugnar os factos alegados pelo autor, alegar os factos que sirvam de base a qualquer exceção dilatória ou perentória (com a única exceção das que forem supervenientes) e deduzir as exceções não previstas no nº 2. Se não o fizer, preclude a possibilidade de o fazer.
Portanto, todos os meios de defesa, impugnações e exceções, que o réu tenha contra a pretensão formulada pelo autor devem, em princípio, ser deduzidos na contestação. Este principio da concentração da defesa, que a necessidade dum processo quanto possível célere explica e que o n.º 1 estabelece, é excecionado nos casos de defesa diferida do n.º 2: meios de defesa supervenientes, abrangendo quer os casos em que o facto em que eles se baseiam se verifica supervenientemente (superveniência objetiva), quer aqueles em que esse facto é anterior à contestação, mas só posteriormente é conhecido pelo réu (superveniência subjetiva), devendo em ambos os casos ser alegado em articulado superveniente (art.º 588.º-2); meios de defesa, como é o caso da exceção da incompetência absoluta, que a lei expressamente admita posteriormente a contestação; meios de defesa de que o tribunal pode conhecer oficiosamente, abrangendo a impugnação de direito (art.º 5.º-3) e a maioria das exceções dilatórias (art.º 578.º) e perentórias (art.º 579.º), sem prejuízo de os factos em que as exceções se baseiem só poderem ser introduzidos no processo pelas partes (salvos casos excecionais em que é permitido o seu conhecimento oficioso: art.º 5.º-2-c), na fase dos articulados ou com os limites definidos para a alegação de facto em articulado superveniente.[8]
Pois bem, há doutrina e jurisprudência que admitem a possibilidade de o réu revel, em situação de revelia operante, apresentar “articulado superveniente”.
Miguel Mesquita[9], afirma “(…) o facto da inexistência da contestação não pode afastar a possibilidade da apresentação, pelo réu, de um articulado superveniente. (…) Apesar de a situação não se encontrar prevista na lei, nomeadamente no art.º 506.º, nº 3 (leia-se, atualmente, 588.º, nº 3), o demandado e o mesmo vale para o autor, poderá apresentar articulado após ser notificado para a fase de discussão da matéria de direito e antes de ser proferida sentença. O juiz deverá, então, resolver o problema da admissibilidade do articulado superveniente, reordenando o processo por força dos factos trazidos à lide e fazendo sempre respeitar o contraditório.
Também Lebre de Freitas/Isabel Alexandre[10] afirmam: “Como já apontava Manuel de Andrade, a apresentação da contestação, como aliás, de qualquer outro articulado fora do prazo, só é possível nos casos–raros–de justo impedimento em circunstância que, aliás, rigorosamente implicam pôr em causa, não o efeito de um comportamento omissivo, mas o ato positivo que não se praticou e de que se pretende não ter precludido o direito a praticá-lo, sem prejuízo ainda da invocação, em articulado superveniente (art.º 588.º, nº 2) do conhecimento tardio da inexistência dos factos (alegados pela parte contrária) que erradamente se tivessem julgado existentes.
Ou seja, estes autores, parecem também admitir a dedução de articulado superveniente, pelo réu em situação de revelia operante, desde que os factos supervenientes se destinem, a final, a demonstrar a inexistência de factos alegados pelo autor e, que seriam considerados “confessados” na sentença. Portanto, não admitirão a possibilidade de articulado superveniente fora deste circunstancialismo.
De resto, Manuel de Andrade[11] parece admitir a possibilidade de apresentação de articulado superveniente pelo réu em revelia operante, quando, estando em erro sobre certos factos alegados na petição inicial, julgando-os verdadeiros, estava equivocado quando à realidade desses factos.
Na jurisprudência, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa de 07/02/1969[12] citado pelo Prof. Castro Mendes[13]O facto de os réus não terem apresentado contestação no prazo legal, após a citação, não os impedia de apresentarem posteriormente o seu articulado superveniente, desde que na verdade neles apenas mencionassem factos de interesse para a causa de que só tenham tido conhecimento posteriormente”.
Também o acórdão do TRLisboa de 30/11/2010[14] tem o seguinte sumário:
“1.-Se o réu não contestante tiver conhecimento de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do A., pode ter lugar articulado superveniente em que a parte a quem o facto é favorável o alegará.
2.-Seja a revelia absoluta ou relativa o réu revel pode, nas mesmas condições do réu contestante, apresentar articulado superveniente. É o que decorre do art.º 489.º, nº2 do CPC.
3.- Se é certo que o nº 1 do mesmo preceito consagra o princípio da concentração da defesa na contestação, o nº 2, consagra meios de defesa supervenientes abrangendo quer os casos em que o facto em que eles se baseiam se verifica supervenientemente (superveniência objetiva) quer aqueles em que esse facto é anterior à contestação mas só posteriormente é conhecido pelo Réu (superveniência subjetiva).
4.- E essa possibilidade do não contestante apresentar articulado superveniente tem sustentação legal, pois a referência feita naquele nº 2 “não só às exceções” mas também aos “meios de defesa” permite esta interpretação de que o Réu revel (seja a revelia absoluta ou relativa) pode apresentar articulado superveniente.
Ora, aderindo a este entendimento, poderia a apelante, na situação de revelia operante, deduzir articulado superveniente invocando a exceção da autoridade de caso julgado.
Acontece que, para isso, era necessário que estivesse alegada factualidade que, uma provada, levasse ao preenchimento da factie species do artigo 588.º, nºs 1 e 2 do CPCivil o que, manifestamente, não está.
Analisando.
Importa, desde logo, ter presente, que os factos a alegar como supervenientes hão de ser factos essenciais, pois que o art.º 588.º fala de factos constitutivos, modificativos e extintivos, e os factos instrumentais por si próprios não têm essas qualidades, além de que não carecem de alegação para serem tidos em consideração.
E hão de ser factos supervenientes-objetivamente, porque ocorridos depois do articulado em que faria sentido, se já ocorridos, terem sido alegados, ou porque ocorreram depois de todos os articulados; subjetivamente, se ocorreram anteriormente ao articulado em que faria sentido alegá-los, mas de que a parte só vem a ter conhecimento depois de findos os prazos normais para a sua alegação.
A admissibilidade da superveniência subjetiva exige a prova do desconhecimento dos factos– cf. art.º 588.º, nº 2. A parte há de tornar conhecidas no processo as razões pelas quais só depois dos prazos normais para a alegação dos factos constitutivos, modificativos ou extintivos que estejam em causa é que teve conhecimento dos factos, apresentando a prova dessas razões.
Ora, a apelante nada alegou, no requerimento que apresentou em juízo em 16/05/2024 no que se refere à superveniência subjetiva, única que aqui podia estar em causa, pois que, os factos alegados para sustentar a exceção da autoridade do caso julgado são anteriores à propositura da presente ação (cf. artigo 1º a 3º do requerimento apresentado em 16/05/2024).
Na verdade, a apelante apenas afirma que os factos foram trazidos ao processo pela corré C..., Lda. na contestação que apresentou, todavia, não diz que só com a consulta dessa contestação nos autos tomou conhecimento de tais factos.
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Refere ainda a apelante que, não obstante a situação de revelia tem a faculdade de deduzir exceções dilatórias e perentórias, mormente as de conhecimento oficioso, como seria o caso da autoridade de caso julgado.
Mas será que esta exceção é de conhecimento oficioso?
A este propósito escreve Rui Pinto: “Conexamente, ao contrário do que sucede com a existência de prévia sentença entre as partes, a qual é de conhecimento oficioso a fim de que o juiz possa aferir se há exceção de caso julgado-ex vi artigos 577.º, al. i), e 578.º, justamente-, a autoridade de caso julgado não é de conhecimento oficioso. E porquê? Porque, como se vê, ela resume-se à invocação de sentença anterior para se alegar factos principais que constituem a causa de pedir da ação ou em que se baseiam as exceções, respetivamente, de autor e réu. Ora, apenas às “partes cabe alegar” esses factos, como impõe o n.º 1 do artigo 5.º.” [15]
Contra este entendimento, poder-se-á argumentar que, podendo a exceção do caso julgado ser perspetivada em duas vertentes distintas, todavia se complementam.
Efetivamente, a fronteira entre as duas figuras define-se pelos seguintes fatores: i) com a “exceção do caso julgado” visa-se evitar o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito, ao passo que a figura da “autoridade do caso julgado” tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda-o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há de ser proferida; ii) com a “exceção do caso julgado” visa-se evitar que o órgão jurisdicional duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior, ao passo que na “autoridade do caso julgado”, o caso julgado material manifesta-se no seu aspeto positivo de proibição de contradição da decisão transitada.[16]
Como assim, sendo a exceção de caso julgado, de conhecimento oficioso é quanto basta para que o Tribunal possa apreciar os pressupostos de tal instituto, mesmo na sua vertente positiva.[17]
Além de que, se o objetivo do caso julgado é evitar decisões contraditórias, se deixarmos ao arbítrio da parte arguir ou não a exceção estamos a criar condições para tais contradições possam surgir com mais frequência.
Sem querer tomar posição nesta querela, a posição Rui Pinto também se mostra defensável suma vez que, é bem verdade, como este autor refere que na figura da autoridade de caso julgado a invocação da sentença devidamente transitada se destina essencialmente a sustentar a alegação de factos principais que constituem a causa de pedir da ação ou em que se baseiam as exceções, respetivamente, de autor e réu, sendo que, apenas às “partes cabe alegar” esses factos, como impõe o n.º 1 do artigo 5.º.”
Mas mesmo aceitando como boa a tese de que a exceção de autoridade de caso julgado é de conhecimento oficioso, daí não se pode extrair que isso conferia à apelante, numa situação de revelia operante e fora do contexto da dedução de um articulado superveniente nos moldes acima referidos, a possibilidade de vir invocar a referida exceção nos termos em que o fez no requerimento de 16/05/2024.
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Alega ainda, sob este conspecto, a apelante que, desdobrando-se a contestação, à semelhança do que sucede com a petição inicial, em introito, narração e conclusão (art.º 572ºº do CPC), resulta claramente da leitura do requerimento apresentado pela Ré com a refª Citius 48932593 que não se está perante uma contestação, no sentido estrito do articulado de defesa previsto na Secção I do Capítulo III do CPC.
Mas, salvo o devido respeito, também aqui se discorda da apelante.
Dúvidas não existem de que a contestação obedece à mesma estrutura formal da petição inicial.
Acontece que, a contestação-defesa pode revestir duas modalidades: defesa por impugnação, direta ou indireta, e defesa por exceção (artigo 571.º do CPCivil).
A impugnação é direta quando o réu contradiz os factos alegados pelo autor, a impugnação é indireta ou motivada quando o réu afirma que as coisas se passaram de modo parcialmente diverso e com outra significação jurídica.
Na defesa por exceção cabem os factos que obstam à apreciação do mérito da causa, e que conduzem, ou podem conduzir, à absolvição da instância ou à remessa do processo para o tribunal competente (defesa por exceção dilatória), e os factos impeditivos, extintivos ou modificativos do efeito jurídico visado pelo autor, que, procedendo, têm como consequência a absolvição total ou parcial do pedido (defesa por exceção perentória).
Ora, no requerimento apresentado a apelante limitou-se a apresentar uma defesa por exceção, nos termos supra expostos, introduzindo nos autos para o efeito um requerimento deveras sui generis, mas que não pode deixar de ser considerado uma verdadeira contestação.
Querendo fugir à nomenclatura de apelidar tal peça como contestação refere:
“EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ DE DIREITO,
“B..., Lda., co-R. nos autos acima identificados, em que é A. A... –Companhia de Seguros, S. A., vem dizer o que se segue”:
Depois, de forma desenvolvida, aduz a factualidade onde estriba a exceção de autoridade do caso julgado.
E, por último, querendo contornar a formulação de qualquer conclusão no fim dessa peça, não apresenta nenhuma, esquecendo, todavia, que tal formulação já antecipadamente a tinha vertido nos artigos 59º a 61º e, concretamente, do artigo 59ª cuja redação é a seguinte:
”Estando adquiridos para o processo os factos em que as excepções peremptórias assentam–no caso sub judice os factos foram trazidos ao processo pela co-Ré C... (cfr. doc. n.º 4 da contestação)–deve o tribunal oficiosamente deles retirar o efeito que produziram (…)”.
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Aqui chegados, nada temos a censurar à decisão recorrida quando conclui que o requerimento em causa, apresentado pela apelante, consubstancia uma verdadeira contestação tendo, por consequência ordenado o seu desentranhamento.
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Improcedem, desta forma, todas as conclusões formuladas pela apelante e, com elas, o respetivo recurso.

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IV-DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas pela apelante (cf. artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
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Porto, 11/11/2024

Dr. Manuel Domingos Fernandes

Drª Teresa Sena Fonseca

Dr. Carlos Gil

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[1] A este propósito Lebre  de Freitas in A Confissão no Direito Probatório, Coimbra Editora, 1991, págs. 474 e seguintes,  opta antes pelo termo “admissão”.
[2] Efeito que, no entanto, não é pleno, mas tão-somente semipleno, posto que, na revelia operante, há confissão dos factos, mas não do direito.
[3] Cfr., sobre a questão, Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, ob. citada, pág. 541, Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, 2015, pág. 127 e Antunes Varela e demais Autores,  in Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, págs. 348 e seguinte, sendo que estes últimos autores apresentam ainda como justificação desse regime o propósito de facilitar aos réus a possibilidade de delegarem, expressa ou tacitamente, em algum ou alguns deles, o ónus de contestar no interesse de todos.
[4] Claro está, que beneficiará sempre das que sejam de conhecimento oficioso.
[5] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª Ed., p. 657.
[6] Cf. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, obra citada, vol. II, 2017, pg. 545.
[7] Cf. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, obra citada, vol. II, 2017, pg. 545.
[8]  Cf. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, obra citada, vol. II, 2017, pág. 566.
[9] In A Revelia em Processo Ordinário, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, AAVV, Vol. I, pág. 1102 e segs.
[10] Obra citada pág. 534.
[11] In Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Ed. 1979, pág. 163.
[12] In J.R., 15-58
[13] In Direito Processual Civil, Vol. II, Ed. AAFDL. pág.588.
[14] Consultável em www.dgsi.pt.
[15] In “Exceção e autoridade de caso julgado–algumas notas provisórias”, Revista Julgar Online, novembro 2018, pp. 28 e ss..
[16]  Cf. Lebre de Freitas e outros, CPC Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, 2001, pág. 325; Teixeira de Sousa, “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material”, in BMJ 325º, págs. 49 e seguintes.
[17] Cf. neste sentido Ac. desta Relação de 11/04/2021 Processo nº 1360/20.2T8PNF.P1, consultável em www.dgsi.pt..