Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8094/22.1T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MENDES COELHO
Descritores: ABUSO DO DIREITO
RESTRIÇÃO DO RECURSO A DETERMINADOS FUNDAMENTOS
CASO JULGADO
Nº do Documento: RP202411118094/22.1T8VNG.P1
Data do Acordão: 11/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O abuso do direito é uma exceção perentória de direito material e até de conhecimento oficioso e os termos em que dela se conhece, porque atinentes ao mérito da causa, fazem caso julgado se transitada em julgado a respetiva decisão (art. 619º nº1 do CPC);
II – Apesar da exceção de abuso do direito ser de conhecimento oficioso, tendo a mesma sido conhecida pelo tribunal a quo, o tribunal ad quem só pode dela conhecer se for suscitado o seu conhecimento em via de recurso;
III – No caso de decisão com vários fundamentos, a restrição do recurso a determinados fundamentos só é possível se tais fundamentos que se põem em causa puderem, só por si, determinar a alteração da parte dispositiva da decisão.
IV – Constituindo a parte da sentença que ficou excluída da impugnação, só por si, fundamento autónomo para o conhecimento de determinado pedido, fazendo-o improceder, o caso julgado com ela formado impõe-se ao tribunal de recurso, impondo a respetiva decisão, e leva à impossibilidade de apreciação de qualquer outro fundamento do recurso em relação a tal pedido, pois este outro fundamento, por causa daquela parte já transitada, não pode determinar só por si a alteração do decidido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº8094/22.1T8VNG.P1
(Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia – Juiz 2)




Relator: António Mendes Coelho
1º Adjunto: Ana Paula Amorim
2º Adjunto: Carlos Gil




Acordam no Tribunal da Relação do Porto:


I Relatório

“A..., Lda” propôs ação declarativa comum contra AA, pedindo o seguinte:
- que seja reconhecido que o réu incumpriu o contrato que celebrou com a autora em 29 de janeiro de 2015;
- que seja declarado resolvido tal contrato;
- que o réu seja condenado a pagar à autora a quantia de €6.482,70 a título de indemnização por incumprimento do contrato, acrescida de juros de mora, à taxa comercial, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento;
- que o réu seja condenado a pagar à autora a quantia total de €1.732,36 (mil setecentos e trinta e dois euros e trinta e seis cêntimos) a título de capital vencido relativamente às faturas FATCL 1722/000520 e FATCL 1722/000554, acrescida de juros de mora à taxa comercial desde a data do vencimento até efetivo e integral pagamento, os quais perfazem, à data da propositura da ação, a quantia de €48,01 (quarenta e oito euros e um cêntimo).
Alegou para tal, em síntese, o seguinte:
- dedica-se à produção, comercialização e distribuição de café e seus sucedâneos, sendo titular da marca “A...”; por sua vez, o réu explora, a título individual, um estabelecimento comercial sito Av. ..., ..., ...;
- nesse contexto, em 29 de janeiro de 2015 celebrou com o réu um contrato, pelo período de 60 meses, mediante o qual este se obrigou a adquirir-lhe, em regime de exclusividade, a quantidade global de 2400 kgs de café A..., LOTE MASSIMO, em quantitativos mínimos mensais de 40 kgs de café;
- como contrapartida da obrigação assumida pelo réu de adquirir a quantidade mínima mensal de 40 kgs de café, durante sessenta meses, em regime de exclusividade, concedeu-lhe um desconto antecipado no valor total de €9.985,00 (nove mil novecentos e oitenta e cinco euros), correspondente a €4,17 por cada quilo de café que o Réu se obrigou a adquirir;
- entregou ainda ao réu, que os recebeu e fez seus, os seguintes bens e equipamentos: uma máquina de café II Grupos Casadio, um depurador e um moinho de café, tudo no valor de €4.985,00 (quatro mil novecentos e oitenta e cinco euros).
- paralelamente, concedeu ao réu um desconto no valor de €5.000,00, em dinheiro, condicionado à aquisição e pagamento integral de 600 kgs de café, Lote Massimo;
- o réu, ao contrário do que se havia obrigado por força do contrato, não cumpriu a obrigação de lhe adquirir a quantidade mínima mensal de 40 kg de café e, perfeitos os 60 meses, não se mostravam adquiridos os 2400 kgs de café que foram contratualizados;
- além disso, não lhe pagou duas faturas, cada uma relativa a 30 kgs de café por si fornecidos, num total de €1.732,36;
- a 25 de julho de 2022, através de mandatário, dirigiu ao réu uma interpelação admonitória, mediante a qual lhe concedeu o prazo de 8 dias para sanar a mora e adquirir a quantidade de café que se encontrava em falta, sob pena de se considerar o contrato como definitivamente incumprido e resolvido; comunicou-lhe também que o valor indemnizatório pela sua não aquisição da restante quantidade de café em falta, no prazo de 8 dias, o faria incorrer no pagamento do preço de tal café, o que correspondia à quantia de €6.482,70 (seis mil quatrocentos e oitenta e dois euros e setenta cêntimos); e interpelou-o ainda para, no prazo máximo de 8 dias, proceder ao pagamento das faturas vencidas em 18 e 23 de maio de 2022, no valor total de € 1.732,36 (mil setecentos e trinta e dois euros e trinta e seis cêntimos);
- porém, o réu não adquiriu os 210 kgs de café que se encontravam em falta nem procedeu ao pagamento das faturas já vencidas.

O réu – na sequência de concessão de apoio judiciário nas modalidades de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e pagamento de compensação de patrono – apresentou contestação, defendendo a existência de abuso do direito por parte da autora e ainda a ineficácia da sua declaração resolutória e, como decorrência, a ilegitimidade da pretensão indemnizatória por si deduzida. Quanto às faturas referidas pela autora, impugnou que estas se encontrassem vencidas à data da instauração da ação. A final deduziu reconvenção, na qual pede a condenação da autora a pagar-lhe a quantia de 5.786,48 euros a título de indemnização por incumprimento do contrato, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data da notificação da contestação até ao efetivo pagamento.
Naquela sua peça processual, alegou, em síntese:
- aquando da celebração do contrato, a autora transmitiu-lhe que, apesar dos valores mínimos estabelecidos no acordo firmado, um eventual desvio aos montantes não iria ter qualquer consequência para si, uma vez que os valores aí estabelecidos eram meramente indicativos, interessando apenas que fosse dentro das suas necessidades encomendando café e liquidando o preço do mesmo;
- assim fazendo, encomendou a quantidade de café à medida da procura e da necessidade do seu estabelecimento, não tendo adquirido em Janeiro de 2020 o volume de 2400 kgs do café em causa, nem tendo adquirido em diversos meses a quantidade de café mensal estabelecida no acordo comercial celebrado;
- assim foi desde o início do acordo, nos meses de Janeiro, Fevereiro e Março de 2015, entre outros, conforme consta do documento 3 junto com a petição inicial, sem que esse facto tivesse ao longo dos anos motivado qualquer reparo, interpelação ou objeção por parte da autora, que permitiu e aceitou tal facto, continuando a fornecer-lhe a quantidade de café que este solicitava, fosse ela qual fosse; e assim foi até meados de 2022, altura em que o Réu tinha recebido 2190 kgs de café;
- a autora tinha conhecimento de que não conseguiria, como não conseguiu, adquirir o café nas quantidades acordadas, tendo aceitado, durante o período de vigência do contrato, as quantidades de café que foram sendo por si adquiridas, pelo que, atendendo ao lapso de tempo decorrido desde a verificação do incumprimento, a invocação da resolução do contrato pela autora por carta datada de 25/07/2022, ou seja, passados mais de 7 anos, foi ilegítima por abuso do direito;
- na carta de resolução que lhe foi enviada a 25/07/2022, a autora não concretizou, de forma suficiente, a gravidade do incumprimento que lhe imputou, pelo que tal carta não é idónea à resolução do contrato; tal carta integra uma imputação genérica que, por si só, não permite aferir a gravidade do alegado incumprimento, quer pela sua duração, quer pela diferença entre as aquisições previstas contratualmente e as efetivamente registadas;
- quanto às faturas alegadamente vencidas, os pagamentos eram feitos na modalidade de pagamento da fatura anterior contra a emissão de fatura pelo fornecimento acabado de fazer, sendo que no caso das faturas em causa havia encomendado 60Kg (e não duas vezes 30Kg) mas após a entrega dos referidos 60Kg não lhe foi mais fornecido qualquer quantidade de café, pelo que atenta a modalidade de pagamento referida não se encontra em incumprimento;
- a partir do mês de Junho de 2022, decidiu junto dos serviços da autora requisitar que lhe indicassem o valor e a quantidade de café que faltaria pagar e receber (210Kg) para se encontrar preenchida a quantidade de café que tinha ficado de adquirir;
- não obstante a autora e os seus serviços terem recebido os seus pedidos e de terem ficado de tratar e dar resposta ao solicitado, a verdade é que nunca atenderam ao pedido, não tendo feito a entrega do café solicitado, nem o contactaram mais;
- assim, ficou sem café para vender no seu espaço comercial, tendo sido obrigado a adquirir às suas custas quantidades de café para poder servir os seus clientes, despendendo a quantia de 786,48 euros, nos meses de Julho a Outubro, tudo em consequência daquele incumprimento por parte da autora;
- por outro lado, estando a autora obrigada ao pagamento de 5.000,00 euros por cada aquisição de 600kgs de café e tendo-lhe solicitado por diversas formas e vezes a entrega dos restantes 210 kgs de café sem que esta o tenha feito, a mesma inviabilizou que pudesse receber a última tranche de 5.000,00 euros, causando-lhe prejuízo nesse valor.
A autora replicou. Começou por defender a extemporaneidade da contestação e, depois, impugnou os factos excecionados pelo réu, defendeu que não se verifica o abuso do direito por este invocado e impugnou ainda os factos alegados em sede de reconvenção.
Dispensada a audiência prévia, foram proferidos despachos a considerar tempestiva a contestação e a admitir a reconvenção. Em seguida a eles, foi proferido despacho saneador e despacho a admitir os requerimentos probatórios.
Procedeu-se a julgamento, tendo na sua sequência sido proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos:
Face ao exposto, julga-se a ação parcialmente procedente e improcedente o pedido reconvencional deduzido e, em consequência:
1 – Declara-se resolvido o contrato celebrado entre A e R em 29-1-2015 a que se referem os presentes autos, condenando-se o R AA no pagamento à A da quantia de €1.732,36 (mil setecentos e trinta e dois euros e trinta e seis cêntimos) a título de capital vencido relativamente às faturas FATCL 1722/000520 e FATCL 1722/000554, acrescida de juros de mora desde 5-8-2022 até integral pagamento.
2- Absolve-se o R dos demais pedidos formulados.
3- Absolve-se a A do pedido reconvencional deduzido.

De tal sentença veio a autora interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

“A- A fls … foi proferida sentença que, tendo julgado a ação parcialmente procedente, por provada, condenou o Recorrido no pedido formulado na alínea B) e D) do petitório e absolveu o Recorrido dos pedidos formulados em A) e C.
B- Efetivamente, o Recorrido foi, apenas, condenado a pagar à Recorrente as faturas melhor descritas na alínea L) do elenco da matéria de facto dada como provada.
Todavia,
C- O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, quer na aplicação do direito aos factos quer na apreciação que fez relativamente a uma parte da matéria de facto que importa, primeiramente, corrigir.
D- O presente recurso versa, assim, sobre a matéria de facto, com reapreciação parcial da prova gravada e sobre a matéria de direito, sendo que, no que respeita à reapreciação da matéria de direito, a mesma impor-se-á independentemente de não virem a ser aceite as alterações à matéria de facto pretendidas.

Da alteração matéria de facto – alínea E)

E- Na sentença recorrida, o tribunal a quo deu como provado, na alínea E), a seguinte factualidade:
Aquando da celebração do contrato a A ao Réu, que apesar dos valores mínimos estabelecidos no acordo firmado, um eventual desvio aos montantes não iria ter qualquer consequência para o Réu, uma vez que os valores aí estabelecidos eram meramente indicativos, interessando apenas que o Recorrido fosse dentro das suas possibilidades encomendando café e liquidando o preço do mesmo.
F- Todavia, tal ponto mostra-se incorretamente julgado, uma vez que deveria ter sido dado como não provado.
G- Isto porque, não obstante o Tribunal a quo ter entendido que, durante a execução do contrato, as aquisições mensais de café efetuadas pelo Recorrido foram inferiores às contratadas e que a Recorrente terá tolerado esse comportamento do Réu, não invalida que o que tivesse efetivamente sido negociado e contratado entre Recorrente e Recorrido era a aquisição global de 2400 kgs, Lote Massimo, quantidade essa que o Recorrido deveria adquirir.
H- Para além do depoimento das testemunhas arroladas pela Recorrente, o próprio Réu, em sede de declarações de parte – depoimento prestado em 18/12/2023, entre as 14h05 e as 14h49, mais concretamente, nas passagens de gravação entre os minutos 00:02:56 e 00:06:24, e entre os minutos 00:34:22 e 00:37:15, o Recorrido demonstra,perfeitamente, ter conhecimento da obrigação de adquirir a quantidade mínima global de 2400 kgs de café, Lote Massimo.
I- Por conseguinte, atendendo ao trecho do depoimento do Recorrido constante das passagens de gravação supra identificadas e a conjugação das mesmas com o teor do contrato que o Recorrido negociou e outorgou com a Recorrente – ponto C) do elenco da matéria de facto dada como provada – deverá ser eliminado, do elenco da matéria de facto dada como provada, a alínea E), devendo a mesma passar a integrar o elenco da matéria de facto dada como não provada.

Da alteração à matéria de facto – alínea M)

J- Tomemos por referência a matéria de facto dada como provada, constante da alínea C), que resume as obrigações contratuais da Recorrente e Recorrido resultantes do contrato celebrado em 29/01/2015 e, bem assim, o cumprimento, por parte da Autora, das obrigações que resultaram, para si, do referido contrato – pontos D) e J) do elenco da matéria de facto dada como provada.
K- Assim, temos que o Recorrido se obrigou a adquirir à Recorrente um total de 2400 kgs de café, no prazo máximo de 05 anos, e que se encontrava em falta a aquisição de 210 kgs de café, dos 2400 kgs contratados – vide ponto C) do elenco da matéria de facto dada como provada
L- Temos, ainda, que o Recorrido teria direito a receber da Recorrente a quantia de €5.000,00, em dinheiro, a cada aquisição e pagamento integral de 600 kgs de café, isto é, assim que o Recorrido perfizesse aquisições de 600 kgs de café e tais aquisições se mostrassem pagas, constituir-se-ia o direito a receber da Recorrente a supra identificada quantia – vide ponto C), alínea c), do elenco da matéria de facto dada como provada.
M- O Tribunal a quo deu como provado, na alínea M) do elenco da matéria de facto dada como provada, o seguinte:
O Recorrido solicitou que esta lhe fornecesse os 210 kgs que se encontravam, mas impôs como condições dessa aquisição que o preço correspondesse ao preço praticado antes de um aumento entretanto verificado e que o mesmo fosse pago através do desconto de €5000,00 a que com essa aquisição teria direito por perfazer novamente 600 kgs adquiridos, fazendo encontro de contas e recebendo assim não esses €5.000,00 mas apenas a diferença deduzindo o referido preço dos 210 kgs de café em falta, o que a A. recusou.
N- Todavia, tal alínea mostra-se incompleta.
O- Efetivamente, resulta da prova produzida em audiência de julgamento que o Recorrido, para além de ter imposto como condição para o fornecimento dos últimos 210 kgs de café o prévio acerto de contas referido já referido em M) do elenco da matéria de facto dada como provada, exigiu, ainda, que o valor das faturas descritas do ponto L) do elenco da matéria de facto dada como provada fosse igualmente previamente descontado na sobredita quantia de €5.000,00.
61- O que resulta da análise conjugada dos seguintes depoimentos: 1) BB, prestado no dia 11/12/2024, entre as 10h34 e as 10h59, mais concretamente, entre os minutos 06:40 e 09:30; 2) CC, prestado no dia na 11/12/2023, entre as 11h00 e as 11h31, mais concretamente, entre os minutos 00:25:42 e 00:26:38 e 3) das declarações de parte do Réu, prestadas em 18/12/2023, entre as 14h05 e as 14h49, mais concretamente, entre os minutos 00:28:24 e 00:30:00.
P- Assim, da concatenação dos referidos depoimentos, impõe-se uma alteração ao elenco da mateira de facto dada como provada, devendo, por conseguinte, o ponto M) ser alterado no sentido de passar a ter a seguinte redação:

O Recorrido solicitou à A que esta lhe fornecesse os 210 kgs se encontravam em falta, mas impôs como condições dessa aquisição que o preço correspondesse ao preço praticado antes de um aumento entretanto verificado e que o mesmo fosse pago através do desconto de €5.000,00 a que com essa aquisição teria direito por perfazer novamente 600 kgs adquiridos, e, bem assim, com prévio abatimento, a esses mesmos €5.000,00, do débito decorrente das faturas em dívida descritas no ponto L), fazendo encontro de contas e recebendo apenas a diferença deduzindo o referido preço dos 210 kgs de café em falta e das faturas referidas no ponto L) do elenco da matéria de facto dada como provada, o que a A. recusou e disso informou o Réu.

Q- Da análise crítica à matéria de facto dada como provada, independentemente de ser ou não aceite a alteração supra referida quanto ao ponto M) do elenco da matéria de facto dada como provada, é forçoso concluir que se verificou um incumprimento, por parte do Recorrido, na obrigação de adquirir à Recorrente a quantidade total de 2400 kgs de café, já que não foram adquiridos 210 kgs.
R- E essa não aquisição resulta da postura do Recorrido espelhada em M), N) e O) do elenco da matéria de facto dada como provada.
S- Foi, pura e exclusivamente, pelo facto do Recorrido ter exigido como condição para a entrega, pela Autora, dos últimos 210 kgs de café contratados, um prévio acerto de contas a que sabia não ter direito – ver concatenação dos pontos C), alínea c), M), N) e O) do elenco da matéria de facto dada como provada – que de um total de 2400 kgs de café a que se obrigou não foram adquiridos 210 kgs.
T- Nem no prazo contratado nem no prazo adicionalmente concedido no âmbito da interpelação admonitória, transcrita no ponto N) do elenco da matéria de facto dada como provada.
U- Assim, é forçoso concluir que o Recorrido não só incumpriu com a sua obrigação de proceder ao pagamento das faturas descritas em L) do elenco da matéria de facto dada como provada como incumpriu, definitivamente, a sua obrigação de adquirir o total de 2400 kgs de café contratados à Autora, permanecendo em falta a aquisição de 210 kgs.
V- Ou seja, o Recorrido não cumpriu, pontualmente, as obrigações que para si advieram do contrato que celebrou com a Autora, incumprimento esse que não só se presume culposo, como a culpa resulta, cristalinamente, da matéria de facto dada como provada.
W- Efetivamente, repare-se que o Recorrido sabia que a postura que adotou, na parte final de execução do contrato – postura refletida no ponto M) do elenco da matéria de facto dada como provada – não tinha acolhimento no que havia contratado com a Recorrente, tanto mais que já tinha recebido da Recorrente um total de três tranchese €5.000,00, assim que procedeu à aquisição e pagamento das três primeiras aquisições de 600 kgs de café.
X- O Recorrido sabia que o que estava a impor à Autora, para aquisição dos últimos 210 kgs de café, era uma antecipação do recebimento de uma quantia cujo direito ao respetivo recebimento ainda não se havia constituído na sua esfera jurídica e que não resultava do contratualizado com a autora.
Y- Por conseguinte, optou o Recorrido por impedir, conscientemente, a entrega dos últimos 210 kgs de café, o que significa qualificar o comportamento vertido em M), N) e O) do elenco da matéria de facto dada como provada como um incumprimento definitivo e, como tal, declarar-se resolvido o contrato por motivos imputáveis ao Réu.
Z- Por conseguinte, assiste à Recorrente o direito a receber do Recorrido a indemnização prevista na cláusula sétima do contrato em causa nos autos, calculada nos artigos 50.º e 51.º da petição inicial, correspondente ao valor de €6.482,70 (seis mil quatrocentos e oitenta e dois euros e setenta cêntimos).
AA- Assim, deve ser a ação ser julgada totalmente procedente, por provada.

Normas jurídicas concretamente violadas pelo Tribunal a quo: 406.º, 798.º e 799.º do Código Civil.”


O réu apresentou contra-alegações, defendendo que deve ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Considerando o objeto do recurso delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC) e o conhecimento oficioso do caso julgado, são as seguintes as questões a tratar:
a) – apurar do efeito de trânsito em julgado existente em relação a parte não recorrida da sentença;
b) – apurar das alterações à matéria de facto propugnadas pela recorrente;
c) – apurar da eventual repercussão da reapreciação da decisão da matéria de facto na solução jurídica do caso, sendo nesta sede de averiguar da resolução contratual invocada pela autora e da indemnização por si peticionada com base nela.
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II – Fundamentação

Vamos ao tratamento da primeira questão enunciada.
O recurso tem como único objeto o segmento da sentença recorrida que decidiu da improcedência da quantia indemnizatória de 6.482,70 euros, também peticionada pela autora com fundamento na resolução do contrato que esta alegou ter efetuado.
A sentença recorrida, como se vê da fundamentação de direito dela constante, baseia a sua decisão de improcedência quanto a tal quantia indemnizatória em dois fundamentos jurídicos autónomos:
- um integrado pela consideração de que não se verificou qualquer incumprimento do contrato por parte do réu quanto ao dever por parte deste na aquisição do café (é o que resulta do que se expende naquela fundamentação de direito desde a página 14 até à página 16 de tal peça, considerando a sua paginação no “Citius”);
- e outro integrado pelo consideração da existência de abuso do direito por parte da autora na invocação daquele incumprimento (é o que resulta do que se expende naquela fundamentação de direito a partir do 2º terço da página 16, onde se começa por dizer “Mesmo que assim se não entendesse – entendendo-se como vinculativa a aquisição das quantidades previstas - sempre a invocação de incumprimento por parte da A consubstanciaria, como alegado, abuso de direito – art. 334º do CCivil”, até à página 18, onde se termina a dizer “Em suma, quanto ao dever de aquisição pelo R do café não se verifica qualquer incumprimento e mesmo que se entenda verificar-se incumprimento a sua invocação pela A consubstanciaria abuso de direito.”).
Cada um de tais fundamentos foram ali perfilhados para, de forma autónoma relativamente a cada um deles, conduzirem à improcedência da ação quanto àquela quantia indemnizatória.
O abuso do direito é uma exceção perentória de direito material e de conhecimento oficioso [no sentido da primeira vertente assinalada, vide, entre outros, Acórdãos do STJ de 24/10/2002 (proc. nº02A2958), de 2/3/2005 (proc. nº04B4671) e de 13/11/2002 (proc. nº02B2967) e da Relação de Lisboa de 10/10/2019 (proc. nº1970/15.0T8CSC-A.L1-2), todos disponíveis em www.dgsi.pt; no sentido do conhecimento oficioso, vide Acórdãos do STJ de 4/4/2002 (proc. nº849/01), 29/11/2001 (proc. nº3248/01), 11/12/12 (proc. nº116/07.2TBMCN.P1.S1) e 28/11/2013 (proc. nº161/09.3), também disponíveis em www.dgsi.pt, e, na doutrina, António Menezes Cordeiro, in “Código Civil Comentado I – Parte Geral”, coordenação de António Menezes Cordeiro, CIDP, Almedina 2020, anotação 41 ao art. 334º do C.Civil, págs. 941 e 942] e os termos em que dela se conhece, porque atinentes ao mérito da causa, fazem caso julgado se transitada em julgado a respetiva decisão (art. 619º nº1 do CPC).
Como se vê do recurso interposto – quer por análise de toda a sua motivação, quer por análise de todas as suas conclusões (que acima se transcreveram) –, a sentença recorrida, na parte em que fez improceder a ação quanto àquela quantia indemnizatória também com base no instituto do abuso do direito, não foi objeto de recurso.
Deste modo, quanto a tal fundamento e decisão dele decorrente, a sentença transitou em julgado.
Note-se que apesar da exceção de abuso do direito, como se disse acima, até ser de conhecimento oficioso, uma vez que esta foi conhecida pelo tribunal a quo (na sequência da sua invocação pelo réu) o tribunal ad quem só pode dela conhecer se for suscitado o seu conhecimento em via de recurso.
Ou seja, uma questão de conhecimento oficioso, logo que seja conhecida por um certo tribunal (no caso, o de primeira instância), só é cognoscível pelo tribunal de recurso se tal questão fizer parte do objeto do recurso, deixando assim de ser de conhecimento oficioso para o tribunal de recurso.
Por outro lado, e como ensinam João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa (in “Manual de Processo Civil”, vol. II, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, pág. 137), ao discorrerem sobre a parte dispositiva e fundamentos da decisão e, considerando o disposto no nº2 do art. 635º do CPC, sobre a restrição do objeto do recurso relativamente a decisão com vários fundamentos, “[a] possibilidade de restrição do fundamento do recurso não pode ser levada ao extremo de permitir um recurso sem possibilidade de efeito sobre a decisão”, acrescentando logo a seguirdepois de ali dar como exemplo ação de divórcio com fundamento em diferentes violações culposas de deveres conjugais cujo pedido procede e em que o Réu apenas recorre do fundamento referente a certa violação, deixando transitar o divórcio por violação de outro dever conjugal – que “[a] restrição aos fundamentos da decisão só é possível se os fundamentos cuja reapreciação é pedida puderem, só por si, determinar a alteração da parte dispositiva da decisão”.
Ora, uma vez que a parte da sentença que ficou excluída da impugnação constituiu, só por si, fundamento autónomo para o conhecimento daquele pedido indemnizatório, fazendo-o improceder, o caso julgado com ela formado impõe-se a este tribunal de recurso, impondo a respetiva decisão, e leva à impossibilidade de apreciação de qualquer outro fundamento do recurso em relação a tal pedido, pois este outro fundamento, por causa daquela parte já transitada, não pode determinar só por si a alteração do decidido.
Assim, na sequência de quanto se vem de referir e analisar, porque transitada em julgado a sentença na parte aludida, é de concluir pela improcedência do recurso, pois este só tinha por objeto o questionamento daquela quantia indemnizatória.

Face ao que ora se veio de decidir, fica prejudicado o tratamento das restantes questões enunciadas supra sob as alíneas b) e c).

As custas do recurso ficam a cargo da recorrente, pois nele decaiu (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC).
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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):

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III – Decisão

Por tudo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.


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Porto, 11/11/2024
Mendes Coelho
Ana Paula Amorim
Carlos Gil