Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
19506/21.1T8PRT-A,.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
PRAZO DE RENOVAÇÃO
RENOVAÇÃO AUTOMÁTICA
Nº do Documento: RP2023071219506/21.1T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 07/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O art. 1096º, nº 1, do Código Civil, na redação da Lei nº 13/2019, de 12 de fevereiro ( em vigor a partir de 13 de fevereiro 2019), permite que as partes convencionem a renovação automática do contrato e bem assim, sobre o prazo de renovação, contanto que este não seja inferior a um ano; nada dispondo sobre o prazo de renovação, considera-se que o mesmo é de três anos.
II - A limitação temporal mínima de três anos, do período de duração do contrato de arrendamento, após a sua renovação, não assume natureza imperativa, podendo, por isso, ser reduzido esse período até um ano, por acordo das partes.
III - O artigo 8° da Lei n° 1-A/2020, de 19 de Março (na versão resultante da Lei n.º 75-A/2020, de 30 de Dezembro de 2020), determinou que a produção de efeitos da oposição à renovação de contratos de arrendamento por parte do senhorio ficaria suspensa até 30 de junho de 2021, pelo que apenas a partir dessa data se verifica a caducidade do contrato de arrendamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Arrd-Cessação-OposiçãoRenovação -19506/21.1T8PRT-A.P1
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SUMÁRIO[1]( art. 663º/7 CPC ):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto ( 5ª secção judicial – 3ª Secção Cível )

I. Relatório
Na presente ação declarativa que segue a forma de processo comum em que figuram como:
- AUTORES: 1 – AA, viúva, contribuinte fiscal nº ..., C.C. nº ..., residente na Rua ..., ..., ... Porto;
2 – BB, solteira, maior, contribuinte fiscal nº ..., C.C. nº ..., residente na Rua ..., ... Porto;
3 – CC, solteiro, maior, contribuinte fiscal nº ..., C.C. nº ..., residente na Rua ..., ... Porto; e
- RÉU: DD, solteiro, maior, contribuinte fiscal nº ..., C.C. nº ..., residente na Travessa ..., ... Porto,
pedem os autores a condenação do réu:
a) a reconhecer que faz parte da herança de EE, de que os Autores são os únicos herdeiros, o prédio urbano sito na Travessa ..., no ..., Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº ...14, da freguesia ..., concelho do Porto, inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., concelho do Porto, sob o artigo ...11, onde se inclui uma habitação devidamente delimitada, sita no rés-do-chão, com entrada pelo número ...5 da Travessa ..., no ..., Porto;
b) a reconhecer que o contrato de arrendamento que existiu entre as partes cessou no dia 31 de Dezembro de 2020 - por oposição à renovação – caducidade.
c) a entregar aos Autores, livre de pessoas e bens, a habitação sita na Travessa ..., no ..., Porto;
d) a pagar aos Autores a quantia mensal de 250,00€ pela posse ilegítima e pela demora da restituição da habitação em causa, indemnização essa correspondente ao valor locativo desse espaço, a partir de 01 de Julho de 2021 até à entrega do mesmo aos Autores, elevado ao dobro, face à mora, nos termos do artigo 1045º, nº 2, do Código Civil, a que acrescem juros legais vencidos e vincendos, até integral pagamento.
Alegaram para o efeito e em síntese, que EE faleceu no dia .../.../2017, no estado de casado com a primeira Autora, com quem era casado no regime de comunhão de adquiridos e em segundas núpcias dele e primeiras núpcias dela, sem testamento, nem qualquer outra disposição de ultima vontade, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros a sua mulher e os seus dois filhos, aqui Autores, acima melhor identificadas, conforme Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros nº .../2017, do Arquivo Central do Porto, celebrado no dia 17 de Abril de 2017.
Os Autores são os únicos herdeiros da herança indivisa por óbito de EE, contribuinte fiscal número ....
Faz parte da herança indivisa por óbito de EE, o prédio urbano sito na Travessa ..., no ..., Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº ...14, da freguesia ..., concelho do Porto, inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., concelho do Porto, sob o artigo ...11.
Alegaram, ainda, que os Autores e o falecido EE, bem como, os antepossuidores, há mais de 20, 30, 40 ou mesmo 50 anos, habitam, celebram contratos de arrendamento e comodato, recebem rendas, efetuam obras, pagam impostos, relativamente ao prédio em causa, de forma contínua, sem oposição de quem quer que seja, comportando-se os Autores como donos e proprietários daquele imóvel e como tal sendo reconhecidos.
Por documento particular denominado de “contrato de arrendamento habitacional com prazo certo”, o falecido EE e a primeira Autora deram de arrendamento ao Réu uma habitação devidamente delimitada no prédio urbano já indicado, sita no rés-do-chão, com entrada pelo número ...5 da Travessa ..., no ..., Porto.
O contrato de arrendamento foi celebrado para a habitação com prazo certo, nos termos dos artigos 1095º a 1098º do Código Civil, pelo prazo de um ano, com início de 01 de Janeiro de 2017 e a terminar no último dia do mês de Dezembro de 2017, considerando-se prorrogado por períodos de um ano, enquanto não fosse denunciado nos termos legais.
Foi acordada a renda anual de 3.000,00€ (três mil euros), a ser paga mensalmente em duodécimos de 250,00€ (duzentos e cinquenta euros), no primeiro dia útil no mês anterior a que disser respeito, no domicílio do senhorio ou do seu legal representante.
O local arrendado destinava-se exclusivamente à habitação do inquilino.
Por carta registada com aviso de receção, datada de 13 de Julho de 2020, a primeira Autora, na qualidade de cabeça de casal da herança de seu marido, comunicou ao Réu, que relativamente ao contrato de arrendamento acima referido, “não pretendia a prorrogação do contrato de arrendamento em causa, nos termos do artigo 1097º, do Código Civil, pelo que o denuncio com efeitos para o último dia do mês de Dezembro de 2020”, concluindo que o mesmo arrendado deveria ser entregue livre de pessoas e bens.
Referem, ainda, que em resposta, o Réu comunicou à cabeça de casal, através de carta datada de 18 de Julho de 2020, que o contrato de arrendamento em causa se renovava pelo período de três anos, nos termos do artigo 1096º, nº 1, do Código Civil, o que aconteceu com a renovação de 01 de Janeiro de 2020, por mais três anos.
Por carta datada de 21 de Julho de 2020 a primeira Autora, na qualidade de cabeça de casal, comunicou ao Réu, que dava por reproduzida a sua carta de 13/07/2020, que o contrato de arrendamento já tinha uma duração superior a três anos, pelo que poderia ser sujeito a oposição à renovação, e que no mesmo ficou estipulado que as renovações eram de um ano.
Mais alegaram que o prazo de renovação automática previsto no art. 1096º CC é um prazo supletivo, uma vez que a norma refere que tal prazo se aplica na falta contratualmente prevista, o que não é o caso dos autos, onde ficou estipulado contratualmente, em sentido diverso, que as renovações seriam pelo período de um ano.
Concluem que face às renovações do contrato de arrendamento por períodos de um ano, a oposição à renovação do contrato de arrendamento foi atempada e produziu os seus efeitos legais.
Alegaram que devido à legislação relativa à pandemia do Covid-19, os efeitos da oposição à renovação do contrato de arrendamento ficaram suspensos até 30 de Junho de 2021. Face à não entrega da habitação por parte do Réu até ao dia 30 de Junho de 2021, através de carta datada de 20 de Julho de 2021, a primeira Autora, na qualidade de cabeça de casal, comunicou ao Réu, que a entrega da casa teria que ocorrer até ao dia 31 de Agosto de 2021, sob pena de ser intentada em Tribunal a competente ação.
O Réu não entregou aos Autores a habitação que lhe estava arrendada, continuando a ocupar a mesma, contra a vontade dos Autores, recusando-se a entregá-la.
Terminam por considerar que o Réu não dispõe de qualquer título de propriedade sobre a dita habitação ou que legitime a posse que dele tem vindo a fazer desde 30 de Junho de 2021, face à suspensão da entrega devido à pandemia do Covid-19, posse que
é insubsistente e de má-fé, o que justifica a demanda com a presente ação.
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Citado o réu contestou e defendeu-se por exceção e por impugnação.
Por exceção, suscitou a ilegitimidade dos autores por entender que estes, ainda que eventuais herdeiros, ainda não são proprietários do imóvel objeto do contrato de arrendamento.
Estando a propriedade do imóvel ainda na esfera da herança indivisa, deveria a presente ação ter sido interposta pela Herança Ilíquida e Indivisa do de cujus representada, nesta sede, por todos os seus herdeiros.
Em sede de impugnação alegaram que os Autores aceitaram conscientemente a renovação do contrato de arrendamento celebrado com o Réu, executando-o e confessando (ainda que tacitamente) a sua vigência após 31 de dezembro de 2020 (ou a partir de Junho de 2021, nos meses de Julho e Agosto, pois posteriormente anularam os recibos).
Nessa conformidade, deve tal declaração confessória dos A., ademais refletida no acervo documental aqui revelado, ser valorada como tal por este Tribunal, nos termos conjugados do Art.352.º, n.º 1 e 4 do Artigo 355.º e n.º 2 do Artigo 358.º, todos do Código Civil.
Consideram que o pedido formulado pelos Autores quanto à declaração da cessação do contrato de arrendamento celebrado com o Réu representa, pela sua censurabilidade, comportamento declaradamente abusivo, configurando, nesses termos, atuação enquadrada pelo instituto do abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
Considera que deve improceder o peticionado pelos A. referente ao pagamento, da renda em dobro, a título de indemnização pela alegada posse ilegítima do locado.
Defende, ainda, que é de três anos o prazo mínimo de renovação automática do contrato, fazendo apelo aos argumentos apresentados no estudo de Maria Olinda Garcia publicado na Revista “JULGAR” on line (março de 2019), o qual não se tinha esgotado na data em que o senhorio se veio opor à renovação do contrato, nos termos do art. 1097º CC..
Em reconvenção requer que se declare automaticamente renovado o contrato de arrendamento celebrado entre as partes na presente ação, pelo período de 3 (três) anos, nos termos do n.º 1 do artigo 1096.º do Código Civil.
Alegou, ainda, que os autores violaram o disposto no art. 1031º/b) CC, quando promoveram a realização de obras no 1º andar do prédio, as quais se prolongavam aos fins de semana e dias feriados, numa altura em que o réu se encontrava em teletrabalho e peticiona a indemnização no montante de €3.875,00.
Mais alegou estar a ser vítima de assédio no arrendamento, por parte do senhorio, peticionando ao abrigo do art. 13º-A do RAU uma indeminização no montante de €5.000,00.
Considera que os autores devem ser sancionados como litigantes de má-fé e condenados no pagamento de indemnização (€1.500,00 e ainda, 4000,00) e multa (€5.100,00).
Termina por pedir que se julgue procedente a exceção de ilegitimidade e se absolva o réu de todos os pedidos e se julgue ineficaz a oposição à renovação do contrato de arrendamento promovida pelos autores em 13 de julho de 2020.
A título de reconvenção, cumulativamente, pede que seja declarada judicialmente a renovação automática do contrato de arrendamento celebrado pelas partes pelo prazo de três anos, com início em 31 de dezembro de 2019 e termo em 31 de dezembro de 2023 e se julgue verificada a violação pelos autores da al. b) do art. 1031 do Código Civil, com a condenação solidária dos autores no pagamento ao réu a título de danos patrimoniais da quantia correspondente a 50% do valor da renda com inicio na segunda metade de 2019 até à presente data (31 meses), valor que liquida em €3.875,00 e ainda, se condenem os autores, solidariamente, nos termos do art. 13.º-A E 13.º-B, N.º 1 do NRAU a pagar ao réu a título de indemnização por danos não patrimoniais a quantia nunca inferior a €5.000,00 e aberto o incidente de condenação como litigante de má-fé dos autores, sejam condenados em multa de montante não inferior a €5.100,00 e em indemnização, ao réu, das despesas judiciais, liquidando em €1.500,00, a título de honorários a advogado e €4.000,00, com os prejuízos sofridos com a instauração da ação.
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Os autores apresentaram réplica, renovando os fundamentos da petição quanto à legitimidade para a ação e impugnaram os factos alegados em reconvenção e pediram a improcedência da exceção.
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Realizou-se audiência prévia.
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Elaborou-se o despacho saneador que julgou improcedente a exceção de ilegitimidade, reconhecendo a legitimidade dos autores e proferiu-se sentença que conheceu em parte do pedido, com a decisão que se transcreve:
“Pelo exposto, conhecendo parcialmente do mérito da causa, decido julgar improcedente a presente ação, absolvendo os réus do pedido.
Custas da ação, pelos autores”.
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Na mesma sede, saneador, relegou-se para decisão final, a apreciação da reconvenção e do incidente de litigância de má-fé.
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Os Autores vieram interpor recurso da sentença.
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Nas alegações que apresentaram os apelantes formularam as seguintes conclusões:
A) A douta sentença que deliberou julgar parcialmente do mérito da causa, decidindo julgar improcedente a presente ação, absolvendo o Réu do pedido, decorre duma incorreta interpretação e aplicação do n°1 do artigo 1096° do Código Civil, é injusta e ilegal, porque foi celebrado livremente entre as partes e validamente o contrato de arrendamento a prazo certo nos termos do artigo 1095° do Código Civil, pelo prazo de três anos renovado por períodos sucessivos de um ano enquanto não for denunciado por qualquer uma das partes.
B) Por carta datada de carta datada de 13 de Julho de 2020, remetida pela cabeça de casal da herança ao Réu, foi-lhe comunicado que nos termos do artigo 1097° do Código Civil a oposição à renovação subsequente do contrato, não pretendendo a prorrogação do contrato de arrendamento em causa, com denúncia do mesmo para o último dia do mês de dezembro de 2020.
C) A douta decisão recorrida assenta a absolvição do Réu exclusivamente na ideia de que a alteração do n° 1 do artigo 1096° pela Lei n° 13/2019, de 12 de Fevereiro, na vigência do período inicial de três anos do contrato, impede que as partes estejam vinculadas aos termos do contrato que subscreveram, isto é, impede que a sua renovação tenha ocorrido por apenas um ano, sufragando o raciocínio de uma parte da doutrina que entende que a supletividade da norma "se verifica apenas quanto as partes não tenham convencionado a exclusão da renovação", cuja interpretação de tal norma não se nos afigura correta.
D) A decisão recorrida não explica o salto lógico que seria necessário para fundamentar, sem qualquer apoio na letra da lei, nem no seu espírito, que uma norma que contém uma clara identificação da sua supletividade seria efetivamente supletiva na situação que conferiria menor proteção ao arrendatário (dando às partes a possibilidade de afastarem qualquer renovação) mas imperativa naquela que sempre lhe conferiria proteção, impedindo a renovação do contrato nos termos definidos pelas partes.
E) "Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso." – artigo 9°, nº 2, do Código Civil.
F) O contrato esteve vigente por mais de três anos, estando, portanto, ultrapassado o período mínimo de vigência dos contratos de arrendamento urbano destinado à habitação passíveis de renovação, consagrado no nº 3 do artigo 1097° do Código Civil, pelo que a correta interpretação do regime legal vigente impõe considerar que a oposição à renovação do contrato por mais um ano produziu efetivamente efeitos.
G) Interpretando, da forma que nos impõe o artigo 9° do Código Civil, o n° 1 do artigo 1096° do mesmo diploma, ensina Jorge Pinto Furtado que "Parece, pois, de pensar de tudo isto que é perfeitamente legítimo estipularem-se renovações de períodos iguais entre si, ainda que diferentes da duração contratual. Cremos, portanto, e em conclusão poder validamente estabelecer, ao celebrar-se o contrato, que este terá, necessariamente, uma duração de três anos, prorrogando-se, no seu termo, por sucessivas renovações, de dois ou de um ano, quatro ou cinco, como enfim se pretender..." (Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano, Almedina, 2019, página 579).
H) "Parece-nos que o legislador pretendeu que as partes fossem livres não apenas de afastar a renovação automática do contrato, mas também que fossem livres de, pretendendo que o contrato se renovasse automaticamente no seu termo, regular os termos em que essa mesma renovação ocorrerá, podendo estipular prazos diferentes - e menores - dos supletivamente fixados pela lei, e não, conforme poderia também interpretar-se da letra do preceito em análise - cuja redação pouco precisa gera estas dúvidas - um pacote de "pegar ou largar" (...)" (Jéssica Rodrigues Ferreira, Análise das principais alterações introduzidas pela Lei nº 13/2019, de 12 de fevereiro, aos regimes da denúncia e oposição à renovação dos contratos de arrendamento urbano para fins não habitacionais, Revista Eletrónica de Direito, fevereiro 2020, página 82, in https://ciie.up.pt/client/files/0000000001/5-artigo-iessica-ferreira 1584.pdf).
I) Também Edgar Alexandre Martins Valente (Arrendamento Urbano - Comentários às Alterações Legislativas introduzidas ao regime vigente - Almedina - 2019, página 31, em anotação ao artigo 1096.° do Código Civil) entende que "...as partes, à semelhança do que já sucedia na redação anterior da norma, podem definir regras distintas, designadamente estabelecendo a não renovação do contrato, ou a sua renovação por períodos diferentes dos referidos, atenta a natureza supletiva da norma em questão (...)”
J) De igual modo, também Isabel Rocha e Paulo Estima, em “Novo Regime do arrendamento Urbano”, 5ª edição, da Porto Editora, em notas ao artigo 1096º do Código Civil, a páginas 285 e 286, refere que “o prazo de renovação automática prevista na falta de outro prazo supletivo, uma vez que a norma refere que tal prazo se aplica na falta de outro prazo contratualmente previsto, Assim, podem as partes celebrar, por exemplo, um contrato de arrendamento habitacional pelo prazo de 4 anos, mas renovável automaticamente por períodos de 1 ano”.
K) Na vigência da versão da norma em apreciação decorrente da Lei n° 31/2012, de 14 de Agosto, onde se previa que "Salvo estipulação em contrário, o contrato celebrado com prazo certo renova-se automaticamente no seu termo e por períodos sucessivos de igual duração...", também nada impedia que as partes previssem um período para a renovação diferente do período inicial do contrato, vincando a ideia de total supletividade da norma que lhe é dada pela expressão inicial, a qual não sofreu alteração, mantendo-se atualmente o mesmo regime, em que prevalece disposição contratual expressa sobre a matéria ali prevista.
L) Entre outros é o entendimento do Acórdão da Relação de Lisboa, referente ao processo nº 8851/21.6T8LRS.L1-6.
M) "Na fixação do sentido e alcance de uma norma, a par da apreensão literal do texto, intervêm elementos lógicos de ordem sistemática, histórica e teleológica." (Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão de 04 de Maio de 2011, processo n° 4319/07.1TTLSB.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt), sendo certo que nenhum destes elementos lógicos permitem que a correta interpretação da norma sub judice seja feita nos termos em que a faz o Tribunal a quo.
N) A interpretação feita pela decisão recorrida parece ter ignorado a dimensão literal da norma e os seus elementos histórico e sistemático, a pretexto de um alegado elemento teleológico que falece por vários motivos, entre os quais o facto de tal norma não constar sequer da proposta de lei (n° 129/XIM) quando foi enunciada a respetiva exposição de motivos, não podendo, portanto, justificar-se a existência daquela com a sua essencialidade para o cumprimento destes.
O) A decisão recorrida é ilegal, violando o artigo 9° e, consequentemente, os artigos 1080°, 1096° n°1 e 3, e 1097° n°3, todos do Código Civil.
Termos em que deve ser julgado procedente o presente recurso, revogando a douta sentença recorrida, sendo a mesma substituída por outra que verifique a caducidade do contrato de arrendamento (por oposição à sua renovação do senhorio) e, consequentemente condene o Réu nos pedidos formulados.
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Não foi apresentada resposta ao recurso.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
A única questão a decidir consiste em saber se com a entrada em vigor da Lei 13/2019 de 12 de fevereiro e aplicação do regime previsto no art. 1096/1 CC, o prazo de renovação automática do contrato de arrendamento para habitação, com prazo certo, é de três anos e se por tal circunstância, a oposição à renovação não opera a caducidade do contrato, pelo facto do contrato se ter renovado.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
A) - EE faleceu no dia .../.../2017, no estado de casado com a autora AA, com quem era casado no regime de comunhão de adquiridos e em segundas núpcias dele e primeiras núpcias dela, sem testamento, nem qualquer outra disposição de ultima vontade, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros a sua mulher e os seus dois filhos, Autores. (v. Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros nº .../2017, do Arquivo Central do Porto, celebrado no dia 17 de abril de 2017 – artigo 1.º da petição inicial- aceite).
B) Os Autores são os únicos herdeiros da herança indivisa por óbito de EE, contribuinte fiscal número ... (artigo 2.º da petição inicial – aceite).
C)- Faz parte da herança indivisa por óbito de EE, o prédio urbano sito na Travessa ..., no ..., Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº ...14, da freguesia ..., concelho do Porto, inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., concelho do Porto, sob o artigo ...11 (artigo 3.º da petição inicial – aceite).
D)- Por documento particular, denominado de “contrato de arrendamento habitacional com prazo certo”, o falecido EE e a primeira autora e o réu declararam:

artigo 5.º da petição inicial e doc. 4).
E) O contrato de arrendamento foi celebrado, pelo prazo de um ano, com início de 01 de Janeiro de 2017 e a terminar no último dia do mês de Dezembro de 2017, considerando-se prorrogado por períodos de um ano, enquanto não fosse denunciado nos termos legais (artigo 6.º da petição inicial – aceite).
F) Foi acordada a renda anual de 3.000,00 € (três mil euros), ser paga mensalmente em duodécimos de 250,00 € (duzentos e cinquenta euros), no primeiro dia útil no mês anterior a que disser respeito, no domicílio do senhorio ou do seu legal representante (artigo 7.º da petição inicial – aceite).
G) Por carta registada com aviso de receção, datada de 13 de Julho de 2020, a primeira Autora, na qualidade de cabeça de casal da herança de seu marido, comunicou ao Réu, que relativamente ao contrato de arrendamento acima referido, “não pretendia a prorrogação do contrato de arrendamento em causa, nos termos do artigo 1097º, do Código Civil, pelo que o denuncio com efeitos para o último dia do mês de Dezembro de 2020”, concluindo que o mesmo arrendado deveria ser entregue livre de pessoas e bens – doc. nº 5 (artigo 9.º da petição inicial).
H) Em reposta, o réu comunicou à cabeça de casal, através de carta datada de 18 de Julho de 2020, além do mais, que:
“Aquando da última renovação automática do contrato de arrendamento, ocorrida em 01 de Janeiro de 2020, este renovou-se pelo novo prazo (mínimo) legal, i.e. 3 (três) anos.”
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3. O direito
Nas conclusões de recurso o apelante insurge-se contra a sentença que considerou ineficaz a oposição à renovação do contrato deduzida pelo senhorio, por se entender que estava ainda a decorrer o prazo de renovação do contrato.
Cumpre apurar se estando na presença de um contrato de arrendamento para habitação, com prazo certo, o prazo de renovação do contrato que se iniciou em 01 de janeiro de 2020 tem a duração de um ano ou de três anos e se a oposição à renovação deduzida pelo senhorio operou a caducidade do contrato.
De harmonia com o artigo 1094º/1 Código Civil o contrato de arrendamento urbano para habitação pode celebrar-se com prazo certo ou por duração indeterminada.
Relativamente aos contratos de duração indeterminada vigora o instituto da denúncia, com sede no artigo 1101º do CC. Quanto aos arrendamentos habitacionais com prazo certo, vigora o instituto da oposição à renovação deduzida pelo senhorio, previsto no artigo 1097º do CC.
A oposição à renovação consiste na declaração de um dos contraentes perante outro, comunicada com determinada antecedência, segundo os casos, de recursa de prorrogação do contrato com prazo certo, fazendo-o assim cessar no último dia da sua duração.
A oposição à renovação é, por natureza, um instituto específico dos contratos dotados de prorrogação automática; logo, quanto ao arrendamento de prédios urbanos, é privativo dos contratos com prazo certo[2].
O apelante não se insurge contra o segmento da sentença que qualificou o contrato como contrato de arrendamento para habitação, com prazo certo, o que aliás está admitido por acordo nos articulados.
Por outro lado, as partes admitem e aceitam, tal como já resultava da posição assumida nos articulados, que apesar de celebrado o contrato ao abrigo do regime jurídico previsto na Lei 31/2012 de 14 de agosto, tem imediata aplicação a lei nova, Lei n.º 13/2019 de 12 de fevereiro, nos termos do artigo 12.º, n.º 2, 2.ª parte, do Código Civil, por se tratar de questão que regula sobre o conteúdo da relação jurídica do arrendamento, aplicando-se, assim, às relações de arrendamento já constituídas e que se mantém, por se tratar de contratos de execução duradoura.

Prevê o art. 1096º/1 do CC, na redação da Lei n.º 13/2019 de 12 de fevereiro, sob a epígrafe “Renovação automática”:
“Salvo estipulação em contrário, o contrato celebrado com prazo certo renova-se automaticamente no seu termo e por períodos sucessivos de igual duração ou de três anos se esta for inferior, sem prejuízo do disposto no número seguinte”.
Na questão suscitada no recurso está em causa saber se a norma tem natureza imperativa, fixando um prazo mínimo de renovação do contrato - três anos -, ou, supletiva, permitindo que as partes fixem livremente o prazo de renovação do contrato, desde que respeitam o limite do art. 1095º/2 CC ( um ano).
Os apelantes defendem a natureza supletiva do prazo em causa, sendo eficaz a oposição à renovação para o termo do ano de 2020 e por isso, se insurgem contra a sentença, que adotando diferente posição considerou não ser eficaz a oposição à renovação, porque estava a decorrer o prazo de renovação de três anos, que se iniciou em janeiro de 2020.
A resposta a esta questão não tem obtida uniformidade da parte da doutrina e jurisprudência.
Na doutrina, no estudo[3] da Ex.ª Juiz Conselheira do Supremo Tribunal de Justiça Professora Doutora MARIA OLINDA GARCIA defende-se que: ”[u]ma breve leitura das alterações introduzidas nestas normas permite facilmente concluir que o legislador teve como propósito a proteção da estabilidade do arrendamento habitacional, limitando os direitos extintivos do locador e limitando a liberdade das partes para modelarem o conteúdo do contrato.[…]
Nos arrendamentos para habitação tendencialmente duradoura, a liberdade dos contratantes para modelarem o conteúdo do contrato sofre significativas limitações com as alterações introduzidas pela Lei n.º 13/2019.
Passa a existir um prazo mínimo de um ano (artigo 1095.º, n.º 2). Trata-se de uma norma imperativa que não admite convenção em contrário, pois se as partes convencionarem duração inferior, o prazo considera-se automaticamente amplidão para um ano.
Quanto à renovação do contrato, a nova redação do artigo 1096.º suscita alguma dificuldade interpretativa, nomeadamente quanto ao alcance da possibilidade de “estipulação em contrário” aí prevista. Por um lado, pode questionar-se se tal convenção poderá excluir a possibilidade de renovação do contrato ou apenas estabelecer um diferente prazo de renovação. Parece-nos que (na sequência do que já se verificava anteriormente) as partes poderão convencionar que o contrato não se renova no final do prazo inicial (o qual tem de ser de, pelo menos, um ano). O contrato caducará, assim, verificado esse termo.
Mais delicada é a questão de saber se as partes podem estipular um prazo de renovação inferior a 3 anos (hipótese em que o prazo legal de 3 anos teria natureza supletiva). Atendendo ao segmento literal que diz que o contrato se renova “por períodos sucessivos de igual duração”, pareceria poder concluir-se que, se o período inicial pode ser de 1 ou de 2 anos, as partes também teriam liberdade para convencionar igual prazo de renovação. Todavia, ao estabelecer o prazo de 3 anos para a renovação, caso o prazo de renovação seja inferior, parece ser de concluir que o legislador estabeleceu imperativamente um prazo mínimo de renovação. Afigura-se, assim, que a liberdade das partes só terá autónomo alcance normativo se o prazo de renovação estipulado for superior a 3 anos.
Conjugando esta disposição com o teor do artigo 1097.º, n.º 3, que impede que a oposição à renovação, por iniciativa do senhorio, opere antes de decorrerem 3 anos de duração do contrato, fica-se com a ideia de que o legislador pretende que o contrato tenha, efetivamente, uma vigência mínima de 3 anos (se for essa a vontade do arrendatário). Assim, o contrato só não terá duração mínima de 3 anos se o arrendatário se opuser à renovação do contrato no final do primeiro ou do segundo ano de vigência. No final destes períodos (tratando-se de contrato celebrado por 1 ano), o senhorio não terá direito de oposição à renovação. Tal direito extintivo cabe, assim, exclusivamente ao arrendatário antes de o contrato atingir 3 anos de vigência.
Se as partes não convencionarem a exclusão da renovação, o senhorio só poderá impedir que o contrato tenha uma duração inferior a 3 anos na hipótese que agora é criada pelo n.º 4 do artigo 1097.º, ou seja, em casos de necessidade da habitação pelo próprio ou pelos seus descendentes em primeiro grau.
Seguem esta posição os Ac. Rel. Guimarães 11 de fevereiro de 2021, Proc. 1423/20.4T8GMR.G1, Ac. Rel. Guimarães 08 de abril de 2021, Proc. 795/20.5T8VNF.G1, Ac. Rel. Guimarães 23 de março de 2023, Proc. 1824/22.3T8VCT.G1, Ac. Rel. Évora 10 de novembro de 2022, Proc. 983/22.0YLPRT.E1, Ac. Rel. Évora10 de novembro de 2022, Proc. 126/21.7T8ABF.E1 e Ac. Rel. Évora 30 de janeiro de 2023, Proc. 3934/21.5T8STB.E1 (com um voto de vencido), todos acessíveis em www.dgsi.pt .
A posição defendida assenta os seus fundamentos essencialmente numa interpretação teleológica da norma considerando os objetivos que a lei e as alterações introduzidas pretendiam alcançar. Considera-se que o legislador ao definir um período mínimo de renovação, pretendeu conferir uma maior proteção ao arrendatário, dotando o contrato de arrendamento de uma maior estabilidade e limitando a liberdade de estipulação das partes quanto a esta matéria. A liberdade de estipulação fica limitada à possibilidade de ser ou não convencionado a renovação automática do contrato sendo esse o significado que se atribui à expressão “salvo estipulação em contrário”. O prazo de renovação poderá ficar convencionado, desde que respeite o mínimo de três anos.
Numa outra linha de entendimento, situa-se a análise do Exmº Juíz Conselheiro PINTO FURTADO e de EDGAR MARTINS VALENTE.
Na interpretação da expressão “ou de três anos se esta for inferior” observa o Exmº Juíz Conselheiro PINTO FURTADO: ”[s]erá que, com ele, se pretendeu fixar renovações de nunca menos de três anos? Cremos que semelhante dúvida é efetivamente dissolvia pelo disposto no art. 1097º/3, na redação da mesma Reforma, segundo o qual “a oposição à primeira renovação do contrato, por parte do senhorio, apenas produz efeitos decorridos três anos da celebração do mesmo”.
O que o legislador agora pretendeu fixar foi apenas que, se a duração contratual estipulada fosse de dimensão inferior a três anos, o senhorio só poderia inicialmente lançar uma oposição à renovação quando preenchidos, no mínimo, três anos sobre a sua celebração.
Parece, pois, de pensar de tudo isto que é perfeitamente legítimo estipularem-se “renovações” de períodos iguais entre si, ainda que diferentes da duração contratual.
Cremos portanto e em conclusão poder validamente estabelecer, ao celebrar-se o contrato, que este terá, necessariamente, uma duração de três anos, prorrogando-se, no seu termo, por sucessivas renovações, de dois ou de um ano, quatro ou cinco, como enfim se pretender”[4].
EDGAR MARTINS VALENTE considera, por sua vez:”[…]em termos práticos, caso as partes celebrem contrato de arrendamento para habitação permanente pelo prazo certo de um ano sem convenção em sentido contrário, este, findo o prazo de um ano, renovar-se-á por um período de três anos, não sendo atualmente admissível renovação supletiva por período inferior, ao invés do que sucede se as partes celebrarem um contrato com a duração inicial de, por exemplo, quatro anos, findo os quais, o contrato se renovará por período de tempo de igual duração.
Note-se que as partes, à semelhança do que já sucedia na redação anterior da norma, podem definir regras distintas, designadamente estabelecendo a não renovação do contrato, ou a sua renovação por períodos diferentes dos referidos, atenta a natureza supletiva da norma em questão, conforme resulta da parte inicial do nº1 do presente artigo, tal significando que as referidas regras constantes do preceito alterado apenas serão aplicáveis na ausência de acordo ou estipulação contratual das partes em sentido diverso, sendo certo, como referido, que na ausência de qualquer disposição diversa das partes, o período mínimo de renovação do contrato é de três anos”[5].
Esta posição tem sido sustentada na jurisprudência, que sublinha o caráter supletivo da norma, nos Ac. Rel. Lisboa 17 de março de 2022, Proc. 8851/21.6T8LRS.L1-6, Ac. Rel. Lisboa 10 de janeiro de 2023, Proc. 1278/22.4YLPRT.L1-7, Ac. Rel. Lisboa 27 de abril de 2023, Proc. 1390/22.0YLPRT.L1-6, Ac. Rel. Porto 23 de março de 2023, Proc. 3966/21.3T8GDM.P1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
Argumenta-se, citando o Ac. Rel. Lisboa 17 de março de 2022: “Da comparação entre as duas versões [Lei 31/2012 e Lei 13/2019], conclui-se que a Lei 13/2019 limitou-se a aditar a expressão ou de três anos se esta for inferior à versão anterior, mantendo todo o restante preceito.
Ou seja e escalpelizando, em ambas as versões sucessivas, a regra é:
a) O contrato de arrendamento celebrado com prazo certo, renova-se automaticamente no seu termo;
b) Por períodos sucessivos de igual duração;
c) Constituem impedimento às duas regras anteriores, a estipulação distinta das partes
d) ou a circunstância de se enquadrarem os contratos celebrados em qualquer das situação previstas no art. 1095º, nº 3 do mesmo diploma (contratos para habitação não permanente ou para fins especiais transitórios, designadamente por motivos profissionais, de educação e formação ou turísticos, neles exarados).
Estas quatro conclusões são válidas perante qualquer uma das versões sucessivas do art. 1096º, nº1, de modo pacífico.
Ou seja e para o que agora releva, quer numa quer noutra das versões, se admite que as partes afastem a renovação automática do contrato celebrado ou prevejam período distinto (superior ou inferior) do inicial, após essa renovação.
A diferença encontra-se apenas no aditamento de uma limitação temporal à duração desse período de duração do contrato, após a renovação: não pode ser inferior a três anos, caso o período inicial de duração do contrato seja inferior a três anos.
Da letra da alteração legislativa de 2019 apenas se retira um efeito: nos contratos de arrendamento de duração inicial inferior a 3 anos, a renovação automática dos mesmos (quando opera), verifica-se por um período sucessivo de três anos (necessariamente maior do que o período inicial).
Trata-se de uma solução que «foge» à lógica da regra da renovação automática, fixando-se um período sucessivo extraordinário de três anos para um contrato de duração inicial inferior.
Mas foi a opção do legislador.
O passo seguinte constitui em apurar se a fixação por força de lei desse período sucessivo extraordinário de três anos constitui norma imperativa ou supletiva, ou seja, se as partes podem afastar tal regra, ao abrigo do princípio da liberdade de estipulação contratual.
Debalde encontramos resposta no seio da Lei 13/2019, pois da mesma apenas se retira que o seu objeto é o seguinte: A presente lei estabelece medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade.
A solução, na ausência de letra expressa, encontra-se na ponderação dos fins pretendidos com a alteração legislativa: a limitação imperativa à estipulação de períodos de renovação sucessiva inferiores a três anos corrige situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, reforça a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e protege arrendatários em situação de especial fragilidade?
Ora, parece-nos que a resposta há de ser negativa, pois nesse caso, o legislador «esqueceu-se» de proteger ou prosseguir tais fins com igual intensidade no período de duração inicial do contrato.
Efetivamente, a mesma Lei 13/2019 estabeleceu, como limite mínimo dessa duração o período de um ano, na redação dada ao nº 2 do art. 1095º do mesmo Código, sob a epígrafe Estipulação de prazo certo:
1 - O prazo deve constar de cláusula inserida no contrato.
2 - O prazo referido no número anterior não pode, contudo, ser inferior a um nem superior a 30 anos, considerando-se automaticamente ampliado ou reduzido aos referidos limites mínimo e máximo quando, respetivamente, fique aquém do primeiro ou ultrapasse o segundo.
E tal norma, pela sua própria natureza, assume força imperativa: a ampliação ou redução automática dos prazos mínimo e máximo de duração inicial para um e trinta anos, significa que esses limites mínimos e máximos não podem ser derrogados por estipulação das partes no contrato celebrado.
Ou seja e para o que agora releva, imperativo é que o contrato de arrendamento tenha a duração mínima de um ano.
Duração inicial ou sucessiva de um ano.
Não se antevendo da Lei 13/2019 qualquer intenção de conferir maior proteção ao arrendatário no período sucessivo daquela concedida no período inicial.
Desde logo, por não se demonstrar constituir o período sucessivo à renovação uma situação de maior desequilíbrio entre arrendatário e senhorio, de maior necessidade de segurança e estabilidade do arrendamento urbano e de maior fragilidade do arrendatário relativamente ao período inicial de duração do mesmo contrato de arrendamento.
Por fim, refira-se que o processo legislativo (disponível em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=42542) pouco esclarece a intenção do legislador, pois a alteração do art. 1096º tem origem em proposta de alteração do Grupo Parlamentar do Partido Socialista à Proposta de Lei nº 129/XIII/3, no seio da discussão na Comissão de Ambiente, Ordenamento do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação – sendo que a Proposta inicial do Governo em nada se referia a este preceito em concreto.
Ou seja, a alteração ao preceito surge no decurso da discussão parlamentar da Proposta de Lei, sem lograrmos apurar o fio condutor ou a intenção do legislador, no caso.
[…]
Não se demonstrando essa imperatividade, quer pela letra quer pelo espírito da Lei, vigora o princípio da liberdade contratual, estabelecido no art. 405º do Código Civil, no sentido de que as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos ou incluir neles as cláusulas que lhes aprouver, podendo inclusivamente reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei”.
Sublinhando a importância do elemento sistemático na interpretação do preceito, refere-se no Ac. Rel. Lisboa 17 de janeiro de 2023: “[e]m primeiro lugar, é patente que as partes são livres de estabelecer o prazo do arrendamento entre os prazos mínimos de um ano e máximo de trinta anos, conforme deflui do Artigo 1095º, nº2, do Código, na redação da Lei nº 13/2019, de 12.2.
Em segundo lugar, da ressalva inicial do nº 2 do Artigo 1096º (“Salvo estipulação em contrário”) decorre que as partes podem, ab initio, convencionar que o contrato de arrendamento não será renovado.
Em terceiro lugar, estipulando as partes que o contrato será renovável, são livres de estabelecer prazos diferenciados de renovação, sendo o prazo de três anos (introduzido pela Lei nº 13/2019) um prazo supletivo a aplicar nos casos em que as partes não concretizem o prazo da renovação (silêncio do contrato), apesar de preverem a renovação do contrato. De facto, se a lei permite que as partes afastem, de todo, a renovação, então também permite que esta tenha uma vigência diferenciada em caso de renovação (argumento a maiori ad minus; cf. Teixeira de Sousa, Introdução ao Direito, Almedina, p. 443).
A tutela da posição do inquilino e da estabilidade do arrendamento, erigida como um dos propósitos da Lei nº 13/2019 não decorre neste circunspecto, em primeira linha, da nova redação do nº1 do artigo 1096º, mas sim do aditado nº 3 ao Artigo 1097º, nos termos do qual:
«3- A oposição à primeira renovação do contrato, por parte do senhorio, apenas produz efeitos decorridos três anos da celebração do mesmo, mantendo-se o contrato em vigor até essa data, sem prejuízo do disposto no número seguinte.»
Ou seja, a tutela do inquilino e da estabilidade do arrendamento decorre diretamente desta norma e não propriamente do nº1 do Artigo 1096º do Código Civil.
De facto, a tese acima explicitada (maioritária na jurisprudência) segundo a qual, a prever-se a renovação do contrato, esta ocorre imperativamente por um prazo mínimo de três anos sucumbe quando confrontada com o disposto no nº 3 do Artigo 1097º do Código Civil.
Na verdade, na lógica dessa tese, desde que as partes prevejam a renovação do contrato de arrendamento, este terá, inapelavelmente, uma duração sempre de quatro anos (mínimo imperativo de um ano, acrescendo renovação imperativa por mais três anos). Ora, se assim fosse, o disposto no nº 3 do Artigo 1097º não faria qualquer sentido, tratando-se de uma norma inútil e espúria porquanto os contratos de arrendamento, desde que as partes não afastassem expressamente a sua renovabilidade, teriam sempre uma duração mínima de quatro anos. Porém, o que decorre do nº3 do Artigo 1097º é que, prevendo-se a renovação do contrato, o prazo mínimo garantido da vigência do contrato é de três anos a contar da data da celebração do mesmo! Ou seja, o direito de o senhorio opor-se à renovação do contrato, quando seja prevista a renovação do contrato, está apenas condicionado à vigência ininterrupta do contrato por um período de três anos, contado da data de celebração do contrato. A tutela da estabilidade do arrendamento está aqui e não propriamente no nº1 do Artigo 1096º.
Assim, na discussão da questão em apreço, o elemento interpretativo da lei que mais releva não é propriamente o teleológico, mas sim o sistemático”.
Por fim, no Ac. Rel. Lisboa 27 de abril de 2023, sublinha-se que a ressalva do preceito “ salvo estipulação em contrário” concede a possibilidade das partes determinarem o prazo de prorrogação do contrato, em obediência ao princípio da liberdade contratual e nesse sentido conclui-se:” Não distinguindo a lei, não vemos por que motivo a ressalva da estipulação em contrário se haveria de aplicar apenas à faculdade de as partes estipularem a renovação automática. Por outro lado, seria incongruente que as partes pudessem afastar a possibilidade de renovação automática, num contrato que, nos termos do disposto no art.º 1095.º n.º2 poderá ter a duração de um ano, mas caso o quisessem renovar já o teriam de fazer, imperativamente, por três anos. Cremos não fazer sentido esta interpretação”.
A decisão recorrida seguiu a primeira posição, a qual não acompanhamos, por se nos afigurar que os argumentos apresentados na segunda posição a respeito da interpretação do art. 1096º/1 CC, partindo do elemento literal, levam em consideração os elementos histórico e sistemático, sem ignorar o elemento teleológico, mostrando-se por isso, mais completa quanto ao sentido efetivo da norma.
É de considerar que o regime da renovação do contrato não faz parte do elenco das normas com caráter imperativo, previstas no art. 1080º CC e a efetiva tutela do direito do arrendatário é concedida pelo regime do art. 1097º/3 CC, quando limita o exercício do direito à oposição à renovação, por parte do senhorio.
Mostra-se inequívoca a redação do preceito quando prevê: “salvo estipulação em contrário” sem limitar tal estipulação à renovação automática do contrato. Tal limitação não se justificaria face à tradição legislativa que nunca excluiu a possibilidade das partes fixarem convenção quanto ao prazo de renovação.
Anote-se que, de acordo com o disposto no art. 9º do Código Civil, embora a interpretação não deva cingir-se à letra da lei, devendo ter-se principalmente em conta a unidade do sistema, não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, bem como, nos termos do seu nº 3, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Desta forma, e aplicando tal interpretação ao caso concreto somos levados a concluir que assiste razão aos apelantes, quando pretendem ver reconhecido que foi exercido de forma válida e eficaz a oposição à renovação do contrato. A cláusula contida no contrato que fixou o prazo de um ano de renovação do contrato mostra-se válida, porque respeita a liberdade das partes na fixação do conteúdo dos contratos e não contende com norma imperativa.
Com efeito, estamos na presença de um contrato de arrendamento para habitação por prazo certo que foi celebrado em novembro de 2016, mas com início em 01 de janeiro de 2017. Ficou convencionado a renovação automática do contrato pelo período de um ano. O contrato renovou-se automaticamente em 01 de janeiro de 2018, em 01 de janeiro de 2019 e em 01 de janeiro de 2020, pelo período de um ano, tal como convencionado.
Em 13 de julho de 2020 a autora expediu carta com aviso de receção dirigida ao réu a comunicar a cessação da renovação para o termo do ano de 2020.
A carta foi expedida e recebida no prazo legal (120 dias - art. 1097º/1 b) CC) ), facto que as partes não questionam. Quando foi exercido pelo senhorio o direito de oposição à renovação não estava a decorrer o prazo de renovação por três anos, porque as partes convencionaram prazo diferente de renovação - um ano - e renovando-se em 01 de janeiro de 2020, o seu termo ocorreria em 31 de dezembro de 2020. Não se justifica aplicar o prazo supletivo de renovação do contrato de três anos, porque as partes expressamente convencionaram um prazo de renovação, inferior a três anos, convenção válida ao abrigo do regime previsto no art. 1096º/1 CC, na redação da Lei 13/2019 de 12 de fevereiro, pelos motivos que se deixaram expostos.
Acresce que a comunicação foi dirigida ao réu quando já tinham decorrido mais de três anos sobre a data de inicio do contrato (art. 1097º/3 CC), facto que também não é questionado pelo réu.
Refira-se, aliás, que apesar do direito se ter exercido na vigência do novo regime jurídico não teria o senhorio que aguardar o termo do prazo de três anos a contar da data da entrada em vigor das alterações introduzidas ao art. 1097º/3 CC, pois o prazo não se inicia nessa data.
Por outro lado, não estávamos perante a primeira renovação do contrato, a qual ocorreu ainda na vigência da anterior lei e por isso, não se aplicava o prazo limite de três anos para exercício do direito. Contudo, a aplicar-se o prazo de três anos, seria sempre a contar da data de início do contrato, 01 de janeiro de 2017, o qual estava completo em 01 de janeiro de 2020.
Neste sentido se pronunciou o Ac. STJ 17 de janeiro de 2023, Proc. 7135/20.1T8LSB.L1.S1 (acessível em www.dgsi.pt): “É já no âmbito da segunda renovação do contrato que o Autor pretende opor-se à sua renovação, pelo que, seguindo a posição assumida pelo Conselheiro Pinto Furtado e bem assim a que foi seguida no Acórdão recorrido, não tem aplicação neste contrato a renovação por três anos, porquanto se trata da segunda renovação contratual, sendo que as partes estipularam expressamente a renovação anual.
Conforme acentua o Acórdão recorrido, este contrato de arrendamento “escapou” à disciplina imperativa resultante do artigo 1097.º, n.º 3, do Código Civil, porquanto a primeira renovação que se verificou teve lugar ainda na anterior versão da Lei e não quando a Lei n.º 13/2019 já se encontrava em vigor”.
Conclui-se, assim, por julgar válida a oposição à renovação do contrato deduzida pelo senhorio e desta forma operou-se a caducidade do contrato, cessando o direito do réu a ocupar o local arrendado.
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Resta apreciar uma última questão que se prende com a data a partir da qual a cessação do contrato produz efeitos.
Alegaram os autores na petição que devido à legislação relativa à pandemia do Covid-19, os efeitos da oposição à renovação do contrato de arrendamento ficaram suspensas até 30 de Junho de 2021. Face à não entrega da habitação por parte do Réu até ao dia 30 de Junho de 2021, através de carta datada de 20 de Julho de 2021, a primeira Autora, na qualidade de cabeça de casal, comunicou ao Réu, que a entrega da casa teria que ocorrer até ao dia 31 de Agosto de 2021.
Peticionaram a condenação do réu:
- a reconhecer que o contrato de arrendamento que existiu entre as partes cessou no dia 31 de Dezembro de 2020 - por oposição à renovação – caducidade;
- a entregar aos Autores, livre de pessoas e bens, a habitação sita na Travessa ..., no ..., Porto, e ainda;
- a pagar aos Autores a quantia mensal de 250,00 € pela posse ilegítima e pela demora da restituição da habitação em causa, indemnização essa correspondente ao valor locativo desse espaço, a partir de 01 de Julho de 2021 até à entrega do mesmo aos Autores, elevado ao dobro, face à mora, nos termos do artigo 1045º, nº 2, do Código Civil, a que acrescem juros legais vencidos e vincendos, até integral pagamento.
O réu não contesta que permaneceu no local arrendado até 30 de junho de 2021 e refere ainda, que procedeu ao pagamento da renda correspondente a tal período e ainda, ao mês de julho e agosto de 2021 (apesar de cancelados os recibos pela autora).
Em causa está a legislação aprovada no contexto epidemiológico, nomeadamente o disposto no artigo 8.° da Lei n.° 1-A/2020, de 19 de Março.
A Lei n.° 75-A/2020 de 30 de Dezembro de 2020, veio proceder à alteração desse artigo 8.º da Lei n.° 1-A/2020, determinando que a produção de efeitos da oposição à renovação de contratos de arrendamento por parte do senhorio ficaria suspensa até 30 de junho de 2021.
Determina o referido preceito, nessa versão, o seguinte:
Artigo 8.º - Regime extraordinário e transitório de proteção dos arrendatários
1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 4, ficam suspensos até 30 de junho de 2021:
a)[…];
b) A caducidade dos contratos de arrendamento habitacionais e não habitacionais, salvo se o arrendatário não se opuser à cessação; (…).
Desse modo, os efeitos da oposição à renovação do contrato de arrendamento por parte dos autores e consequente caducidade do mesmo, apenas se verificaram a 30 de junho de 2021, sendo que a partir de 01 de julho de 2021 estava o réu obrigado à entrega do local arrendado.
Conclui-se, assim, que a caducidade do contrato ocorreu a 30 de junho de 2021, data a partir da qual o réu deixou de ter título para ocupar o local arrendado, devendo por isso proceder à sua entrega aos autores.
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Por fim, cumpre apreciar da verificação do abuso de direito, na vertente do venire contra factum proprium, suscitada pelo apelado-réu na contestação.
O abuso de direito, nos termos do art. 334º CC, consiste no exercício ilegítimo de um direito.
Considera-se ilegítimo o exercício de um direito “quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA referem que: “[a] nota típica do abuso do direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido“[6].
ALMEIDA COSTA refere a este respeito que: “ exige-se, um abuso nítido: o titular do direito deve ter excedido manifestamente esses limites impostos ao seu exercício[7].
Para apurar se as partes envolvidas no negócio agiram segundo os ditames da boa-fé cumpre ao juiz considerar: “ as exigências fundamentais da ética jurídica, que se exprimem na virtude de manter a palavra e a confiança, de cada uma das partes proceder honesta e lealmente, segundo uma consciência razoável, para com a outra parte, interessando as valorações do círculo social considerado, que determinam expectativas dos sujeitos jurídicos. “ De igual modo, “ não se pode esquecer o conteúdo do princípio da boa-fé objetivado pela vivência social, a finalidade intentada com a sua consagração e utilização, assim como a estrutura da hipótese em apreço“[8].
Com base no abuso de direito, o lesado pode “requerer o exercício moderado, equilibrado, lógico, racional do direito que a lei confere a outrem; o que não pode é, com base no instituto, requerer que o direito não seja reconhecido ao titular, que este seja inteiramente despojado dele”[9].
A conduta suscetível de integrar o venire contra factum proprium pressupõe, estruturalmente, duas condutas da mesma pessoa, lícitas em si e diferidas no tempo. A primeira – o factum proprium – é contrariada pela segunda. O óbice reside na relação de oposição entre ambas[10].
O venire é suscetível de configurar um comportamento abusivo e por isso merecedor de censura legal, à luz do abuso de direito, tal como se mostra configurado no art. 334º CC, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé.
Em termos dogmáticos o venire contra factum proprium constitui uma manifestação de tutela da confiança, que decorre do princípio da boa-fé. Um comportamento não pode ser contraditado quando ele seja de molde a suscitar a confiança das pessoas[11].
Como se pode então considerar que um comportamento é suscetível de criar a confiança das pessoas, vinculando-as às obrigações assumidas.
MENEZES CORDEIRO propõe, como auxiliar ao intérprete, na concretização do conceito de “confiança”, “um modelo de quatro proposições“ sem estabelecer qualquer hierarquia entre eles e sem caráter cumulativo:
“- uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa-fé subjetiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias;
- uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objetivos capazes de, em abstrato, provocarem uma crença plausível;
- um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efetivo de atividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;
- a imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela proteção dada ao confiante: tal pessoa, por ação ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao fator objetivo que a tanto conduziu“[12].
No caso concreto, a conduta dos apelantes não podem configurar um venire, porque não decorre dos factos provados que tenha assumido duas condutas contraditórias entre si, gerando uma situação de confiança no réu. Ao permitir que o réu permanecesse no local arrendado, os autores-apelantes limitaram-se a respeitar a determinação legal no quadro especial criado com a situação de pandemia. Resulta da correspondência trocada entre as partes após 31 de junho de 2021 que nunca houve o propósito por parte dos autores de manterem o contrato ou reconhecerem a sua renovação a partir de 01 de janeiro 2021.
Pelo exposto, improcede a alegada exceção.
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Quanto ao pagamento da quantia peticionada pelos Autores, a título indemnizatório, deve tal pretensão ser objeto de apreciação pelo juiz do tribunal “a quo”, juntamente com as restantes questões que se relegaram para julgamento. Com efeito, determina o art. 665º/2 CPC, que se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer de certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.
Entende-se, no caso presente, que subsiste matéria controvertida a respeito do pagamento das rendas em julho e agosto de 2021 e se existiu algum acordo entre as partes para entrega do imóvel, o que contende com o valor peticionado a título de indemnização.
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Em conclusão, procedem as conclusões de recurso, com a consequente revogação da sentença, procedendo, em parte, a ação, com a condenação do réu a reconhecer que o contrato de arrendamento que existiu entre as partes cessou no dia 31 de junho de 2021, por oposição à renovação - caducidade - e condenação do réu a entregar aos autores, livre de pessoas e bens, a habitação sita na Travessa ..., no ..., Porto, improcedendo o pedido formulado em reconvenção do reconhecimento da válida renovação do contrato de arrendamento.
O processo prossegue os ulteriores termos para apreciação do pedido de indemnização formulado pelos autores e restantes pedidos deduzidos em reconvenção, conforme já decidido em 1ª instância, decisão que não cumpre reapreciar.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas, sem prejuízo do apoio judiciário:
- na ação e reconvenção, pelo apelado;
- na apelação, pelo apelado.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e revogar a sentença e nessa conformidade:
- julgar procedente, em parte, a ação e condenar o réu a reconhecer que o contrato de arrendamento que existiu entre as partes cessou no dia 31 de junho de 2021, por oposição à renovação – caducidade;
- condenar o réu a entregar aos autores, livre de pessoas e bens, a habitação sita na Travessa ..., no ..., Porto;
- julgar improcedente o pedido formulado em reconvenção de válida renovação do contrato de arrendamento;
- determinar o prosseguindo do processo com os ulteriores termos para apreciação do pedido de indemnização formulado pelos autores e restantes pedidos deduzidos em reconvenção, conforme decidido em 1ª instância.
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Custas a cargo do apelado, sem prejuízo do apoio judiciário, na ação, reconvenção e apelação.
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Porto, 12 de julho de 2023
( processei e revi – art. 131º/6 CPC )
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais

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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990. [2] Cfr. Ac. Rel. Coimbra 22 de novembro de 2022, Proc. 837/22.0YLPRT.C1, acessível em www.dgsi.pt
[3] MARIA OLINDA GARCIA “Alterações em matéria de Arrendamento Urbano introduzidas pela Lei n.º 12/2019 e pela Lei n.º 13/2019” JULGAR online, março de 2019, pag. 10-12
[4] JORGE PINTO FURTADO Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano, Almedina, Coimbra, outubro de 2019, pag. 578-579
[5] EDGAR ALEXANDRE MARTINS VALENTE Arrendamento Urbano – Comentário às Alterações Legislativas Introduzidas ao Regime Vigente, Reimpressão, maio de 2019, Almedina, Coimbra, pag. 31
[6] PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA Código Civil Anotado, vol. I, 4ª Edição Revista e Atualizada, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora- grupo Wolters Kluwer, 2011, pag. 298.
[7] MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA Direito das Obrigações, 9ª edição, Coimbra, Almedina, 2001, pag. 75.
[8] MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA Direito das Obrigações , ob. cit., pag. 104-105.
[9] PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA Código Civil Anotado, vol.I, ob. cit., pag. 300.
[10] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO Tratado de Direito Civil, vol. V, 2ª Reimpressão da edição de maio de 2005, Coimbra, Almedina, 2011, pag. 278.
[11] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO Tratado de Direito Civil, ob. cit., pag. 290.
[12] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO Tratado de Direito Civil , ob.cit., pag. 292.