Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | JORGE LANGWEG | ||
Descritores: | PRINCIPIO NE BIS IN IDEM HOMICÍDIO TENTADO HOMICÍDIO CONSUMADO DESPACHO DE SANEAMENTO | ||
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Nº do Documento: | RP2016030911744/13.7TDPPRT.P1 | ||
Data do Acordão: | 03/09/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Indicações Eventuais: | 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 671, FLS.410-428) | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Um segundo processo, pelo mesmo crime, não é admitido (artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa). II - A morte da vítima do crime – se tiver resultado da agressão homicida que constituiu objeto do primeiro julgamento - não pode ser (completamente) autonomizada da conduta que produziu as lesões mortais, sob pena de se transformar num facto jurídico neutro, sem relevância jurídico-penal à luz do tipo legal de crime de homicídio. III – No caso da morte da vítima de um homicídio ocorrer após a sentença condenatória pelo respetivo crime de homicídio, sob a forma tentada - e não tendo o legislador ordinário previsto a possibilidade de reabertura do processo, ao abrigo do número 2 do artigo 4º do protocolo n° 7 da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais -, a perda daquela vida já não poderá originar novo processo, nem reabrir o primeiro. IV - Nos termos do disposto no artigo 311º, 1, do Código de Processo Penal é admissível que, no despacho de saneamento, o juiz presidente conheça a exceção dilatória de caso julgado - artigos 576º, 1 e 577º, i), do CPC, ex vi do artigo 4º do CPP -. V – O respeito pelo princípio non bis in idem é assegurado, em Portugal, pelos artigos 14.7, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966, 4º do protocolo n° 7 da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, datado de 22 de Novembro de 1984, 50º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo nº 11744/13.7TDPRT.P1 Data do acórdão: 9 de Março de 2016 Relator: Jorge M. Langweg Adjunta: Fátima Furtado Origem: Comarca do Porto Instância Central | 1ª Secção Criminal Sumário: 1 - Um segundo processo, pelo mesmo crime, não é admitido (artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa). 2 - A morte da vítima do crime – se tiver resultado da agressão homicida que constituiu objeto do primeiro julgamento - não pode ser (completamente) autonomizada da conduta que produziu as lesões mortais, sob pena de se transformar num facto jurídico neutro, sem relevância jurídico-penal à luz do tipo legal de crime de homicídio. 3 – No caso da morte da vítima de um homicídio ocorrer após a sentença condenatória pelo respetivo crime de homicídio, sob a forma tentada - e não tendo o legislador ordinário previsto a possibilidade de reabertura do processo, ao abrigo do número 2 do artigo 4º do protocolo n° 7 da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais -, a perda daquela vida já não poderá originar novo processo, nem reabrir o primeiro. 4 - Nos termos do disposto no artigo 311º, 1, do Código de Processo Penal é admissível que, no despacho de saneamento, o juiz presidente conheça a exceção dilatória de caso julgado - artigos 576º, 1 e 577º, i), do CPC, ex vi do artigo 4º do CPP -. 5 – O respeito pelo princípio non bis in idem é assegurado, em Portugal, pelos artigos 14.7, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966, 4º do protocolo n° 7 da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, datado de 22 de Novembro de 1984, 50º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa. Acordam os juízes acima identificados da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto nos presentes autos, em que figura como recorrente o Ministério Público. I – RELATÓRIO 1. Por despacho datado de 5 de Junho de 2015, proferido nos termos do disposto no artigo 311º do Código de Processo Penal, foi determinado "o arquivamento dos autos", com base no princípio "ne bis in idem" consagrado no artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa.2. A sua fundamentação resume-se, essencialmente, à circunstância da acusação dirigida contra o arguido B…, pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de homicídio qualificado (artigos 26º, 131º e 132º, 2, a) e j), do Código Penal, se encontrar consubstanciada por uma conduta – considerada em termos objetivos e subjetivos - já apreciada e julgada por um tribunal, por decisão transitada em julgado: De facto: a) Por acórdão de 19 de Março de 2010, proferido pela 2ª Vara Criminal do Porto, no âmbito do processo comum com intervenção do tribunal coletivo nº 839/09.1JAPRT, transitado em julgado em 5 de Julho de 2010, o mesmo arguido foi condenado como autor material de dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada, cometidos no dia 4 de Junho de 2009, entre as 9h e as 9h30m, no interior da sua residência sita no …, nº …, …, no Porto, tendo como vítimas C… e D…, nas penas de, respetivamente, 7 (sete) e 6 (seis) anos de prisão. b) Em cúmulo jurídico, foi condenado, nesse processo, na pena única de 9 (nove) anos de prisão.[1] c) A acusação proferida nos presentes autos é dirigida contra o mesmo arguido e, na descrição dos factos que, no entender do Ministério Público, fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido [artigo 283º, 3, b), do Código de Processo Penal], encontram-se, no essencial: i. Os factos provados no âmbito daquele acórdão, aos quais acresce, apenas, o seguinte: - no dia 31 de Outubro de 2010 (ou seja, após o trânsito em julgado do acórdão condenatório) C…, como consequência direta das lesões encefálicas decorrentes das agressões praticadas pelo arguido e que foram consideradas provadas naquela decisão condenatória. 3. O Ministério Público interpôs recurso desse despacho, apresentando uma motivação que terminou com a formulação das conclusões a seguir reproduzidas: Por decisão proferida no NUIPC nº 839/09.1JAPRT, ex 2ª Vara deste tribunal, em 19.03.2010 e transitada em julgado em 05.07.2010, o arguido B… foi julgado e condenado na pena de foi condenado na pena de única de 9 anos de prisão, pela prática de, além do mais, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 26.º 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, als a) e j) do Código Penal, na pessoa de seu filho C…. No dia 31.10.2010, muito tempo depois de transitada em julgado aquela condenação, o C… faleceu, indiciariamente ainda em consequência das lesões que o arguido lhe infligiu, com intenção de o matar. O Ministério Público deduziu, por isso, nova acusação agora pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. nos arts. 26.º, 131.º e 132.º, n.ºa 1 e 2, als. a) e j), do Código Penal. O princípio do ne bis in idem «visa impedir a submissão a um novo processo que tenha o mesmo objeto de um processo anterior» sendo que «este objeto é não apenas aquilo que foi conhecido no primeiro processo, mas também tudo aquilo que podia ter sido conhecido»; No caso dos autos não estamos perante o novo julgamento do mesmo facto, mas perante um simples juízo supletivo, dirigido no sentido de determinar se o facto morte ainda foi consequência daquele evento inicial e, em caso positivo, qual o acréscimo de pena que ele deve representar. Á data do juízo inicial a morte da vítima ainda nem sequer tinha ocorrido e nunca poderia ter sido conhecida pelo tribunal, pelo que o arguido não foi julgado por ela: como é que ele pode ter conhecido de uma coisa que ainda nem sequer tinha acontecido; A proibição constitucional de incorrer em ne bis in idem garante o cidadão perante o arbítrio do poder estadual, impedindo que ele volte a ser incomodado pela prática do mesmo facto mas não que seja julgado por factos diversos; O arguido não tem nenhuma garantia constitucional contra a perseguição de novos factos, ocorridos depois da condenação, que a doutrina vem designando como resultados tardios; O arguido só não foi condenado pela prática de um crime consumado de homicídio porque à data da acusação e, depois, do julgamento esse resultado ainda não se tinha produzido; Não está, assim, em causa a errada utilização pelas instâncias formais de controlo dos mecanismos necessários para uma apreciação esgotante e completa do facto processual; O que está em causa é apenas a possibilidade de adequar a condenação a um acontecimento posterior que não foi, nem podia, ser tomado em consideração pelas instâncias formais de controlo; O próprio arguido definitivamente condenado deverá contar que o resultado posterior ao julgamento ser-lhe-á então imputado tendo uma paz jurídica precária; Acresce, ainda que porventura assim não fosse, que o princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 6, da Constituição da República Portuguesa, não é um direito absoluto. Será incompreensível para a comunidade, em nome do qual o poder judicial atua, que o novo resultado, ocorrido depois do julgamento inicial, fique impune, apenas porque o arguido já foi, parcialmente, julgado; As inquestionáveis exigências de segurança e de paz jurídica não podem aniquilar, por completo, as exigências de justiça, também elas inerentes ao Estado de direito; A vítima e a própria sociedade aspiram a uma tutela jurisdicional efetiva (art. 20.º da CRP) impondo que aquilo que não foi nem podia ser julgado deve ser, de forma intransigente (art. 219.º, n.º 1, da CRP), considerado. Eduardo CORREIA já defendia, que «um outro domínio relativamente ao qual há que limitar o poder de cognição, diz respeito a efeitos de actividades criminosas que se desenvolvem depois de findo o processo que as apreciou: v.g. a morte da vítima após a condenação do agente pelo crime de ofensas corporais. Também neste caso, embora contra certa doutrina e jurisprudência, se deve com BELING e SAUER, aceitar que cessa o poder de cognição e que se torna possível o exercício de uma nova acção penal tende a completar a apreciação feita no primeiro processo. É que o tribunal só pode considerar-se obrigado a conhecer dos factos passados ou presentes, não sendo legítimo deixar de aplicar-se uma pena a um resultado criminoso só porque teve lugar um processo que, qualquer que tenha sido o seu objecto, terminou antes de ele se produzir»; Na Alemanha esta posição conta como defensores nomes como Claus ROXIN ou Hans-Heiner KÜNHE e em Itália nomes como Franco COPPI; Neste contexto, por se entender que ocorreu errada interpretação e aplicação das normas dos arts. 20º, 24º nº 1, 29º, nº 5 e 219º nº 1, todos da CRP, bem como dos arts. 358º e 359º, ambos do CPP, normas vulneradas, impetra-se a revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que recebendo a acusação deduzida designe dia para julgamento. 4. O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e sem efeito suspensivo. 5. O arguido não respondeu à motivação de recurso. 6. A demandante também não respondeu à motivação de recurso[2]. 7. Nesta instância, o Ministério Público teve vista dos autos (artigo 416º, nº 1, do Código de Processo Penal), emitindo um parecer que secundou, fundamentadamente, a resposta aduzida na primeira instância nos termos a seguir reproduzidos: Atalhando caminho, diremos que o que se pretende com o presente recurso é que seja revogado o despacho impugnado e ordenada a sua substituição por outro que, resolvidas as questões a que alude o artigo 31 Io, do C. P. Penal, designe dia para julgamento dos factos descritos na acusação deduzida pelo Ministério Público, constante de fls. 460/471. Cremos que a solução será encontrada na resposta que for dada à controvertida questão do poder de cognição do juiz relativamente aos resultados dos atos criminosos que se desenvolvam depois de findo o processo e da admissibilidade do exercício de nova ação penal tendente ao julgamento desses novos factos. Embora reconhecendo que existe um "facto novo" - a morte da vítima - entende o Mmo Juiz que esse facto não pode, agora, ser considerado, uma vez que o arguido foi já submetido a julgamento mediante acusação em que o Ministério Público lhe imputou o crime sob a forma de tentativa, limitando, assim, de forma irremediável, o poder de cognição do tribunal, por força do princípio da "vinculação temática" que enforma o processo penal de tipo acusatório, como é o nosso. Tanto assim que - acrescenta o Mmo Juiz - mesmo que a morte da vítima tivesse ocorrido no decurso do julgamento o tribunal só poderia dele conhecer se se verificasse o condicionalismo previsto no n° 3 do artigo 359°, do C. P. Penal, ou seja, mediante acordo do Ministério Público, do arguido e do assistente, dado que se configuraria uma alteração substancial dos factos descritos na acusação e aquele "facto novo" não seria autonomizável em relação ao objeto do processo naquela delimitado. Estaríamos, portanto, perante um procedimento legalmente inadmissível, impondo-se, consequentemente, no entendimento do Mmo Juiz a quo, o arquivamento do processo, por aplicação analógica do disposto no artigo 277°, n° 1, do C. P. Penal (pensamos nós). Assim argumentado, salvo o devido respeito, o Mmo Juiz parece não ter considerado, e seguramente não teve na devida conta, que o "facto novo" - a morte da vítima - que se pretende ver submetido a julgamento só ocorreu depois do trânsito em julgado da sentença que sancionou o arguido pela prática de crime de homicídio tentado. E porque não existia à data daquele julgamento, esse facto não pôde ser considerado. Esse é, iniludivelmente (aceite-se ou não a solução proposta no recurso), um dado incontornável, que marca e distingue a situação concreta e que força e abala qualquer edifício argumentativo que se queira erigir na base da preservação da pureza do ne bis in idem e da vinculação temática, sendo certo que, não havendo dúvidas de que esses são princípios com consagração constitucional e estruturantes do nosso sistema processual penal, não são, no entanto, absolutos, como ensina, unanimemente, a doutrina e a jurisprudência. 2.3 - Partindo dessa certeza, o magistrado do Ministério Público recorrente, por seu lado, esclarece que o que se pretende submeter a julgamento com a acusação, agora, deduzida, não é o facto já julgado, por sentença transitada, mas sim um facto típico novo - a "morte da vítima" – ocorrido depois daquele primeiro julgamento, em ordem a obter um simples juízo supletivo sobre a existência (ou não) de nexo causal entre aquele evento inicial e este facto novo e, em caso positivo, a determinar qual o acréscimo de pena que ele deve representar para o arguido, pelo que não está em causa a violação do princípio ne bis in idem. E abalança-se, depois, na procura de resposta para aquela nuclear e controvertida questão do poder de cognição do juiz relativamente aos resultados dos atos criminosos que se desenvolvam depois de findo o processo e da admissibilidade do exercício de nova ação penal tendente ao julgamento desses novos factos, chamando à colação o artigo 29°, n° 5, da CRP, para dizer (em consonância com as considerações tecidas, a propósito do caso concreto, pelo Procurador da República, Dr. João Conde Correia, constantes do texto junto a fls. 326/328 dos autos), o seguinte: "O que está em causa com a proibição constitucional de incorrer em ne bis in idem é a garantia do cidadão perante o arbítrio do poder estadual, decorrente da «certeza, que se lhe assegura, de não poder voltar a ser incomodado pela prática do mesmo facto» [Isasca, Frederico, Alteração substancial dos factos e a sua relevância no processo penal português, Coimbra, Almedina (1999), p. 226]. A segurança ou a paz jurídica individual, ínsitas no princípio do Estado de direito, não permitem, que um indivíduo, já condenado, possa viver permanentemente sob a ameaça de uma nova perseguição penal baseada no mesmo facto. Contudo, estas exigências de segurança jurídica individual e de paz jurídica, pressupõem, obviamente, que esteja em causa o mesmo facto. A garantia já não vale quando, como acontece aqui, estão em causa factos diversos: nesse caso nada poderá impedir o integral exercício de ius puniendi estadual (art. 219.°, n.° 1, do CRP). O arguido não tem nenhuma garantia contra a perseguição destes novos factos, que a doutrina vem designado como resultados tardios (sobre este ponto ver o comentário concordante de Damásio Evangelista de Jesus, in http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/resultados-tardios-em-direito-penal/4645). Já não em causa uma tentativa, mas um homicídio qualificado. Em suma, a situação não está incluída no âmbito de proteção daquela garantia. O arguido só não foi condenado pela prática de um crime consumado de homicídio porque à data da acusação e, depois, do julgamento esse resultado ainda não se tinha produzido. Não está, assim, em causa a errada utilização - por parte das instâncias formais de controlo - dos «mecanismos necessários para uma apreciação esgotante do facto processual e portanto a possibilidade de se alcançar a verdade material e consequentemente uma justa decisão do caso concreto» que faria «responder o arguido pela negligência de outros na prossecução da justiça, ou pelos inevitáveis vícios do sistema, acabando, em última análise, por frustrar totalmente as legítimas expectativas de quem foi julgado e sentenciado» (ISASCA, Frederico, Alteração ..., p. 229). O que está em causa é apenas a possibilidade de adequar a condenação a um acontecimento posterior que não foi, nem podia ser, tomado em consideração pelas instâncias formais de controlo. Se não for assim, tudo aquilo que ocorrer depois da acusação, seja qual for a sua gravidade, será irrelevante, originando aquilo a que se costuma chamar o «limbo dos criminosos», com custos acrescidos para os bens jurídicos violados, que não logram qualquer tutela penal. O próprio arguido definitivamente condenado deverá nestes casos contar que, se a morte acontecer, ainda em consequência da sua conduta original, o resultado ser-lhe-á então imputado. Nestes casos, a sua paz jurídica não é definitiva. «Como o princípio constitucional ne bis in idem impede a instauração de novo processo para conhecimento de facto que integram o objeto de um processo anterior, nada obsta a submissão do arguido a novo processo por facto a que corresponda um objeto diverso... estão fora do campo da preclusão os factos que não podiam ter sido incluídos naquele objeto» (Salinas, Henrique, Os limites..., p. 570).". Acresce, ainda que porventura assim não fosse (isto é, se se considerar que, na verdade, está em causa o mesmo facto), que o princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 29.°, n.° 5, da Constituição da República Portuguesa, não é um direito absoluto. Na verdade, mesmo ao nível do efeito negativo do caso julgado, são hoje visíveis claras exceções ao seu carácter absoluto. É o caso paradigmático do disposto no artigo 19°, n.° 2, do Código Penal, segundo o qual: «se, depois de uma condenação transitada em julgado, for conhecida uma conduta mais grave que integre a continuação, a pena que lhe for aplicada substitui a anterior». No pensamento do legislador, seria incompreensível que situações incluídas naquela continuação ficassem sem pena pela circunstância fortuita de não serem conhecidos à data da formulação da acusação. Da mesma forma, também será incompreensível para a comunidade, em nome do qual o poder judicial atua, que este novo resultado fique impune, apenas porque o arguido já foi (e bem) penalizado pela tentativa inicial. Não se compreende que uma conduta mais grave integrante da continuação (e, logo, da mesma unidade jurídica) conhecida mais tarde (normalmente, por culpa da acusação, que não investigou bem) ainda possa ser considerada e um resultado tardio (v.g. a morte), independente de qualquer atuação das instâncias formais de controlo, não possa ser julgado. As inquestionáveis exigências de segurança e de paz jurídica não podem aniquilar, por completo, as exigências de justiça (maxime de proteção da vida humana), também elas inerentes ao Estado de direito. A realização da justiça, através da declaração do direito no caso concreto (verificação e punição do homicídio), enquanto finalidade primacial do processo penal, também é conatural ao Estado de direito. A vítima e a própria sociedade aspiram a uma tutela jurisdicional efetiva (art. 20.° da CRP), sob pena de se poder falar aqui de um gritante deficit de proteção dos direitos e liberdades pessoais, nomeadamente da vida humana (art. 24.°, n.° 1, da CRP). Por isso, se as exigências de segurança ou a salvaguarda da paz jurídica do condenado impõem que aquilo que foi ou podia ser conhecido não pode voltar a ser julgado, as exigências de justiça também impõem que aquilo que não foi nem podia ser julgado deve ser, de forma intransigente (art. 219.°, n.° 1, da CRP), considerado.". Parece infundada, portanto, num caso como o dos autos, a invocação do princípio ne bis in idem, como obstáculo ao julgamento de um facto novo, surgido como efeito de uma atividade criminosa já julgada, que se desenvolveu depois de findo aquele anterior julgamento. E não vem ao caso a aplicação do artigo 359°, do C. P. Penal, nem, consequentemente, assume qualquer relevo o argumento esgrimido pelo Mmo Juiz a quo, na base da suposição de a morte da vítima ter ocorrido, ainda, na pendência do julgamento, para daí concluir que - na eventualidade da oposição do arguido à continuação desse julgamento para apreciação daquele facto novo, tido por não autonomizável - não poderia o mesmo ser considerado, nem no próprio processo nem em processo autónomo. Não podemos, com efeito, esquecer que os factos que se pretende sejam, agora, submetidos a julgamento, são factos inteiramente alheios ao objeto do processo anterior, ocorridos em momento posterior à acusação que àquele deu origem, pelo que não estão abrangidos pelo regime dos artigos 358° e 359°, do C. P. Penal, o qual, como se sabe e já acima foi referido, previne as alterações do objeto do processo decorrentes de deficiências da investigação ou da acusação ou da pronúncia, não se aplicando (seria querer o impossível), às situações em que a alteração do objeto decorre de outros fatores que a acusação não considerou, mas também não podia considerar. Não estamos, pois, nesta perspetiva, perante factos novos autonomizáveis ou não autonomizáveis, para os efeitos do artigo 359°, do C. P. Penal, como parece pretender o Mmo Juiz a quo. Nem, por idênticas razões, se coloca a questão da observância ou não do princípio do acusatório ou da "vinculação temática", uma vez que, recorde-se, o "facto novo" que, agora, se pretende submeter a julgamento ocorreu depois da dedução da acusação. Bem se vê, portanto, que, se porventura a situação fosse despoletada no decurso do julgamento, nunca estaria em causa a aplicação do artigo 359°, do C. P. Penal, o que, no entanto, não dispensaria o tribunal de ajuizar essa nova realidade que se lhe deparava. Na verdade (importa dizê-lo), sem querer significar que deva partir-se, sem mais, da realidade da vida para encontrar a norma que com ela se conforme, temos por certo que à norma e os valores que ela consubstancia não há-de ser indiferente aquela realidade, à qual aqueles valores se destinam: "o equilíbrio entre ambas há-de ser critério e meta na interpretação e aplicação do direito ". E se se compreende a imposição da observância de estritos critérios formais no desenvolvimento do processo penal, pensamos que os mesmos não se podem sobrepor à realidade da vida concreta, violentando-a ou ostracizando-a, de forma a comprometer as finalidades que com aquele se pretendem atingir, quais sejam: a obtenção da verdade material, a realização da justiça, a defesa e a garantia dos direitos fundamentais de todos os cidadãos e a procura da paz jurídica abalada pela prática de um crime. Neste contexto (recorda-se, ainda, na motivação do recurso), Eduardo CORREIA já defendia, entre nós, que «um outro domínio relativamente ao qual há que limitar o poder de cognição, diz respeito a efeitos de actividades criminosas que se desenvolvem depois de findo o processo que as apreciou: v.g. a morte da vítima após a condenação do agente pelo crime de ofensas corporais. Também neste caso, embora contra certa doutrina e jurisprudência, se deve com BELING e SAUER, aceitar que cessa o poder de cognição e que se torna possível o exercício de uma nova acção penal tende a completar a apreciação feita no primeiro processo. É que o tribunal só pode considerar-se obrigado a conhecer dos factos passados ou presentes, não sendo legítimo deixar de aplicar-se uma pena a um resultado criminoso só porque teve lugar um processo que, qualquer que tenha sido o seu objecto, terminou antes de ele se produzir» [A teoria do concurso em direito criminal, Coimbra, Almedina (1983), p.364/5]. Na Alemanha esta posição conta como defensores nomes como Claus ROXIN [Strafverfahrensrecht, Munchen, C.H .Beck'sche Verlagsbuchhandlung (1998), p. 413] ou Hans-Heiner KÜNHE [Strafprozessrecht, Heidelberg, C.F. Muller (2003), p. 339]. Numa tradução livre das palavras de Roxin «deve haver uma limitação para os casos em que apenas depois do encerramento da produção da prova surge uma consequência do facto mais grave (por exemplo, morte daquele que à data da prolação da sentença era apenas vítima), que conduz a outra qualificação jurídica do facto (§ 227 em vez do § 224 do StGB, homicídio consumado em vez de homicídio tentado)». Uma vez que a sentença não podia considerar estas consequências deve ser admitida aqui uma ação penal complementar. Também em Itália, nomeadamente a propósito do crime continuado, é muito discutida a possibilidade de um juízo «suppletivo per le successive violazioni, attraverso cui infliggere per tali infrazioni, sulla base dei precedente giudicato, quel di piú di penalità che lo stesse primo giudice avrebbe sancito se fosse stato a conoscenza anche di questi episodi» [COPPI, Franco, Reato Continuato e Cosa Giudicata, Napoli, Casa Editrice Dott. Eugénio Jovene (1969), p. 79].". Estamos, com efeito, na situação concreta, perante um facto novo posterior, mais grave, que não é consumido pelo facto já submetido a julgamento e que justifica a aplicação de nova pena, caso se demonstre, em novo julgamento, que o mesmo resultou da agressão praticada pelo arguido, provada por sentença transitada em julgado. Não se configura, portanto, qualquer inadmissível duplicação de julgamentos, nem do mesmo crime nem dos mesmos factos, que possa configurar a violação do princípio ne bis in idem. - O que realmente se pretende com acusação deduzida (sobre a qual versa o despacho impugnado, convém não esquecer) é, como se viu, a submissão à apreciação do tribunal, no tempo processual próprio, que é a audiência de julgamento - não dos factos já julgados, por sentença transitada - mas sim dos factos posteriores nela própria descritos, em ordem a determinar se existe nexo causal entre a conduta do arguido, traduzida nos factos já julgados e definitivamente assente na sentença que o condenou por crime de homicídio tentado, e a morte da vítima, facto que não tinha, ainda, ocorrido à data daquela sentença. Especificando melhor, propõe-se na acusação que o tribunal a quo, sem pôr em causa os factos em que se traduziu a conduta do arguido, já julgados, considere, agora, factos ocorridos posteriormente — entre os quais se contam atos médicos e hospitalares, que ocorreram sem intervenção do arguido, e a subsequente morte da vítima - em ordem a determinar se, entre aquela conduta e a morte, existe, ainda assim, uma relação de causa e efeito. O Ministério Público considerou, findo o inquérito, que havia indícios suficientes dessa relação causal e, por isso, deduziu a acusação em apreço, de cuja procedência resultará, necessariamente, a aplicação de uma pena que terá em conta a condenação anterior. Caso não se apure a existência dessa relação causal, nenhuma alteração ocorrerá quanto à qualificação jurídica da conduta do arguido e às suas consequências. - Na decorrência do que vem de ser dito, estamos, finalmente, em condições de poder concluir que a acusação em causa é não só legalmente admissível mas obrigatória, desde logo, face ao princípio da legalidade do exercício da ação penal consagrado no artigo 219°, n° 1, da CRP. De tal modo que, em nossa opinião, será de julgar materialmente inconstitucional o conteúdo normativo decorrente dos artigos 283°, n°s 1 e 2, 311°, n° 1, e 359°, do C. P. Penal, quando interpretado no sentido de que é legalmente inadmissível o exercício de uma nova ação penal tendente a completar a apreciação de efeitos de atividades criminosas que se desenvolvam depois de findo o processo que as apreciou, por violação dos princípios do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, do ne bis in idem e da legalidade do exercício da ação penal, consagrados, respetivamente, nos artigos 20°, n° 1,29°, n° 5, e 219°, n° 1, da CRP, inconstitucionalidade que expressamente se invoca. - E sendo legalmente admissível - no sentido que vem de ser expresso - a acusação em causa não é, também, manifestamente infundada. Nos termos e para os efeitos do disposto no n° 2, al. a), do artigo 311°, do C. P. Penal, a acusação só pode considerar-se manifestamente infundada nos casos taxativamente enunciados no nº 3 do mesmo preceito, a saber: quando não contenha a identificação do arguido; quando não contenha a narração dos factos; se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou se os factos não constituírem crime. Como é sabido, o exercício pelo juiz de julgamento dos poderes que lhe são conferidos pela alínea a) do n° 2 e pela alínea d) do n° 3 do citado artigo 311º impõem que ele tenha em conta apenas o teor da acusação deduzida, independentemente de saber se ela tem ou não qualquer suporte na prova recolhida durante o inquérito ou se os factos nela narrados ocorreram num contexto diferente daquele que é descrito nessa peça processual. Por outras palavras, o fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito da lei penal ou quando se trate de conduta com inequívoca irrelevância penal (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição actualizada, pg. 790). Tais poderes conferidos ao juiz do julgamento não se confundem, obviamente, com os que lhe cabem no momento da deliberação que precede a prolação da sentença final. Como, também, este tribunal de recurso, para apreciar agora se é ou não de manter a decisão impugnada, apenas pode atender, igualmente, ao teor da acusação em causa. Assim, tendo presente a factualidade plasmada na acusação e considerando os limites a que estão sujeitos os poderes do juiz conferidos pelo artigo 311º, n°s 2 e 3, do C. P. Penal, a que acima se fez referência, salvo o devido respeito, parece-nos que a acusação não poderá ser julgada manifestamente infundada. Pelo exposto, emite-se parecer no sentido de que, na procedência do recurso, será de revogar o despacho impugnado e de ordenar a sua substituição por outro que designe dia para julgamento. 8. Tendo sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, o arguido não apresentou qualquer resposta ao teor do parecer e a demandante limitou-se a responder que "o subscreve na íntegra". 9. Não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos, ainda do mesmo texto legal]. II – FUNDAMENTAÇÃO A pretensão do recorrente: O Ministério Público impugnou o despacho recorrido, pretendendo a sua revogação e substituição por outro que designe dia para julgamento. O objeto do recurso Para definir o âmbito do recurso, a doutrina [3] e a jurisprudência [4] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso. A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito. Precisando, então, a questão jurídica controvertida: A motivação do recurso e o parecer sustentam, com argumentos ligeiramente distintos, que a acusação deduzida nos autos não viola o princípio non bis in idem, devendo ser marcado o dia para a realização do julgamento. Esta é a questão fundamental submetida a este tribunal. Confrontando os dois entendimentos controvertidos nos autos: - Como corolário da posição assumida pelo Ministério Público - a antítese defendida pelo recorrente na dialética do processo -, a superveniência da morte da vítima, em relação ao trânsito em julgado da decisão condenatória por homicídio tentado, não só permite, como exige, nova ação penal contra o mesmo agente do crime; e - A tese sustentada na fundamentação do despacho recorrido afasta tal possibilidade, em obediência à regra non bis in idem, determinando o arquivamento dos autos, pela sua inadmissibilidade legal. * Concretizada a questão controvertida, cumpre enaltecer, primeiramente, a qualidade de todas as peças processuais em confronto – acusação, despacho, motivação do recurso e parecer – que realça a beleza da discussão dos temas estruturantes do direito processual penal. A matéria controvertida exigirá um exercício de hermenêutica jurídica nos domínios do direito internacional, direito constitucional, direito penal e direito processual penal, visando a solução do caso concreto. O elevado interesse da matéria jurídica em causa, permitirá divisar, eventualmente, algumas luzes e sombras do nosso sistema processual penal que, como toda a obra humana, é estruturalmente imperfeita e criticável. * Cumpre apreciar e decidir.* A) A fundamentação do despacho recorrido:O tribunal a quo fundamentou a decisão, no essencial, nas passagens a seguir reproduzidas: «A acusação deduzida pelo M.P. imputa ao arguido B… a perpetração de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. petos artigos 26º, 131ºe 132°, n° 1 e n° 2 als. a) e j), do C. Penai, do qual foi vítima o seu filho C…. A verdade, porém, é que mostra-se certificado que o arguido foi anteriormente condenado, por decisão transitada em julgado, além do mais, peta perpetração de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. petos artigos 22°, 23* 26°, 131°, 132, n° 1 e n°s 2 als. a) e j), do C. Penal, em que foi vítima o referido filho do arguido C…. A morte do referido C… ocorreu após a data do trânsito em julgado desta decisão. (…) Os factos (normativamente entendidos) descritos na acusação definem o objecto do processo e é por este que se delimitam os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado. (…) O ne bis in idem tem consagração no artigo 29°, n* 5 da C.R.P., segundo o qual "Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime". Assim, antes de mais, importa que nos debrucemos sobre o conceito de '"mesmo crime". A este propósito são, quanto a nós, extremamente elucidativas as palavras do Prof. Germano Marques da Silva ao afirmar que "Crime diverso não é o mesmo que tipo incriminador diverso. É que o mesmo juízo de desvaler pode ser comum a diversas normas, a diversos tipos, que mantendo em comum o juízo de ilicitude divergem apenas na sua quantidade, não na essência, mas na gravidade" "O crime será o mesmo, ou melhor, não será materialmente diverso, desde que o bem jurídico tutelado seja essencialmente o mesmo. E será essencialmente o mesmo quando os seus elementos constitutivos essenciais não divergirem. Se os factos puderem ainda integrar a hipótese de facto histórico descrita na acusação, podem alterar-se as modalidades da acção, pode o evento material não ser inteiramente coincidente com o modo descrito, podem alterar-se as circunstâncias e o elemento subjectivo que o crime não será materialmente diverso, desde que a razão do juízo de ilicitude permaneça a mesma. O crime não será também materialmente diverso quando apenas variarem as formas de execução do crime, as modalidades de autoria ou comparticipação, desde que os actos acordados e apurados possam ainda reconduzir-se ao mesmo facto histórico, ou seja, na expressão de Castanheira Neves, desde que esteja em congruência com o sentido jurídico-criminal problematicamente constitutivo no caso concreto". No caso sub judice o "facto novo" – a morte da vítima – ocorreu não na pendência do processo em que o arguido foi acusado peta prática do crime de homicídio na forma tentada, mas sim já depois de transitado em julgado do acórdão que o condenou pela prática de tal tipo legal de crime. No plano do direito vigente a questão em apreço, quando a morte ocorra até ao final da audiência de julgamento, encontra-se resolvida por forma expressa, podendo discutir-se se bem ou mal. Na verdade, com a actual redacção conferida pela Lei n° 48/2007, de 29 de Agosto ao artigo 359° do C. P. Penal 48/2007, de 29 de Agosto ficou consagrada, em forma de lei que apenas os factos novos autonomizáveis dão lugar à abertura de um novo processo e, quanto aos factos novos não autonomizáveis, a continuação do processo sem alteração do respectivo objecto. Trata-se, segundo se refere na exposição de motivos da proposta de Lei n* 109/X13, de uma decorrência dos princípios non bis in idem e do acusatório. (…) E segundo Ivo Barroso, citado por Cruz Bucho, constitui facto não autonomizável, entre outros, "os que determinam uma outra forma de cometimento do ilícito (ex: no julgamento de arguido acusado de crime tentado vem a apurar-se a consumação do crime). Sendo esta a solução encontrada peio legislador para os casos de homicídio em que a morte ocorra até ao final da audiência de julgamento, por maioria de razão a solução será a mesma quando a morte ocorra depois. No caso vertente, a conduta do arguido. Considerada quer em termos objectivos, quer em termos subjectivos, já foi apreciada e julgada por um tribunal, por decisão transitada em julgado. O nexo causal que se pretende agora estabelecer entre ela e o facto novo- morte da vítima -, pela sua própria natureza não são cindíveis, sendo que o facto novo, por si só, não é susceptível de poder dar lugar a um processo autónomo. Situação presente integra-se, sem sombra de duvidas, ria categoria dos factos não autonomizáveis, pois que a conduta do arguido anteriormente julgada mantém-se, sendo exactamente a mesma, pretendendo-se agora apenas relacioná-la com um resultado anteriormente não considerado, estabelecendo-se o respectivo nexo causal. Ora, o nexo causal que se pretende estabelecer não pode ser apreciado e julgado autonomamente sem que não seja ou possa ser afectado o processo anterior. Na verdade, a ser efectuada a pretendida acção complementar supletiva – com o propósito último de que no quantum concreto de uma nova pena aplicada consideração o tempo já cumprido no processo anterior – estar-se-ia a permitir a possibilidade de substituir uma condenação por outra necessariamente mais gravosa, olvidando o transitado em julgado da decisão anterior que condenou o arguido pela prática do mesmo crime, sem que tal procedimento se encontre previsto na lei. Sobre a questão de o resultado morte não ser conhecido ao tempo da decisão anterior e, por isso, não poder ter sido considerado pelo tribunal, julgamos que a situação não será substancialmente diversa daquelas em que o facto novo não autonomizável é conhecido pelo tribunal de julgamento, mas não o poderá considerar devido à falta de acordo dos sujeitos processuais. (…) Em jeito de síntese verifica-se que a acusação dos presentes autos imputa ao arguido "o mesmo crime" pelo qual ele já foi julgado e sancionado em processo anterior por decisão transitada em julgado. Assim e porque de acordo com o princípio ne bis in idem consagrado no nº 5 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa, ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, determina-se o arquivamento dos presentes autos." B) O enquadramento do despacho recorrido à luz dos poderes de saneamento referidos no artigo 311º do Código de Processo Penal: De jure Como já enunciado anteriormente, o despacho recorrido foi proferido no momento em que os autos foram recebidos no tribunal do julgamento, para os efeitos previstos no artigo 311º do Código de Processo Penal: Artigo 311.º 1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer. Saneamento do processo 2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente. 3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: a) Quando não contenha a identificação do arguido; b) Quando não contenha a narração dos factos; c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) Se os factos não constituírem crime. O despacho concreto: Com base na análise, apenas e tão-somente, do texto da acusação [5] [6], o juiz do julgamento[7] determinou "o arquivamento dos autos", com base no princípio "ne bis in idem" consagrado no artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, tal como resulta dos últimos dois parágrafos[8] acima reproduzidos do teor do despacho. O parecer suscita a este respeito uma questão formal desprovida de sustentação no despacho recorrido, ao sugerir que o julgador considerou a acusação manifestamente infundada: «Nos termos e para os efeitos do disposto no n° 2, al. a), do artigo 311°, do C. P. Penal, a acusação só pode considerar-se manifestamente infundada nos casos taxativamente enunciados no nº 3 do mesmo preceito, a saber: quando não contenha a identificação do arguido; quando não contenha a narração dos factos; se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou se os factos não constituírem crime. Como é sabido, o exercício pelo juiz de julgamento dos poderes que lhe são conferidos pela alínea a) do n° 2 e pela alínea d) do n° 3 do citado artigo 311º impõem que ele tenha em conta apenas o teor da acusação deduzida, independentemente de saber se ela tem ou não qualquer suporte na prova recolhida durante o inquérito ou se os factos nela narrados ocorreram num contexto diferente daquele que é descrito nessa peça processual. (…) Assim, tendo presente a factualidade plasmada na acusação e considerando os limites a que estão sujeitos os poderes do juiz conferidos pelo artigo 311º, n°s 2 e 3, do C. P. Penal, a que acima se fez referência, salvo o devido respeito, parece-nos que a acusação não poderá ser julgada manifestamente infundada. (...)» Tal argumentação é aferida neste momento, por poder ter interesse para a apreciação do mérito do recurso, o qual é definido, como já referido (nota 4), pelas conclusões da motivação deste. Apreciando. Basta ler o despacho recorrido, para concluir que o tribunal a quo, em passagem alguma, considerou a acusação manifestamente infundada, não tendo a mesma sido rejeitada ao abrigo do disposto no artigo 311º, 2, a) e 3, do Código de Processo Penal. Como enquadrar então, juridicamente, o arquivamento dos autos? O despacho recorrido, apesar de abundantemente fundamentado, omite qualquer fundamentação jurídica de direito adjetivo. Cumpre, ora, responder à questão jurídica atrás enunciada, para aferir a admissibilidade do despacho no âmbito dos poderes de saneamento do juiz do julgamento. De jure: No exercício dos seus poderes de saneamento do processo, incumbe ao juiz do julgamento pronunciar-se sobre "questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa" (artigo 311º, nº 1, do Código de Processo Penal). Aplicando a lei ao caso concreto: Ao decidir que a acusação incorreu na violação do princípio "non bis in idem", o tribunal recorrido está a conhecer um dos efeitos reflexos do caso julgado material formado pela condenação pretérita do arguido o que, na nomenclatura processual, constitui uma exceção dilatória [artigos 576º, 1 e 577º, i), ambos do Código de Processo Civil], que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa [artigo 576º, 2, do mesmo Código] - normas aplicáveis por força do disposto no artigo 4º do Código de Processo Penal -. Conclusão: Nestes termos, é admissível que no despacho de saneamento, o juiz presidente conheça a exceção dilatória de caso julgado – sendo tal particularmente incontroverso, quando na própria acusação esse precedente esteja identificado e caracterizado, como é o caso dos autos –. Por conseguinte, tal matéria pode – e deve - ser conhecida e decidida no despacho saneador, quando os autos evidenciam os factos processuais integrantes dessa exceção que obsta à apreciação do mérito da causa. C) Da exceção de caso julgado: Concretizada a admissibilidade de conhecimento, no despacho recorrido, de exceção que obsta à apreciação do mérito da causa, interessa apreciar e decidir a questão controvertida substancial colocada pelo Ministério Público: a acusação deduzida nos autos não viola o princípio non bis in idem, devendo ser marcado o dia para a realização do julgamento? Dito de outra forma - e formulando a questão na perspetiva da tese do despacho recorrido -, a exceção de caso julgado será operante no caso concreto? Para encontrar a solução, interessa caracterizar a evolução histórico-normativa do princípio "non bis in idem", para facilitar a interpretação e integral compreensão dessa garantia judiciária no quadro legal atual, com interesse para a decisão. a) A evolução histórico-normativa do princípio non bis in idem: Esta garantia processual e constitucional dos cidadãos é estruturante no contexto de um estado de direito democrático. A revolução francesa terminou com o sistema de justiça medieval, marcada pela estrutura inquisitória e tortura como modo de obtenção de prova – a confissão –, por um sistema de prova legal ou tarifada, pelo secretismo, pelas sentenças infundamentadas e pelo caráter escrito do processo, características condizentes com os arbítrios do poder absoluto. A Declaração dos Direitos do Homem, datada de 26 de Agosto de 1789 foi o primeiro texto de direito internacional a proclamar os princípios de nullum crimen sine lege (artigo 7º), da nulla poena sine lege (artigo 8º) e da presunção de inocência (artigo 9º). Com tal mudança de paradigma, acompanhando também as mudanças políticas, o sistema processual passou de medieval para liberal, imperando a partir de então o princípio da legalidade e o da oralidade, substituindo a estrutura inquisitória pela estrutura acusatória do processo penal, com a separação entre o julgador e acusador, de modo a garantir a independência daquele e, também, a autonomia deste. A audiência de julgamento passou a ser pública, oral e contraditória e a prova passou a ser apreciada de forma livre e objetiva pelos julgadores, que passaram admitir jurados – fruto da passagem do poder dos monarcas para os cidadãos (o povo). A publicidade das audiências passou a permitir um controlo público das decisões judiciais, que passaram – mais tarde - a ser motivadas – já nos estados sociais de direito -, contribuindo, assim, para o seu prestígio, reforçando a confiança dos cidadãos na justiça pública e racional. Em caso de dúvida, não podendo ser alcançado o grau de convicção necessário para uma condenação, o arguido devia ser absolvido, por força do primado do princípio in dubio pro reo. Essa garantia judiciária no contexto de um processo penal de base racional, aumentou a confiança no sistema judicial, ao ponto do caso julgado ter reforçado a sua credibilidade[9] e eficácia, enquanto expressão da verdade definitiva, emergente do emprego reforçado da razão nas sentenças e nos procedimentos, abrindo caminho para o reforço da garantia do ne bis in idem, no conforto de uma realidade que minorava as hipóteses de erro judicial. Esta garantia apenas foi introduzida, pela primeira vez - nos termos em que a conhecemos hoje - na conhecida Emenda V da Constituição dos Estados Unidos da América[10], preconizando o enunciado de que “ninguém será julgado duas vezes pela mesma ofensa”[11]. Porém, foi rapidamente replicada noutros países pelas correntes políticas liberais e republicanas, com destaque para a Constituição Francesa de 1791 (no Capítulo V, nº. 9, referente ao Poder Judicial). O fundamento jurídico do caso julgado resultava da necessidade social de aplicar a lei penal aos casos concretos e com caráter definitivo, constituindo um imperativo político de pacificação social[12], uma vez que contribuía para a comunidade interiorizar a segurança jurídica das decisões, acreditando e aceitando a verdade e justiça das sentenças. Tal conceção de justiça apenas admitia a definição abstrata de casos de revisão das sentenças, com papel meramente residual, destinado a solucionar os casos patológicos, inesperados, em que após a prolação da sentença se constatava o erro judiciário – tal como hoje se admite, em Portugal e noutros países, no recurso de revisão -. b) Do direito internacional: Com a globalização dos direitos humanos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e promulgada pela Organização das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, constituiu o documento de maior relevância histórica do plano dos direitos humanos, reconhecendo a democracia como o único regime político eficaz para assegurar os direitos humanos e a dignidade humana e definindo um conjunto de garantias judiciárias fundamentais dos cidadãos, assegurando, designadamente, um processo equitativo e público, bem como um tribunal independente (artigo 10º), densificado, mais tarde, por diversos instrumentos, incluindo nessas garantias, então, o "non bis in idem". Este surgiu como resposta a diversas necessidades, nomeadamente, para garantir a segurança jurídica, de modo a limitar o poder de perseguição e de julgamento, autolimitando os Estados e proibindo os legisladores e demais poderes estaduais a prever e implementar a perseguição penal múltipla, mediante uma pluralidade de julgamentos da mesma conduta[13] e, ainda, para responder a novas formas de criminalidade transfronteiriça, de modo a evitar uma duplicação de procedimentos criminais pelos mesmos factos nos países distintos em que a mesma teve lugar. O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 [14] [15] veio conferir-lhe, assim, o caráter de princípio universal, através do seu artigo 14.7: “ninguém poderá ser processado ou punido por um delito pelo qual já foi absolvido ou condenado por sentença passada em julgado, em conformidade com a lei e com os procedimentos penais de cada país”. Segundo Binder[16], o princípio non bis in idem tem efeitos muito concretos no processo penal: a) a impossibilidade de modificar uma sentença transitada em julgado contra o acusado; b) o acusado que foi absolvido não poder ser condenado num segundo julgamento; c) aquele que foi condenado não pode ser novamente condenado por uma sentença mais grave. De acordo com o mesmo autor, por força do princípio ne bis in idem, a única revisão possível de uma sentença é aquela que consiste numa revisão a favor do condenado. A nível europeu, os direitos humanos principais foram reconhecidos pela Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, adotada em Roma, em 4 de Novembro de 1950[17], tendo o princípio "non bis in idem" sido reconhecido, expressamente, no artigo 4º do protocolo (de Estrasburgo) n° 7 àquela Convenção, datado de 22 de Novembro de 1984, que conheceu a sua redação definitiva com o Protocolo n° 11, a partir da sua entrada em vigor, em 1 de Novembro de 1998): Artigo 4.º 1. Ninguém pode ser penalmente julgado ou punido pelas jurisdições do mesmo Estado por motivo de uma infracção pela qual já foi absolvido ou condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal desse Estado.(Direito a não ser julgado ou punido mais de uma vez) 2. As disposições do número anterior não impedem a reabertura do processo, nos termos da lei e do processo penal do Estado em causa, se factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior puderem afectar o resultado do julgamento. Chama-se a atenção para a possibilidade inovadora prevista no número 2 deste preceito, onde, pela primeira vez, se admite a possibilidade de reabertura do processo, se "factos novos (…) puderem afectar o resultado do julgamento", exigindo, para isso, somente, que a lei e o processo penal do Estado em causa o admita. Contudo, reabrir um processo não significa um segundo processo – o pretendido pelo Ministério Público no caso em apreço -. Existem países, como a Alemanha, cuja legislação processual penal admite a reabertura do processo em situações previstas na lei, abrangendo situações como aquela que está na origem destes autos – como adiante se concretizará, em pormenor, na análise da questão processual em apreço. Adiantando de algum modo a solução, a reabertura de um processo penal, em Portugal, após o trânsito em julgado da decisão final, apenas é possível através do recurso de revisão – que não contempla a hipótese trazida a juízo, nos presentes autos -. Mais recentemente, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias, de 18 de Dezembro de 2000 (2000/C 364/01), contemplou no seu artigo 50º o mesmo princípio, no seu enunciado mais básico: «Ninguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei.» Essa norma tem como destinatários os estados-membros - dos quais Portugal faz parte (artigo 51º) - apenas quando apliquem direito da União Europeia e, nos termos do disposto no artigo 52º, nº 3 e na medida em que a Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem - o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa convenção, a não ser que a Carta garanta uma proteção mais extensa ou mais ampla -. a) A arquitetura jurídica portuguesa do princípio non bis in idem: Perante o já exposto, o princípio non bis in idem surge enquanto garantia dos cidadãos num processo penal garantístico, estando assegurada, desde logo, por instrumentos de direito internacional e pela Constituição. Interessa, agora, densificar esse princípio – sabendo-se, desde já, que as normas de direito internacional atrás citadas se encontram em vigor no nosso país -, identificando no ordenamento jurídico nacional a sua plasticidade no contexto do próprio sistema penal: a solução deste recurso depende, em grande medida, da noção de "mesmo crime" juridicamente relevante para estabelecer se há, ou não, uma violação da garantia non bis in idem. Como é consabido, é o direito penal que define as condutas delituosas de acordo com o princípio da legalidade (artigo 1º do Código Penal).[18] A ordem jurídica penal tem a função substancial de selecionar os comportamentos (e omissões) humanos mais graves e prejudiciais, suscetíveis de prejudicar valores fundamentais à convivência em sociedade, descrevendo aqueles infrações penais (tipificação) e concretizando as sanções correspondentes. A existência de um direito substantivo também pressupõe, num Estado de Direito, a existência de um corpo de normas adjetivas necessárias à reta aplicação do direito penal. Regulam, entre o mais, o direito de iniciar a persecução penal (fase declarativa), caso ocorra um facto típico e antijurídico descrito anteriormente por lei penal e de fazer cumprir as decisões judiciais condenatórias (fase de execução). Nos estados de direito democrático, o direito penal caracteriza-se, designadamente, pelo princípio da intervenção mínima, enquanto as respetivas normas adjetivas primam pela garantia máxima dos direitos individuais fundamentais, defendendo, deste modo, os direitos humanos positivados nas Constituições e no direito internacional. Uma dessas garantias é consubstanciada pelo princípio non bis in idem. Tais dicotomias, garantias e princípios têm expressão positivada na nossa Constituição: ARTIGO 29.º 1. Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior. (Aplicação da lei criminal) 2. (…). 3. Não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior. 4. Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido. 5. Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime. 6. Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos. Proibindo, expressamente, que alguém possa ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime", o legislador constitucional consagrou, materialmente, uma verdadeira exceção dilatória – o caso julgado – conhecida sempre que tenha havido o impulso processual inicial para a abertura de um novo processo penal que tenha por objeto um crime que já tenha sido julgado por sentença transitada em julgado. A verificação da existência de caso julgado implica a extinção do processo penal novo iniciado após a formação daquele, constituindo, assim, uma causa de extinção da ação penal indevida. No caso do primeiro processo ainda não ter sido concluído, com sentença transitada em julgado, verifica-se, no segundo processo, a exceção dilatória de litispendência [arts. 576º, 1 e 577º, i) do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 4º do Código de Processo Penal], a qual tem a mesma consequência jurídica do caso julgado: a extinção da ação penal indevida (a última). As duas exceções encontram no plano processual penal a sua ratio legis e ainda, mais do que amparo, base constitucional, no princípio non bis in idem, expresso no preceito constitucional acima reproduzido. O caso julgado constitui, assim, um efeito processual da sentença transitada em julgado, que por elementares razões de segurança jurídica, impede que o que nela se decidiu seja atacado dentro do mesmo processo (caso julgado formal) ou noutro processo (caso julgado material). c.1. A vertente de direito constitucional do thema decidendum: Recordando a doutrina de Gomes Canotilho e Vital Moreira[19] a garantia prevista e estatuída no nº 5 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa comporta duas dimensões importantes, a saber: a) como direito subjetivo fundamental – na medida em que garante ao cidadão o direito a não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra atos estaduais violadores desse direito; e b) enquanto princípio constitucional objetivo (dimensão objetiva do direito fundamental, obrigando o legislador à confirmação do direito processual e à definição do caso julgado material de modo a impedir a existência de uma pluralidade de julgamentos pelo mesmo facto. Qual é o facto histórico relevante no caso dos autos? O processo revela – desde logo, no texto da própria acusação proferida nos autos - que o agente do crime foi condenado, designadamente, como autor material de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, cometido no dia 4 de Junho de 2009, entre as 9h e as 9h30m, no interior da sua residência sita no …, nº …, …, no Porto, tendo como vítima C…. Para tanto, resultou provado que o arguido praticou as agressões com esse intuito, tendo agido de forma deliberada, livre e consciente, pretendendo, efetivamente, matar o ofendido. O facto histórico pelo qual o arguido foi julgado e condenado diz respeito à sua conduta acima descrita, praticada no dia 4 de Junho de 2009 e que constituiu o objeto do processo nº 839/09.1JAPRT. Após o trânsito em julgado da sentença condenatória, a vítima do crime veio a falecer, indiciariamente[20], em consequência da agressão produzida pelo arguido e que foi objeto do primeiro processo. Formulada a acusação por homicídio qualificado consumado, com base em tais factos, não foi requerida a abertura de instrução e, recebidos os autos no tribunal a quo, o despacho recorrido reconheceu a existência desse caso julgado e, dessa forma, reconheceu o direito subjetivo do arguido a não ser julgado mais do que uma vez pela mesma conduta. Inconformado com tal decisão, o Ministério Público contrapõe, com alguma temeridade, que os factos vertidos na nova acusação corporizam "um facto novo posterior, mais grave, que não é consumido pelo facto já submetido a julgamento e que justifica a aplicação de nova pena, caso se demonstre, que o mesmo, resultou da agressão praticada pelo arguido, provada por sentença transitada em julgado."[21] A fragilidade desta afirmação resulta ainda mais patente da conclusão que o parecer extrai da mesma, ainda na mesma folha do processo: "Não se configura, portanto, qualquer inadmissível duplicação de julgamentos, nem do mesmo crime, nem dos mesmos factos, que possa configurar a violação do princípio ne bis in idem". Essa fragilidade é reconhecida através de uma análise bidimensional dos factos que constituem o objeto do processo penal: a) no plano do direito substantivo; e b) na vertente do direito adjetivo. c.2. A vertente de direito substantivo: Como o artigo 1º, al. a), do Código de Processo Penal define enquanto "crime" o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais, a solução do caso concreto exige um excurso pelo direito substantivo, de modo a densificar a noção de "mesmo crime" relevante para a interpretação da proibição do "non bis in idem" estatuída no artigo 29º, 5, da Constituição da República Portuguesa, A relevância do facto, que legitima "a intervenção do detentor do ius puniendi (Estado), enquanto única entidade susceptível de cominar, legitimamente, penas criminais"[22] é a ofensa - ou o perigo da sua lesão - a um bem jurídico. José de Faria Costa, no seu estilo inconfundível de escrita, considera que "um bem é ofendido sempre que a sua jurídico-normativa intencionalidade se não cumpre por mor de uma acção humana responsável[23], reconhecendo um segundo "grau de ofensividade", quando tal conduta se limita a colocar em perigo um bem jurídico – como sucede, por exemplo, num crime de resultado (como é o caso do homicídio) tentado -. A conduta do arguido esgotou-se no dia 4 de Junho de 2009, entre as 9h e as 9h30m. A não verificação do resultado pretendido pelo agente do crime – a morte da vítima –, tanto nesse dia, como até à data da formulação da acusação no primeiro processo (que fixou o seu objeto), ocorreu independentemente da sua vontade, que se esgotou na conduta homicida (tentada). Não há um novo (f)acto praticado pelo agente do crime. O bem jurídico tutelado pelo tipo legal de crime (a vida) é o mesmo do tipo de crime (homicídio qualificado) pelo qual o arguido foi condenado. Não há a menor dúvida de que a perda da vida da vítima aumentou incomensuravelmente o desvalor do resultado do crime – emergente da consumação do crime – e, por essa razão de estrutura normativa é que a tentativa é sempre merecedora de uma pena muito menos grave do que a prevista e aplicada para o crime consumado (artigo 23º do Código Penal). Mas a superveniência da morte da vítima, em consequência das agressões homicidas do arguido, não altera o (tipo de) crime em causa – que define o objeto do processo -, consubstanciando a sua consumação uma ofensa, em primeiro grau, do direito à vida do ofendido (continuando a utilizar a nomenclatura do citado penalista). Porém, não se consegue descrever a prática, pelo arguido, do crime de homicídio qualificado consumado, sem utilizar, nessa descrição, de novo, o comportamento que teve no dia 4 de Junho de 2009, entre as 9h e as 9h30m. O (f)acto jurídico-penalmente relevante em causa integra os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime – neste caso, de homicídio qualificado – integrando o crime na sua forma tentada todos os elementos objetivos e subjetivos do mesmo crime, na forma consumada, com exceção da morte da vítima. Por conseguinte, o crime – na definição do artigo 1º, al. a) do Código de Processo Penal – é o mesmo nos dois processos -. [25] A morte da vítima do crime – se tiver resultado da agressão homicida que constituiu objeto do primeiro julgamento - não pode ser (completamente) autonomizada[26] da conduta que produziu as lesões mortais, sob pena de se transformar num facto jurídico neutro, sem relevância jurídico-penal à luz do tipo legal de crime de homicídio. Em suma, o arguido não cometeu um novo crime. Não tendo cometido um novo crime, a sua sujeição a novo julgamento, pelo mesmo facto, violaria a garantia constitucional prevista no artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, além de normas de direito internacional diretamente aplicáveis no nosso país que, em caso de violação, seria susceptível de originar uma ação de incumprimento e de indemnização contra o Estado português. c.3. A vertente do direito adjetivo O processo penal é constituído por um corpo de regras adjetivas necessárias à reta aplicação do direito penal, iniciando-se a persecução penal (fase declarativa), caso ocorra um facto típico e antijurídico descrito anteriormente por lei penal. O caso julgado material constitui um pressuposto processual negativo, impedindo novo procedimento[27] pelo mesmo crime. O crime cometido pelo arguido – na sua forma tentada -, conforme já explicitado à luz da hermenêutica penal, foi objeto do julgamento realizado no âmbito do processo nº 839/09.1JAPRT, que terminou com uma sentença condenatória. A circunstância de, já após esse trânsito em julgado, a vítima do crime ter acabado por falecer, não resulta de outra conduta do agente, que não tenha sido objeto de julgamento. O recorrente contrapõe que não pretende que o arguido seja submetido, de novo, a julgamento pela sua conduta datada 4 de Junho de 2009, que teve como vítima C… – tanto que considera esses factos já processualmente adquiridos (v.g. provados)[28] - o que só pode afirmar com base nos efeitos do caso julgado da sentença produzida naquele processo. E, sabe-se, outra das consequências do caso julgado penal é o do arguido respetivo não poder voltar a ser julgado pelo mesmo crime. O douto parecer do Ministério Público explicitou que «O que realmente se pretende com acusação deduzida (…) sem pôr em causa os factos em que se traduziu a conduta do arguido, já julgados, considere, agora, factos ocorridos posteriormente — entre os quais se contam atos médicos e hospitalares, que ocorreram sem intervenção do arguido, e a subsequente morte da vítima - em ordem a determinar se, entre aquela conduta e a morte, existe, ainda assim, uma relação de causa e efeito.» Porém, mais uma vez, salvo o devido respeito, esta leitura não tem fundamento legal à luz do ordenamento processual penal português – sendo admitido, com outra forma e tramitação, noutros países, como a Alemanha, em que é permitida a reabertura – e nunca um segundo processo – da primeira e única ação penal, para novo julgamento, limitado à apreciação dos factos novos ocorridos após a decisão condenatória [29] [30] -: Os "factos novos" constantes da segunda acusação pública não são autonomizáveis e uma das garantias judiciárias fundamentais do nosso sistema processual penal – que não admite a exceção consubstanciada na tese do Ministério Público – é o da presunção de inocência, a qual seria negada ao arguido no segundo processo – o dos autos – por efeito do caso julgado do primeiro processo, em que foi provada a agressão, com a intenção de matar, descrita na segunda acusação. A única forma de dar cobertura à pretensão do Ministério Público seria no quadro da possibilidade legal prevista no artigo 4º do protocolo (de Estrasburgo) n° 7 à Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, datado de 22 de Novembro de 1984, desde que a legislação processual penal portuguesa admitisse a possibilidade de reabertura do processo, o que não é o caso. Certamente conhecedor das soluções estrangeiras que admitem a possibilidade de reabertura da ação penal, mesmo em desfavor do arguido, assegurando-lhe, no entanto, todas as possibilidades de defesa no mesmo processo, o legislador nacional optou por impossibilitar novo julgamento por factos não autonomizáveis, certamente, pela sua sensibilidade às exigências da comunidade, decidindo o processo legislativo no espaço de discricionariedade legislativa e constitucionalmente consentido[31]: para se perceber a sua opção, importa ter presente a dinâmica da evolução histórica, recordando o escrito de João Conde Correia[32], respeitante ao caso julgado: "Nos períodos mais sensíveis às questões da segurança jurídica, o seu valor tende a expandir-se, inclusivamente perante terceiros (eficácia erga omnes), e as possibilidades da sua revogação são cerceadas. Nos períodos mais sensíveis às questões de justiça material, a sua força tende a comprimir-se, aumentando as possibilidades da sua revogação." O que está em discussão, neste recurso, não é mais do que a expressão dessas duas sensibilidades (tese/antítese), de sentido oposto, competindo a este tribunal reconhecer, como o fez, aquela que é consagrada, legalmente, no presente. Tendo com conta o exposto, conclui-se que o respeito pelo princípio non bis in idem é assegurado, em Portugal, pelos artigos 14.7, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966, 4º do protocolo n° 7 da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, datado de 22 de Novembro de 1984, 50º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, que impedem um segundo julgamento pelo mesmo crime (homicídio qualificado consumado), quando o arguido já foi julgado pelo mesmo crime, na forma tentada. Um segundo processo pelo mesmo crime, seria sempre impossível. A possibilidade de reabertura do (único) processo é vedada pela lei ordinária, que não admite tal possibilidade, a qual seria permitida pelo citado artigo 4º, nº 2 do protocolo n° 7 da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. Desenvolvendo. Conforme já salientado, o número 2 do artigo 4º do protocolo n° 7 da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, datado de 22 de Novembro de 1984, que prevê, expressamente, a possibilidade de reabertura do processo – o que é diferente da instauração de um novo processo, como pretendido pelo recorrente. Ainda de acordo com essa norma, a reabertura do processo deve realizar-se "nos termos da lei e do processo penal do Estado em causa, se factos novos ou recentemente revelados, ou um vício fundamental do processo anterior puderem afetar o resultado do julgamento". É precisamente neste âmbito que a questão deve ser colocada. O legislador ordinário optou, assim, por distanciar-se da opção de política legislativa de outros países, como a Alemanha, que prevê, expressamente, diversas possibilidades legais de reabertura do processo, tipificando as suas causas nos §§ 359º (reabertura em benefício do condenado) 362º, 364º e 373a (reabertura em prejuízo do condenado) no livro IV do Código de Processo Penal alemão (Strafprozessordnung). Em Portugal, a força do caso julgado de decisão condenatória penal apenas admite a limitação emergente da possibilidade de revisão da sentença – não se integrando o caso dos autos em qualquer uma das hipóteses, nem sendo essa a pretensão recursória -: Artigo 449.º 1 - A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:Fundamentos e admissibilidade da revisão a) Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão; b) Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo; c) Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação; d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação. e) Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.os 1 a 3 do artigo 126.º; f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação; g) Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça. 2 – (…). 3 – Com fundamento na alínea d) do n.º 1, não é admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada. 4 – (…). Nenhuma dessas situações contempla o caso dos autos. Pelo exposto, no caso da morte da vítima ocorrer no decurso do processo que tem por objeto um homicídio tentado, essa circunstância só poderá ser tomada em conta, para o efeito de condenação, no âmbito do mecanismo da alteração substancial dos factos (artigo 359º do Código de Processo Penal). Ocorrendo aquela posteriormente e não tendo o legislador ordinário previsto a possibilidade de reabertura do processo, ao abrigo da possibilidade permitida no número 2 do artigo 4º do protocolo n° 7 da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, a morte daquela vítima já não poderá originar novo processo, nem reabrir o primeiro. Imagine-se – como "teste de esforço" à antítese do Ministério Público plasmada no recurso -, a seguinte hipótese: a) que em vez de condenado, o arguido teria sido absolvido da acusação pela prática do crime de homicídio na forma tentada; b) que a vítima do crime descrito na acusação acabaria por falecer, após a prolação da sentença absolutória; c) que o Ministério Público conclui, em novo inquérito, que aquela morte resultou da conduta pela qual o arguido foi absolvido; d) apesar disso, deduz nova acusação contra o arguido, agora pelo mesmo crime, sob a forma consumada. Quando os autos chegassem ao tribunal, sem ter havido instrução, o juiz do julgamento não teria outra solução, senão reconhecer o caso julgado emergente da sentença penal absolutória e, respeitando o princípio non bis in idem, não admitir o segundo julgamento pelo mesmo crime. * Em conclusão, a solução do caso concreto - alcançada pelo despacho recorrido e confirmada por este acórdão - é, salvo o devido respeito, a única que respeita o princípio non bis in idem, tal como resulta da conjugação das normas de direito internacional, da Constituição da República Portuguesa e da legislação ordinária portuguesa.Por conseguinte, o recurso não merece provimento. Das custas processuais: O recorrente está isento de custas (artigo 522º, 1, do Código de Processo Penal). III – DECISÃO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes subscritores, da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em negar provimento ao recurso do Ministério Público.Sem custas. Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator. Porto, em 9 de Março de 2016. Jorge Langweg Fátima Furtado _________ [1] O arguido encontra-se em cumprimento dessa pena de prisão aplicada no âmbito do processo comum com intervenção do tribunal coletivo nº 839/09.1JAPRT. [2] Na sequência da acusação deduzida pelo Ministério Público no âmbito dos presentes autos, D…, mãe do ofendido, requereu a constituição como assistente e deduziu um pedido de indemnização civil contra o arguido, no montante de cinquenta mil euros. [3] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V. [4] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo aplicada de forma uniforme em todos os tribunais superiores portugueses: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1, este pesquisável, nomeadamente, através do aplicativo de pesquisa de jurisprudência disponibilizado pelo ora relator, em http://www.langweg.blogspot.pt. [5] De sublinhar, por ter interesse jurídico para a solução, que o próprio texto da acusação refere a condenação anterior do arguido, em que o tribunal fundamenta a precedência de caso julgado material. [6] Por conseguinte, não foi ofendida a estrutura acusatória do processo penal, tendo sido respeitados os princípios do acusatório ou da "vinculação temática". [7] O juiz do julgamento é referido na norma, enquanto presidente, na medida em que, de acordo com a organização judiciária em vigor à data da sua génese e na atualidade, compete ao juiz titular do processo presidir ao julgamento. [8] Correspondentes aos §§ 5º e 6º de fls. 515. [9] O instituto do caso julgado remonta ao direito romano, mas apenas no plano civil, sem relevância no plano criminal: o princípio ne bis in idem foi consagrado pela Lex Repetundarum de 148 a.C. (Império Romano), que fixou a regra de a sentença põe fim ao processo, não se admitindo nova acão pelos mesmos factos. Em Portugal, curiosamente, em pleno período medieval, já no título 101 do Livro V das Ordenações Afonsinas, encontra-se um afloramento do princípio non bis in idem, limitado aos casos de absolvição: «se algum homem for accusado por algum crime, e livre per sentença d'El Rey que nom seja mais accuzado por elle.» A mesma regra foi retomada no título 73 do Livro V das Ordenações Manuelinas e no título 130 das Ordenações Filipinas, sendo apenas acrescentados os casos de perdão, que não poderão voltar a ser acusados. Foi apenas com a revolução francesa que as sentenças penais ganharam a eficácia de caso julgado nesse país (Constituição da República de 1791), e como sua decorrência, a consolidação do princípio ne bis in idem: “nenhum homem absolvido por um júri pode ser detido ou acusado novamente pelo mesmo ato” (Capítulo V, nº. 9 da C.R.F.). [10] A Constituição foi assinada em 17 de setembro de 1787, tendo entrado em vigor em 21 de junho de 1788. [11] "nor shall any person be subject for the same offence to be twice put in jeopardy of life or limb", conhecido como "double jeopardy". [12] Embora a ideia da «paz jurídica» como fim supremo do processo apenas tenha sido construída na segunda metade do século XX, em substituição da, até então, entronizada «realização da justiça» (Eberhard Schmidthäusser, Zur Frage nach dem Ziel des Strafprozesses, AA. VV., Festschrift für Eberhard Schmidt zum 70. Geburtstag, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1961, pág. 523, apud João Conde Correia, O «Mito do Caso Julgado» e a Revisão Propter Nova, Coimbra Editora, 1ª edição, 2010, pág. 57, nota 57. [13] G. Vivas Ussher, Manual de Derecho Procesal Penal, Tomo I, Alveroni, Córdoba, 1999, pág. 150. [14] Resolução nº 2.200-A da Assembleia-Geral das Nações Unidas, de 16 de dezembro de 1966. [15] A entrada em vigor em Portugal apenas aconteceu no dia 15 de Setembro de 1978, tendo sido aprovação para ratificação pela Lei n.º 29/78, de 12 de Junho, publicada no Diário da República, I Série A, n.º 133/78 (rectificada mediante aviso de rectificação publicado no Diário da República n.º 153/78, de 6 de Julho), o depósito do instrumento de ratificação junto do Secretário-Geral das Nações Unida sucedeu em 15 de Junho de 1978 e o aviso desse depósito do instrumento de ratificação foi publicado no Diário da República, I Série, n.º 187/78, de 16 de Agosto. [16] A. Binder, Introducción al derecho procesal penal, Ad Hoc, Buenos Aires, 2002, pág. 174. [17] A Convenção foi aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, publicada no Diário da República, I Série, n.º 236/78 (rectificada por Declaração da Assembleia da República publicada no Diário da República, I Série, n.º 286/78, de 14 de Dezembro), tendo o instrumento de ratificação sido depositado junto do Secretário-Geral do Conselho da Europa em 9 de Novembro de 1978, conforme resulta do aviso de depósito do instrumento de ratificação publicado no Diário da República, I Série, n.º 1/79, de 2 de Janeiro, tendo entrado em vigor, em Portugal, em 9 de Novembro de 1978. [18] De acordo com o nº 2 (parte geral) do preâmbulo do Código Penal em vigor, «Um dos princípios basilares do diploma reside na compreensão de que toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta. O princípio nulla poena sine culpa, (…) ganhou o voto unânime de todas as forças políticas representadas no Parlamento Alemão, quando se procedeu à apreciação dos grandes princípios orientadores da reforma daquele sistema penal. Acrescente-se que mesmo os autores que dão uma maior tónica à prevenção geral aceitam inequivocamente a culpa como limite de pena. E mais. Podemos dizer, sem querer entrar em pormenores, que ele corresponde, independentemente da perspectiva em que se coloque o investigador, a uma larga e profunda tradição cultural portuguesa e europeia.» [19] Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 3ª edição revista, pág. 194. [20] Na medida em que esse facto foi vertido na segunda acusação pública. [21] Conforme consta do parecer, a folhas 566 dos autos. [22] José de Faria Costa, Noções Fundamentais de Direito Penal (fragmenta iuris poenalis), Coimbra Editora, 4ª edição, Setembro de 2015, pág. 161. [23] Ibidem, pág. 163. [24] José de Faria Costa, op. cit. pág. 173, nota 236. [25] Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, tomo III, Editorial Verbo, 2000, 2ª edição revista e actualizada, nas págs. 44 e 45, escreve, a propósito, que "Entendemos que a limitação do facto se há-de fazer, necessariamente em função do bem jurídico protegido (…). O facto descrito na acusação há-de corresponder ao facto típico previsto nas normas, em razão das quais é punível e cuja aplicação é pedida pelo tribunal (…). (…) Numa primeira aproximação, por mesmo crime deve considerar-se a mesma factualidade jurídica e o seu aspecto substancial, os elementos essenciais do tipo legal pelos quais o arguido foi julgado. (…) Em conclusão: o crime deve considerar-se o mesmo quando exista uma parte comum entre o facto histórico julgado e o facto histórico a julgar e que ambos os factos tenham por objecto o mesmo bem jurídico ou formem, como acção que se integra na outra, um todo do ponto de vista jurídico." (negrito editado apenas no texto desta nota). À luz desta doutrina, que corresponde à posição fundamentada neste acórdão, não é admissível o segundo julgamento pretendido pelo Ministério Público. [26] Vinício Ribeiro, in Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2008, pág. 750, considera factos novos autonomizáveis "quando os mesmos constituírem um quadro fáctico completamente distinto do que consta da acusação ou pronúncia”. [27] Germano Marques da Silva, op. cit. pág. 41. [28] Esta leitura não tem fundamento legal à luz do ordenamento processual penal português – sendo admitido noutros países, como a Alemanha -. Concretamente, uma das garantias judiciárias fundamentais do nosso sistema processual penal – que não admite a exceção consubstanciada na tese do Ministério Público – é o da presunção de inocência, a qual seria negada ao arguido no segundo processo – o dos autos – por efeito do caso julgado do primeiro processo, em que foi provada a agressão, com a intenção de matar descrita na segunda acusação. [29] § 373a (reabertura em prejuízo do condenado) no livro IV do Código de Processo Penal alemão (Strafprozessordnung). [30] Assim se compreende o fundamento da abundante citação, pelo Ministério Público, da doutrina alemã e italiana, uma vez que a reabertura do processo é permitida pela lei processual alemã. [31] A opção do legislador, criticada na doutrina, ficou bem evidenciada com a redação introduzida pela Lei n° 48/2007, de 29 de Agosto, ao artigo 359° do Código de Processo Penal, ao consagrar, em forma de lei, que apenas os factos novos autonomizáveis dão lugar à abertura de um novo processo e, quanto aos factos novos não autonomizáveis, a continuação do processo sem alteração do respectivo objecto. Trata-se, segundo se refere na exposição de motivos da proposta de Lei n* 109/X13, de uma decorrência dos princípios non bis in idem e do acusatório. Tal opção de política legislativa não foi ainda considerada materialmente inconstitucional pelo Tribunal Constitucional. [32] O «Mito do Caso Julgado» e a Revisão Propter Nova, Coimbra Editora, 1ª edição, 2010, págs. 30-31. |