Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3571/19.4T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS GIL
Descritores: SEGURO DE DANOS
PRIVAÇÃO DE USO
Nº do Documento: RP202011233571/19.4T8VNG.P1
Data do Acordão: 11/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No seguro de danos, a prestação devida pelo segurador com base no contrato de seguro está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro.
II - O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor, incumbindo ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso não procedem de culpa sua.
III - A omissão da seguradora de pagamento da prestação acordada no contrato de seguro de danos sem cobertura do dano da privação do uso obstou a que o segurado pudesse proceder à reparação do seu veículo e gozar do mesmo desde a data do vencimento daquela obrigação e bem assim a suportar despesas de parqueamento da viatura, ou seja, desde a data da recusa infundada da seguradora em assumir a obrigação de pagamento da prestação acordada no contrato de seguro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 3.571/19.4T8VNG.P1
Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
1. Relatório
Em 23 de abril de 2019, no Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia, Comarca do Porto, B… instaurou ação declarativa sob forma comum contra C… – Companhia de Seguros, S.A. pedindo a condenação da ré ao pagamento da quantia de €10.893,41, a título de reparação do veículo coberto pelo seguro, da quantia de €1.070,10, a título do custo do parqueamento do veículo e até se iniciar a reparação, da quantia de €750,00, a título de danos não patrimoniais e da quantia de €2.800,00, a título de dano da privação do uso do veículo, tudo acrescido de juros de mora contados à taxa legal desde a citação.
Para fundamentar as suas pretensões o autor alegou, em síntese, que é dono de um veículo automóvel de matrícula ..-IU-.., tendo celebrado com a ré um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil emergente da circulação do mesmo, com cobertura dos danos próprios no citado veículo; no dia 07 de outubro de 2018, pelas 20h45, na A1, sentido norte/sul, próximo da D…, E…, quando o conduzia a uma velocidade de cerca de cinquenta quilómetros por hora, foi colidir contra um veículo que circulava à sua frente e que havia parado, sem que disso se tivesse apercebido, daí resultando os danos que pretende ver ressarcidos.
Citada, a ré contestou impugnando a ocorrência do sinistro participado pelo autor, referindo variados elementos que, na sua perspetiva, suscitam fortes dúvidas sobre a verificação do sinistro, como seja o não ter sido chamada a autoridade policial ao local, não ter nenhum dos condutores fotografado os veículos alegadamente envolvidos no sinistro no local em que o mesmo alegadamente ocorreu e logo após essa colisão, a circunstância do autor ser sócio-gerente da sociedade que procedeu à reparação do veículo sinistrado, enquanto o condutor bem como o dono do outro veículo envolvido no alegado sinistro são sócios de uma oficina automóvel, tendo tal veículo estado envolvido num sinistro ocorrido em 24 de janeiro de 2018 e do qual resultaram danos na traseira do mesmo, não correspondendo a referência do quadrante em que era registada a quilometragem deste veículo à que deveria ter sido utilizada, nem correspondendo os danos verificados nos dois veículos à dinâmica do alegado sinistro e, a ser devida indemnização ao abrigo do seguro de danos próprios a mesma cinge-se ao valor de €4.806,00, correspondente ao valor estimado da reparação – €13.481,37 – deduzido do valor dos salvados – €7.250,00.
Após audição das partes, dispensou-se a audiência prévia, proferiu-se despacho saneador tabelar, fixando-se o valor da causa no que foi atribuído pelo autor, dispensou-se a prolação do despacho previsto no nº 1, do artigo 596º do Código de Processo Civil, admitiram-se as provas testemunhais oferecidas pelas partes, indeferiu-se a requisição de prova documental requerida pela ré e tendente a aferir da compatibilidade dos danos nos veículos alegadamente envolvidos no sinistro com a alegada dinâmica do mesmo, admitindo-se a requisição de documentação fiscal e bem assim, parcialmente, o depoimento de parte do autor.
Realizou-se a audiência final em duas sessões e em 25 de junho de 2020 foi proferida sentença[1] que terminou com o seguinte dispositivo que se reproduz na parte pertinente ao objeto do recurso:
Em face do exposto, vistas as já indicadas normas jurídicas e os princípios indicados, julgo a acção parcialmente procedente e condeno a ré a pagar ao autor a quantia de €4.806,00 (quatro mil oitocentos e seis euros), acrescida dos juros vencidos e dos vincendos desde a citação e até efectivo e integral pagamento.
Em 17 de Setembro de 2020, inconformado com a sentença, B… interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões[2]:
………………………………………………….
………………………………………………….
………………………………………………….
C… – Companhia de Seguros, S.A. contra-alegou pugnando pela total improcedência do recurso.
Atenta a natureza estritamente jurídica do objeto do recurso e a existência de um vasto lastro jurisprudencial sobre as questões a resolver, com o acordo dos restantes membros do coletivo, dispensaram-se os vistos, cumprindo apreciar e decidir.
2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redação aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
2.1 Da indemnização devida pela reparação do veículo;
2.2 Da indemnização por privação do uso e pelas despesas de parqueamento do veículo sinistrado;
2.3 Da compensação por danos não patrimoniais.
3. Fundamentos de facto exarados na sentença recorrida não impugnados e que se mantêm por não se verificar um qualquer caso de alteração oficiosa da referida factualidade
3.1 Factos provados
3.1.1
O autor é proprietário do veículo automóvel de marca N…, modelo … TDI e matrícula ..-IU-.. e celebrou com a ré (no exercício da atividade profissional daquela), um contrato de seguro obrigatório, titulado pela apólice número ..........., através do qual a ré assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação daquele veículo automóvel, resultando daquela apólice, bem como das condições particulares da mesma que a mesma inclui, entre outras, a cobertura de danos próprios.
3.1.2
No dia 7 de outubro de 2018, o autor deslocou-se ao F…shopping, fazendo-se acompanhar pela sua esposa e filha menor.
3.1.3
Aproximadamente pelas 20h35m, o autor e a família saíram do F…shopping com o intuito de regressar a casa.
3.1.4
No dia 7 de outubro de 2018, pelas 20:45, no nó de acesso à A1, em …, Vila Nova de Gaia, sentido norte - sul, teria ocorrido[3] um embate a envolver os seguintes veículos: a) Ligeiro de passageiros, da marca e modelo N… … TDI, de cor cinzenta escura, com a referida matrícula ...-IU-.., propriedade do autor, segurado da ora contestante, e pelo mesmo conduzido; e b) Ligeiro de passageiros, da marca e modelo E… … TDS, de cor …, com a matrícula ..-..-LA, propriedade de G… e conduzido por H…. A faixa de rodagem descreve uma curva apertada à direita seguida de uma pequena reta com linha descontínua de aceleração (marca M6a do Regulamento de Sinalização de Trânsito (RST)), para ingresso na A1. A anteceder o nó de acesso, existe a seguinte sinalização vertical do RST: - C4e (trânsito proibido a peões, a animais e a veículos que não sejam automóveis ou motociclos); - C3h (trânsito proibido a veículos agrícolas); e - C13 (proibição de exceder a velocidade máxima de 40 Km/h). Na finalização do acesso à A1 os condutores deparam-se com o sinal B1 (cedência de prioridade).
3.1.5
O autor, após sair da A44 – por volta das 20h45m – e se encontrar a circular já na autoestrada A1, no sentido Norte/Sul, na descrita via de aceleração, enquanto olhava para o espelho da sua lateral esquerda para conseguir mudar de faixa de rodagem em segurança, não se apercebeu de que o veículo que seguia imediatamente à sua frente havia parado e embateu no mesmo.
3.1.6
Os dois veículos intervenientes circulavam na mesma via e sentido, sendo que o LA precedia o IU.
3.1.7
O condutor do LA imobilizou o seu veículo para entrar na A1 e, na sua retaguarda, o autor, ao entrar também na faixa de rodagem da A1[4].
3.1.8
O autor embateu no veículo de marca E…, com a matrícula ..-..-LA, cujo condutor era H… e que se fazia acompanhar pela sua filha.
3.1.9
O autor circulava a uma velocidade de aproximadamente de 50 (cinquenta) quilómetros por hora.
3.1.10
Após o embate, ambos os veículos ficaram imobilizados.
3.1.11
O IU embateu com a sua frente lateral direita na traseira lateral esquerda do LA.
3.1.12
O autor assumiu de imediato a responsabilidade pelo acidente.
3.1.13
O IU e o LA ficaram imobilizados tendo sido chamado o reboque.
3.1.14
O autor, juntamente com o condutor do outro veículo preencheram a Declaração Amigável de Acidente Automóvel, descrevendo o acidente exatamente nos moldes em que o mesmo ocorreu.
3.1.15
O reboque que transportou o veículo automóvel do autor pertence à sociedade por quotas que gira sob a firma I…, Lda., tendo o autor, a sua esposa e filha sido transportados até à sua casa de morada de família num táxi, cujo custo foi suportado integralmente pela aqui ré [a parte final deste fundamento de facto, aliás inócuo para a sorte do litígio, constava do artigo 18º da petição inicial e foi impugnado expressamente pela ré no artigo 61º da contestação].
3.1.16
No dia seguinte a ter ocorrido o acidente, o autor entregou a Participação que havia preenchido ao seu Mediador de Seguros.
3.1.17
O autor recebeu uma carta, datada de 18 de outubro de 2018 e remetida pela aqui ré, comunicando-lhe a perda total do veículo automóvel.
3.1.18
O autor remeteu uma mensagem eletrónica a solicitar mais informações, no dia 7 de novembro de 2018.
3.1.19
Aquele departamento respondeu, pela mesma via, no dia 12 de novembro de 2018, informando de que o processo ainda se encontrava na fase de instrução, não tendo sido assumida qualquer responsabilidade.
3.1.20
Volvidas mais de duas semanas desde a receção daquela mensagem eletrónica, foi reiterado o pedido de informações sobre o estado do processo.
3.1.21
Decorridos mais alguns dias, o autor recebeu uma missiva, datada de 7 de dezembro de 2018 onde a aqui ré declinava a sua responsabilidade com o seguinte fundamento: “Terminada a instrução do nosso processo e no seguimento da averiguação levada a cabo pelos nossos serviços técnicos, concluímos que o sinistro não ocorre nos moldes em que é participado. Nessa conformidade, estamos impedidos de prosseguir com a regularização dos prejuízos, declinando qualquer responsabilidade inerente à presente ocorrência.”.
3.1.22
O autor remeteu uma nova interpelação em 17 de dezembro de 2018.
3.1.23
A ré remeteu uma missiva, datada de 28 de dezembro de 2018 onde reiterava a informação anteriormente transmitida.
3.1.24
O IU ficou danificado na parte da frente, frente direita, capô, pára-brisas, suspensão direita (braços, direção, amortecedor, jante partida e pneu direito rebentado) e instalação cortada[5], entre outras.
3.1.25
O autor procedeu à reparação do veículo.
3.1.26
As reparações levadas a cabo foram as que se encontram discriminadas na fatura junta, pelo preço de €10.893,41 (dez mil oitocentos e noventa e três euros e quarenta e um cents).
3.1.27
O IU esteve desde o sinistro “parqueado” numa zona coberta e fechada (devido a ter o pára-brisas estalado), o que importou o pagamento da quantia de €1.070,10 (mil e setenta euros e dez cents)[6].
3.1.28
Com os factos relatados o autor sentiu-se triste e frustrado, nomeadamente, com a posição que a ré assumiu, que lhe causou sentimentos de ansiedade e tormento.
3.1.29
Por vezes o autor pediu à sua esposa que o fosse levar ou buscar ao trabalho, ou de ter de aguardar que a mesma tivesse disponibilidade para o ir buscar.
3.1.30
Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ........., encontrava-se transferida para a ré, em 7 de outubro de 2018, a responsabilidade civil, por danos provocados a terceiros, emergente da circulação rodoviária do veículo com a matrícula ..-IU-.., sendo que a referida apólice cobria ainda os danos próprios do veículo, conforme ressalta da cobertura “choque, colisão e/ou capotamento” inscrita na respetiva ata, com o capital de €12.056,00.
3.1.31
A autoridade policial não foi chamada ao local por nenhum dos intervenientes, que preencheram a Declaração Amigável de Acidente Automóvel (DAAA).
3.1.32
Os condutores também não tiraram fotografias aos veículos no local do acidente.
3.1.33
Foi acionada a assistência em viagem para o veículo do autor, tendo o IU sido rebocado para a empresa de que o autor é sócio.
3.1.34
O IU embateu com a frente direita na traseira do lado esquerdo do LA.
3.1.35
O autor é sócio-gerente da sociedade “J…, Lda.”, com o NIPC ………, que se dedica à reparação mecânica de automóveis -, sociedade que emitiu a fatura ……/…., de 18/04/2019, no valor de €10.893,41, a fatura ……./…., de 04/03/2019, no valor de €1.070,10, e o recibo n.º ……./…., respeitante ao pagamento em dinheiro da fatura anterior[7].
3.1.36
H…, condutor do LA, e G…, seu proprietário, são sócios da oficina automóvel “K…, Lda.”, com o NIPC ………, que se dedica a serviços de chapeiro e pintura.
3.1.37
O LA encontra-se seguro sob a apólice n.º ……………. da congénere “L…”, desde 14-07-2018, tendo como tomador H….
3.1.38
Anteriormente, entre 18-01-2017 e 17-07-2018, o LA esteve seguro sob a apólice da ré n.º ........., tendo como tomador G…, proprietário do veículo.
3.1.39
O LA sofreu acidentes anteriormente, um dos quais em 24-01-2018, um acidente com três veículos na sequência do qual o LA sofreu danos na traseira, tendo sido peritado pela congénere “M…”.
3.1.40
O LA foi submetido a inspeção periódica obrigatória (IPO) em 12-09-2018, quando registava 239.370 Kms., apresentava diversas anomalias e reprovou na inspeção, com a indicação de que “o veículo pode circular até à reinspeção sem passageiros nem carga”.
3.1.41
Deveria ter sido reparado e submetido a reinspeção até 12-10-2018.
3.1.42
As anomalias que tinha eram: 112 - Eficiência travagem - veículos entre 25% e 50%; 113 - Força de travagem inadequada de uma ou mais rodas eixo 1 esquerdo; 211 - Alinhamento de direção - Desvio 10m/Km; 213 - Rótula com guarda-pós em mau estado, alinhamento incorreto luzes max e médios; 530 - Emissões generalizadas de óleo; e 532 – Amortecedor diferença de eficiência entre 2 rodas sup. a 30%.
3.1.43
Não foi possível verificar a quilometragem que o LA registava no quadrante pois os números não apareciam na sua totalidade.
3.1.44
O quadrante, com a referência ……., não se encontrava devidamente fixado.
3.1.45
Para o modelo e ano do LA, em caso de necessidade de substituição do quadrante, seria utilizada a referência ……. e não a mencionada referência …….. Até 1997 a referência utilizada era a ……...
3.1.46
O IU regista deformação elevada na frente direita e lateral direita frente, com afetação do pára-choques, capô, guarda-lamas, ótica, pneu, jante e outros elementos internos.
3.1.47
O capô do IU apresenta vestígios de transferência de tinta azul que se sobrepõem a outros danos, nomeadamente fricção com vestígios de arrastamento.
3.1.48
Os danos nos componentes envolventes ao farol apresentam deformação elevada e vestígios de ferrugem.
3.1.49
Não há registo de danos corporais.
3.1.50
A ré estimou que os danos que apresentava o IU implicavam uma reparação cujo valor ascendia à quantia de €13.481,37.
3.1.51
O salvado valia €7.250,00.
3.2. Factos não provados
3.2.1
O acidente em que foi interveniente o autor não foi o único a ocorrer naquele dia, hora e local, pois devido ao embate entre os veículos supra identificados, alguns dos veículos automóveis que circulavam já na A1 também embateram entre si.
3.2.2
No início do corrente ano, o autor diligenciou no sentido de serem emitidos dois relatórios sobre o estado em que o veículo se encontrava.
3.2.3
O IU é imprescindível para o dia a dia da vida do autor.
3.2.4
A vida do autor ficou condicionada à boa vontade de terceiros para que lhe emprestassem um carro para poder circular e deslocar-se para o seu trabalho diariamente, como sempre fez.
3.2.5
Foi acionada a assistência em viagem para o veículo do autor, pelas 20:51 horas, acabando ambos os veículos rebocados pela empresa “I…”.
3.2.6
O autor olhou para a esquerda e para o espelho retrovisor da esquerda.
3.2.7
O condutor do LA referiu ao perito, em 19/10/2018, que era sua intenção proceder à reparação das anomalias, tendo já encomendado as peças, que ainda não recebera, pelo que não possuía as respetivas faturas.
3.2.8
O nível de deformação e as caraterísticas dos danos são compatíveis com embate em superfície metálica (rail ou similar).
3.2.9
Os danos (LA) na mala, no farol de trás esquerdo e guarda-lamas esquerdo, dada a elevada deformação visível, parecem resultar de sinistro distinto, provavelmente de embate com superfície dura/metálica.
4. Fundamentos de direito
Da indemnização devida pela reparação e pelas despesas de parqueamento do veículo e pela privação do uso do veículo sinistrado e da compensação por danos não patrimoniais
O recorrente, abonando-se com variada jurisprudência das Relações[8] pugna pela procedência total da ação, referindo ainda que “tendo prosseguido o litígio para a fase judicial, as regras a aplicar serão as da responsabilidade civil e da obrigação de indemnizar” e ainda que a recorrida nunca levantou a questão da onerosidade da reparação.
No que tange as questões decidendas, escreveu-se na decisão recorrida o seguinte[9]:
Como já ficou fito o contrato de seguro em causa foi celebrado depois da entrada em vigor do D. Lei n.º 72/2008, de 16.04, que instituiu o regime jurídico do contrato de seguro (RJCS). Tendo em conta o princípio da liberdade contratual (artigo 405.º do CCivil), consagrado no artigo 11.º do RJCS, o contrato de seguro é regulado pelas estipulações da respectiva apólice, que não sejam proibidas pela lei e, subsidiariamente, pelas disposições do RJCS aprovado pelo citado Decreto Lei e subsidiariamente pelas disposições da lei comercial e da lei civil (artigo 4.º do RJCS).
O contrato em causa nestes autos integra o tipo denominado “seguro de danos” - título II, do RJCS-artigos 123.º a 174.º, que, em regra, estabelece uma quantia máxima para a cobertura do dano nele previsto, pagando-se o montante de tal dano até esse valor.
Ora, é sabido que o contrato de seguro se destina a repor tão somente a situação real existente à data do sinistro e, como tal, o montante a ressarcir deve ser o correspondente ao valor da viatura àquela data, após a aplicação do factor de desvalorização[10]. Vale por dizer, no caso destes autos, que impende sobre a ré seguradora a obrigação de indemnizar o autor calculado em função do capital seguro (12.056,00€), deduzido do valor do salvado (7.250,00€), no total, portanto, de 4.806,00€ (quatro mil oitocentos e seis euros), uma vez que não há franquia a aplicar, a que acrescem os peticionados juros de mora, à taxa legal.
Diferente relativamente ao demais pedido pela autora.
No âmbito da responsabilidade contratual no seguro por danos próprios, a obrigação da seguradora resume-se ao pagamento da indemnização correspondente ao dano sofrido, dentro dos limites contratuais, excluídos lucros cessantes e privação de uso se não tiverem sido convencionados e, no caso, não foram. Por isso, o demais pedido pelo autor, só pode ser improcedente.
Nos termos do n.º 1 do artigo 804º, do CC, a simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor, concluindo-se que como se trata de uma obrigação pecuniária e na ausência de convenção em contrário, por que estamos no domínio da responsabilidade contratual, a mora da seguradora apenas poderá dar origem ao pagamento de juros de mora, e não qualquer montante a título da privação do uso (cfr. Acórdão da Relação do Porto de 06.02.2018, disponível em www.dgsi.pt).
Cumpre apreciar e decidir.
Antes de mais, procedamos a um enquadramento normativo do caso nas suas linhas essenciais.
“Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente” (artigo 1º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro[11], aprovado pelo decreto-lei nº 72/2008, de 26 de abril).
“O segurado deve ter um interesse digno de proteção legal relativamente ao risco coberto, sob pena de nulidade do contrato” (artigo 43º, nº 1, do RJCS), sendo que no “seguro de danos, o interesse respeita à conservação ou à integridade de coisa, direito ou património seguros” (artigo 43º, nº 2, do RJCS).
“O capital seguro representa o valor máximo da prestação a pagar pelo segurador por sinistro ou anuidade de seguro, consoante o que esteja estabelecido no contrato” (artigo 49º, nº 1, do RJCS).
“O segurador obriga-se a satisfazer a prestação contratual a quem for devida, após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências” (artigo 102º, nº 1, do RJCS).
“A obrigação do segurador vence-se decorridos 30 dias sobre o apuramento dos factos a que se refere o artigo 102º” (artigo 104º do RJCS).
“O seguro de danos pode respeitar a coisas, bens imateriais, créditos e quaisquer outros direitos patrimoniais” (artigo 123º do RJCS).
“A prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro” (artigo 128º do RJCS).
“No seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro” (artigo 130º, nº 1, do RJCS).
“No seguro de coisas, o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado” (artigo 130º, nº 2, do RJCS).
“O disposto no número anterior aplica-se igualmente quanto ao valor da privação de uso do bem” (artigo 130º, nº 3, do RJCS).
Na cláusula 42.ª das Condições Especiais do Seguro Facultativo da apólice do contrato de seguro objeto destes autos, referente ao ressarcimento dos danos no veículo seguro, estabelece-se que ao segurador assiste sempre o direito de mandar reparar o veículo, exceto no caso de perda total, tal como está definida na cláusula 53.º.
Por seu turno, no nº 2, da cláusula 53ª, considera-se perda total do veículo sempre que a estimativa para a reparação dos danos, acordada entre o perito do Segurador e o representante da oficina, seja de valor superior ao capital seguro, à data do acidente, nos termos da cláusula 52ª.
A cláusula 57º que provê sobre o cálculo da indemnização, prevê no seu nº 1 que em caso de perda total a indemnização corresponderá ao capital seguro no início da anuidade, deduzida do valor do salvado e do valor da franquia.
Feito o enquadramento normativo do caso, é tempo de qualificar juridicamente os factos pertinentes e de resolver as questões objeto do recurso, sem prejuízo da liberdade de qualificação que assiste ao tribunal (artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil), sendo certo que se estiver em causa a decisão de uma questão de direito com a qual as partes não tinham que contar em termos de diligência normal, deverá ser previamente observado o contraditório (artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil).
O recorrente aparentemente entende que o contrato de seguro ao abrigo do qual pretende obter a condenação da ré, por ter sido celebrado em conjunto com um seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, se rege pelas regras deste, assim se percebendo que invoque a jurisprudência antes identificada e toda produzida no domínio da responsabilidade civil automóvel.
Porém, o contrato de seguro da qual emergem as pretensões do recorrente tem natureza bem distinta do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, tratando-se de um seguro de danos, tal como definido no artigo 123º do RJCS. Aliás, se esta não fosse a fonte das pretensões indemnizatórias do recorrente, como podia ele obter a condenação da sua própria seguradora a indemnizá-lo por um sinistro causado pelo mesmo?
No seguro de danos, a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro (artigo 128º do RJCS).
No caso em apreço, o capital seguro na data do sinistro era de €12.056,00 (veja-se o facto provado em 3.1.30), tendo-se provado que a ré estimou que os danos que apresentava o IU implicavam uma reparação cujo valor ascendia à quantia de €13.481,37 (3.1.50 dos factos provados) e que o custo da reparação do veículo, em 18 de abril de 2019 foi faturado no montante de €10.893,41 (ponto 3.1.34 dos factos provados), tendo o veículo sido reparado pelo autor por esse valor (pontos 3.1.25 e 3.1.26 dos factos provados).
Nos termos contratuais (cláusula 53ª, nº 2), considera-se perda total do veículo sempre que a estimativa para a reparação dos danos, acordada entre o perito do Segurador e o representante da oficina, seja de valor superior ao capital seguro, à data do acidente.
No caso em apreço, apenas se provou que a ré estimou que os danos que apresentava o IU implicavam uma reparação cujo valor ascendia à quantia de €13.481,37 (ponto 3.1.50 dos factos provados), não resultando da factualidade assente como foi feita esta estimativa, nomeadamente se a mesma resultou de acordo entre o perito da ré e o representante da oficina reparadora.
Por isso, atenta a cláusula contratual acima recordada, a aludida estimativa não pode ser relevada para efeitos de verificação de perda total do veículo sinistrado.
Para demonstrar a correção do enquadramento do caso na figura da perda total, a recorrida refere nas suas contra-alegações que o recorrente nunca impugnou o valor da estimativa para reparação e que até o aceitou em correspondência trocada[12]. Sucede que, como é sabido, o silêncio não vale em regra como forma válida de manifestação da vontade, só assim não sendo quando a lei disponha diferentemente (artigo 218º do Código Civil), como se verifica, por exemplo, no artigo 27º do RJCS ou a nível adjetivo, nos artigos 567º e 574º, nº 2, ambos do Código de Processo Civil. Além disso, a presente ação é manifestação expressa de que o custo da reparação do veículo segurado não era o estimado pela recorrida mas sim o que foi faturado em 18 de abril de 2019, ou seja €10.893,41, sendo certo que a recorrida não curou de demonstrar que esse valor não correspondia à realidade.
Assim, face ao que precede, sendo o custo da reparação do veículo seguro inferior ao capital seguro, não há perda total e deve a recorrida ser condenada a pagar ao autor a quantia de €10.893,41.
Debrucemo-nos agora sobre as despesas de parqueamento do veículo sinistrado até à reparação e o prejuízo do autor por ter estado privado do uso do veículo sinistrado desde a data do sinistro até 18 de abril de 2019.
Como se viu anteriormente, quando se procedeu ao enquadramento normativo do caso em apreciação nestes autos, no seguro de danos, “o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro” (artigo 130º, nº 1, do RJCS). Deste modo, as despesas de parqueamento do veículo sinistrado desde o sinistro até à reparação e bem assim a privação do gozo do mesmo bem no referido período temporal estão excluídos da garantia do seguro, sendo que relativamente ao dano da privação do uso, para que o mesmo fosse ressarcível em sede de seguro de danos, isso devia ser expressamente clausulado, tal como previsto no nº 3, do artigo 130º do RJCS.
No entanto, com grande divisão jurisprudencial[13] e com fundamentos não totalmente coincidentes, tem-se vindo a admitir a ressarcibilidade do dano da privação do uso do veículo segurado, no caso de seguro de danos, ainda que tal cobertura não haja sido contratada, sempre que se demonstre uma recusa injustificada por parte da seguradora em assumir o sinistro que lhe foi participado pelo segurado.
Que dizer?
“O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado” (artigo 762º, nº 1, do Código Civil).
De acordo com o disposto no n º 2, do artigo 762º, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé. Este proceder de boa-fé é uma regra de conduta que implica um agir coerente, leal, regra que envolve todos aqueles que tenham estabelecido entre si uma relação especial[14].
No caso em apreço existe uma relação especial entre as partes decorrente do contrato de seguro de danos entre ambas celebrado, razão pela qual, no cumprimento das obrigações que recaem sobre cada uma delas, se acham adstritas a agir de acordo com as regras da boa-fé.
Da boa-fé em sentido objetivo, como regra de conduta, decorrem os denominados deveres laterais que envolvem os deveres de prestar e visam a salvaguarda de outros interesses que não o estrito cumprimento do dever de prestar, exprimindo a necessidade de tomar em conta os interesses justificados da contraparte e de adotar o comportamento que se espera de um parceiro negocial honesto e leal[15].
“Dentro do mosaico dos deveres laterais que visam possibilitar o interesse prosseguido pelo credor com a prestação (o fim secundário ou mediato da prestação) e que a boa fé é susceptível de determinar […]. E podem individualizar-se também aqueles que têm em vista defender as partes de todas aquelas intromissões danosas na sua esfera de vida (pessoa e património) que o contacto recíproco durante todo o ciclo vital da relação obrigacional propicia. Os primeiros prosseguem um interesse conexo com a prestação e têm, assim, uma finalidade positiva. Os segundos, ao invés, pretendem proteger a contraparte dos riscos de danos na sua pessoa e património que nascem da (e por causa da) relação particular estabelecida: a sua finalidade é negativa”[16], sendo estes últimos conhecidos na dogmática jurídica como deveres de proteção.
No caso dos autos, a estar em causa a violação de um dever lateral, tratar-se-á de um daqueles que visa possibilitar a concretização do interesse prosseguido pelo credor com a prestação, ou seja a reparação do veículo acidentado e consequente disponibilidade do mesmo.
Porém, cremos que o que está em causa é a violação de uma obrigação essencial do contrato, qual seja a de proceder ao pagamento da prestação acordada em caso de verificação do sinistro, sendo os danos que o recorrente pretende ver ressarcidos nesta apelação consequência do inadimplamento daquela obrigação.
Na verdade, como resulta inequívoco do disposto no artigo 798º do Código Civil, o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor, incumbindo ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso não procedem de culpa sua (artigo 799º, nº 1, do Código Civil). E, de acordo com o disposto no artigo 562º do Código Civil, quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, sendo certo que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (artigo 564º, nº 1, do Código Civil).
No caso dos autos, se acaso a recorrida tem procedido ao pagamento da indemnização devida até ao termo do prazo de que dispunha (veja-se o artigo 104º do RJCS[17]), o recorrente teria podido reparar o seu veículo e passar a ter o gozo do mesmo.
Provou-se que em 07 de dezembro de 2018 a recorrida comunicou ao recorrente que declinava a sua responsabilidade pelo sinistro participado pelo que deve entender-se que a obrigação de pagamento da prestação acordada no contrato de seguro se venceu nessa data.
A omissão da recorrida de pagamento da prestação acordada no contrato de seguro de danos sem cobertura do dano da privação do uso obstou a que o recorrente pudesse proceder à reparação do seu veículo e gozar do mesmo desde a data do vencimento daquela obrigação, ou seja desde a data da recusa infundada da seguradora em assumir a obrigação de pagamento da prestação acordada no contrato de seguro.
Deste modo, rejeitamos a posição negacionista da jurisprudência que exclui o direito de indemnização da privação do uso no seguro de danos, sempre que essa cobertura não haja sido acordada, sustentando-se que essa ressarcibilidade é admissível em consequência do incumprimento contratual da seguradora e desde o vencimento da obrigação da seguradora e até à entrega da prestação devida ou da reparação, se esta ocorrer antes.
O quadro em que se admite a ressarcibilidade do dano da privação do uso no caso de recusa injustificada de pagamento da prestação acordada no seguro de danos é bem distinto daquele em que essa obrigação resulta do próprio contrato de seguro. De facto, sendo a indemnização pela privação do uso prevista no contrato, o mesmo é ressarcível desde a data do sinistro; já no caso de tal indemnização se fundar em incumprimento do contrato de seguro de danos, esse dano apenas será ressarcível a partir do momento em que se verificar o vencimento da obrigação de pagamento da prestação acordada no contrato de seguro e fundado em incumprimento contratual.
Por isso, ao contrário do que sustenta a jurisprudência negacionista antes citada, não há qualquer tratamento desigual entre os segurados de danos próprios que contratam a cobertura do dano da privação do uso e os que a não contratam, sendo diversos os pressupostos e os limites de ressarcibilidade do dano da privação do uso em cada caso. Tratamento desigual e sem suporte axiológico existe, na nossa perspetiva, em se tratar igualmente, ou quase[18], a seguradora que honra as obrigações assumidas e aquela que, sem razão, os não honra.
Além disso, também não seguimos a posição mitigada daqueles que apenas admitem a ressarcibilidade do dano da privação do uso no caso de seguro de danos quando essa cobertura não haja sido contratada e haja recusa injustificada da seguradora em honrar o sinistro, sempre que a seguradora tenha agido com intenção de prejudicar o segurado, ou seja, nos casos em que haja dolo e ainda por cima um dolo específico. De facto, a responsabilidade obrigacional basta-se com a verificação de culpa simples, sendo excecionais os casos em que se exige uma conduta dolosa (veja-se, por exemplo, a primeira parte do nº 1, do artigo 814º do Código Civil) ou, pelo menos, de culpa grave (assim sucede em sede de litigância de má-fé (corpo do nº 2, do artigo 542º do Código Civil), situações que nenhum paralelo têm com a hipótese em apreciação nestes autos. De facto, uma coisa é o exercício do direito fundamental de acesso ao direito, na vertente do exercício do direito de ação ou do direito de defesa e outra bem diversa é a obrigação de honrar os compromissos contratuais assumidos. O exercício legítimo do direito de ação judicial ou do direito de defesa não constitui razão para “branquear” a conduta do contraente que injustificadamente não cumpriu o contrato, ainda que estivesse convencido de que tinha razão para agir como agiu, e que por causa dessa recusa causou danos que não se teriam verificado caso tivesse cumprido aquilo a que estava obrigado. Esta leitura mitigada que se critica favorece condutas litigiosas negligentes na medida em que o litigante, mesmo sem razão, desde que não tenha querido prejudicar a contraparte, ainda que causando danos à contraparte, nenhumas consequências sofre por não honrar os compromissos assumidos, a não ser as que decorrem da mora no cumprimento da prestação contratual.
Por isso, afigura-se-nos bem mais justa, sã e adequada às realidades da vida a perspetiva do nosso mais alto tribunal expressa no acórdão de 14 de dezembro de 2016 antes citado em nota de rodapé ao afirmar que quando “a possível razoabilidade ou até legitimidade da recusa vem a revelar-se insubsistente, porque não demonstrado o seu fundamento, o atraso no pagamento da indemnização queda sem justificação”.
No caso dos autos a recorrida elencou uma multiplicidade de circunstâncias que, na sua perspetiva, revelavam que o sinistro não tinha ocorrido como descrito pelo seguradora, circunstâncias que o tribunal recorrido não relevou como tal, julgando que ocorreu efetivamente o sinistro mencionado pelo autor, juízo de facto do mesmo tribunal que não mereceu impugnação por parte da ré, tendo de se concluir que a recusa da ré em assumir o sinistro foi injustificada.
Concluindo-se pela ressarcibilidade do dano da privação do uso no caso dos autos com fundamento em incumprimento contratual, importa agora proceder à quantificação deste dano.
O recorrente pediu a este título a quantia de €2.880,00, alegadamente correspondente ao período temporal a contar desde o dia seguinte ao do sinistro até à data da reparação, à razão diária de quinze euros[19].
Porém, a ressarcibilidade do dano da privação do uso com fundamento em violação contratual, no caso de seguro de danos em que tal cobertura não haja sido contratada, como se admitiu no caso em análise, apenas é devida desde a recusa da seguradora em assumir o sinistro e até à reparação, ou seja, num total de cento e trinta e dois dias que, à razão diária de quinze euros, valor que se reputa ajustado e que não mereceu crítica da recorrida em sede de contra-alegações, totalizando o montante de mil novecentos e oitenta euros.
Vejamos agora as despesas de parqueamento.
O recorrente pediu a este título a quantia de €1.070,10, à razão diária de €7,50, a que acresce IVA à taxa de 23%, relativamente ao período de 08 de outubro de 2018 a 31 de janeiro de 2019.
Porém, à semelhança do que se sustentou relativamente ao dano da privação do uso, estas despesas apenas podem ser repercutidas na esfera jurídica da recorrida a partir do momento em que a mesma se recusou, infundadamente, a cumprir o contrato de seguro, pelo que apenas serão considerados cinquenta e cinco dias, ao referido montante diário, acrescido de IVA, ou seja, o montante global de €507,38, incluindo IVA.
Debrucemos-nos agora sobre a compensação por danos não patrimoniais.
Provou-se que “[c]om os factos relatados o autor sentiu-se triste e frustrado, nomeadamente, com a posição que a ré assumiu, que lhe causou sentimentos de ansiedade e tormento” (ponto 3.1.28 dos factos provados).
A compensação por danos não patrimoniais é fixada equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º do Código Civil (primeira parte do nº 4, do artigo 496º do Código Civil).
Também nesta vertente deve atentar-se no disposto no artigo 8º, nº 3, do Código Civil, em ordem a uma aplicação, tanto quanto possível, uniforme do direito, assim se respeitando e realizando o princípio da igualdade.
Pela sua própria natureza, os danos não patrimoniais não são passíveis de reconstituição natural e, por outro lado, nem em rigor são indemnizáveis mas apenas compensáveis pecuniariamente.
A compensação arbitrada nestes casos não é o preço da dor ou de qualquer outro bem não patrimonial, mas sim uma satisfação concedida ao lesado para minorar o seu sofrimento, paliativo que numa sociedade que deifica o dinheiro assume naturalmente esta feição.
Importa ainda não perder de vista que apenas são compensáveis os danos não patrimoniais merecedores de tutela jurídica, estando afastados do círculo dos danos indemnizáveis os simples incómodos (artigo 496º, n.º 1, do Código Civil).
Ensina o Professor Antunes Varela[20] que a “gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias do caso), e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada)”. Em nota de rodapé, na mesma página da obra citada, aludia o Ilustre Professor ao facto de Carbonnier considerar de todo aberrante a decisão judicial que concedeu a indemnização por danos morais pedida pelo dono duma écurie de course, com fundamento no desgosto que lhe causou a morte de um dos seus cavalos. Embora este exemplo não tenha na atualidade a pertinência que tinha num tempo em que os animais eram vistos exclusivamente como coisas[21], destituídos de sentimentos[22], aponta para que o sofrimento a compensar atinja um patamar mínimo de gravidade para que se torne merecedor da tutela do direito[23].
Não oferecendo dúvida que os danos não patrimoniais cuja compensação o recorrente pretende seja fixada resultaram da conduta ilícita da recorrida, afigura-se-nos contudo que os mesmos não atingem a gravidade que justifica o arbitramento da pretendida compensação, pois que não são mais dos que são inerentes a qualquer litígio judicial, litígio que no caso em apreço nem sequer teve grande duração temporal.
Por isso, improcede nesta parte a apelação.
Pelo exposto, conclui-se pela procedência parcial da apelação, devendo a recorrida ser condenada a pagar ao recorrente a quantia de €10.893,41, a título de despesas de reparação do veículo segurado, €1.980,00, a título de dano da privação do uso decorrido desde 07 de dezembro de 2018 até 18 de abril de 2019 e ainda as despesas de parqueamento do mesmo veículo de 07 de dezembro de 2018 até 31 de janeiro de 2019, no montante de €507,38, IVA incluído, mantendo-se, no mais, intocada a sentença recorrida, ou seja no que respeita à obrigação de pagamento de juros de mora.
As custas da ação e do recurso são da responsabilidade de ambas as partes na exata proporção da sucumbência (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto por B… e, em consequência, revoga-se a sentença nos segmentos impugnados, condenando-se a C… – Companhia de Seguros, S.A. a pagar ao autor a quantia global de €13.380,79 (treze mil trezentos e oitenta euros e setenta e nove cents), sendo €10.893,41 (dez mil oitocentos e noventa e três euros e quarenta e um cents), a título de despesas de reparação do veículo segurado, €1.980,00 (mil novecentos e oitenta euros), a título de dano da privação do uso do citado veículo e €507,38 (quinhentos e sete euros e trinta e oito cents), a título de despesas de parqueamento do mesmo veículo, mantendo-se, no mais, intocada a decisão sob censura.
As custas da ação e do recurso são da responsabilidade de ambas as partes na exata proporção da sucumbência, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.
***
O presente acórdão compõe-se de vinte e quatro páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 23 de novembro de 2020
Carlos Gil
Mendes Coelho
Joaquim Moura
______________________
[1] Notificada às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 03 de julho de 2020.
[2] Não se reproduzem as notas de rodapé e que contêm a identificação precisa da localização informática dos acórdãos citados na sexta conclusão.
[3] O tempo verbal usado neste ponto de facto e que reproduz acriticamente o que constava do artigo 7º da contestação, não se coaduna com o que depois se consigna relativamente à efetiva ocorrência do sinistro.
[4] Este ponto de facto constitui uma versão amputada do alegado no artigo 18 da contestação e tem um conteúdo que não é inteligível na sua segunda parte.
[5] Não se entende que instalação ficou cortada. Porém, analisado o documento nº 14 oferecido com a petição inicial, constata-se que foi a instalação elétrica que ficou cortada.
[6] Analisada a fatura referente a este custo e oferecida com a petição inicial como documento nº 16, constata-se que respeita ao custo do parqueamento do veículo sinistrado desde o dia 08 de outubro de 2018 ao dia 31 de janeiro de 2019, à razão de € 7,50 por dia.
[7] Tendo sido colocada em dúvida pela ré a veracidade fiscal destas faturas, após diligências junto da autoridade tributária, veio esta entidade informar que as mesmas estão registadas no sistema E-fatura, no ano de 2019 (ofício nº 4695 de 25 de Setembro de 2019, do Serviço de Finanças da Feira 2).
[8] Cita o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21 de junho de 2007, relatado pelo então Juiz Desembargador Bernardo Domingos, no processo nº 318/07-3, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06 de outubro de 2009, relatado pelo Juiz Desembargador Carlos Moreira, no processo nº 17/07.4TBCBR.C1, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 04 de abril de 2017, relatado pela Juíza Desembargadora Alexandra Rolim Mendes, no processo nº 474/13.0TBFAF.G1 e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08 de fevereiro de 2018, relatado pelo Juiz Desembargador Madeira Pinto, no processo nº 3385/15.0T8PNF.P1, todos acessíveis na base de dados do IGFEJ.
[9] Apenas a numeração da nota de rodapé não corresponde ao original já que na decisão recorrida essa nota tem o número 2, tendo neste acórdão o número 10.
[10] Decidiram os acórdãos do STJ de 12.12.2013, pr 10485/09.4TBVNG.P1.S1 e Ac de 4.04.2012 proferido no proc 32/10.0T2AVR.C1.S1, em sentido diferente Acórdão do TRL, de 25-06-2009, proc 515/05.0TBMTJ.L1-2 e também neste sentido e Acórdão do TRG de 11.07.2013.
[11] Doravante citado abreviadamente pelo acrónimo RJCS.
[12] Sublinhe-se que não resulta da aludida correspondência a aceitação referida pela recorrida, sendo certo, em todo o caso, que não estão em causa missivas da autoria do recorrente, mas sim da sua advogada, num contexto de tentativa de resolução extrajudicial do caso.
[13] No sentido de nunca admitir a ressarcibilidade do dano da privação do uso do veículo segurado no caso de seguro de danos, se o mesmo não tiver sido expressamente contratado vejam-se: o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13 de junho de 2013, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Leonel Serôdio, no processo nº 4438/11.0TBVNG.P1; o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10 de outubro de 2013, relatado pela Sra. Juíza Desembargadora Helena Melo, tirado por maioria, no processo nº 598/12.0TBVCT.G1 – contudo, esta Sra. relatora veio a subscrever, sem quaisquer reservas, o acórdão da mesma Relação de 05 de dezembro de 2013, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Manuel Bargado, no processo nº 607/10.8TBFLG.G1 em que se sustentou a posição expressa no voto de vencido do acórdão precedente, ainda que sem incidência na resolução do caso concreto por se ter considerado que nenhuma censura podia ser feita à seguradora ao não assumir o sinistro; o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de junho de 2015, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador João Diogo Rodrigues, no processo nº 4393/13.1TBMAI.P1 e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06 de fevereiro de 2018, relatado pela Sra. Juíza Desembargadora Márcia Portela, no processo nº 446/15.0T8AMT.P1; no sentido oposto, sempre que se verifique uma injustificada recusa de assunção do sinistro pela seguradora, entendendo que nesse caso essa ressarcibilidade resulta das regras gerais do incumprimento contratual veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13 de outubro de 2016, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Jorge Leal, no processo nº 716/14.4TJLSB.L1-2, acórdão citado pelo ora recorrente na sua petição inicial; também no sentido da ressarcibilidade do dano da privação do uso de veículo seguro havendo recusa injustificada de assunção do sinistro pela seguradora, no caso de seguro de danos sem que tenha sido contratada a privação do uso do veículo seguro e com fundamento na violação das regras da boa-fé contratual e na violação de deveres de conduta vejam-se os seguintes acórdãos: acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25 de janeiro de 2011, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Vieira e Cunha, no processo nº 3322/07.6TJVNF.P1; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05 de dezembro de 2013, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Manuel Bargado, no processo nº 607/10.8TBFLG.G1; acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14 de março de 2016, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Carlos Querido, no processo nº 4876/12.0TBSTS.P1, mas apenas nos casos de dolo específico já que cinge essa ressarcibilidade quando se verifique “animus nocendi” da seguradora; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 20 de outubro de 2016, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador João Peres Coelho, no processo nº 2884/11.8TBCL.G1; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de dezembro de 2016, relatado pela Sra. Juíza Conselheira Fernanda Isabel Pereira, no processo nº 2604/13.2TBBCL.G1, no qual se afirma que quando “a possível razoabilidade ou até legitimidade da recusa vem a revelar-se insubsistente, porque não demonstrado o seu fundamento, o atraso no pagamento da indemnização queda sem justificação”; e o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 04 de Abril de 2017, relatado pela Sra. Juíza Desembargadora Maria de Fátima Andrade, no processo nº 3779/13.6TBBCL.G1. Todos os acórdãos citados estão acessíveis na base de dados do IGFEJ.
[14] A propósito veja-se, Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra Editora 2011, Nuno Manuel Pinto de Oliveira, página 164, ponto 2 e nota 221.
[15] Seguimos de perto Contrato e Deveres de Protecção, Coimbra 1994, Manuel A. Carneiro da Frada, página 39.
[16] Citação extraída de Contrato e Deveres de Protecção, Coimbra 1994, Manuel A. Carneiro da Frada, páginas 40 e 41.
[17] Este preceito prescreve que a obrigação do segurador se vence decorridos trinta dias sobre o apuramento dos factos a que se refere o artigo 102º, ou seja, após confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências. No caso da seguradora se recusar a assumir o sinistro, sustentando que o mesmo não ocorreu ou que ocorreu em condições não cobertas pelo seguro contratado, deve entender-se que, caso o segurado venha a comprovar judicialmente que a posição da seguradora foi infundada, que o vencimento da obrigação da seguradora se verificou no momento daquela recusa, sob pena de se privilegiar, indevidamente a seguradora inadimplente, em confronto com a que honra as suas obrigações. Assim, nesta linha de pensamento, a doutrina tem entendido que a recusa categórica e definitiva de cumprimento constitui automaticamente o devedor em mora (veja-se, por todos, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Portuguesa 2018, anotação 6, ponto V, páginas 1130 e 1131 – anotação da responsabilidade de Maria da Graça Trigo e de Mariana Nunes Martins).
[18] De facto, a única diferença em desfavor da seguradora inadimplente estará na imposição de juros de mora contados sobre a prestação incumprida desde o vencimento da obrigação da incumpridora.
[19] Feitas as necessárias operações verifica-se que de 08 de outubro de 2018 a 18 de abril de 2019 decorreram cento e noventa e três dias, pelo que o valor peticionado corresponde ao valor diário de €14,92, arredondando por defeito.
[20] In Das Obrigações em Geral, Vol I, 6ª edição, Almedina 1989, página 576.
[21] A Lei nº 8/2017, de 03 de março, alterou o Código Civil e de acordo com o disposto no artigo 201º-B deste diploma legal, os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza.
[22] A propósito do estatuto jurídico dos animais, numa concepção atualizada, veja-se, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Portuguesa 2014, páginas 454 a 456, anotação 5 ao artigo 202º do Código Civil.
[23] Escreve o Professor Antunes Varela, no mesmo local: “Por outro lado, a gravidade apreciar-se-á em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado.”