Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1375/21.3T8AMT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA ANDRADE
Descritores: NULIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO
TERRENO BALDIO
AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE
ACESSÃO INDUSTRIAL IMOBILIÁRIA
Nº do Documento: RP202209121375/21.3T8AMT-A.P1
Data do Acordão: 09/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O legislador declarou a nulidade nos termos gerais de direito dos atos ou negócios jurídicos, de apropriação ou apossamento por terceiros, tendo por objeto terrenos baldios, exceto nos casos expressamente previstos no nº 4 do artigo 6º da Lei 75/2017.
II - Nas situações em que se invoca o preenchimento das exceções legais, nomeadamente as previstas no artigo 48º desta Lei, do qual resulta ter sido conferido à assembleia de compartes o poder de deliberar a alienação nos termos do nº 1, ou o direito aos proprietários das construções de invocar a acessão industrial imobiliária e por essa via adquirir a propriedade sobre a parcela em questão nos termos do nº 2, é de concluir pela afastamento da regra da exclusão do comércio jurídico destes bens e assim da sua aquisição pelos meios legais previstos, dentro do respetivo condicionalismo legal.
III - Nestes casos, o direito invocado pelos interessados não está subtraído ao domínio da vontade das partes e nessa medida não se lhe aplica a exceção prevista no artigo 568º al. c) do CPC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº. 1375/21.3T8AMT-A.P1
3ª Secção Cível

Relatora: Juíza Desembargadora M. Fátima Andrade
Adjunta - Juíza Desembargadora Eugénia Cunha
Adjunta - Juíza Desembargadora Fernanda Almeida

Apelação em separado
Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Jz. Local Cível de Amarante
Apelantes/AA e BB
Apelada/Assembleia de Compartes dos Baldios da freguesia ...



Sumário (artigo 663º n.º 7 do CPC):
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório
AA e BB instauraram ação declarativa sob a forma de processo comum contra Assembleia de Compartes do Baldio da freguesia ..., representado pelo seu Conselho Diretivo, peticionando pela procedência da ação que seja:
a) (…) judicialmente declarado que os autores adquiriram por acessão industrial imobiliária, a propriedade de uma parcela de terreno, com a área de 150m2 do ... do concelho de Amarante, sito no Lugar ..., atual Rua ..., ..., a confrontar a norte com Baldio, sul com caminho público, do Nascente com depósito “Águas do Norte” e do Poente com Estrada onde implantaram uma construção destinada a habitação, que corresponde atualmente, após declaração para atualização de prédio urbano na matriz, ao prédio urbano inscrito na matriz urbana da freguesia ... sob o artigo ... e que teve origem no artigo ..... urbano de ....
b) (…) judicialmente declarado que os autores são donos e legítimos possuidores da referida parcela de terreno, bem como da construção que nela implantaram.
c) ser reconhecido o direito dos autores a poderem registar a seu favor na Conservatória do Registo Predial, a área de terreno que adquiriram bem como a construção que nela incorporaram e descrita no supra artigos 14 e 24.”
Para tanto e em suma alegaram:
- ter o A. marido iniciado em outubro de 1992 a ocupação de uma parcela de terreno baldio, na sequência de deliberação favorável da Assembleia demandada a um seu pedido para que lhe fosse “cedida uma parcela de terreno baldio junto à casa de seus pais para a construção de um “atelier” de escultura.”. Deliberação esta de 11/10/1992 e a partir da qual o A. construiu um prédio urbano, tendo deste apresentado declaração para inscrição de prédio urbano na matriz em 26/05/93;
- tendo destinado a construção por si efetuada a sala de atelier e na qual posteriormente e já após o seu casamento, os AA. efetuaram obras e alteraram a sua finalidade, com o conhecimento e consentimento do R., destinando-o a habitação;
- construção que tem um valor manifestamente superior ao terreno baldio ocupado;
- vindo os AA. a usar, fruir e habitar em nome próprio a referida casa de habitação e a cultivar o seu logradouro há mais de 20 anos, como coisa própria sua de forma pacífica, pública, contínua e sem oposição de ninguém. De boa-fé e com conhecimento absoluto do R..
Pedido que em suma declararam fundar no disposto no artigo 1340º do CC e no artigo 48º da Lei 75/2017 de 17/08 (Lei dos Baldios e demais Meios de Produção Comunitários).
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Citado o R., não apresentou este contestação no prazo legal.
Em 15/11/21 foi determinado o cumprimento do disposto no artigo 567º nº 2 do CPC. Tendo os AA. apresentado alegações, pugnando pela procedência da ação, perante a confissão dos factos.
Conclusos os autos foi então proferida decisão declarando:
“(…) esta ação não versa sobre direitos disponíveis e o facto de a ré não ter contestado, sendo a vontade das partes ineficaz para produzir o efeito jurídico que pela ação se pretende obter – art. 568 alínea c) do CPC, tal não significa que não tenha de ter lugar a produção de prova.
Nesta decorrência e atento o disposto no art. 6 n.ºs 9 e 10 da Lei dos Baldios, deverá ser citado o MP, nos termos do art. 28 n.º 1 e 24 n.º 1 do CPC.”
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Notificados os AA. do assim decidido, interpuseram recurso de apelação, pugnando pela revogação de tal decisão, para tanto apresentando as seguintes conclusões:
“1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho proferido pelo tribunal a quo que considerou que a presente ação versa sobre direitos indisponíveis e, em consequência, ordenou a citação do Ministério Público, nos termos do art. 28.º, n.º 1 e 24.º, n.º 1 do C.PC.
2. Como vem sendo entendido pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, a matéria em causa nos presentes autos - aquisição por acessão industrial imobiliária de parcela de terreno baldio - não se reporta a direitos indisponíveis (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 04.12.2007, no âmbito do Processo 07B4321 e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 12.09.2017, no Processo 3745/15.7T8PL.C1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
3. Assim, não estando em causa direitos indisponíveis, a falta de contestação implica a confissão dos factos articulados pelos autores, nos termos consagrados no art. 567.º, n.º 1 do C.P.C.
4. Deveria por isso a Mma Juíza a quo ter considerado provados os factos articulados na petição inicial, seguindo-se os demais termos legais previstos no n.º 2 do referido art. 567.º do C.P.C.
5. Ao considerar estarem em causa direitos indisponíveis e ordenar a citação do Ministério Público, o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, fazendo uma incorreta interpretação das normas jurídicas aplicáveis e errada aplicação do direito ao caso sub judice, violando dessa forma os preceitos legais vertidos nos artigos 24.º, n.º 1, 28.º, n.º 1, 567.º, n.ºs 1 e 2 e 568.º, alínea c) do Código de Processo Civil e artigos 6.º e 48.º da Lei n.º 75/2017 de 17 de agosto (Lei dos Baldios).
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o douto despacho proferido pelo tribunal a quo e substituído por outro que considere confessados os factos articulados pelos autores, seguindo-se os demais termos legais.
Assim decidindo farão V. Exas. a tão costumada JUSTIÇA!”
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Contra alegou o MºPº, entretanto citado para os autos e onde deduziu contestação, em suma concluindo pela improcedência do recurso face ao bem decidido pelo tribunal a quo.
Tendo entre o mais invocado que “ab initio deveria a ação ter sido proposta, igualmente, contra o Ministério Público, em representação do Estado – Coletividade.
No âmbito do regime jurídico dos baldios, o Ministério Público exerce a sua função de representação do Estado – Coletividade, porquanto lhe incumbe a defesa do interesse coletivo de que os terrenos baldios não sejam subtraídos às finalidades a que estão legalmente adstritos.
Incumbência essa prevista nos artigos 219º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e 2º, 4º, n.º 1, al. a) e r) e 9º, n.º 1, al. a) e g) do Estatuto do Ministério Público.
Nessa medida, o Ministério Público tem intervenção principal nas ações que tenham por objeto terrenos baldios.
Como é o caso dos presentes autos.”
Pelo que concluiu bem ter andado “o Tribunal a quo ao regularizar a instância, determinando a citação do Ministério Público.”
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente e em separado, com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
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II- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pelos apelantes ser questão a apreciar se perante a não contestação do R. demandado, deveriam ter sido considerados confessados os factos alegados pelo autor e não citado o MºPº.

III. FUNDAMENTAÇÃO
Para apreciação do assim decidido, importa considerar as vicissitudes processuais acima já elencadas.
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Apreciando e conhecendo.
Tal como o evidencia o relatório supra, o tribunal a quo fundou o decidido invocando estarem em causa nos autos direitos indisponíveis – estes excetuados da ficção da confissão (ou confissão tácita) consequente à não impugnação/contestação dos factos alegados em juízo prevista no artigo 567º do CPC.
Prevê o artigo 354º do CC que a confissão não faz prova contra o confitente quando [al.c)] “recair sobre factos relativos a direitos indisponíveis”.
Direitos indisponíveis, são aqueles que “têm por objeto relações jurídicas subtraídas ao domínio da vontade das partes, de que são exemplo as ações de estado, tais como as de filiação, de divórcio ou de anulação de casamento (…)”[1].
Processualmente o tribunal a quo enquadrou o direito em causa nos autos na al. c) do artigo 568º do CPC.
Nos termos da citada al. c) do artigo 568º o efeito cominatório semipleno[2] consagrado no artigo 567º do CPC não se aplica “c) Quando a vontade das partes for ineficaz para produzir o efeito jurídico que pela ação se pretende obter.”
Através desta limitação pretende-se que a inação da parte – que justifica a presunção de que os factos são pela mesma admitidos independentemente dos motivos reais para tal admissão – não seja utilizada para através da mesma a parte atingir um resultado que através de negócio jurídico não poderia atingir[3] por em causa estarem direitos indisponíveis.
Cabe por isso analisar se no caso sub judice estão em causa direitos indisponíveis, ou seja, sobre os quais as partes (não) podem dispor/acordar/transigir.
Através da presente ação e invocando desde outubro de 1992 a ocupação de uma parcela de terreno baldio na sequência de deliberação da Assembleia de Compartes do Baldio demandado para cedência da mesma com vista à construção de um atelier que entretanto e posteriormente os AA. destinaram a habitação própria, peticionaram os AA., ao abrigo do disposto no artigo 48º da Lei 75/2017 e 1340º do CC, a declaração judicial de aquisição de tal parcela onde foi implantada a construção destinada a habitação por acessão industrial imobiliária. Bem como a declaração de que são donos e legítimos possuidores da parcela em questão e construção nela implantada.
Importa para análise da pretensão formulada proceder a um prévio enquadramento legal, analisando o regime jurídico dos Baldios.
A lei 75/2017 convocada pelos recorrentes estabelece [revogando a Lei 68/93 de 04/09 e regulamentação dela decorrente – artigo 58º] o regime aplicável aos baldios e aos demais meios de produção comunitários possuídos e geridos por comunidades locais integrados no setor cooperativo e social dos meios de produção, referido na alínea b) do n.º 4 do artigo 82.º da Constituição.
Nos termos do seu artigo 2º ficou expresso entender-se como “Baldios” para efeitos desta lei:
“«a) … os terrenos com as suas partes e equipamentos integrantes, possuídos e geridos por comunidades locais, nomeadamente os que se encontrem nas seguintes condições:
i) Terrenos considerados baldios e como tais possuídos e geridos por comunidade local, mesmo que ocasionalmente não estejam a ser objeto, no todo ou em parte, de aproveitamento pelos compartes, ou careçam de órgãos de gestão regularmente constituídos;
ii) Terrenos considerados baldios e como tais possuídos e geridos por comunidade local, os quais, tendo anteriormente sido usados e fruídos como baldios, foram submetidos ao regime florestal ou de reserva não aproveitada, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 27207, de 16 de novembro de 1936, e da Lei n.º 2069, de 24 de abril de 1954, e ainda não devolvidos ao abrigo do Decreto-Lei n.º 39/76, de 19 de janeiro;
iii) Terrenos baldios objeto de apossamento por particulares, ainda que transmitidos posteriormente, aos quais sejam ainda aplicáveis as disposições do Decreto-Lei n.º 40/76, de 19 de janeiro;
iv) Terrenos passíveis de uso e fruição por comunidade local que tenham sido licitamente adquiridos por uma tal comunidade e afetados ao logradouro comum da mesma;”[4]
Constituindo os baldios, em regra, logradouro comum dos compartes, designadamente para efeitos de apascentação de gados, de recolha de lenhas e de matos, de culturas e de caça, de produção elétrica e de todas as suas outras atuais e futuras potencialidades económicas, nos termos da lei e dos usos e costumes locais, é o seu uso, posse, fruição e administração feita de acordo com a citada lei, os usos e costumes locais e as deliberações dos órgãos competentes das comunidades locais, democraticamente eleitos (vide artigo 3º desta Lei 75/2017[5]).
Mantendo a inversão consagrada pelo DL 39/76 quanto à imprescritibilidade dos baldios e reiterada na Lei 68/93 de 04/09[6], dispõe o artigo 6º da lei 75/2017, entre o mais:
“(…)
2 - Os terrenos baldios não são suscetíveis de penhora, nem podem ser objeto de penhor, hipoteca ou outros ónus, sem prejuízo da constituição de servidões, nos termos gerais de direito, bem como do disposto nos números seguintes.
3 - Os terrenos baldios encontram-se fora do comércio jurídico, não podendo, no todo ou em parte, ser objeto de apropriação por terceiros por qualquer forma ou título, incluindo por usucapião.
4 - Os atos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, por terceiros, tendo por objeto terrenos baldios, bem como da sua posterior transmissão, são nulos, nos termos gerais de direito, exceto nos casos expressamente previstos na presente lei.
5 - Os atos ou negócios jurídicos que tenham como objeto a apropriação de terrenos baldios ou parcelas de baldios por terceiros, bem como as subsequentes transmissões que não forem nulas, são, nos termos de direito, anuláveis a todo o tempo.
6 - Quando o ato de alienação revestir forma legal e tiver sido sancionado por entidade competente, a anulação só pode ser declarada em caso de relevante prejuízo económico ou lesão de interesses dos compartes do baldio, sendo considerados para o efeito o momento de alienação e o tempo decorrido desde o respetivo ato.
7 - A anulabilidade prevista no número anterior abrange a apropriação por usucapião de baldios não divididos equitativamente entre os respetivos compartes ou de parcelas não atribuídas, em resultado dessa divisão, a um ou alguns deles.
8 - Sempre que sejam anulados atos ou negócios jurídicos que tiveram como efeito a passagem à propriedade privada de baldios ou parcelas de baldios, a anulação não abrange:
a) As parcelas de terreno ocupadas por quaisquer edifícios para habitação e fins agrícolas, comerciais ou industriais e seus acessos, bem como uma área de logradouro à volta dos referidos edifícios dez vezes superior à área do terreno por eles ocupada;
b) As parcelas de terreno cultivadas por pequenos agricultores.
9 - A declaração de nulidade pode ser requerida:
a) Pelos órgãos da comunidade local ou por qualquer dos compartes;
b) Pelo Ministério Público;
c) Pela entidade na qual os compartes tenham delegado poderes de administração do baldio ou de parte dele;
d) Pelos cessionários do baldio.
10 - As entidades referidas no número anterior têm também legitimidade para requerer a restituição da posse do baldio, no todo ou em parte, a favor da respetiva comunidade ou da entidade que legitimamente o explore.
11 - Os n.ºs 5 a 8 são aplicáveis apenas aos atos praticados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 40/76, de 19 de janeiro.”
Com especial relevo para o que agora se aprecia, ficou clara a vontade do legislador em excluir do comércio jurídico os terrenos baldios, mantendo o afastamento da sua aquisição por terceiros, incluindo por usucapião.
Consequentemente o legislador declarou a nulidade nos termos gerais de direito dos atos ou negócios jurídicos, de apropriação ou apossamento por terceiros, tendo por objeto terrenos baldios, exceto nos casos expressamente previstos nesta mesma lei [nº 4 deste artigo 6º da Lei 75/2017].
Conferindo legitimidade para requerer a nulidade destes atos, entre mais, ao MºPº (vide nº 9 deste artigo).
Entre as exceções e consequente não exclusão do comércio jurídico, permitiu o legislador [Lei 75/2017] a alienação a título oneroso ou gratuito, por deliberação da assembleia de compartes, nos termos do artigo 40º; a cessão de exploração (artigo 36º); a alienação no contexto de expropriação nos termos previstos no artigo 41º, ainda e com relevo para o caso em concreto a alienação de baldios nos quais tenham sido efetuadas construções nos termos do artigo 48º nº 1, por deliberação da assembleia de compartes, ou nos termos do nº 2 do mesmo artigo.
Dispõe este último citado artigo 48º, sob a epígrafe “Construções Irregulares”:
“1 - Os baldios nos quais, até à data da entrada em vigor da Lei n.º 68/93, de 4 de setembro, tenham sido efetuadas, por pessoas singulares ou outras entidades privadas, construções de caráter duradouro, destinadas a habitação ou a fins de exploração económica ou utilização social, desde que se trate de situações relativamente às quais se verifique, no essencial, o condicionalismo previsto no artigo 40.º, podem ser objeto de alienação pela assembleia de compartes, por deliberação da maioria de dois terços dos seus membros presentes, com dispensa de concurso público, através de fixação de preço por negociação direta, cumprindo-se no mais o disposto naquele artigo, a requerimento dos titulares dessas construções.
2 - Quando não se verifiquem os condicionalismos previstos no número anterior e a assembleia de compartes não reunir num prazo de 180 dias após o requerimento nele previsto, os proprietários das referidas construções podem adquirir, por decisão judicial, a parcela de terreno por acessão industrial imobiliária, presumindo-se, até prova em contrário, a boa-fé de quem construiu e podendo o autor da incorporação adquirir a propriedade do terreno, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 1340.º do Código Civil, ainda que o valor deste seja maior do que o valor acrescentado, sob pena de, não tomando essa iniciativa no prazo de um ano a contar da entrada em vigor da presente lei, poderem as respetivas comunidades locais adquirir a todo o tempo benfeitorias necessárias e úteis incorporadas no terreno avaliadas por acordo ou, na falta dele, por decisão judicial.
(…)”
Nas situações em que se invoca o preenchimento das exceções legais como as acima identificadas e nomeadamente as previstas neste artigo 48º - tendo por referência construções de caráter duradouro nele referidas e realizadas em data anterior à entrada em vigor da Lei 68/93 - do qual resulta ter sido conferido à assembleia de compartes o poder de deliberar a alienação nos termos do nº 1, ou o direito aos proprietários das construções de invocar a acessão industrial imobiliária e por essa via adquirir a propriedade sobre a parcela em questão nos termos do nº 2, é de concluir pela afastamento da regra da exclusão do comércio jurídico destes bens e assim da sua aquisição pelos meios legais previstos, dentro do respetivo condicionalismo legal.
Nestes casos, o direito invocado pelos interessados não está subtraído ao domínio da vontade das partes e nessa medida não se lhe aplica a exceção prevista no artigo 568º al. c) do CPC convocada pelo tribunal a quo.
À mesma conclusão já se chegava na vigência da anterior Lei 68/93 de 04/09 [referida aliás no artigo 48º da atual Lei].
Assim disciplinavam nesta matéria os artigos 4º e 30º quanto à validade dos atos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento que tivessem por objeto terrenos baldios; bem como quanto à limitação de oneração dos mesmos; o artigo 31º quanto à possibilidade de a assembleia de compartes deliberar a alienação de áreas limitadas de terrenos baldios nos termos e para os fins ali previstos. A que acrescia, em paralelo ao atual e já analisado 48º, a exceção prevista no então artigo 39º para as construções irregulares.
Permitindo concluir que também na vigência deste anterior diploma legal, era clara a vontade do legislador em excluir do comércio jurídico os terrenos baldios, mantendo o afastamento da sua aquisição por terceiros, com exceção dos casos previstos nessa mesma lei[7].
Pelo que também ao abrigo do regime aplicável aos Baldios previsto pela Lei 68/93 o direito invocado pelos interessados e integrável no artigo 39º citado não constitui direito indisponível e nessa medida não se lhe aplica a exceção prevista no artigo 568º al. c) do CPC convocada pelo tribunal a quo.
Neste sentido se decidiu nos Acs. do TRC de 12/09/2017, nº de processo 3745/15.7T8PL.C1 e Ac. STJ de 04/12/2007 nº de processo 07B4321, ambos in www.dgsi.pt [8],[9] por referência então à anterior Lei dos Baldios – Lei 68/93 de 04/09 e ao direito naquela reconhecido de invocar a acessão industrial imobiliária. Direito este mantido na sua essência nos termos do atual artigo 48º já analisado, pelo que e face à atualidade e pertinência dos argumentos convocados em tais decisões para o caso sub judice e aos quais aderimos, aqui se deixa reproduzido parte do exposto no Ac. do STJ:
“Os direitos são indisponíveis quando os respetivos titulares deles não possam dispor por mero efeito da sua vontade, como é o caso dos direitos relativos à personalidade e ao estado pessoal lato sensu, incluindo o familiar, em que prevalecem interesses de ordem pública.
Certo é que os cidadãos integrantes das comunidades locais não podem dispor individualmente do direito de propriedade sobre os terrenos baldios nem os podem adquirir por via da usucapião (artigos 1º, nº 1 e 4º, nº 1, da Lei dos Baldios).
Com efeito, a sua usufruição individual ou coletiva limita-se à apascentação de gados, à recolha de lenhas ou de matos, ao cultivo ou outras utilizações, nomeadamente de natureza agrícola, silvícola, silvo-pastoril ou apícola, a que acima de fez referência.
Dir-se-á que o interesse público exige que se mantenha a referida propriedade comunitária, que corresponde a uma instituição que sobrevive de remoto passado, gerada pela necessidade do povoamento do território português.
Mas importa considerar que os mencionados baldios podem ser objeto de expropriação, de alienação por motivos de interesse público, de constituição de servidões, de cessão exploração por longos períodos, de arrendamento e até de extinção (artigos 10º, 26º, 27º, 29º e 31º, da Lei dos Baldios).
As referidas vicissitudes inscrevem-se na competência da assembleia de compartes, sob proposta do conselho diretivo ou após a audição deste (artigos 15º, nº 1, alíneas j) e p), e 21º, alíneas f), da Lei dos Baldios).
Acresce que a lei permite a aquisição do direito de propriedade sobre parcelas de terreno baldio a quem tenha construído nelas, de boa fé, a casa de habitação, como ocorre no caso vertente.
Embora o recorrido pudesse fazer valer, no confronto dos recorrentes, o seu direito a adquirir a construção realizada pelos últimos, porque estes deixaram decorrer o prazo de exercício do direito de aquisição do terreno, não o fez porém, nem contestou esta ação, e já lá vão cerca de sete anos.
Independentemente disso, estamos perante este quadro de disponibilidade pelos órgãos de administração dos baldios em relação à parcela de terreno em causa e ao direito patrimonial dos recorrentes de adquirirem o respetivo direito de propriedade por via do instituto da acessão industrial imobiliária.
Por isso, concluímos que o prazo de um ano a que se reporta o artigo 39º, nº 2, da Lei dos Baldios se refere a direitos disponíveis.”
Em suma, a norma analisada – artigo 48º da Lei 75/2017 de 17/08 invocada e considerada pelo tribunal a quo na decisão recorrida (tal como já o anterior artigo 39º da Lei 68/93 de 04/09) – tendo caráter transitório é certo e visando situações concretamente definidas, visa salvaguardar interesses privados por via do instituto de acessão industrial imobiliária e no seu enquadramento não se reporta a direitos indisponíveis. Como tal não lhes sendo aplicável a exceção prevista no artigo 568º al. c) do CPC.

De mencionar, por outro lado, que a citação do MºPº ordenada pelo tribunal a quo como consequência do entendimento expresso e ao abrigo do artigo 6º nºs 9 e 10 da mesma Lei e artigos 28º nº 1 e 24º do CPC, tão pouco é de acolher.
Após a revisão constitucional de 1989 os baldios passaram a integrar o setor de propriedade dos meios de produção cooperativo e social – enquanto meio de produção comunitário, possuído e gerido por comunidades locais [vide artigo 82º nº 4 al. b) da CRP].
O mesmo é dizer que em causa não estão bens cuja propriedade e gestão pertencem ao Estado ou outras entidades públicas
O demandado é representado em juízo pelo seu Conselho Diretivo, a quem foi conferida capacidade judiciária [vide artigos 17º e 29º nº 1 al. i)].
Inexiste, como tal, incapacidade judiciária ou irregularidade de representação a ser sanada, nomeadamente pelo MºPº, sendo certo que o Estado não é demandado.
Por outro lado, a legitimidade conferida pelo artigo 6º nºs 9 e 10 não se reporta ao objeto desta ação.
Em suma, inexiste fundamento para a ordenada citação do MºPº.
Do exposto resulta assistir razão aos recorrentes, devendo pela revogação da decisão objeto de recurso prosseguirem os autos os seus ulteriores termos processuais aplicáveis, perante a confissão dos factos alegados que deverá ser considerada, atenta a não contestação do R..
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IV. Decisão.
Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente procedente o recurso interposto, consequentemente e revogando a decisão recorrida, se determinando que o tribunal a quo prossiga os ulteriores termos processuais aplicáveis, perante a confissão dos factos alegados que deverá ser considerada, atenta a não contestação do R..

Custas pelo responsável a final.
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Porto, 2022-09-12
Fátima Andrade
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
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[1] Luís Filipe Pereira de Sousa in “Direito Probatório Material.”, comentado, p. 86, reimpressão de 2020 Almedina.
[2] Semipleno porquanto a não contestação implica a confissão dos factos, mas não a procedência da pretensão, pois ao juiz cumpre nessa situação proferir decisão subsumindo os factos considerados confessados conforme for de direito – nº 2 do artigo 567º do CPC.
[3] Vide José Lebre de Freitas in CPC Anotado, vol. 2º, nota 8 do artigo 568º, p. 543.
[4] Mantendo na sua essência a definição de baldios e âmbito de aplicação constantes dos artigos 1º e 2º da Lei 68/93 de 04/09. Definindo esta Lei 68/93 no artigo 1º baldios “os terrenos possuídos e geridos por comunidades locais”; e no artigo 2º declarando ser aplicável as disposições desta Lei 68/93 aos terrenos baldios, mesmo quando constituídos por áreas descontínuas, nomeadamente aos que se encontrem nas seguintes condições:
“a) Terrenos considerados baldios e como tais possuídos e geridos por comunidades locais, mesmo que ocasionalmente não estejam a ser objeto, no todo ou em parte, de aproveitamento pelos compartes, ou careçam de órgãos de gestão regularmente constituídos;
b) Terrenos passíveis de uso e fruição por comunidade local, os quais, tendo anteriormente sido usados e fruídos como baldios, foram submetidos ao regime florestal ou de reserva não aproveitada, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 27 207, de 16 de novembro de 1936, e da Lei n.º 2069, de 24 de abril de 1954, e ainda não devolvidos ao abrigo do Decreto-Lei n.º 39/76, de 19 de janeiro;
c) Terrenos baldios objeto de apossamento por particulares, ainda que transmitidos posteriormente, aos quais são aplicáveis as disposições do Decreto-Lei n.º 40/76, de 1 de janeiro;
d) Terrenos passíveis de uso e fruição por comunidade local que tenham sido licitamente adquiridos por uma tal comunidade e afetados ao logradouro comum da mesma.”.
Lei 68/93 que por sua vez revogara o DL 39/76 de 19/01, através do qual se visou proceder à entrega dos terrenos baldios às comunidades que dos mesmos haviam sido desapossadas e do qual igualmente constava a definição de baldios no artigo 1º. Definindo o artigo 2º o âmbito de aplicação deste último DL (tal como constava destes dois artigos que aqui se deixam também reproduzidos):
“Artigo 1.º Dizem-se baldios os terrenos comunitariamente usados e fruídos por moradores de determinada freguesia ou freguesias, ou parte delas.
Art. 2.º Os terrenos baldios encontram-se fora do comércio jurídico, não podendo, no todo ou em parte, ser objeto de apropriação privada por qualquer forma ou título, incluída a usucapião.”
[5] Com correspondência aos anteriores artigos 3º, 5º e 6º da Lei 68/93.
[6] Tal como assinalado no AC TRG de 13/10/2016 nº de processo 68/12.7TBCMN.G1 in www.dgsi.pt em que interviemos como adjunta, e desta figura jurídica fazendo uma resenha histórica:
«Historicamente, os baldios surgiram da necessidade social de os agricultores pouco abastados utilizarem espaços desocupados e/ou abandonados das respetivas freguesias para apascentação de gado, para roça de mato ou de lenha, para apanha de estrume, extração de barro ou outros proveitos análogos complementares da sua atividade agrícola.
Assim, e como explica Rogério Santos (8) os baldios são figuras jurídicas distintas dos bens públicos: “Nos bens dominiais, o essencial é a sua afetação à satisfação de uma necessidade pública, que só em certos casos pode reflexamente coincidir com a satisfação de necessidades particulares; pelo contrário, os baldios estão propostos à satisfação de certas necessidades individuais, precisamente porque nasceram e se desenvolveram para permitir um aproveitamento silvícola a pastoril de certas terras por certas pessoas.”
Nas Ordenações Manuelinas (L.º IV, Título LXVII, 8) e nas Ordenações Filipinas (L.º IV, Título XLIII, 9) foram concedidas aos povoadores logradouros para "os haverem por seus ou por seus os coutarem e defenderem em proveito dos pastos e criações e logramento de lenha e madeira para as suas casas e lavouras."
No Código Civil de 1867 (Código de Seabra) os terrenos baldios estavam compreendidos no domínio comum, ao lado do domínio público e particular (cfr. art. 379.º e 381.º).
Tal como se refere no Parecer da Procuradoria Geral da República de 24/06/99, "Não obstante esta classificação tripartida, na vigência desse Código, muitos autores sustentaram que os baldios eram propriedade (pública ou privada) das autarquias locais, enquanto outros defenderam que constituíam propriedade comunal dos vizinhos de certa circunscrição ou parte dela."
Entretanto, o Código Administrativo de 1940 consagrou expressamente, no art. 388.º, a prescritibilidade dos baldios.
(…)
Com o "25 de Abril", a nova postura política provocou um grande reverso no tratamento jurídico da questão.
Logo no "Programa da Reforma Agrária" (Anexo 3 do Decreto-Lei nº 203-C/75, de 15 de abril) foram programadas - entre o mais - as seguintes medidas: "5. Baldios - Consagra-se o princípio da restituição dos baldios aos seus legítimos utentes, que passarão a administrá-los, através das respetivas associações, exclusivamente ou em colaboração com o Estado."
Nessa sequência, foi promulgado o D.L. n.º 39/76, de 19 de janeiro, com o objetivo de proceder à entrega dos baldios submetidos ao regime florestal às populações locais. No respetivo art. 2.º ficou a constar expressamente que os terrenos baldios se encontram fora do comércio jurídico, não podendo ser objeto de apropriação privada, incluindo a usucapião.
Complementarmente, entrou em vigor o Decreto-Lei nº 40/76, da mesma data de 19 de janeiro, que, no seu art. 1.º, n.º 1, declarou serem anuláveis a todo o tempo os atos ou negócios jurídicos que tenham como objeto a apropriação de terrenos baldios ou parcelas de baldios por particulares, bem como as subsequentes transmissões que não forem nulas.
Em face desta sucessão legislativa, e tal como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/09/2011 (10), “Na vigência sucessiva do Código Civil de 1867, do Código Administrativo de 1960 e do Código Civil de 1966, até à entrada em vigor do mencionado D.L. n.º 39/76, os baldios eram considerados prescritíveis (prescrição aquisitiva), sendo possível a sua aquisição, por usucapião, por particulares ou por entidades diversas dos respetivos compartes, em conformidade com o disposto no art. 388.º § único, do Código Administrativo, que procedeu a uma interpretação autêntica do direito anterior. A jurisprudência tem decidido uniformemente pela prescritibilidade dos baldios, desde o Código Civil de Seabra até ao início da vigência do citado D.L. nº 39/76, de 19/10 e pela sua imprescritibilidade a partir da entrada em vigor desse diploma.»
[7] Entre as exceções e consequente não exclusão do comércio jurídico, permitindo o legislador a alienação a título oneroso por deliberação da assembleia nos termos do artigo 31º; arrendamento e cessão de exploração (artigos 10º e 35º); a alienação no contexto de expropriação nos termos previstos no artigo 29º, ainda e com relevo para o caso em concreto a alienação de baldios nos quais tenham sido efetuadas construções nos termos do artigo 39º nº 1, por deliberação da assembleia de compartes, ou nos termos do nº 2 do mesmo artigo aquisição por recurso à acessão industrial imobiliária.
[8] E ambos convocados pelo recorrente.
[9] Em sentido contrário tendo decidido Ac. TRC de 05/06/2007, nº de processo 1325/05.4TBCVL.C1; Ac. TRP de 19/02/2004, nº de processo 0326737 e Ac. TRP de 18/01/2000, nº de processo 9921336, todos in www.dgsi.pt