Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MANUELA MACHADO | ||
Descritores: | AÇÃO DE DIVÓRCIO UTILIZAÇÃO DA CASA DE MORADA DA FAMÍLIA DECISÃO PROVISÓRIA | ||
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Nº do Documento: | RP202411212497/24.4T8GDM-B.P1 | ||
Data do Acordão: | 11/21/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMAÇÃO | ||
Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - O recorrente, réu no processo de divórcio, quando foi convocado para a conferência, representado como se mostra por ilustre mandatário, tinha que saber que nos termos do disposto no art. 931.º, nº 4 do CPC, iria ser abordada a questão da utilização da casa de morada da família. II - Tendo o réu tido a oportunidade de se pronunciar expressamente sobre essa situação, o que, aliás, fez, na conferência, o tribunal a quo, perante a divergência de posições, tomou a decisão provisória sob recurso, conforme lhe era permitido pelo art. 931.º, nº 9 do CPC, pelo que a decisão tomada não pode considerar-se uma decisão-surpresa, por ter surgido sem que ao recorrente tenha sido concedido o direito ao contraditório, uma vez que o mesmo sabia que a situação da casa de morada da família iria ser abordada na conferência, como resulta do citado art. 931.º, nº 4 do CPC, e que podia, nos termos permitidos pelo nº 9 do mesmo art. 931.º, ser fixado um regime provisório em relação a essa questão, afigurando-se, assim, manifesto que não ocorre a nulidade da decisão por excesso de pronúncia. III - Ainda que determinado despacho não se afigure perfeito em termos de fundamentação, não padece do vício de falta de fundamentação, gerador de nulidade, desde que permita aos respetivos destinatários a total perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial provisória que foi tomada. IV - Ao prever a possibilidade de o juiz proferir decisão provisória acerca da utilização da casa de morada de família na pendência do processo, o art. 931.º, nº 9 do CPC permite a atribuição da utilização do bem imóvel quer a título gratuito, quer a título oneroso, em função de uma valoração prudente e de acordo com as exigências de equidade e de justiça, das circunstâncias pessoais e patrimoniais dos cônjuges. (Da responsabilidade da Relatora) | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Apelação n.º 2497/24.4T8GDM-B.P1 Acórdão na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto RELATÓRIO: AA, casada, natural do ..., residente na Rua ..., ..., ... ..., ..., instaurou contra BB, casado, natural da ..., residente em ... ...8, ...86 ..., Alemanha, processo especial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, com fundamento na rutura definitiva do casamento, requerendo, entre outros, que lhe seja atribuída, até à partilha, a casa de morada da família. Designada data para a tentativa de conciliação, procedeu-se à mesma, como consta da respetiva ata, sem que tenha sido possível a conciliação dos cônjuges, ou a conversão do divórcio em divórcio por mútuo consentimento. Ouvidas as partes, estando o réu representado por ilustre advogada com procuração para o efeito, não foi também possível obter acordo sobre a casa de morada da família, os alimentos mútuos ou a regulação das responsabilidades parentais em relação aos dois filhos menores, nesta questão, quanto ao valor dos alimentos. Nessa sequência, com a concordância da Digna Magistrada do Ministério Púbico, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Tendo em conta as declarações aqui prestadas, considera-se provado: - Que o réu reside na Alemanha, onde arrendou uma habitação; - Que a requerida não tem família em Portugal; - Que a requerida habita na casa de morada de família com os menores; - Que fora acordada a residência dos menores junto da mãe, - Que a requerente trabalha numa empresa de imobiliária, auferindo valores variáveis consoante as vendas que consegue, passando recibos verdes; Decide-se atribuir à Autora a casa de morada de família, sem qualquer contrapartida, por ora, ficando a cargo da autora as despesas inerentes à sua manutenção, até à venda ou partilha do imóvel. No que se reporta à pensão de alimentos a prestar aos menores, tendo em conta as declarações prestadas e parecer do Ministério Público, fixa-se o montante provisório € 250,00 a prestar por cada menor. No que concerne à pensão de alimentos para ex-cônjuge, relego a decisão para a Providência Cautelar agendada para o próximo dia 25 de setembro, neste juízo. Quanto ao mais, e face à posição assumida pelas partes, notifique-se o réu, para, querendo, contestar no prazo de 30 dias, nos termos do disposto no artigo 931.º, n.º 5 do Código de Processo Civil. Notifique e D.N.”. * Foi dessa decisão, na parte em que decidiu atribuir à Autora a utilização da casa de morada de família, sem qualquer contrapartida, que o réu veio interpor o presente recurso. Apresentou as seguintes conclusões das suas alegações: “1.- Não obstante o regime fixado sobre a atribuição da casa de morada de família ter natureza provisória, vigorando apenas durante a pendência da acção de divórcio, as medidas tomadas ao abrigo do disposto no n.º 9 do art.º 931.º do CPC, assumem natureza de providências cautelares específicas ou especialíssimas destinadas a vigorar na pendência da ação de divórcio. 2.- Não obstante estarmos no âmbito da jurisdição voluntária e tais processos se regularem por critérios de oportunidade, quando o art.º 931.º, n.º 9, do CPC refere “em qualquer altura do processo”, não pode significar que se possa desrespeitar um dos princípios basilares do Direito - o princípio do contraditório. 3.- A decisão em crise foi proferida sem que o Apelante tivesse sequer conhecimento dos factos que fundamentavam o pedido de atribuição provisória da casa de morada de família à Apelada ou sequer a oportunidade de exercer o contraditório quanto a tais factos, já que foi proferida na tentativa de conciliação do divórcio sem consentimento do outro cônjuge. 4.- A decisão em crise foi uma decisão surpresa, não só por não respeitar o contraditório ou sequer o Apelante conhecer antes da decisão ser proferida os factos que fundamentavam o pedido contra si formulado e o caráter urgentíssimo do incidente ali decidido, ou o facto de estarmos perante processos de jurisdição voluntária, não pode significar ausência de regras processuais ou de direitos das partes. 5.- O poder do tribunal a quo pode adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna, mas tal poder só vale para a decisão em si e não para postergar os pressupostos da decisão, isto é, as condições em que aquele poder é facultado, sejam pressupostos processuais ou de direito substantivo. 6.- A prolação de decisão que fixa um regime provisório quanto à utilização da casa de morada de família, sem que previamente o tribunal dê oportunidade às partes para se pronunciarem acerca de todas as questões de facto e de direito relacionadas com o dito regime, constitui uma “decisão surpresa”, redundando na sua nulidade, por excesso de pronúncia. 7.- A decisão a quo violou o disposto no art.º 3.º, n.º 3 do CPC, tendo o Tribunal a quo tomado uma decisão precipitada e imprevisível, ferida de nulidade por excesso de pronúncia, por ter apreciado o que ainda não estava em termos de poder ser apreciado (art. 615.º, n.º 1, al. d), 666.º, n.º 1, e 685.º CPC) 8.- Deve por tal a decisão ser declarada nula nos termos do disposto no art. 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do CPCivil, e em consequência o Tribunal a quo prosseguir com os termos do processo, permitindo previamente às partes pronunciar-se acerca de todos os aspetos atinentes à fixação de um regime provisório quanto à utilização da casa de morada de família. 9.- Sem prescindir da nulidade invocada, a decisão de que se recorre não contém qualquer fundamentação, como da mesma decorre, enumerando apenas e tão só os factos que considerou resultarem provados na tentativa de conciliação do divórcio sem consentimento do outro cônjuge e nem sem sequer enumerar todos os que se impunha enumerar, como o facto de o Apelante estar desempregado. 10.- A natureza de jurisdição voluntária do processo não dispensa a fundamentação da decisão, quer em termos de facto, quer em termos de direito, conforme arts. 205.º, n.° 1, da Constituição, e 154.° e 607.°, n.°s 3 e 4, do CPC, sendo a fundamentação das decisões no nosso ordenamento jurídico um elemento essencial, constituindo fonte de legitimação, conforme flui do artigo 205 da CRP. 11.- Não obstante a decisão não omitir a factualidade em que se baseia, não pode entender-se como satisfazendo o mínimo de fundamentação, pois é pacífico que se assimila à falta absoluta de fundamentação a fundamentação que não permita descortinar as razões de decidir, como sucede na decisão a quo. 12.- A decisão em crise é manifestamente nula por falta de fundamentação como preceituado pelo art.º 615., n.º 1, al.b), do CPC. 13.- A Mm.ª Juiz a quo decidiu atribuir a titulo provisório a utilização da casa de morada de família à Apelada, a título gratuito e não obstante no que respeita à compensação pelo cônjuge a quem é atribuída a casa de morada de família ao outro cônjuge, nem a doutrina nem a jurisprudência sejam unânimes, o juiz pode temperar tal atribuição exclusiva com a imposição da obrigação do pagamento ao outro cônjuge de uma contrapartida económica, fundada em razões de equidade e justiça, aproximando-se, neste caso, ao menos por analogia, do regime do arrendamento que está legalmente previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família. 14.- Hoje em dia são relativamente poucos os casos em que, por razões de equidade e justiça, não se justifica de todo atribuir qualquer compensação patrimonial ao cônjuge privado da utilização de bem que é ou também é seu (ou é bem comum), face às diversas e consabidas implicações patrimoniais a um tempo decorrentes do benefício e da privação em causa, o que o Tribunal a quo não ponderou. 15.- O que deveria ter feito atento até o princípio constitucional da proporcionalidade, que não pode ser postergado ante a falta de determinação expressa da lei ordinária no sentido de ser devida compensação. 16.- Independentemente de o Tribunal a quo ter atribuído à Apelada o direito de utilizar a casa de morada de família, ainda que a título provisório, facto com o qual o Apelante até está de acordo, como resulta da ata da tentativa de conciliação, deveria sempre ser fixada uma compensação a seu favor, tanto mais que resulta já dos autos que a Apelada tem rendimentos mensais do trabalho e o Apelante não os possui, sendo desproporcionado obrigar um dos cônjuges a pagar uma renda na Alemanha para ali viver e outra em Portugal para quando vem visitar os filho, para que a Apelada ali resida na pendência do divórcio, a título gratuito. 17.- Padece a decisão a quo de erro de julgamento, devendo ser revogada e substituída por outra que atribua ao Apelante uma compensação pela privação da utilização da casa de morada de família.”. A Autora apresentou contra-alegações, concluindo que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida. * O recurso foi admitido como apelação, a subir em separado, e com efeito devolutivo. * * MOTIVAÇÃO: O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil. Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo apelante, as questões a decidir são as seguintes: - Saber se a decisão recorrida é nula por excesso de pronúncia e/ou falta de fundamentação; - Decidir se ocorre erro de julgamento de direito e, consequentemente, deve ser alterado o regime provisório fixado, quanto à atribuição da casa de morada da família, com a fixação de uma compensação ao réu pela utilização da casa pela autora. * 1. Matéria de facto que se considera provada, com interesse para a decisão, e que resulta da ata de tentativa de conciliação, do dia 23 de setembro de 2024: - O réu (através do seu ilustre mandatário) declarou que aceita que a casa de morada de família fique atribuída à autora. - O Réu encontra-se a residir na Alemanha, onde arrendou uma habitação. - A atividade profissional do Réu encontra-se suspensa. - A Autora trabalha como vendedora imobiliária, a recibos verdes, para a A..., auferindo valores variáveis consoante as vendas que consegue. - A Autora não tem família em Portugal. - A Autora habita na casa de morada da família com os dois menores, filhos do casal. - Foi acordada, na tentativa de conciliação, a residência dos menores junto da mãe. * 2. a) Da nulidade da decisão proferida O artigo 615.º do CPC prevê as causas de nulidade da sentença, dispondo, no que para o caso interessa, que: “1 - É nula a sentença quando: (…) b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; (…) d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; (…) 4 - As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.”. Posto isto, é unânime considerar-se que “as nulidades da sentença são vícios intrínsecos da formação desta peça processual, taxativamente consagrados no nº 1, do art. 615.º, do CPC, sendo vícios formais do silogismo judiciário relativos à harmonia formal entre premissas e conclusão, não podendo ser confundidas com hipotéticos erros de julgamento, de facto ou de direito, nem com vícios da vontade que possam estar na base de acordos a por termo ao processo por transação” (vide Ac. do TRG de 04.10.2018, disponível em dgsi.pt). Ou seja, as nulidades da sentença encontram-se taxativamente previstas no artigo 615.º do CPC e reportam-se a vícios estruturais ou intrínsecos da decisão, também, designados por erros de atividade ou de construção da própria sentença, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito. Como referido, o apelante vem arguir a falta de fundamentação da decisão recorrida e o excesso de pronúncia. Começando pela ordem em que foram arguidas, apreciemos a invocada nulidade por excesso de pronúncia, prevista na al. d) do nº 1 do art. 615.º do CPC, a qual dispõe, no que para o caso interessa, que é nula a sentença quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Refere o apelante que na conferência onde veio a ser decidida a questão em causa, ainda não conhecia o teor da petição inicial, pelo que, não tendo sido cumprido o princípio do contraditório, a decisão tomada constitui uma decisão-surpresa, o que leva à nulidade da decisão por excesso de pronúncia. Ora, entende-se que a nulidade por excesso de pronúncia apenas se verifica quando o tribunal conheça de matéria situada para além das questões integrantes do thema decidendum, que é constituído pelo pedido ou pedidos, causa ou causas de pedir e exceções. Não há dúvidas de que a decisão sobre a atribuição da casa de morada da família na pendência da ação de divórcio, é uma das questões que deve ser apreciada, como dúvidas não há, pela leitura da petição inicial, que se trata de uma questão que foi colocada à consideração do tribunal. A questão controvertida consiste em saber se a decisão provisória proferida violou o princípio do contraditório, por se tratar de decisão-surpresa. Não assiste razão ao recorrente. Desde logo, o recorrente, quando foi convocado para a conferência, representado como se mostra por ilustre mandatário, tinha que saber que nos termos do disposto no art. 931.º, nº 4 do CPC, “Estando presentes ambas as partes e não sendo possível a sua conciliação, e não tendo resultado a tentativa do juiz no sentido de obter o acordo dos cônjuges para o divórcio ou a separação por mútuo consentimento, o juiz procura obter o acordo dos cônjuges quanto aos alimentos e quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais dos filhos. Procura ainda obter o acordo dos cônjuges quanto à utilização da casa de morada de família durante o período de pendência do processo, se for caso disso.”. Ou seja, quando compareceu na conferência, o recorrente, representado pelo seu ilustre mandatário, com poderes para o ato, sabia que iria ser abordada a questão da utilização da casa de morada da família. E tanto assim era, como efetivamente foi. Como se pode retirar da ata da conferência, o Tribunal a quo deu integral cumprimento ao disposto no nº 4 do art. 931.º citado. Concretamente, no que diz respeito à utilização da casa de morada da família, consta da ata que “O ilustre advogado do Réu declarou que o seu constituinte aceita que a casa de morada de família fique atribuída à autora, com a condição de uma renda de €500,00, referindo que o progenitor se encontra a realizar um tratamento terapêutico, diário, na Alemanha para o seu consumo desajustado de álcool e que, por força da sua actividade profissional se encontrar suspensa, o mesmo não tem rendimentos. Em resposta ao declarado pelo Ilustre mandatário do Réu, a Ilustre advogada da Autora declarou que a sua cliente não tem rendimentos, uma vez que não exerce a sua profissão desde o nascimento do filho mais velho do casal, CC. Também referiu que o Réu tinha seguros que cobriam uma situação de desemprego, tendo o advogado do mesmo declarado que essa situação não se verifica. Porém, mais tarde, a Autora declarou que trabalha como vendedora imobiliária, a recibos verdes, para a A....”. Ou seja, o recorrente teve a oportunidade de se pronunciar expressamente sobre a situação em causa, o que, aliás, fez, tal como o fez a autora, pelo que o tribunal a quo, perante a divergência de posições, tomou a decisão provisória sob recurso, conforme lhe era permitido pelo art. 931.º, nº 9 do CPC. Conclui-se, assim, que a decisão tomada não pode considerar-se uma decisão-surpresa, por ter surgido sem que ao recorrente tenha sido concedido o direito ao contraditório, uma vez que o mesmo sabia que a situação da casa de morada da família iria ser abordada na conferência, como resulta do citado art. 931.º, nº 4 do CPC, e que podia, nos termos permitidos pelo nº 9 do mesmo art. 931.º, ser fixado um regime provisório em relação a essa questão Afigura-se, assim, manifesto que não ocorre a nulidade da decisão por excesso de pronúncia. Quanto à nulidade da decisão proferida por falta de fundamentação, cabe dizer, antes de mais, que tal causa de nulidade da sentença prevista na alínea b) do nº 1 do art. 615.º do CPC, é aplicável aos despachos ex vi o nº 3 do art. 613.º do mesmo diploma legal. Posto isto, tem-se entendido que só a absoluta falta de fundamentação – e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação – integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil. Assim, só ocorre falta de fundamentação de facto e de direito da decisão judicial, quando exista falta absoluta de motivação ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial (cfr. Ac. TRG, de 02-11-2017, processo 42/14.9TBMDB.G1). Ou seja, para que ocorra esta nulidade não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito. Neste sentido, ensina J. Alberto dos Reis (in Código de Processo Civil Anotado, Volume V, 3ª edição, Coimbra Editora, pág. 139 e 140) que importa proceder-se à distinção cuidadosa entre a “falta absoluta de motivação, da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.”. Ora, tendo em conta o teor do despacho recorrido e o que acaba de se dizer, constata-se que o dito despacho não se afigura perfeito em termos de fundamentação, mas permite aos respetivos destinatários a total perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial provisória que foi tomada. E assim sendo, não padece do vício de falta de fundamentação. Explicando melhor, o tribunal a quo permitiu que as partes se pronunciassem sobre a questão, tendo cada uma delas apresentado os seus argumentos, sendo que o recorrente se pronunciou no sentido de concordar com a utilização da casa de morada da família pela autora, a cargo da qual se encontram os filhos de ambos, ficando também a constar a sua pretensão a uma remuneração por tal utilização. Ficou também expressa a posição da autora, no sentido de não ter possibilidades para o efeito, mencionando a sua atual situação, depois de o réu ter deixado de contribuir para os gastos da família, como fazia antes, não sendo de esquecer que a autora deixou de trabalhar após o nascimento do primeiro filho do casal, o que resulta ter sido acordado entre as partes. E assim sendo, os factos que o tribunal a quo considerou como provados, permitem facilmente que qualquer pessoa perceba as razões da atribuição da utilização da casa de morada da família à autora e sem qualquer remuneração. Por um lado, é a autora que nessa casa vive, com os dois filhos menores do casal, conforme aceite pelo réu, enquanto que o réu vive na Alemanha, no seu país natal. Por outro lado, resulta que a autora não tem um rendimento fixo, por nunca ter trabalhado desde que nasceu o primeiro filho, deparando-se, atualmente, com dificuldades económicas, que, por exemplo, já levaram a que tivesse que tirar os filhos do colégio privado que frequentavam. Tudo isso consta da ata da conferência e foi nessa sequência que foram dados como provados os factos considerados essenciais para fundamentar a decisão provisória tomada, pelo que não ocorre a nulidade por falta de fundamentação da decisão, invocada pelo recorrente. Improcede, pois, o recurso, quanto às arguidas nulidades. * 2. b) Do erro de julgamento de direito Através da decisão recorrida, o tribunal a quo decidiu atribuir à autora/apelada, provisoriamente, até à venda ou partilha do imóvel, a utilização da casa de morada da família, “sem qualquer contrapartida, por ora”, ficando a cargo da autora as despesas inerentes à respetiva manutenção. Esta decisão foi proferida ao abrigo do disposto no art. 931.º, nº 9 do CPC, que não se confunde com a previsão do art. 990.º do mesmo diploma legal, como anotam A.S. Abrantes Geraldes, L.F. Pires de Sousa e P. Pimenta (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, 2019, pág. 443), onde referem que «o procedimento de atribuição da casa de morada de família não se confunde com a situação regulada no art. 931.º, nºs 2 e 7 (RE 11-7-19, 8214/16) [agora, art. 913.º, nº 9, após a alteração introduzida pela Lei nº 3/2023, de 16-01]: o regime provisório ali previsto justifica-se perante a demonstração de uma situação de necessidade e/ou de urgência relativa à utilização da casa de morada de família por parte de um dos cônjuges, ainda na pendência do casamento». O recorrente aceita a atribuição da utilização da casa de morada da família à recorrida, discordando, apenas, do facto de tal utilização ter sido deferida sem qualquer contrapartida. Quanto à questão da fixação de uma compensação ao cônjuge privado do uso da casa de morada da família, na pendência da ação de divórcio, tem-se entendido que «I. A medida provisória e cautelar de atribuição da casa de morada de família pode ou não comportar, em função de uma valoração judicial concreta das circunstâncias dos cônjuges e atentas as exigências de equidade e de justiça, a fixação de uma compensação pecuniária ao cônjuge privado do uso daquele bem, pressupondo esta atribuição a título oneroso, quando decretada, uma aplicação analógica do regime que está previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família. II. Na verdade, ao limitar-se a prescrever a possibilidade de o juiz proferir decisão provisória acerca da utilização da casa de morada de família na pendência do processo, a norma do art.do n.º 7 do art. 931.º do CPC é suficientemente ampla, indeterminada e flexível para consentir, em função de uma valoração prudencial das circunstâncias pessoais e patrimoniais dos cônjuges, quer numa atribuição do bem imóvel a título gratuito, quer numa atribuição a título oneroso, fundada em razões de equidade e justiça, estabelecida por analogia com o regime que está legalmente previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família. (…)” (cfr. Acórdão do STJ de 13.10.2016, proferido no processo n.º 135/12.7TBPBL-C.C1.S1 (Cons. Lopes do Rego), disponível em dgsi.pt). Assim, ao prever a possibilidade de o juiz proferir decisão provisória acerca da utilização da casa de morada de família na pendência do processo, o art. 931.º, nº 9 do CPC permite a atribuição da utilização do bem imóvel quer a título gratuito, quer a título oneroso, em função de uma valoração prudente e de acordo com as exigências de equidade e de justiça, das circunstâncias pessoais e patrimoniais dos cônjuges. No caso, o Tribunal a quo decidiu atribuir à autora/apelada, provisoriamente, até à venda ou partilha do imóvel, a utilização da casa de morada da família, “sem qualquer contrapartida, por ora”, ficando a cargo da autora as despesas inerentes à respetiva manutenção. Dos termos da decisão proferida resulta claramente que se trata de uma decisão provisória, baseada nos elementos disponíveis nos autos, naquele momento, e que pode ser objeto de alteração, logo que surjam elementos mais concretos, nomeadamente, com a contestação do recorrente, o que resulta evidente da utilização da expressão “sem qualquer contrapartida, por ora”. O certo é que no momento em que a decisão impugnada foi proferida, as circunstâncias a considerar eram, antes de mais, que a autora/apelada vivia na casa que fora de morada da família, com os dois filhos menores do casal; o recorrente, por sua vez, vivia na Alemanha, sua terra natal, motivo que, aliás, terá determinado que o mesmo aceitasse a utilização da casa pela autora. Por sua vez, valorando as circunstâncias pessoais e patrimoniais de cada um dos cônjuges, dir-se-á que as circunstâncias pessoais do apelante se afiguram de maior capacidade financeira do que as da apelada, tendo em conta o rendimento que o mesmo auferiria no âmbito do exercício da sua profissão. Não podemos esquecer que a apelada tem a seu cargo os dois filhos, para cujo sustento o apelante foi condenado, também provisoriamente, a contribuir, mas que não impede que a apelada tivesse já que retirar os filhos do colégio que frequentavam. Acrescem as despesas com consumos habituais de uma habitação onde residem três pessoas e manutenção da casa, que a autora terá que suportar periodicamente, sem que, de momento, tenha um rendimento fixo, sendo certo que a mesma não pode beneficiar da ajuda de qualquer familiar que resida no país, um país que não é o seu país natal, ao contrário do apelante que reside no país natal, onde terá familiares. Posto isto, ponderando o que se deixa exposto, entende-se que na situação concreta descrita, e até que sejam carreadas para os autos outras circunstâncias que justifiquem uma alteração, deve manter-se o regime provisório fixado quanto à utilização da casa de morada da família pela autora (e pelos filhos do casal), sem qualquer contrapartida. Assim, improcede o recurso, na totalidade. * * DECISÃO: Por tudo quanto se deixa exposto, acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso interposto, consequentemente confirmando a decisão recorrida que fixou o regime provisório quanto à utilização da casa de morada da família pela autora, sem qualquer contrapartida. Custas pelo recorrente. Notifique. Porto, 2024-11-21 Manuela Machado António Paulo Vasconcelos Ana Vieira |