Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3672/17.3T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
REQUISITOS
ANTERIORIDADE DO CRÉDITO
ÓNUS DA PROVA
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
Nº do Documento: RP202101113672/17.3T8PRT.P1
Data do Acordão: 01/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Sob pena de rejeição, quando se impugne a decisão da matéria de facto, o recorrente deve dar cumprimento aos ónus imposto pelo artigo 640.º do CPCivil.
II - Não tendo a recorrente indicado os concretos pontos de facto que considerava incorrectamente julgados deve ser rejeitado o recurso no segmento da impugnação da matéria de facto.
III - São requisitos gerais da impugnação pauliana a existência de um crédito, a anterioridade deste face ao acto a impugnar-ou, sendo posterior, que o acto tenha sido realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor-e que do acto resulte a impossibilidade da satisfação integral do crédito, ou o seu agravamento.
IV - Ao credor cabe o ónus da prova da existência e anterioridade do seu crédito e, sendo caso disso, da existência de outras dívidas; ao devedor ou ao terceiro interessado na manutenção do negócio cabe o ónus da prova de que o devedor tem bens penhoráveis de igual ou maior valor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 3672/17.3T8PRT.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Central Cível do Porto-J3
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Pedro Damião e Cunha
Sumário:
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I - RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B…, Lda, com sede no Lugar de …, freguesia de …, do concelho de Cabeceiras de Basto intentou a presente acção declarativa de condenação sob processo comum contra C… e esposa D…, E… e F…, todos residentes na Rua…, n.º .., freguesia de …, do concelho da Maia, na qual formulou os seguintes pedidos:
a)- que seja declarada ineficaz em relação à Autora o acto de doação titulado pela escritura descrita sob os artigos 34º e 37º, relativo aos prédios aí identificados, restituindo-se os mesmos ao património dos 1º RR;
b)- que seja ordenado o cancelamento de todos e quaisquer registos efectuados com base no acto declarado ineficaz, bem como aqueles que se seguirem e que daqueles resultem directamente;
c)- que seja reconhecido ao A. o direito a executar aquele património dos 1º RR.
Alega para o efeito que, é credora dos 1º RR, pelo valor de €125.345,40, tendo sido proferida condenação judicial dos RR na acção que a Autora lhes moveu.
Mais alegou que, por escritura de doação outorgada em 17/8/2012 os 1º RR declararam doar por conta da legítima aos 2º e 3º RR, seus filhos, com reserva do direito de uso e habitação, que os 2º e 3º RR declararam aceitar, os imóveis ali descritos, querendo com isso impossibilitar a satisfação integral do crédito da A., garantindo que não venham a ser penhorados e vendidos na execução que a A. vier a intentar para satisfação do seu crédito, não tendo os 1º RR outros bens daquele valor ou aproximado no seu património que lhes permita a integral satisfação do crédito da Autora, traduzindo-se aquelas doações numa efectiva diminuição da garantia patrimonial do seu crédito, o qual é anterior à realização da escritura de doação, mas para o caso de se considerar que o crédito é posterior sempre a escritura de doação foi celebrada dolosamente com o fim de impedir a satisfação do crédito da Autora.
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Por requerimento junto a fls. 206/207 a Autora veio requerer a expurgação do pedido formulado sob a alínea b) por constituir evidente lapso ou, caso assim não se entenda, expressamente declarou dele desistir.
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Os Réus foram regularmente citados, tendo apenas o 1º Réu deduzido contestação, invocando que não existiu má-fé na sua conduta ou na dos donatários, ou intenção de causar prejuízo à Autora, uma vez que a doação se deveu exclusivamente a uma crise conjugal que o seu casamento atravessou por ter tido uma relação extraconjugal, tendo a Ré obrigado a proceder à doação dos bens aos filhos do casal por forma a evitar o divórcio e consequente partilha e, quer na data da doação em 2012, quer nos anos seguintes, o Réu nada devia à Autora, pois a sentença que o condenou data de 13/10/2015 e não transitou em julgado, assim como alegou que os 1º RR são detentores de mais bens imobiliários cujo valor é suficiente para assegurar qualquer eventual crédito da Autora.
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No exercício do princípio do contraditório, a A. veio informar que a sentença na qual os aqui 1º RR foram condenados transitou em julgado em 4/5/2017, estando em curso execução intentada contra os aqui 1º RR, tendo ainda rectificado o valor do crédito para €104.856,69 uma vez que erradamente calculara IVA sobre um valor que já o tinha, pugnando pela anterioridade do crédito por considerar que a mesma se afere pela data da constituição do crédito e não pelo seu vencimento e, impugnando a alegada suficiência do património dos 1º RR.
Em sede de audiência prévia, veio a Autora apresentar articulado superveniente, alegando que posteriormente aos articulados tomou conhecimento de que sobre os bens descritos no art. 49º da PI, que constituem o património remanescente dos 1º RR, impende como ónus uma hipoteca voluntária a favor do irmão do 1º Réu com montante máximo assegurado de €100.000,00 registada em 21/10/2016.
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Concedido o exercício do princípio do contraditório, o 1º Réu veio pugnar pelo desentranhamento do articulado superveniente, por não existir nem facto superveniente, nem ter interesse para os autos.
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Foi proferido despacho a indeferir o articulado superveniente por não ter sido demonstrada a superveniência.
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Realizada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, com fixação do objecto do litígio, factos assentes e temas de prova, que não sofreram reclamações.
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Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal
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A final, foi proferido decisão que:
Julgo procedente a presente acção e, consequentemente declarou ineficazes em relação à Autora os actos de doação celebrados entre os Réus por escritura pública de doação celebrada em 17/8/2012, relativamente à fracção autónoma designada pela letra “I”, correspondente a habitação no segundo andar direito traseiras, com entrada pelo número 51, aposento na cave para arrumos, garagem nas traseiras, para estacionamento do veículo automóvel, com entrada pelo numero …, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal situado na Rua…, número .. e Rua…, número …, freguesia de …, concelho da Maia, inscrito na matriz sob o artigo 1911 (actualmente sob o artigo 6312 da freguesia da …), descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia sob o número 421/19880511-I e, o prédio urbano composto de casa de rés-do-chão para habitação e logradouro, situado em …, na freguesia de …, concelho de Cabeceiras de Basto, inscrito na matriz sob o artigo 826 (actualmente sob o artigo 3615 da união das freguesias de …, … e …), descrito na Conservatória do Registo Predial de Cabeceiras de Basto sob o número 978/20100809, tendo a Autora direito a executar esses bens imóveis na medida do valor do crédito, no património dos 2º e 3º Réus, condenando-se os RR no reconhecimento desse direito.
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Não se conformando com o assim decidido veio o Réu C…, interpor o presente recurso concluindo com extensas alegações que aqui nos abstemos de reproduzir, aliás, nem as mesmas disso se podem apelidar, pois que mais não são, com pontuais alterações, do que a reprodução do corpo alegatório.
Ora, como ensina o Conselheiro Amâncio Ferreira[1] “Expostas pelo recorrente, no corpo da alegação, as razões de facto e de direito da sua discordância com a decisão impugnada, deve ele, face à sua vinculação ao ónus de formular conclusões, terminar a sua minuta pela indicação resumida, através de proposições sintéticas, dos fundamentos, de facto e/ou de direito, por que pede a alteração ou anulação da decisão”.
As conclusões são “proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação”[2].
A este propósito veja-se, ainda, a delimitação proposta no Acórdão do STJ de 09/07/2015[3] já citado:
As conclusões são deficientes designadamente quando não retractem todas as questões sugeridas pela motivação (insuficiência), quando não revelem incompatibilidade com o teor da motivação (contradição), quando não encontrem apoio na motivação, surgindo desgarradas (excessivas), quando não correspondam a proposições logicamente adequadas às premissas (incongruentes), ou quando surjam amalgamadas, sem a necessária discriminação, questões ligas à matéria de facto e questões de direito.
Obscuras serão as conclusões formuladas de tal modo que se revelem ininteligíveis, de difícil inteligibilidade ou que razoavelmente não permitam ao recorrido ou ao tribunal percepcionar o trilho seguido pelo recorrente para atingir o resultado que proclama.
As conclusões serão complexas quando não cumpram as exigências de sintetização a que se refere o nº1 (prolixidade) ou quando, a par das verdadeiras questões que interferem na decisão do caso, surjam outras sem qualquer interesse (inoquidade) ou que constituem mera repetição de argumentos anteriormente apresentados. Complexidade que também deverá decorrer do fato de se transferirem para o segmento que deve integrar as conclusões, argumentos, referências doutrinais ou jurisprudências propícias ao segmento da motivação. Ou ainda, quando se mostre desrespeitada a regra que aponta para a necessidade de a cada conclusão corresponder uma proposição, evitando amalgamar diversas questões.
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Devidamente notificada contra-alegou a Autora concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão que importa decidir:
a)- saber se estão, ou não, verificados todos os requisitos da impugnação pauliana como decidiu o tribunal recorrido.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1. Da certidão de matrícula com o n.º 329/01/0314 relativa à A. “B…, Lda.” consta na inscrição n.º 1 (Ap. 06/010314): «Contrato de Sociedade (…); Objecto: Indústria de Construção Civil e Empreitadas de Obras Públicas. Compra e venda de bens imóveis (…); Sócios e Quotas: G…, viúva, H…, solteira, menor, I… e mulher, J… (…); Gerência: Pertence aos sócios I… e G…”;
2. K… acordou com os 1.os RR. a construção de uma casa de habitação de rés-do-chão com águas furtadas, no Lugar de … ou …, …, Cabeceiras de Basto, de acordo com o projecto aprovado pela Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto;
3. K… faleceu antes do início da referida obra;
4. I… assumiu a construção dessa obra antes do seu começo;
5. Após a morte de K…, os 1.os RR. acordaram com I… que este, através da A., assumiria a execução da referida obra;
6. O preço acordado para a execução da obra referida no artigo 2.º foi de €162.109,32, ao que acresce IVA à taxa legal em vigor;
7. Esse preço deveria ser pago no decurso da obra até ao seu termo, sendo a última prestação a satisfazer na data da sua conclusão;
8. Para pagamento do preço da obra supra descrita sob o artigo 2.º, os 1.os RR. entregaram as quantias de: €14.963,94 em 26/08/2000; €4.987,99 em 15/12/2000; €14.963,94 em 06/02/2001; €12.469,95 em 04/04/2001; €12.469,95 em 15/05/2001; €12.469,95 em 15/05/2001; €10.951,92 em 26/12/2001; e €9.975,96 em 10/05/2002, sendo que os pagamentos realizados a 26/12/2001 e a 10/05/2002 foram realizados a I…;
9. Para além das quantias referidas sob o artigo 8.º, os 1.os RR. entregaram a K… a quantia de ESC. 3.000.000$00 (€14.963,00) em 31/12/1999;
10. A A. iniciou a obra em Junho de 2000, tendo nela trabalhado até Dezembro de 2002;
11.No decurso da obra, os 1.os RR. pediram à Autora que efectuasse as seguintes obras não previstas no acordo a que se alude no artigo 2.º: muro em betão na parte exterior; canalização da água do poço vizinho; aumento, em altura, do muro de vedação e suporte; aumento de construção do anexo e divisões interiores; alargamento dos passeios;
12. Em Dezembro de 2002, quando ainda faltava pintar parte da casa, afagar e envernizar o soalho em madeira, montar uma porta de correr, colocar parte das louças, construir uma parede em tijolo vermelho, efectuar calcetas exteriores, instalar as máquinas da piscina e pintá-la, construir um muro de vedação junto à estrada nacional, pôr grades e rede na parte exterior, pôr espelhos dos aparelhos eléctricos, suportes, lâmpadas e intercomunicador, os 1.º RR. mudaram as chaves das portas de acesso à obra;
13. Após a mudança das fechaduras, a A. e os seus funcionários ficaram impedidos de acederem ao prédio;
14. A A. executou, até ao fim de Novembro de 2002, os trabalhos descritos nas facturas números 56, 60, 66, 82, 95, 96, 97, 106, 107, 108, 109, 111, 112, 116, 120 e 121 no valor de €157.424,63 e os trabalhos descritos na factura n.º 157 no valor de €11.685,80;
15. Os 1º RR. compraram materiais e contrataram com novos empreiteiros o prosseguimento dos trabalhos de construção para acabarem a obra;
16. Em face do exposto, tendo ocorrido a desvinculação contratual unilateral dos 1º RR. e como houvessem trabalhos realizados pela A. e não pagos, esta intentou contra os 1º RR. a acção de processo ordinário n.º 539/05.1TBCBC, que inicialmente correu termos pela Secção Única do Tribunal Judicial de Cabeceiras de Basto, posteriormente pela 2.ª Secção Cível – J4 da Instância Central de Guimarães e, actualmente, pelo Juízo Central Cível de Guimarães – Juiz 4, da Comarca de Braga, peticionando o pagamento dos trabalhos realizados e do lucro cessante;
17. Todos os factos supra descritos sob os artigos 1.º a 15.º, para além de outros, foram julgados provados pela douta sentença proferida em 12/10/2015 na acção supra descrita sob o artigo 16.º (Doc. junto a fls. 70 a 87 cujo teor se dá aqui por integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais);
18. Naquela douta sentença foi decidido que “A conduta dos RR., ao mudar as fechaduras da obra e depois terem encarregado um terceiro da conclusão da obra impossibilitou a Autora de finalizar a empreitada sem, contudo, estarem verificados os pressupostos do incumprimento definitivo.
“A actuação dos RR. tem por isso de ser valorada no quadro da desvinculação unilateral ad nutum permitida pelo artigo 1229.º do Código Civil, tendo como consequência a obrigação de indemnizar os gastos e trabalhos efectuados, bem como o lucro cessante”;
19. Em consequência, a acção foi julgada parcialmente procedente por provada, tendo os 1º RR. sido condenados a pagar à A. a quantia de €51.894,43 (€40.208,63 + €11.685,80) e de €702,60, acrescidos de IVA à taxa legal em vigor e dos juros de mora desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;
20. Daquela douta sentença os 1º RR. interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães, que por douto acórdão de 14/04/2016 julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida, decidindo, tal como a primeira instância, que “o seu comportamento, ao mudarem as fechaduras das portas de acesso à obra, configura a desistência prevista no artigo 1229.º do CC, sendo este comportamento, a base da sua condenação” (Doc. junto a fls. 91 a 112 cujo teor se dá aqui por integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais);
21. Deste douto acórdão, os 1º RR. interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, que por douto acórdão de 06/10/2016 decidiu negar a revista, salvo no que respeita à condenação dos 1º RR. no pagamento da quantia de €702,60, do qual foram absolvidos (Doc. junto a fls. 117 a 159 cujo teor se dá aqui por integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais);
22. Os RR. foram citados para a acção supra descrita, em 19/09/2005;
23. Os RR. deduziram reclamação do aludido acórdão, que veio a ser julgada improcedente pelo douto acórdão de 14/12/2016;
24. Os RR. interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, que não foi admitido por douto despacho de 20/01/2017;
25. E reclamaram daquele douto despacho para o Tribunal Constitucional, que confirmou a não admissão do recurso por Acórdão de 20/04/2017 (Doc. junto a fls. 162 a 166, bem como de fls. 447 a 456 cujo teor se dá aqui por integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais);
26. Por escritura pública de doação outorgada a fls. 40 a 41V do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º 42-A, do Cartório Notarial da Notária Cláusula L…, os 1.os RR. declaram doar por conta da legítima aos seus filhos, aqui 2.ª e 3.º RR., com reserva do direito de uso e habitação simultâneo e sucessivo a seu favor, a fracção autónoma designada pela letra “I”, correspondente a habitação no segundo andar direito traseiras, com entrada pelo número 51, aposento na cave para arrumos, garagem nas traseiras, para estacionamento do veículo automóvel, com entrada pelo numero …, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal situado na Rua…, número .. e Rua…, número …, freguesia de …, concelho da Maia, inscrito na matriz sob o artigo 1911 (actualmente sob o artigo 6312 da freguesia …), descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia sob o número quatrocentos e vinte e um, com aquisição registada a seu favor pela inscrição com a apresentação cento e onze de trinta de Junho de mil novecentos e noventa e nove, estando registada a constituição da propriedade horizontal pela inscrição com a apresentação dois de dezasseis de Abril de mil novecentos e noventa (Doc. junto a fls. 168 a 171cujo teor se dá aqui por integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais);
27. Pela mesma escritura, declarou ainda o 1.º R. marido, doar por conta da legítima aos seus filhos, com reserva do direito de uso e habitação simultâneo e sucessivo a seu favor e a favor de sua mulher (1.ª Ré mulher), o prédio urbano composto de casa de rés-do-chão para habitação e logradouro, situado em …, na freguesia de …, concelho de Cabeceiras de Basto, inscrito na matriz sob o artigo 826 (actualmente sob o artigo 3615 da união das freguesias de …, … e …), descrito na Conservatória do Registo Predial de Cabeceiras de Basto sob o número novecentos e setenta e oito, com aquisição registada a eu valor pela inscrição com a apresentação mil e trinta e seis de nove de Agosto de dois mil e dez, estando ainda registado um ónus de não fraccionamento pela inscrição com a apresentação mil e trinta e seis de nove de agosto de dois mil e dez;
28. Ainda pela mesma escritura, a 2.ª e 3.º RR. declararam aceitar as doações;
29. E a 1.ª Ré mulher declarou autorizar o 1.º R. marido a realizar a doação do imóvel situado no concelho de Cabeceiras de Basto e ainda aceitar a doação do direito de uso e habitação do mesmo imóvel;
30. Ora, o prédio urbano supra descrito sob o artigo 35.º é precisamente a casa de habitação de rés-do-chão com águas furtadas objecto do contrato de empreitada também supra descrito sob o artigo 2.º, que está na origem do crédito da A.;
31. A A. tomou conhecimento que, por ora, subsiste na esfera patrimonial do 1.º R. marido metade indivisa de quatro bens imóveis, a saber:
a-) Uma morada de casas coberta de telha, composta de rés-do-chão com uma divisão, destinada a loja, 1.º andar com sete divisões, destinadas a habitação (cozinha, um quarto de banho, três quartos, sala de jantar, corredor) e quintal anexo dos lados Nascente e Sul, situado na freguesia de …, do concelho de Cabeceiras de Basto, inscrito na matriz sob o artigo 3250, com o valor patrimonial tributário de €15.230,00;
b) Prédio de R/C e andar, destinado a habitação, tendo no R/C sala, quarto, cozinha, despensa, WC e garagem, e no andar 4 quartos, banho e varanda, com uma dependência de lavadouro, arrumos e galinheiro e terreno de logradouro e quintal, situado na freguesia de …, do concelho da Maia, inscrito na matriz sob o artigo 3851, com o valor patrimonial tributário de €98.840,00;
c-) Fracção autónoma destinada a habitação do tipo T3, designada pela letra “G”, correspondente ao 2.º Esq., situada no prédio urbano de cave, R/C e 3 andares, destinado a comércio e habitação, em regime de propriedade horizontal, situado na Rua …, n.º , inscrito na matriz sob o artigo 3954, com o valor patrimonial tributário de €64.590,00;
d-) Prédio de R/C destinado a garagem, situado na freguesia e concelho da…, inscrito na matriz sob o artigo 4530, com o valor patrimonial tributário de €4.730,00 (Doc. juntos a fls. 177 a 184 cujo teor se dá aqui por integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais);
32. A metade indivisa do 1.º R. marido ascende ao valor patrimonial tributário de €91.695,00;
33. A Autora intentou contra os aqui 1º RR execução comum para pagamento de quantia certa, pelo valor rectificado de € 104.856,69, na qual os 1º RR deduziram oposição mediante embargos (Doc. juntos a fls. 465 a 470 e fls. 495 e 496, cujo teor se dá aqui por integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais);
34. Aqueles bens imóveis têm um valor não inferior a €150.000,00 (art. 40º da PI);
35. A A. é credora dos 1.ºs RR. no montante aproximado de €114.665,73;
36. Com o acto de doação praticado pelos 1º RR. a favor dos seus filhos, a 2.ª e o 3.º RR., quiseram impedir que fossem penhorados pela A., vendidos e/ou adjudicados na execução que a A. intentou, para satisfação do seu crédito;
37. Tudo sem perderem a posse, uso e fruição dos ditos bens;
38. Os bens imóveis doados pelos 1º RR. constituem os bens mais valiosos do património destes;
39. Os imóveis de que o 1º R. é proprietário de “metade indivisa”, terão menos hipóteses de serem licitados e vendidos;
40. O proprietário da outra metade indivisa daqueles bens imóveis é o irmão do 1.º R. marido, M…;
41. A 2.ª e o 3.º RR. tinham conhecimento do processo que tinha por objecto a casa de habitação construída pela A. e perdurou durante cerca de 12 anos;
42. Em 5/8/2010 o R. marido aceitou que os seus pais, entretanto já falecidos, N… e O…, lhe fizessem uma doação do terreno de ….
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Factos não provados:
Não se provou que:
1. O 1º R pretende conluiar-se com o seu irmão, no sentido de este ceder àquele a sua metade indivisa, quer gratuitamente, quer mediante contrapartida pecuniária, que atenta a sua natureza facilmente poderá dissipar;
2. A doação dos 2 bens aos filhos deveu-se, exclusivamente, a uma crise conjugal que o seu casamento atravessou, já que a co Ré D…, descobriu uma relação extraconjugal que o R. mantinha com uma Senhora de Cabeceiras de Basto e já durava há alguns anos;
3. Na sequência disso e com vista a evitar um divórcio e consequente partilha,a co-Ré D… obrigou o R. a proceder à doação dos bens aos filhos do casal;
4. Pois temia que o património existente ainda fosse parar às mãos de outra mulher;
5. Pelo julgamento realizado no Tribunal de Cabeceiras de Basto no âmbito da acção 539/05.1 TB CBC, a Sentença proferida em 3/3/2011, o pedido da A. foi julgado totalmente improcedente;
6. A A. sempre soube que os RR tinham efectuado a escritura de doação;
7. Os 1º RR são detentores de mais bens imobiliários cujo valor real de mercado chega para assegurar o crédito da Autora.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se estão, ou não, verificados todos os requisitos da impugnação pauliana como decidiu o tribunal recorrido.
E dissemos que era apenas uma a questão a decidir porque, efectivamente, lendo e relendo as alegações recursivas nenhuma outra vem colocada e, concretamente, a impugnação da matéria de facto.
Apreciando.
Nos termos do artigo 662.º,nº 1 do CPCivil a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto:
[…]se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Por sua vez o artigo 640.º do mesmo diploma legal estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”
Sendo este o arquétipo legal que preside à impugnação da matéria de facto, importa, então, antes de mais, verificar se estão reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à sua reapreciação.
A consagração do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, inicialmente prevista no DL 39/95 de 25/02, constituiu uma nova garantia das partes no regime de processo civil e de acordo com o regime proposto pelo legislador, implicou a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objeto do recurso e à respectiva fundamentação.
Como se escreveu no preâmbulo do DL 39/95 de 25/02 o duplo grau de jurisdição: “[…] nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.
A lei não consente, por isso, como se afirma no preâmbulo do citado diploma, que “o recorrente se limit[e] a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido”.
O especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, relativo à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação, “ […] decorre, aliás, dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redacção do artigo 712º CPC )-e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1” instância-possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito em julgado de uma decisão inquestionavelmente correta. Daí que se estabeleça”, continua o mesmo preâmbulo, “no artigo 690.°-A, que o recorrente deve, sob pena de rejeição do recurso, além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, impunham diversa decisão sobre a matéria de facto. Tal ónus acrescido do recorrente justifica, por outro lado, o possível alargamento do prazo para elaboração e apresentação das alegações, consentido pelo n° 6 do artigo 705º.º“.
A respeito do regime previsto escreveu Lopes do Rego que: “[a] consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação“[4].
O ónus imposto ao recorrente que impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto traduz-se, no ensinamento do mesmo Autor:
“- na necessidade de circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente qual a parcela ou segmento–o ponto ou pontos da matéria de facto– da decisão proferida que considera viciada por erro de julgamento;
- no ónus de fundamentar, em termos concludentes, as razões porque discorda do decidido, indicando ou concretizando quais os meios probatórios ( constantes de auto ou documento incorporado no processo ou de registo ou gravação nele realizada ) que implicavam decisão diversa da tomada pelo tribunal, quanto aos pontos da matéria de facto impugnados pelo recorrente;
- finalmente–e por força do estatuído no nº 2–quando os meios probatórios incorrectamente valorados, na óptica do recorrente, pelo tribunal apenas constem de registo ou gravação ( não estando, portanto, ainda materialmente “ incorporados “ nos autos), incumbe ainda ao recorrente o ónus de proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda o invocado erro na apreciação das provas”.[5]
Abrantes Geraldes ponderando as alterações introduzidas pelo DL 183/2000 de 10/08 e na Lei de Autorização Legislativa nº 6/07 de 02/02, sintetiza o sistema que passou a vigorar sempre que o recurso envolva impugnação da decisão sobre a matéria de facto, da seguinte forma:
“- o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, aos quais deve aludir na motivação do recurso e sintetizar nas conclusões;
- quando o recorrente funde a impugnação em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, deve especificar aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
- relativamente aos pontos da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova, há que distinguir duas situações:
- se a gravação foi efectuada por meio (equipamento) que não permite a identificação precisa e separada dos depoimentos recai sobre a parte o ónus de transcrição dos depoimentos, ao menos na parte relativa aos segmentos que, em seu entender, influam na decisão;
- se a gravação foi efectuada por meio (equipamento) que permite a identificação precisa e separada dos depoimentos, o funcionário que monitoriza a gravação e que está presente na audiência deve assinalar “na ata o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento, de forma a ser possível uma identificação precisa e separada dos mesmos ”, como o determina o art. 155.º, nº 1 ”[6].
Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre o âmbito do ónus de alegação em sede de impugnação da decisão da matéria de facto, dando nota do sentido interpretativo exposto pronunciaram-se, entre outros, nos seguintes arestos: Ac STJ de 06/11/2006, 24.01.2007, 06.02.2008, 19.03.2009[7], de 23.11.2011.[8]
As alterações introduzidas no Código de Processo Civil, com a Lei 41/2013 de 26/06, mantêm no essencial o regime de reapreciação da decisão da matéria de facto, sendo por isso, válidas as referências expostas em sede de doutrina e jurisprudência.
O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.[9]
Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar-delimitar o objecto do recurso-, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação-fundamentação-que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
Feitos estes breves considerandos, torna-se evidente de o Réu recorrente, não deu cumprimento a qualquer dos citados ónus e, nomeadamente, não indicou quais os concretos pontos que considerava incorrectamente julgados.
Com efeito e por mais esforço que se faça não se concebe divisar que concretos pontos o Réu pretende impugnar.
O recorrente limita-se a por em causa a convicção do tribunal recorrido vertida no seu iter decisório, mas sem nunca daí retirar qualquer consequência a nível da impugnação da matéria de facto (cfr. conclusões 20ª, 27ª, 52ª, 53ª, 54ª, 56ª,).
Na sua conclusão 59ª faz alusão ao ponto 5º do elenco dos factos provados, mas sem se compreender o que pretende pois que apenas refere e passamos a citar: “Quanto ao ponto 5 dos factos não provados, como compreender ou aceitar que, face a sua enorme relevância para a descoberta da verdade no âmbito dos presentes autos e para a realização da visada Justiça, o Tribunal a quo, visando colmatar uma eventual gralha de patrocínio, não tenha sido oficiosamente instado o recorrente, recorrida ou o citado o identificado Tribunal para que viesse a estes autos confirmar ou infirmar a existência de tal decisão! não tenha sido oficiosamente instado o recorrente, recorrida ou o citado o identificado Tribunal para que viesse a estes autos confirmar ou infirmar a existência de tal decisão!”.
E depois remata:
Não fosse a incorrecta valoração da prova efectuada pelo Tribunal a quo, não teriam sido dados como provados factos que conduziram a que os critérios/requisitos da acção pauliana se pudessem dar como cumpridos e assim, consequentemente, não ter sido proferida decisão no sentido da sentença em crise”. (conclusão 61ª).
Nos presentes autos, decorre que o Tribunal a quo fez uma errada interpretação e valoração da prova testemunhal produzida, já que a mesma permitiria dar como demonstrados factos que omitiu no elenco dos provados, designadamente que o recorrente manteve uma relação extraconjugal por diversos anos, que veio ao conhecimento dos seus familiares e que conduziu a que a sua esposa tomasse as decisões que tomou” (conclusão 66ª).
Mas que factos da fundamentação factual constante da sentença estão incorrectamente julgados no entender do apelante?
Ou que factos foram alegados que deveriam ter sido considerados provados e não o foram? (o referido na conclusão 66ª e manifestamente conclusivo e sem qualquer relevância para o thema decidendum).
A resposta é simples: como o evidenciam as alegações a eles não se faz qualquer referência.
E os recorrentes não fazem tal referência quer no corpo alegatório quer nas conclusões formuladas.
Como refere Abrantes Geraldes[10], quando sintetiza o regime que agora vigora sempre que o recurso respeite à impugnação da decisão da matéria de facto:
“a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
(…).
O afirmado pelo recorrente e supra transcrito, bom como o que constam das respectivas conclusões reduz-se a simples alusões ao julgamento da matéria de facto de forma genérica que a nossa lei adjectiva rejeita e não à eliminação, aditamento ou alteração de quaisquer factos concretos.
Diga-se, aliás, que a alusão aos “concretos pontos de facto”, contida na alínea a) do nº 1 do artigo 640.º já citado visa acentuar o carácter atomístico, sectorial e delimitado que o recurso ou impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto em regra deve revestir.
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Aqui chegados importa dizer que, sob pena de se desvirtuar a letra da norma do artigo 640.º, que vincula o intérprete nos termos do artigo 9.º do C. Civil, e a sua ratio, considerando a evolução legislativa no sentido da alteração do regime do recurso da matéria de facto, (D. Lei 39/95 de 15 de Fevereiro, D. Lei 183/200 de 10 de Agosto e o D. Lei 303/2007 de 24 de Agosto e Lei 41/2013 de 26/06), este regime, ainda que convertendo em maior facilidade o ónus de todos os intervenientes, impõe a sua observação estrita, compatível com a sanção prescrita em função da enunciada omissão­­-a rejeição do recurso, no que a esta impugnação respeita.
Significa, portanto que o apelante não cumpriu o ónus supra aludido, o que implica a rejeição do recurso quanto à impugnação da decisão da matéria de facto se dela o recorrente quis fazer uso.
Como refere Abrantes Geraldes[11] “A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria facto;
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados…
(…)”.
Na realidade, também o legislador no seguimento da orientação dos anteriores diplomas, que estatuíam sobre esta matéria, continua a não prever o prévio aperfeiçoamento das conclusões de recurso, quando o apelante não respeita o ónus que a lei impõe.
Desta forma, o efeito de rejeição não é precedido de despacho de aperfeiçoamento, o que se explica pelo facto da possibilidade de impugnação da decisão de facto resultar de uma alteração reclamada no domínio do processo civil e estar em causa a impugnação de decisão de matéria de facto que resultou de um julgamento em relação ao qual o tribunal “ad quem” não teve intervenção e por isso, só a parte interessada estará em condições de poder impugnar essa decisão.[12]
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Consequentemente, em obediência ao preceituado no artigo 640.º, nº 2 al. a) do NCPCivil, impõe-se rejeitar o recurso, no que à matéria de facto respeita se dela o recorrente quis fazer uso.
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Ora, permanecendo inalterada a matéria de facto não existe fundamento para que se altere a decisão recorrida, que fez, em nosso entender, uma correcta subsunção jurídica do quadro factual que deu como provado.
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Atentemos.
Na presente acção, a Autora lançou mão de um meio de tutela (impugnação pauliana) dirigido à conservação da garantia patrimonial do credor, contra actos praticados sobre os bens do devedor susceptíveis de compreender aquela garantia, cujo regime se mostra vertido nos artigos 610.º e ss. do C.Civil.
Conforme decorre de tais preceitos legais, são requisitos da procedência da impugnação de actos celebrados pelo devedor em prejuízo dos credores:
a) A existência de um crédito;
b) Ser o crédito anterior ao acto que envolva a diminuição da garantia patrimonial ou, sendo posterior, ter sido realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do crédito;
c) Resultar do acto a impossibilidade para o credor de obter a satisfação plena do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade;
d) Tratando-se de acto oneroso, a existência de má fé, tanto da parte do devedor como do terceiro, entendendo-se por má fé a consciência do prejuízo que o acto cause ao credor;
e) Tratando-se de acto gratuito, a impugnação procede, ainda que devedor e terceiro tivessem agido de boa fé.
Como deflui das alegações recursivas o Réu recorrente apenas questiona a verificação do terceiro dos requisitos suporá elencados, ou seja, resultar do acto a impossibilidade de o credor obter a satisfação integral do crédito ou o agravamento dessa impossibilidade.
Como esclarecem os Prof. Pires de Lima e Antunes Varela[13], o apontado requisito traduz-se numa diminuição dos valores patrimoniais que, nos termos do artigo 601.º, respondem pelo cumprimento da obrigação, diminuição essa que pode resultar tanto do decréscimo do activo, como do aumento do passivo, acrescentando que tal situação se resolvia, no Código Civil de 1867 (artigo 1033.º), na insolvência do devedor, mas que, actualmente, se reconduz à simples impossibilidade prática de obter a satisfação do crédito.
Doutrina que o segundo deles reafirma, ao escrever que “o Código de 1966, através da nova formulação do requisito, pretendeu deliberadamente colocar ao alcance da pauliana os actos deste tipo, que, não provocando embora, em bom rigor, a insolvência do devedor, podem criar para o credor a impossibilidade de facto (real, efectiva) de satisfazer integralmente o seu crédito, através da execução forçada”.[14]
Pensamento que, aliás, encontra eco no Prof. Menezes Leitão[15], Cura Mariano[16] e na jurisprudência do S.T.J..[17]
Em termos práticos, a impossibilidade de satisfação do crédito afere-se através da avaliação da situação patrimonial do devedor após a prática do acto, comparando o valor das dívidas com o dos bens que lhe são conhecidos; no caso de o montante das dívidas exceder o valor dos bens, ocorrerá a lesão da garantia patrimonial do credor que justifica o recurso à impugnação pauliana.
A data do acto impugnado é, pois, a que conta para se saber se dele resultou a impossibilidade, de facto, de satisfação integral do crédito do impugnante.[18]
Ora, perscrutando a matéria de facto provada, demonstra ela, com clareza, que as doações efectuadas pelos recorrentes impossibilitam a recorridos de se fazer pagar pelo património daqueles, uma vez que, em relação aos restantes bens que lhe são conhecidos, não ficou demonstrado que fossem de valor muito superior ou bastante para satisfação do crédito da Autora.
Como se afirma na decisão recorrida os imóveis doados pelos primeiros Réus aos segundos e terceiros são os únicos bens conhecidos dos primeiros Réus que podem ser penhorados e vendidos no âmbito da execução instaurada pela Autora, pois que as metades indivisas em relação a 4 imóveis de que o primeiro Réu é proprietário não têm valor suficiente para satisfação do valor total do crédito da Autora.
Na verdade, e como aí também se refere o valor do crédito da Autora rondará actualmente €114.665,73, e, o valor apurado na perícia para as metades indivisas de que os 1º RR são titulares rondará €147.735,00 (correspondendo €164.150,00 à metade indivisa, a que se deverá subtrair cerca de 10% desse valor, conforme o Sr. perito esclareceu em sede de julgamento, que corresponderá à percentagem para uma compra em compropriedade que tem necessariamente menos interessados), valor ao qual sempre se terá de abater a hipoteca sobre eles registada, ónus real, de valor de €100.000,00 que, assim que accionada, não permite garantir a satisfação do crédito da Autora (restarão cerca de €47.735,00).
De todo o modo, a falada impossibilidade ou o seu agravamento sempre resultariam das regras do ónus da prova estabelecidas no artigo 611.º do C. Civil, que abre uma excepção à regra geral firmada no artigo 342.º, n.º 1 do mesmo diploma legal.
Em sede de impugnação pauliana, o credor tem apenas de provar o montante das dívidas, cabendo ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor.
Voltando à lição dos Professores Pires de Lima e Antunes Varela, “em princípio, numa acção de impugnação, devia caber inteiramente ao autor fazer a prova dos requisitos necessários à procedência do pedido (cfr. art. 342.º) e, portanto, devia caber-lhe não só a prova do montante da dívida e da anterioridade do crédito, como da diminuição da garantia patrimonial nos termos da alínea b) do artigo anterior. No entanto, por razões compreensíveis–dificuldade ou mesmo impossibilidade de provar que o devedor não tem bens–o artigo atribui a este o encargo de provar que possui bens penhoráveis de valor igual ou superior ao das dívidas”.[19]
Tal significa, “em termos práticos, que provada pelo impugnante a existência e a quantidade do direito de crédito e a sua anterioridade em relação ao acto impugnado, se presume a impossibilidade de realização do direito de crédito em causa ou o seu agravamento”.[20]
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Improcedem, desta forma, todas as conclusões formuladas pelo Réu recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
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IV - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedente por não provada e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas da apelação pelos Autores apelantes (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 11 de Janeiro de 2021.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Pedro Damião e Cunha
____________________
[1] In “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 7ª Ed., págs. 172 e 173.
[2] In “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, pág. 359.
[3] In www.dgsi.pt
[4] In Comentários ao Código de Processo Civil Coimbra, Almedina, 1999, pag. 465.
[5] Obra citada pág. 465-466.
[6] In Recursos em Processo Civil–Novo Regime, 2ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra, Almedina, 2008, pag. 141-142.
[7] In www.dgsi.pt
[8] In CJ STJ XIX, III, 126.
[9] Abrantes Geraldes, obra citada pag. 126.
[10] In “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2014 . 2ª Ed., pág. 132.
[11] Obra citada pág. 134/135
[12] Abrantes Geraldes obra citada pág. 136.
[13] Código Civil Anotado Vol. I, 4ª ed., pág. 626.
[14] Das Obrigações em Geral Vol. II, pág. 436.
[15] Direito das Obrigações, Almedina, Vol. II, pág. 293.
[16] Impugnação Pauliana, pág. 173 e seguintes.
[17] Acórdãos de 08.10.2009 e de 12.07.2007, processo n.º 07A1851, em www.dgsi.pt.
[18] Prof. Antunes Varela, obra e local referidos; acórdão do STJ, de 10.07.2008, processo n.º 08A2083, em www.dgsi.pt.
[19] Obra citada pág. 627.
[20] Acórdãos do STJ, de 15.06.1994, 11.05.1995, 08.11.2007, 26.02.2009 e 08.10.2009, o primeiro na CJ/STJ, Ano II, Tomo II, pág. 142, o segundo no BMJ 447, pág. 508, os dois subsequentes em www.dgsi.pt.